o Burocratês

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© Revista da ABRALIN, v. 7, n. 1, p. 215-258, jan./jun. 2008. O BUROCRATÊS: ANÁLISE À LUZ DE UMA GRAMÁTICA RETÓRICA Maria Inez Matoso SILVEIRA Universidade Federal de Alagoas - UFAL RESUMO O burocratês é o registro lingüístico dos documentos administrativos oficiais. A autora analisa a linguagem burocrática em 48 exemplares de ofícios, gênero freqüente na correspondência administrativa. O referencial embasador da análise é de cunho sócio-retórico e comprovou as relações de força materializadas no uso da língua nas instâncias do poder institucional. ABSTRACT The bureaucratese is an official style used in written documents in administration of modern western communities. The author analyzed 48 official letters using a social-rhetorical discourse analysis and found many marks of power in the texts. This is an evidence of the principle that language materializes power relations, especially in official institutions. PALAVRAS-CHAVE Burocratês. Gênero textual ofício. Análise crítica e sócio-retórica. KEY WORDS Bureaucratese. Official letters. Social-rhetorical discourse analysis. Introdução Este trabalho tem como tema a linguagem burocrática, comumente chamada de burocratês, por analogia ao juridiquês (linguagem jurídica), do qual é herdeiro, e dele continua recebendo muita influência. Não se trata de um dialeto da língua, porque não é adquirido de forma natural; e também não tem fronteiras geográficas. Segundo Mendonça (1987), o

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Artigo de política e história.

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  • Revista da ABRALIN, v. 7, n. 1, p. 215-258, jan./jun. 2008.

    O BUROCRATS: ANLISE LUZ DEUMA GRAMTICA RETRICA

    Maria Inez Matoso SILVEIRAUniversidade Federal de Alagoas - UFAL

    RESUMOO burocrats o registro lingstico dos documentos administrativos oficiais. A autora analisaa linguagem burocrtica em 48 exemplares de ofcios, gnero freqente na correspondnciaadministrativa. O referencial embasador da anlise de cunho scio-retrico e comprovou asrelaes de fora materializadas no uso da lngua nas instncias do poder institucional.

    ABSTRACTThe bureaucratese is an official style used in written documents in administration of modernwestern communities. The author analyzed 48 official letters using a social-rhetorical discourseanalysis and found many marks of power in the texts. This is an evidence of the principlethat language materializes power relations, especially in official institutions.

    PALAVRAS-CHAVEBurocrats. Gnero textual ofcio. Anlise crtica e scio-retrica.

    KEY WORDSBureaucratese. Official letters. Social-rhetorical discourse analysis.

    Introduo

    Este trabalho tem como tema a linguagem burocrtica, comumentechamada de burocrats, por analogia ao juridiqus (linguagem jurdica),do qual herdeiro, e dele continua recebendo muita influncia. No setrata de um dialeto da lngua, porque no adquirido de forma natural;e tambm no tem fronteiras geogrficas. Segundo Mendona (1987), o

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    burocrats caracteriza-se como um registro lingstico de muito prestgio,muito usado nos documentos oficiais da burocracia administrativa pblicae empresarial. Essa linguagem legitimada pelas relaes institucionaisentre as entidades oficiais e as juridicamente constitudas, atravs degneros textuais convencionalizados e reconhecidos pela comunidade dediscurso em que circulam. Esses gneros organizam as aessociodiscursivas que mantm as relaes de poder e prestgio entre asdiversas instncias da burocracia estatal e, por extenso, das empresasprivadas.

    Alm de ser um registro lingstico a que poucos tm acesso, tantonas habilidades de recepo como de produo, este tipo de linguagem o burocrats tem merecido pouca ateno por parte dos estudoslingsticos acadmicos no Brasil. Geralmente, no nosso pas, o tema abordado nos chamados cursos de redao oficial, em instruesnormativas governamentais e nos manuais de redao oficial que orientamos escribas pessoas encarregadas de escrever os textos que veiculam osvrios gneros da correspondncia oficial nas reparties pblicas eescritrios das diversas instituies. O uso desse tipo de escrita, que muitoinfluencia o portugus escrito padro formal, movimenta todas as esferasdo mundo do trabalho nos setores administrativos.

    A pesquisa aqui apresentada teve como objetivo analisar ascaractersticas lingstico-formais do burocrats, atravs do estudo deexemplares autnticos de ofcio, espcie de carta oficial utilizadaexclusivamente em instituies oficiais e, por extenso, naquelas entidadesjuridicamente constitudas. O ofcio um dos gneros mais usados nacorrespondncia oficial e empresarial, e serve para atender a vriospropsitos comunicativos (solicitar prstimos, convidar para eventos,encaminhar documentos e propostas, dar informaes relevantes, etc.).

    O estudo em tela teve como corpus os textos constantes em 48exemplares de ofcios expedidos e recebidos pela ETFAL (Escola TcnicaFederal de Alagoas, atual CEFET-AL) e pelo LCV (Departamento deLnguas Clssicas e Vernculas) da UFAL (Universidade Federal de

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    Alagoas) durante os anos de 1997 a 1999. A anlise focalizou as principaiscaractersticas do registro burocrtico presentes nos textos dos ofcios docorpus: a formalidade, a impessoalidade e a persuaso. Tambm foramestudados outros elementos, tais como as escolhas lexicais, a textualizao,a complexidade sinttica e as modalizaes.

    Para a fundamentao terica, alm do estudo de obras tericas e decunho reflexivo sobre o burocrats (MENDONA, 1987; SHUY, 1998;TIERSMA, 1999; LANHAM, 1999) a autora utilizou-se de vriosmanuais de uso consagrado e documentos oficiais de natureza normativapara a correspondncia oficial (BELTRO, 1993; BRASIL, 1998, etc.).Ainda em relao ao referencial terico que serviu de base para o estudo,a autora buscou subsdios de vrias tendncias convergentes dos estudosenunciativos e lingstico-discursivos, tais como a lingstica de texto(CERVONI, 1989; KOCH, 1984; BEAUGRANDE, 1997), a anlisecrtica do discurso (FOWLER ET AL, 1979; KRESS, 1985); e estudosretrico-gramaticais (KOLLN, 1999).

    1 As caractersticas do burocrats

    Conforme Mendona (1987), o burocrats, sendo caudatrio dojuridiqus1, deste conserva algumas caractersticas, mas possui aspectosprprios, que se evidenciam especialmente nos usos lexicais e nasconstrues gramaticais. Entretanto, acrescenta a autora, as duasmodalidades de comunicao mantm um continuum que vai do usoformal geral at as formas mais divergentes desse uso (MENDONA,1987, p. 13).

    No que respeita s relaes entre a linguagem jurdica e a linguagemburocrtica, convm frisar que ambos os registros infringem as regras deuso comum da lngua, normalmente adquiridas natural e inconscientementeno convvio social. Ao contrrio, as regras dessas duas linguagens (ojuridiqus e o burocrats) tm que ser aprendidas artificial econscientemente. So, portanto, linguagens para uso e aplicao nos seus

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    contextos especficos, e a que poucas pessoas tm acesso. Trata-se de umainstncia muito especfica do processo de letramento.

    A linguagem burocrtica, mesmo no apresentando as fortescaractersticas simblicas e ritualsticas da linguagem jurdica, detm umpoder especfico, j que o seu uso regulado e normatizado. Osregulamentos e as normas devem ser obedecidos, havendo algum tipo desano para os que no o fazem. As regras so determinadas pelo sistemaburocrtico sem consulta prvia queles que devero obedecer a elas,criando um sistema de comunicao fechado, que reflexo de um sistemaadministrativo tambm fechado, hierarquizado, impessoal, autoritrio,com usos estranhos (MENDONA, 1987, p. 22).

    Com efeito, pelo menos no que se refere correspondncia oficial, ouseja, aquela relativa administrao dos rgos governamentais, osregulamentos e as normas de que fala a autora esto atualmenteconsubstanciadas no Manual de Redao da Presidncia da Repblica,emitido pela Secretaria da Administrao Federal. Em 1992, este rgofez baixar a Instruo Normativa N. 4, publicada no Dirio Oficial daUnio em 09/04/92, com a finalidade de consolidar as regras constantesdo Manual de Redao da Presidncia da Repblica, tornando obrigatriasua observao para todas aquelas modalidades de comunicao oficialcomuns aos rgos que compem a Administrao Federal (p. 137).

    Ainda com relao s normas oficiais, vale citar uma publicao daSubsecretaria de Assuntos Administrativos do Governo Federal e daConsultoria Jurdica do MEC que tem sido uma obra de referncia nasinstituies em que os exemplares do corpus deste trabalho foram colhidos.Trata-se das Normas Sobre Correspondncias e Atos Oficiais que, na sua 5edio (1998), seguem a Instruo Normativa n. 04/92. Neste manual,l-se que ele procura atender crescente demanda de instituiesgovernamentais e no-governamentais, bem como da sociedade, emconcorrer para maior sistematizao e melhor padronizao dascomunicaes administrativas (p. 7). Veja-se a seguir, na ntegra, talexposio:

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    A elaborao de correspondncias e atos oficiais deve caracterizar-sepela impessoalidade, uso do padro culto da linguagem, clareza,conciso, formalidade e uniformidade. No caso da redao oficial,quem comunica sempre o Servio Pblico; o que se comunica sempre algum assunto relativo s atribuies do rgo quecomunica; o destinatrio dessa comunicao ou o pblico, oconjunto dos cidados, ou outro rgo pblico. A redao oficialdeve ser isenta de interferncia da individualidade de quem a elabora.(Normas sobre Correspondncia e Atos Oficiais, 1998, p. 11)

    Como se v na citao acima, a caracterstica da formalidade nacorrespondncia oficial explicada como sendo relativa a certas regrasde forma. Na realidade, a questo no se esgota por a. Alm dessasformas convencionais externas (geralmente atribudas apenas superfcielingstica e a questes de padronizao esttica e diagramtica do gnero),a formalidade existente nos gneros que realizam a correspondncia e osatos oficiais tem, sim, semntica e pragmaticamente, um fortecomponente retrico evidenciado no tratamento cerimonioso, dedeferncia e de respeito que aumenta de intensidade na medida em quea audincia est mais ligada s posies de poder. Quando a audinciano goza de muita credibilidade, ou seja, quando no ocupa um lugarsocial de alto prestgio, a formalidade no tratamento se reveste de frieza ede despojamento. Trata-se, portanto, de uma conveno implicitamenteideolgica que brota das formaes discursivas que se foramhistoricamente consolidando e se naturalizando nessas instncias deuso do discurso institucional. Como diz Fairclough (1995, p. 94), asconvenes discursivas naturalizadas so o mecanismo mais eficaz paramanter e reproduzir as dimenses ideolgicas da hegemonia.

    Outro trao bem caracterstico da linguagem burocrtica, e que vemassinalado logo no incio da citada exposio oficial, a impessoalidade.No se trata apenas, evidentemente, da impessoalidade como propriedadede alguns verbos descritos nas nossas gramticas normativas, mas daanulao da autoria do indivduo escrevente e de qualquer trao que

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    evidencie explicitamente a marca da sua pessoa, ou seja, da suasubjetividade2. Enfim, pretende-se que o escrevente se anule ou se apagueenquanto sujeito da sua produo textual. E isto est bem claro no fimdo segundo pargrafo daquela citao: A redao oficial deve ser isentade interferncia da individualidade de quem a elabora. Tal recomendaose explica pelo ideal de agncia institucional: no o redator quem agee fala, e sim a instituio o servio pblico -, e por extenso, a empresa,a corporao. Convm retomar aqui algumas consideraes relativas aocontexto enunciativo em que se d a produo dos ofcios, j discutidoanteriormente. A bem da verdade, acrescente-se, existem trs entidadesenvolvidas nessa produo: o redator, isto , o escrevente enquantoescriba, mero organizador do texto; o locutor ou emissor, entendidacomo a pessoa que assina, ou seja, a quem imputada a responsabilidadedo enunciado (DUCROT, 1987, p. 183), e o enunciador, ou seja, ainstituio, cuja voz a dominante3.

    Feitas essas consideraes, convm, em seguida, verificar como alinguagem burocrtica se realiza nos exemplares de ofcio presentes nocorpus estudado, considerando, primeiramente, essas duas importantes,e talvez as principais, caractersticas dessa linguagem, quais sejam, aformalidade e a impessoalidade, atravs do exame de suas marcaslingsticas nos nveis discursivo, textual, sinttico e lexical.

    A anlise dessas marcas lingsticas ser feita na perspectiva de umagramtica retrica, considerando-se que a situao retrica - a audincia,o propsito e o tpico - determinam no s o gnero, mas tambm asescolhas gramaticais. Assim, entender a gramtica retrica significaentender as escolhas gramaticais disponveis quando se escreve, e os efeitosretricos que essas escolhas acarretam no leitor (KOLLN, 1999, p. 3).

    2 As marcas da formalidade

    Percebe-se, primeiramente, que a formalidade aparece marcada nosofcios logo a partir dos prprios vocativos, que so elementos constitutivosdo formato do gnero, aparecendo em 46 exemplares do corpus (96%).

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    Obviamente, esses vocativos variam conforme o grau de formalidadeexigido pela posio social da audincia, ou melhor, conforme a posioocupada pela audincia na escala hierrquica dos postos vigentes nosdiversos escales da organizao administrativa, principalmente no serviopblico, mas com reflexo tambm na empresa privada. As formas maisfreqentes foram Senhor(a) Diretor(a), Prezado(a) Senhor(a), Senhor(a)Chefe, Excelentssimo Senhor, Ilustrssimo Senhor.

    Outra marca da formalidade se evidencia nos pronomes de tratamento(tambm chamados de frmulas de tratamento) que, naturalmente,tambm variam conforme as audincias, tal como ocorre com os vocativos,e com estes guardam a devida coerncia4. Nos exemplares de ofcio docorpus, verificou-se o uso muito recorrente de Vossa Senhoria e o uso muitorarefeito de Vossa Excelncia. Dentre os exemplares do corpus, 8 noapresentam pronomes de tratamento nos seus textos.

    Como se v, o tratamento mais freqente V.S (ou V. Sa.), grafadoassim, de forma abreviada. Coincidncia ou no, o Vossa Senhoria escritopor extenso aparece em trs dos oito ofcios de convite para eventos.Considerando-se a natureza mais acentuadamente persuasiva deste tipode ofcio, essa certamente uma forma de demonstrar deferncia, sendotambm uma discreta estratgia retrica de envolvimento. Explica-se ouso do outro tratamento mais formal: o exemplar em que aparece o V.Exa. (assim, abreviado) dirigido a um parlamentar, isto , a um deputadofederal; o exemplar em que aparece o Vossa Excelncia por extenso oriundo do Tribunal de Contas de So Paulo, ou seja, provm de umrgo da rea jurdica, cuja linguagem mais formal e mais conservadora.

    Ainda em relao aos pronomes de tratamento, interessante notar que,nos exemplares de ofcio do corpus, eles so usados parcimoniosamente aolongo do texto. Assim sendo, dentre todos os ofcios que formam o corpus,eles aparecem trs vezes em apenas um (1) texto; duas vezes em cadatexto de dez exemplares; apenas uma vez em cada texto num conjunto de29 exemplares, e simplesmente no aparecem em nove exemplares.Convm reconhecer que essa parcimnia no uso e essa ausncia dos

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    pronomes de tratamento ao longo dos textos tm a ver tambm com aquesto da impessoalidade. Aqui, as duas caractersticas formalidade eimpessoalidade - se imbricam.

    Apesar de os compndios de gramtica normativa e os manuais decorrespondncia oficial, a exemplo de Beltro (1993, p. 74), prescreveremque a concordncia dos pronomes de tratamento deve ser feita com a 3pessoa do singular ou do plural, em alguns dos exemplares de ofcioanalisados observou-se o uso do possessivo vosso e vossa, como se v nasseguintes passagens, onde eles aparecem devidamente grifados:

    (1) Para abrilhantar a reunio de abertura, solicitamos vossa autorizaopara a apresentao do CORAL DA ESCOLA TCNICAFEDERAL DE ALAGOAS ...

    (2) Certos de vossa ateno, antecipamos nossos sincerosagradecimentos e aguardamos pronunciamento sobre nosso pleito.

    (3) Neste sentido, gostaramos de contar com a vossa colaboraopara que fosse feita a maior divulgao possvel.

    (4) Encaminhamos o presente convite a fim de contarmos com avossa importante presena no evento ...

    A insistncia no uso do possessivo vosso, vossa evidencia a deferncia eo tom respeitoso que so componentes da formalidade entendida comoum ritual cerimonioso e que tem marcado tradicionalmente a linguagemburocrtica, principalmente quando os propsitos comunicativos sosolicitar algum prstimo e convidar para eventos. Sem dvida, trata-se deuma estratgia retrica que visa persuadir a audincia. Evidentemente, huma gradao desse tom cerimonioso conforme a credibilidade da audincia.

    A formalidade tambm marcada nos exemplares estudados atravsdo uso de frases e frmulas de polidez que soam como uma certapomposidade ou rebuscamento, algo muito criticado explicitamente pelosmodernos manuais de redao oficial e empresarial, a exemplo de Gold(1999, p. 20), que considera essas expresses formulaicas como chaves.

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    No dizer da autora, o chavo um vcio de estilo j incorporado comolinguagem do texto empresarial5. Apesar de todas as recomendaes parao banimento desses expedientes na redao oficial e empresarial, elesparecem resistir, principalmente como mecanismo de concluso do texto.No corpus estudado, foi verificada a recorrncia desse tal recurso viciosoem 11 ofcios (cerca de 23%). Neste sentido, so consideradas j esvaziadascertas frmulas de polidez e cortesia utilizadas nos fechos dos ofcios,sendo, portanto, chaves, como as que se seguem:

    (5) Aproveitamos o ensejo para apresentar a V. S as nossas expressesda mais alta considerao e apreo.

    (6) Nesta oportunidade, renovo a Vossa Excelncia a manifestaode meu elevado apreo

    (7) Sendo s para o momento, aproveitamos a oportunidade pararenovar os nossos protestos de considerao.

    (8) Renovamos, por oportuno, nossos protestos de considerao eestima.

    Mas outras expresses consideradas chaves ou clichs que podemsoar como afetao tambm ocorrem no incio e no meio do primeiropargrafo dos textos, introduzindo o propsito comunicativo, como napassagem a seguir, onde uma dessas expresses aparece devidamente grifada:

    (9) Incumbiu-me o Sr. Capito dos Portos de Alagoas de solicitaros bons ofcios de V. S no sentido de ceder por emprstimoquatro murais no perodo de 24/05 a 15/06/99, a fim destaCapitania realizar uma exposio de quadros sobre a Marinhado Brasil.

    Ainda com relao formalidade no sentido do uso recorrente dealgumas frmulas, mesmo no sendo um trao considerado positivo pelosmodernos planificadores e reformadores da linguagem burocrtica, jque so tidas como desgastadas, vale frisar a sua recorrncia nas

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    introdues, ou seja, logo no incio do primeiro pargrafo dos textos. Elasesto presentes em 25% dos exemplares (12 dentre os 48 exemplares docorpus) e tambm parecem resistir aos atuais esforos de simplificao dalinguagem na correspondncia oficial e empresarial. Vejam-se a seguir algunsexemplos desses expedientes, que vo devidamente grifados:

    (10) Servimo-nos deste para solicitar a V. S se existe interesse destaInstituio em prover ...

    (11) Pelo presente, estamos comunicando a Vossa Senhoria que ...

    (12) Vimos, por meio deste, mui respeitosamente, convocar V. Sa participar de uma OFICINA ...

    (13) Vimos, pelo presente, comunicar a V.S que este Departamentopromover uma Palestra...

    (14) Cumprimentando V. S ao tempo em que encaminhamos paraconhecimento e providncias ...

    (15) Formulo a Vossa Senhoria meus cumprimentos e venhoconvid-lo, em nome do Senhor Luiz Carlos Bresser Pereira...

    O esforo de simplificao da linguagem burocrtica nos atos, nosdocumentos governamentais e na correspondncia oficial e empresarialno nosso pas tem naturalmente contribudo positivamente em muitosaspectos, principalmente no que respeita ao banimento do uso de frmulasarcaicas e empoladas, que a faz o burocrats parecer uma linguagem parainiciados, de carter excludente. De fato, alm do uso de terminologiastcnicas especficas, a linguagem burocrtica, quando revestida de suastradicionais caractersticas estilsticas, se transforma em um srio problemade compreenso para as pessoas externas s suas comunidades discursivas,ou seja, para as pessoas que no esto diretamente ligadas aos setores daburocracia administrativa em instituies pblicas e particulares.

    H de se convir, entretanto, que esse esforo de simplificao temtambm propiciado alguns equvocos. Isso certamente se deve ao intentode limpar essa linguagem, alijando dela alguns fortes componentes do

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    que se costuma chamar de retrica ornamental (ou seja, tida normalmentecomo ornamental, mas, vale dizer, nem sempre gratuita) de que se revestiaa linguagem burocrtica ao longo de sua secular tradio, principalmenteno que concernia escritura de cartas. Entretanto, essa assepsia nodeve descaracterizar o ofcio como uma forma de realizar autnticasinteraes discursivas, sociais, pragmticas e, portanto, retricas, que soreflexos dos comportamentos sociais e das relaes de poder nas esferaspor onde esse gnero circula.

    Diante isso, e reportando-se aos equvocos aventados, convm assinalara distoro verificada nas normas e manuais de redao oficial eempresarial, a exemplo de Beltro (1993), que classificam mecanicamentecomo simples fechos (tambm confundidas como concluses) asfrmulas atenciosamente, respeitosamente, cordialmente, cordiais saudaes,etc., que precedem assinatura do remetente responsvel pelo ofcio. Narealidade, trata-se de frmulas de saudao, ou cumprimentos de despedida,de uso perfeitamente natural e legitimado nesse gnero, j que o ofcio um tipo de carta, e a carta, como se sabe, segue o ritual da conversao.No mximo, poder-se-ia dizer que as frmulas de saudao ou dedespedida fecham a interao. Trata-se, portanto, de um dispositivoretrico ou pragmtico de uso consagrado no gnero ofcio. Nosexemplares analisados, essas frmulas aparecem com uma recorrnciaconsidervel, apesar de no aparecerem em seis exemplares. As queapareceram com mais freqncia foram atenciosamente e cordialmente,com uma recorrncia em torno de 80%.

    Ainda a propsito dessas frmulas de saudao, vale acrescentaralgumas informaes a respeito da evoluo da sua presena nos ofcios.Em exemplares de ofcio do sculo XVIII6 podem-se ver as saudaesDeus Guarde a Vossa Excelncia muitos anos ou simplesmente Deus GuardeV. Exa. Essas frmulas esto presentes tambm em ofcios do sculo XIX.7

    Outra frmula de saudao de que se tem notcia e que vigorou nosofcios e cartas nas primeiras dcadas do sculo XX, no nosso pas, foiSade e Fraternidade (BELTRO, 1993, p. 279). Segundo esse autor, a

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    frmula foi criada por Benjamin Constant, e, em tempo de guerra ourebelio, trocava-se Sade e Fraternidade por Paz e Fraternidade.Retrocedendo no tempo, informa ainda o autor que a frmula Sade japarecia em ofcios no sculo XIII, ou seja, quando a literatura portuguesadava seus primeiros passos.

    Finalmente, h de se ressaltar, nessa questo da formalidade dos ofcios,o rebuscamento do vocabulrio que aparece alm das frases e expressesformulaicas e dos termos tcnicos especficos dos temas neles abordados.Trata-se de palavras de gosto um tanto erudito ou conservador, certoseufemismos, alguns resqucios do juridiqus, termos abstratos ouinespecficos, e ainda termos do jargo burocrtico. Enfim, palavrasdiferentes daquelas encontradas nas interaes do nosso dia-a-dia, e quecontribuem para incrementar a formalidade do gnero em questo. Todoesse lxico formal e abstrato que aparece nos ofcios integra esse gnerono chamado estilo oficial que se expande para outros gneros peculiares burocracia estatal e empresarial. Evidentemente, esse lxico tem muito aver com o prestgio e a legitimao do poder institucional, como foiapontado por Fowler (1985, p. 69).

    Dentre as palavras e expresses que compem esse vocabulrio s vezesrebuscado (no sentido de incomum) e, no mais das vezes, formal (nosentido de elaborado), que aparece nos exemplares, tm-se, por exemplo,os verbos absorver, averbar, catalizar, compartilhar, dignar-se, ensejar,expedir, instruir, ministrar, proceder, proferir, promover, providenciar,submeter, tramitar, etc.; e alguns grupos nominais, como:

    consulta departamental, contato prvio, convnio celebrado, convniofirmado, custos advindos, custos operacionais, esprito pblico, exclusoautomtica do direito ao correspondente adicional, finalidade precpua,fora de trabalho, indigitada condio de periculosidade, indisponibilidadeoramentria, laudo pericial, materiais subtrados, poltica econmicagovernamental, processo de redistribuio, processo seletivo, servidoreslotados, termo lavrado.

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    Constatam-se tambm algumas frases com arcasmos do tipo sito Rua Baro de Atalaia, solicito os bons ofcios, e uma expresso emlatim situao de pro tempore. Verifica-se ainda uma quantidadeconsidervel de substantivos abstratos e/ou de significao inespecfica,cujo sentido s se esclarece dentro do discurso, ou seja, sua realizaolexical ocorre textualmente como, por exemplo:

    acertos, alternativas, anlise, apoio, atuao, avaliao, categoria,clientela, colaborao, compromisso, comunidade, conhecimento,dados, deliberao, dependncias, dinmica, discusso, empenho,entidade, esclarecimentos, evento, flexibilidade, informaes, instalaes,instituio, instrues, interesse, intervenincia, membro, mobilidade,modalidade, rgo, pleito, possibilidade, procedimento, processo,pronunciamento, providncias, qualificao, realizao, responsabilidade,sistema.

    Dentre os efeitos retricos que esses itens lexicais promovem nainterao discursiva, vale a pena salientar o efeito atenuante, ou seja, oconhecido eufemismo, que se verifica nos grupos nominais comoindisponibilidade oramentria para se referir crnica falta de verbapara se realizarem aes de interesse dos servidores, e indigitada condiode periculosidade para se referir s pssimas condies de trabalho,inclusive com risco de vida, a que os trabalhadores tm que se submeternas reparties governamentais e nas empresas privadas.

    Quanto profuso de termos abstratos e inespecficos, convm ressaltaro j mencionado estilo oficial (official style) abordado por Lanham (1999,p. 1-2), e por ele caracterizado como a linguagem das burocracias dasgrandes organizaes; uma linguagem centrada nos nomes, cheias deabstraes estticas. Comenta o autor que, atualmente, esse estilo teminfluenciado grandemente a prosa escrita em vrios setores do mundodo trabalho. Evidentemente, essa tendncia est imbricada na questo daimpessoalidade que, junto formalidade, permeia os documentos e acorrespondncia na burocracia administrativa.

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    3 As marcas da impessoalidade

    A impessoalidade na linguagem dos ofcios marcada principalmentepor meio de dois recursos: a voz passiva e a nominalizao que, no raro,co-ocorrem nos textos burocrticos. Pragmtica ou retoricamente falando,os efeitos mais corriqueiros desses dois recursos retrico-gramaticais soa nfase no objeto da ao e o conseqente enfraquecimento ou apagamentodos agentes e o distanciamento dos interactantes. Dito de outra forma, taisprocessos tendem a anular ou obscurecer a identidade e a agncia explcitados interactantes, tentando eliminar, assim, os possveis traos desubjetividade e envolvimento no processo interativo.

    Segundo Biber (1988, p. 228), as construes na voz passiva tm sidoconsideradas como um dos mais importantes marcadores na superfcietextual do estilo descontextualizado que caracteriza a escrita,principalmente nos gneros profissionais e acadmicos. Isso resulta semprenuma apresentao da informao de forma mais abstrata e mais esttica.

    A voz passiva muito freqente nos gneros da burocraciaadministrativa, principalmente naqueles que se enquadram no que sepode chamar de provises legislativas,8 ou seja, leis, estatutos, regimentos,regulamentos, contratos, etc. No excerto a seguir, veja-se como a vozpassiva impessoaliza a ao da instituio que est impondo oregulamento:

    funcionria casada assegurado o direito de licena para acompanharo marido, se o marido, no exerccio da atividade civil ou militar,ou sendo servidor da Administrao Direta ou Indireta do Estadoe, por fora do ofcio, for mandado servir fora do Pas, ou em outroponto do territrio nacional ou do Estado. (Manual do Servidor.Secretaria de Administrao Governo de Pernambuco, 1984)9.

    Mendona (1987) e outros estudiosos preocupados com a reformulaoe a simplificao das linguagens jurdica e burocrtica, a exemplo de Tiersma(1999) e Shuy (1998), criticam o uso abusivo da voz passiva nos gneros

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    administrativos. Alegam eles que esse processo, quando se estende porlongas passagens do texto, costuma dificultar o processamento dacompreenso, principalmente quando essas construes passivas noenvolvem agentes humanos. Ainda a propsito disso, Tiersma (1999, p.206) cita estudos realizados por Charrow and Charrow (1979) em que seconstatou que as dificuldades de compreenso de oraes com passivasocorrem mais quando estas vm em oraes subordinadas. Reconhea-se,portanto, que quando vm em oraes principais, as apassivaes nooferecem problemas para o entendimento.

    Com efeito, h de se reconhecer que a voz passiva, quando usada deforma equilibrada e com a devida parcimnia, realmente um recursoeficaz para traduzir um dos princpios bsicos da burocracia enquantosistema administrativo: a eficincia nas aes. De fato, como lembraMendona (1987, p. 17-18), na burocracia administrativa, contam maisos resultados da ao do agente do que o agente da ao. Assim, a vozpassiva, por centrar-se mais no objeto da ao, realiza bem esse propsito.Portanto, o uso da passiva no se deve unicamente busca de umaimpessoalidade; na realidade, esse uso decorrente da prpria estruturado sistema burocrtico, que tem na eficincia seu principal objetivo.

    No corpus estudado, as oraes na voz passiva apresentam uma freqnciarazovel, aparecendo em 24 textos (50 % do total de exemplares).

    Diante dos dados acima, no se pode falar exatamente em uso abusivo;pelo contrrio, dir-se-ia que o emprego da passiva nos exemplares deofcio analisados equilibrado e, a bem dizer, razoavelmente bemdistribudo, alm de no oferecer, praticamente, quaisquer dificuldadespara a compreenso, como se ver nas passagens que viro adiante. Nestesentido, vejam-se a seguir algumas passagens em que o uso da passiva nosofcios se d como mera forma de dar nfase ao ou ao objeto da ao.

    (17) ... solicito a V. S que sejam afixados, em local de acesso aopblico, nesse rgo, os cartazes que seguem em anexo.

    (18) Salientamos que no sero consideradas freqncias e notas dealunos que no estejam regularmente matriculados no sistema.

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    (19) Ressaltamos que j foi expedida a Certido de Inteiro Teor doTermo de Ratificao de Escrituras Pblicas de Doao ...

    No mais das vezes, ocorrem passagens em que h oraes passivascom omisso do agente, como se v acima, nos excertos (17), (18) e (19),mas ocorrem tambm oraes com a presena deste, como se pode verificarnos excertos a seguir:

    (20) O evento ser patrocinado pela Universidade Federal de Sergipe.

    (21) A referida palestra ser ministrada por tcnicos da BRASQUIMICA Produtos Asflticos Ltda.

    (22) ... encaminhamos a V.S o Questionrio de Avaliao dosCursos, juntamente com a cpia da prova que foi aplicada, paraque seja procedida sua anlise e avaliao pelos professores doDepartamento de Letras Clssicas e Vernculas, para posteriorenvio quele Instituto.

    Mas na omisso do agente da passiva, como se sabe, que mais severificam os efeitos retricos de impessoalidade e distanciamento. Noexcerto (23), no primeiro pargrafo e no incio do segundo, percebe-seque um dos agentes da passiva omitidos (o dos verbos demitir e permitir) o Governo, o Estado. A deciso de omitir esse agente evidencia umaestratgia retrica eficaz do emissor, que, obviamente, funcionriopblico. compreensvel que ele procure evitar uma crtica negativa muitoexplcita ao Governo, ou seja, ao seu prprio empregador. Esta crtica frontalseria, sem dvida, uma atitude muito inconveniente, principalmente paraquem ocupa cargos de confiana no servio pblico.

    (23) sabido que h uma deciso poltica de se demitirem trintae trs mil servidores pblicos federais.

    Preliminarmente, gostaramos de ressaltar que, nos ltimostrs anos, no nos foi permitido repor a fora de trabalho

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    originada por aposentadorias voluntrias e exoneraesincentivadas, muitas delas, pelo programa de demisso voluntria.

    A voz passiva com omisso do agente tambm aparece como um recursopara se evitarem envolvimentos pessoais explcitos dos interactantes, ouseja, para se manter uma espcie de distanciamento ou resguardo dassubjetividades, mesmo quando se trata de solicitaes, como se v naspassagens a seguir:

    (24) ...gostaramos de que as providncias fossem tomadas, no sentidode agilizarmos com a digitao das notas dos alunos.

    (25) Neste sentido, gostaramos de contar com a vossa colaboraopara que fosse feita a maior divulgao possvel nesta conceituadaInstituio ...

    (26) Solicitamos que, aps a assinatura por V. S e pela FAPEC,nossas respectivas vias sejam endereadas ao Gabinete do Reitorda UFPB.

    Interessante notar-se que, freqentemente, o recurso da apassivaocomo forma de marcar a impessoalidade mesclado, ou melhor, atenuadopela forma modalizada gostaramos para introduzir a solicitao compolidez, como se v nos excertos (24) e (25) acima. Obviamente, essaforma verbal na primeira pessoa do plural (gostaramos) , tambm, umaoutra forma de mistificao da agncia. Ela atribuda no a um serconcreto, mas a uma entidade abstrata (a empresa, a repartio, ainstituio, o servio pblico, a corporao, etc.). Finalmente, veja-se,no excerto a seguir (27), como a apassivao contribui para dar a iluso,pelo apagamento dos agentes, de que no h um responsvel diretopelas aes, ou seja, no caso, pelos danos causados aos trabalhadores queexercem atividades perigosas e insalubres nas empresas pblicas eparticulares, e como o trato dessa matria termina dependendo de decisesarbitrrias.

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    (27) ... informamos que, uma vez que o laudo pericial em tela definiuque a atividade daqueles que lidam com tubos de raios catdicos perigosa, todo e qualquer trabalhador que seja deslocado paraexercer permanentemente essa atividade, estar sujeito, com oefetivo exerccio, ao mesmo risco de alta tenso eltrica periciado.

    Todavia, esclarecemos, a incluso consultada medidaadministrativa que compete apenas a essa instituio, devendoser tomada, repetimos, sempre que trabalhadores estejamexpostos quele risco.

    Outrossim, inversamente dever ocorrer com aqueles que seafastarem da indigitada condio de periculosidade, efetuando-se a excluso automtica do direito ao correspondente adicional.

    Como j foi posto anteriormente, alm da voz passiva, a nominalizao outro importante recurso por meio do qual a impessoalidade se realizana linguagem burocrtica comumente usada nos ofcios. Nos manuaisde redao oficial e empresarial, as nominalizaes so tratadas apenascomo um recurso eficiente para promover a economia e a conciso nasuperfcie textual, a exemplo do que se observa nas conhecidas tcnicasde reduo dos qus, como no seguinte perodo, inspirado em exemplocitado por Gold (1999, p. 53):

    Espero que V.S responda as nossas indagaes a fim de que seesclaream as dvidas que dizem respeito s decises que foramtomadas na ltima reunio.

    Reescrita, a frase fica assim:

    Espero sua resposta s nossas indagaes para fins de esclarecimentodas dvidas a respeito das decises tomadas na ltima reunio.

    Do ponto de vista retrico, entretanto, as nominalizaes so, comoas apassivaes, construes impessoais que buscam apagar, atenuar ou

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    mistificar as agncias e, por extenso, visam tambm propiciar os efeitosde neutralidade e de distanciamento entre os interactantes no processocomunicativo. Neste sentido, como diz Fairclough (1995b, p. 182), asnominalizaes podem promover a omisso no s dos agentes, mastambm de outros participantes, transformando os processos e asatividades em estados e objetos, e o dado concreto em algo abstrato. Sendo,basicamente, a converso de processos em nomes, as nominalizaesterminam, portanto, por empanar ou obscurecer o prprio processo. Apropsito disso, Tiersma (1999, p. 77) ilustra como, nas prticas jurdicas,os verbos nominalizados permitem ao falante omitir a referncia ao ator.

    Em vez de ter que admitir que o ru agrediu a moa s 5:30 datarde, o advogado de defesa pode escrever no processo que aagresso moa ocorreu s 5:30 da tarde. De fato, o advogadopode despersonalizar ainda mais o incidente ao deixar inteiramentefora a meno moa, ou seja, vtima: a agresso ocorreu s5:30 da tarde.

    A propsito dessas noes opostas estados vs. processos -, acimaaventados, Quirk (1978, p. 20-21) defende que, grosso modo, os nomes(substantivos e adjetivos) podem ser caracterizados como formas estticasda lngua, enquanto que os verbos e os advrbios podem ser caracterizadoscomo formas dinmicas. Desse ponto de vista, portanto, pode-se afirmarque as nominalizaes so maneiras de congelar a ao, eliminando,tambm, as vozes dos agentes. Alm disso, convm lembrar que umcontedo altamente nominalizado num texto indica um focoinformacional mais abstrato, diferentemente do que ocorre num foconarrativo interpessoal, em que ocorrem informaes mais situadas (Biber,1988, p. 227). Segundo Tiersma (1999, p. 206), as nominalizaestambm acarretam uma certa dificuldade para a compreenso, j que somais difceis de serem processadas do que as formas verbais correspondentes.

    Para se ter uma percepo mais clara das nominalizaes em exemplaresde ofcio do corpus em estudo, vale recorrer-se a uma espcie de

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    retroescrita do texto para recuperar as formas verbais correspondentes.Esta verso aparece direita do corpo principal do ofcio de informaoe esclarecimento abaixo, que apresenta quatro ocorrncias considerveisde nominalizao por converso de verbo em substantivo.

    Alm das formas nominais obtidas pela converso de frases verbais emsubstantivos, tambm podem ser consideradas nominalizaes os adjetivosque aparecem como formas reduzidas de oraes subordinadas adjetivas.10

    Essas redues tambm so consideradas como recursos eficientes parapromover a conciso e a economia recomendadas pelos manuais de redaooficial e empresarial. Entretanto, ao utilizarem formas nominais do verbo,retoricamente, este recurso tambm proporciona um efeito de estaticidadee descontextualizao geralmente encontrado na prosa burocrtica.

    Para mostrar algumas das nominalizaes por reduo de oraesadjetivas presentes no corpus 2, convm se valer do mesmo recurso utilizadopara mostrar as nominalizaes por converso de verbo em substantivo.Sendo assim, veja-se a seguir o corpo principal do texto de um ofcio e sua direita, a retroescrita, onde se evidenciam as oraes adjetivas queforam reduzidas.

    Comunicamos a V.Sa. a liberaodo auditrio desta Escola, comiseno da taxa de utilizao, para odia 27 de fevereiro de 1998, s 20 h,por ocasio das solenidades deColao de Grau dos formandos deAgronomia dessa Universidade.

    Informamos que se faz necessriaa presena do responsvel peloevento, junto ao Departamento deAdministrao Geral desta Escola,para a assinatura do contrato delocao.

    Comunicamos a V.Sa. que liberamoso auditrio desta Escola, com isenoda taxa para utiliz-lo, para o dia 27de fevereiro de 1998, s 20 h, porocasio das solenidades de Colao deGrau dos formandos de Agronomiadessa Universidade.

    Informamos que o responsvel peloevento necessita se apresentar aoDepartamento de Administrao Geraldesta Escola para assinar o contratode locao.

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    Obviamente, h co-ocorrncia dos dois processos de nominalizaoem vrios exemplares, como se pode ver no pargrafo a seguir (Excerto28), retirado de um ofcio de solicitao.

    (28) Em cumprimento ao art. 43, inciso IV, da Lei n 8.666/93,que ensejou a Resoluo do TSE n 19.820, publicada no Dirioda Justia de 08.04.97, com critrios de aplicao definidos naIN n 03 de 08.05.97, da SCI daquele Tribunal, solicito os bonsofcios de V.S, no sentido de informar a taxa de lucro praticadana contratao de servio de vigilncia, limpeza e conservao,prestado a esse rgo no perodo de 1966 a maio de 1999.

    Alis, a bem da verdade, no corpus analisado, verificou-se, vrias vezes,a co-ocorrncia dos trs processos num mesmo texto, ou seja, asapassivaes, as nominalizaes por converso de verbo em substantivo eas nominalizaes por reduo de oraes subordinadas adjetivas aparecemao mesmo tempo em cerca de 25% dos textos (12 exemplares num totalde 48). Os dois pargrafos do excerto a seguir (29), retirados de outroofcio de solicitao, ilustram bem essa co-ocorrncia.

    Cumprimentando V.Sa. e,objetivando oferecer s UnidadesEscolares que participaram doConcurso Vestibular da UFAL umaresposta sobre o desempenho dos seusestudantes neste certame, remetemosRelatrios dos Classificados no CV-99,os quais identificam o nmero de alunosinscritos e classificados que concluramo Ensino Mdio nessa Escola.

    Salientamos, ainda, que os presentesdados referem-se a todos os inscritos eno apenas aos concluintes de 1998.

    Cumprimentando V.Sa. e,objetivando oferecer s Unidades queparticiparam do Concurso Vestibularda UFAL uma respos ta sobre odesempenho dos seus estudantes nestecertame, remetemos Relatrios dosalunos que se classificaram no CV-99,os quais identificam os nmeros de alunosque se inscreveram, que se classificarame que concluram o Ensino Mdio nessaEscola.

    Salientamos, ainda, que os presentesdados referem-se a todos os que seinscreveram e no apenas aos queconcluram em 1998.

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    (29) Levamos ao conhecimento de Vossa Senhoria Portaria n 1477de 28 de dezembro de 1998 e Decreto 2901 de 23 de dezembrode 1998, os quais definem a extino das delegacias regionais doMEC. A medida do Ministrio da Educao e do Desportosurpreendeu os servidores lotados em Alagoas cerca de 42funcionrios que, apreensivos com a determinao, discutemjunto a esta entidade alternativas de remoo ou redistribuiopara rgos do governo federal, vinculados ao MEC.

    Conforme correspondncia encaminhada pelo secretrio-executivo do MEC, Fulano de Tal, aos delegados do MEC nosestados (cpia em anexo) essa instituio est relacionada entreaquelas que absorvero os funcionrios da ex-DEMEC/AL.

    No corpus estudado, as nominalizaes so mais freqentes do que asapassivaes. Elas aparecem em 29 exemplares (60%) em forma de verbosconvertidos em substantivos e tambm, coincidentemente, em 29exemplares (60%) em forma de redues de oraes adjetivas.

    Tambm convm assinalar, dentre os processos de nominalizao, aslongas cadeias nominais ou grupos nominais extensos, muitos delesdecorrentes dos processos de converso e de reduo j abordados. Trata-se, muitas vezes, de denominaes de atos, eventos, projetos, programas,departamentos, setores, etc., e tambm de outros dispositivos edenominaes que aparecem nos textos dos exemplares de ofcio do corpusanalisado, tais como se vem nos seguintes excertos:

    (30) Vimos por meio deste, mui respeitosamente, convocar V.S aparticipar de uma Oficina para Potencializao do ComitMunicipal de Fomento Gerao de Emprego e Renda deMacei, com a presena de todos os membros...

    (31) Com o objetivo de divulgar a abertura das inscries para o17 Concurso Pblico para provimento de cargos de Procuradorda Repblica, solicito ...

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    (32) Estamos encaminhando a V.S 04 (quatro) vias do SegundoTermo Aditivo ao Convnio de Cooperao Tcnico-Cientficacelebrada entre a UFPB, CEFET, com as intervenincias daFUNAPE e FAPEC, j assinados pela UFPB e FUNAPE.

    (33) Encaminhamos 01 (uma) via do Termo de Convnio deEstgio de Complementao de Ensino de AprendizagemEscolar, firmado entre os Correios Regional Alagoas e essaInstituio de Ensino.

    (34) ...encaminhamos para conhecimento e providncias cpia doOfcio-Circular n 003999/98 CONFEA, que trata do Manualde Procedimento para realizao da Assemblia de DelegadosEleitores junto ao Conselho Federal.

    No raro, esses grupos nominais extensos se transformam em siglasque aparecem em profuso e que infestam a burocracia no servio pblicoe, por extenso, nas empresas e corporaes privadas. Mendona (1987,p. 19), comentando a respeito desses grupos nominais extensos, defendeque tais expedientes, e principalmente as siglas que, muitas vezes, delesresultam, alm de dificultar o processamento da compreenso textual, mais um fator de excluso. Desse modo, elas servem para separar aspessoas que esto por dentro, que dominam a informao, das que estopor fora, que no possuem esse tipo de informao, criando a solidariedadedo grupo profissional. Dessa forma, a sigla, ao tempo em que favorece aconciso, impossibilita tambm a compreenso da mensagem pelas pessoasque desconhecem o contedo abreviado.

    Uma outra marca da impessoalidade na linguagem burocrtica queaparece nos ofcios do corpus o evitamento da referncia anafricapronominal, fato esse j assinalado por Mendona (1987, p. 14). Pelomenos na linguagem jurdica, o fato de se evitar o uso de pronomes explicado como sendo uma das formas pelas quais os juristas tentamenfatizar a preciso, pois, j que os pronomes podem ter uma refernciaambgua, os profissionais da lei tendem a fugir deles (TIERSMA, 1999,

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    p. 72). Entretanto, como diz este autor, evitar pronomes faz sentido emdocumentos como, por exemplo, os contratos, em que essencialdistinguir cuidadosamente os direitos e as obrigaes das duas ou maispartes envolvidas. Na linguagem burocrtica, especialmente nacorrespondncia oficial, parece que tal evitamento est mais relacionadoao distanciamento, neutralidade e recomendada impessoalidade, oque tambm resulta em procedimentos de textualizao que fogem speculiaridades do discurso ordinrio.

    Na linguagem dos ofcios estudados, verificou-se, primeiramente aausncia sobretudo dos pronomes pessoais anafricos ele(s), ela(s), queno aparecem em nenhum dos exemplares. Outras formas pronominaisanafricas so mais freqentes (principalmente os possessivos), assimmesmo, de maneira, diga-se de passagem, no muito recorrente, j que22 exemplares (46% do total de ofcios do corpus) no exibem esse ououtro tipo de referncia ou remisso anafrica pronominal. Via de regra,prefere-se escrever:

    Levamos ao conhecimento de V.S ... em vez de Levamos aoseu conhecimento...;

    Solicitamos a gentileza de V.S... em vez de Solicitamos suagentileza ...;

    Gostaria de contar mais uma vez com a ateno de V.S... em vezde Gostaria de contar mais uma vez com sua ateno...

    Vale ressaltar, no entanto, que os procedimentos acima so verificadosmais no incio do perodo (e s vezes do pargrafo) e geralmenteintroduzem um movimento retrico que veicula um propsitocomunicativo. Tudo indica tratar-se, portanto, de uma estratgia retrica,alm de uma mera busca de preciso.

    Mas, como foi dito acima, com exceo dos pronomes pessoaisanafricos ele(s), ela(s), verifica-se o uso de outros mecanismos referenciaise remissivos anafricos (possessivos e pro-formas pronominais), mesmo

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    com certa rarefao, e eles cumprem seu papel natural de coeso naprogresso textual, ao longo da exposio, como se v nos seguintesexcertos:

    (35) Formulo a Vossa Senhoria meus cumprimentos e venhoconvid-lo, em nome do...

    (36) Face ao exposto, dirigimo-nos a Vossa Senhoria para solicitarque estude a possibilidade de participar deste evento ou indicarum representante, assumindo os custos advindos com suaparticipao...

    (37) ... e como os servidores h trs anos que no tm aumentosalarial, procuramos uma forma de estimul-los para o trabalhoatravs de premiaes...

    Interessante notar-se que as formas remissivas anafricas compossessivos aparecem mais freqentemente quando o sentido pragmticoou retrico ligado mais persuaso, ao envolvimento (e no aodistanciamento) se impe. Assim, essas formas esto mais presentes nasconcluses ou fechamentos, geralmente embutidas nas frmulas depolidez, ou quando o ofcio apresenta um leve carter pessoal, mesmosem sair da linguagem burocrtica, ou seja, mantendo as principaiscaractersticas do que Lanham (1999) chama de estilo oficial. Vejam-se, por exemplo, os excertos a seguir.

    (38) Aproveitamos o ensejo para apresentar a V.S as nossas expressesda mais alta considerao.

    (39) Certos de podermos contar com o vosso decisivo apoio,firmamo-nos desde j agradecidos.

    (40) Tais circunstncias ensejam a oportunidade de submeter ateno de Vossa Excelncia o discurso de posse com que iniciei,pela segunda vez, a Presidncia do Tribunal de Contas do Estadode So Paulo, por fora do voto unnime de meus Pares.

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    Convm ressaltar, nesse mbito dos dispositivos de coeso, referncia eprogresso textuais, especificamente no que se refere aos mecanismos dereiterao, o uso de expresses como o(a,s) referido(a,s), o(a,s)supracitado(a,s), acima mencionado(a,s) etc., antepostas ou pospostas aotermo reiterado. Este recurso tambm parece relacionar-se ao ideal depreciso que sempre se pretendeu imprimir linguagem burocrtica epor extenso aos gneros da correspondncia oficial. Esses termosaparecem pelo menos uma vez em cada um de oito exemplares e duasvezes em dois exemplares, perfazendo 21% do total de 48 ofcios. Taisexpresses podem aparecer no mesmo pargrafo ou em pargrafoposterior, como se v a seguir.

    (41) Visando ao crescimento do nosso esporte, estaremos realizandomais duas competies do nosso calendrio de 1999, nascategorias fraldinha (atletas nascidos at 1989) e mirim (atletasnascidos at 1987), nos naipes masculino e feminino, o incioda referida competio ser no dia 03/04 do corrente ano.

    (42) Encaminhamos o presente Convite a fim de contarmos com avossa importante participao no evento por ns organizado coma ajuda de alguns parceiros.

    A programao do supracitado evento aborda dois temasdiferenciados que envolvem, hoje, questes estratgicas no pas.Chamamos a ateno para a palestra que abordar ...

    4 Componentes da textualizao

    Ainda em relao coeso e coerncia textuais, vale considerar umoutro recurso digno de meno, pelo fato de aparecer em 10 exemplares,ou seja, em 21 % do corpus. Trata-se do chamado substantivo anafrico(anaphoric noun)11, ou seja, um dispositivo substitutivo anafrico(geralmente substantivos inespecficos como pleito, evento, apoio, dados,informaes, etc.) comumente presentes em textos com predominnciaexpositivo-argumentativa, como se v nos excertos a seguir.

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    (43) Nos dias 03, 04 e 05 de junho de 1998, estaremos realizandomais um ENCONTRO REGIONAL DE DIRIGENTES DEPESSOAL DAS INSTITUIES FEDERAIS DE ENSINO,que tem como objetivo, reunir todos os dirigentes para discussoe a troca de informaes, no que se refere a temas especficos administrao de Pessoal.

    O evento ser patrocinado pela Universidade Federal deSergipe, com o apoio do Magnfico Reitor Prof. Dr. JosFernandes de Lima, fazendo parte das comemoraes dos 30ANOS desta Universidade.

    (44) ... solicitamos de V.S a cesso do ginsio de esportes dessaconceituada instituio, a fim de podermos realizar uma dasmodalidades dos jogos em destaque.

    Certo da ateno que V.S dispensar ao pleito, apresentamosos protestos de estima e considerao.

    Tambm em relao aos mecanismos de textualizao, considerando-se que os tipos de seqncia textual predominantes so o expositivo e oargumentativo, h de se mencionar alguns seqenciadores textuaisverificados nos textos, tais como:

    Face ao exposto, ... Assim sendo, ... Outrossim, ... Nesta oportunidade,...Informamos ainda que ... Esclarecemos ainda que ... Primeiramente, ...

    Por outro lado, ... Finalmente, ...

    Vale salientar, dentre os itens mencionados, o uso do j desgastadoseqenciador outrossim, que vem resistindo teimosamente na correspondnciaoficial e empresarial, apesar de ser considerado um chavo. Autores demanuais de redao oficial e empresarial pregam o seu banimento,alegando que como os textos so documentos que visam refletir umaimagem de modernidade da empresa, convm evitar expresses dessetipo (GOLD, 1999, p. 21). No corpus, esse termo aparece em apenasdois exemplares de ofcio, sendo um desses usos expresso no excerto 27.

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    5 As modalizaes e suas marcas

    Tradicionalmente, a noo de modalidade implica a idia de que, numenunciado, h de se distinguir um dito (s vezes chamado de contedoproposicional) e uma modalidade um ponto de vista do sujeito falantesobre este contedo (CERVONI, 1989, p. 53). Como se sabe, o estudodas modalidades tem origem nos modelos idealizados pelos lgicos, masse desvincula deles exatamente pelo carter no-lgico, ou no-ordenado,das lnguas naturais (NEVES, 1996, p. 163). Assim, por brevidade, nose vai entrar aqui em postulaes lgico-formais que esto nas tradicionaisorigens deste assunto; e sim considerar-se-, principalmente, o fato deque todos os modalizadores sempre verbalizam a atitude do falante comrespeito proposio (CASTILHO, 1992, p. 216).

    Tomando-se, pois, como ponto de partida, que todo enunciado possuimarcas de modalidade (MAINGUENEAU, 2001, p. 107), e que issoindica a atitude do enunciador face ao que diz, pode-se conjecturarque a formalidade e a impessoalidade presentes nos ofcios j apontam,em alguma medida, para uma certa modalizao, j que indica umadeterminada atitude do escrevente diante da atividade enunciativa, emborano se possa falar em modalidade ou modalizao no sentido cannico,por assim dizer. Mas, h de se reconhecer que a impessoalidade umacaracterstica dos gneros burocrticos, e, a bem da verdade, ela modalizao enunciado no sentido de omitir as agncias, no eliminando, entretanto,a modalizao como marcas de outros efeitos buscados pelo sujeito noseu enunciado.

    Tambm imbricadas nessa noo de modalizao, na linguagem dosofcios, esto as vrias frmulas de polidez que, mesmo tidas como chavesou clichs, tm suas marcas lingsticas bem explcitas nos textos, sempreno sentido de dar uma feio ou um modo de dizer ao enunciado.12

    Estas frmulas de polidez, como j se discutiu, esto presentes, de umaforma ou de outra, em boa parte dos exemplares do corpus. Mas outrasformas mais cannicas de modalizao aparecem lexicalizadas nos textosdos ofcios estudados, evidenciadas em modos e formas verbais, advrbios

  • MARIA INEZ MATOSO SILVEIRA

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    ou locues adverbiais, elementos metadiscursivos, e at no emprego decertos adjetivos e substantivos de teor avaliativo ou apreciativo13. Vejam-se, a seguir, alguns excertos em que aparecem marcas diferenciadas demodalizao.

    (45) Gostaria de contar mais uma vez com a ateno de V.S nosentido de autorizar a utilizao da sala...

    (46) ...e considerando as timas instalaes dessa instituio,gentilmente cedidas por ocasio dos concursos...

    (47) A medida do Ministrio da Educao e do Desportosurpreendeu os servidores lotados em Alagoas cerca de 42funcionrios que, apreensivos com a determinao, ...

    (48) ...este Consulado vem, mui respeitosamente, solicitar destainstituio o favor de nos enviar...

    (49) Nesta oportunidade, discutiremos questes ligadas diretamenteao nosso dia a dia universitrio, razo pela qual, acreditamos,devam estar envolvidas nesta discusso...

    (50) Dirigimo-nos a V.S para solicitar-lhe a gentileza de verificar apossibilidade de nos conceder uma doao...

    (51) Preliminarmente, gostaramos de ressaltar que, nos ltimos trsanos, no nos foi permitido...

    (52) Tendo em vista a mudana da poltica econmica governamental,e a indisponibilidade oramentria, por parte das entidades queestariam nos apoiando...

    (53) ...a clientela maior aprovada tem sido de alunos provenientesda classe mdia alta (90%), oriundos das melhores escolasparticulares do estado, da entendermos ser realmente irrisria ataxa cobrada por este rgo.

  • O BUROCRATS: ANLISE LUZ DE UMA GRAMTICA RETRICA

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    (54) Considerando a solicitao (...) onde aquele Secretrio apresenta,com propriedade, a necessidade por que passam os alunos...

    (55) ...temos certeza de que os temas a serem tratados neste eventoestaro sendo socializados tambm com sua instituio deensino.

    (56) Acolherei, sinceramente honrado, e com especial considerao,os comentrios que Vossa Excelncia se dignar encaminhar-me

    (57) com prazer que nos dirigimos a V. S para inform-lo de que... (ORET 25)

    (58) Esperando que tais informaes possam contribuir para oplanejamento pedaggico dessa Unidade Escolar.

    (59) Todavia, esclarecemos, a incluso consultada medidaadministrativa que compete apenas a essa instituio, devendoser tomada, repetimos, sempre que trabalhadores estejamexpostos quele risco.

    Dentre os 48 ofcios do corpus, 29 exemplares (60%) exibem, de algumaforma, marcas de modalizao nos seus textos; mas, convm dizer, essasmarcas aparecem distribudas de maneira um tanto discreta na maior partedos exemplares. Proporcionalmente, observou-se que os ofcios desolicitao apresentam um nmero maior de exemplares em que ocorremmodalizaes, embora o nmero maior seja daqueles cuja ocorrncia foide apenas uma vez (em cada um de 15 exemplares). J os ofcios deencaminhamento so os que apresentam a ocorrncia mais baixa: umavez em menor nmero de exemplares. Certamente, essas evidncias seligam ao maior e ao menor teor retrico-persuasivo que os dois tiposrespectivamente apresentam.

    Os adjetivos de valor apreciativo e/ou afetivo que configuram umaforma de modalizao nos ofcios aparecem nos textos em nmeroconsidervel, formando grupos nominais (adjetivo + substantivo). Veja-

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    se, a seguir, um apanhado dessas expresses que, obviamente, buscam efeitosretricos ligados persuaso.

    especial considerao conceituada instituio elevada estimadecisivo apoio timas instalaes sinceros agradecimentospreciosa ateno elevada considerao e estima cordiais saudaesvalioso apoio sinceros votos temvel ameaaacertos indispensveis verdadeiros carentes esclarecimentos essenciais

    importante instituio indigitada condio de periculosidade

    As marcas de modalizaes nos textos dos ofcios evidenciam sinaisde heterogeneidade nas vozes que permeiam o discurso nesses textos,denunciando uma certa tenso nas interaes enunciativas. Assim, aolado da voz institucional (a persona retrica, o enunciador), percebe-se,nos exemplares de ofcio estudados, as vozes dos locutores enquantoautores empricos dos textos, caracterizando o que se costuma chamar depolifonia14. Nessa perspectiva, as palavras de Koch (1984, p. 88) a seguirparecem bem apropriadas para dar conta da importncia dessa questo.

    O recurso s modalidades permite ao locutor marcar a distnciarelativa em que se coloca com relao ao enunciado que produz,seu maior ou menor grau de engajamento com relao ao que dito, determinando o grau de tenso que se estabelece entre osinterlocutores; possibilita-lhe, tambm, deixar claros os tipos deatos que deseja realizar e fornecer ao interlocutor pistas quantos suas intenes; permite, ainda, introduzir modalizaesproduzidas por outras vozes incorporadas ao seu discurso; isto ,oriundas de enunciadores diferentes; torna possvel, enfim, aconstruo de um retrato do evento histrico que a produodo enunciado.

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    6 A complexidade sinttica e outros aspectos da sintaxe

    A prosa burocrtica apresenta uma outra caracterstica herdada dalinguagem jurdica: a complexidade sinttica. Com efeito, uma dascaractersticas da linguagem jurdica a frase longa e, muitas vezes,complexa, exibindo oraes intercaladas e combinadas. Assim, umaenorme quantidade de informao comprimida num nico perodo,resultando na sua longa extenso e complexidade gramatical, por contade vrias descontinuidades sintticas (BHATIA, 1993, p. 111; TIERSMA,1999, p. 55-57). Obviamente, a complexidade aumenta medida que sintaxe intrincada se somam, no perodo, itens lexicais complicados,geralmente em forma de vocabulrio tcnico e expresses extremamenteformais ou arcaicas.

    Uma motivao para esses perodos longos o desejo de colocar todaa informao de determinado tpico numa unidade independente,explica Tiersma (op. cit., p. 56). Pelo menos no mbito jurdico, diz ele,presume-se que essa tendncia reduz a ambigidade que pode resultarse as condies sobre uma regra ou proviso forem colocadas em perodosseparados. O autor alega ainda que a complexidade, a densidade e aformalidade na prosa jurdica so devidas ao fato de que as atividadesnessa rea sempre giram em torno da lngua escrita que, naturalmente, mais conservadora do que a fala; da sua resistncia a mudanas. De fato,h de se convir que os gneros jurdicos assumem um carterextremamente ritualstico, que foi se consolidando por anos a fio,principalmente na modalidade escrita.

    Apesar de vrios autores ressaltarem o fato de que longos e complexosperodos levam a uma certa dificuldade no processamento dacompreenso15, como afirmam Shuy (1988, p. 50) e Mendona (1987,p. 20), h de se ressaltar, como tambm fazem esses prprios autores, queo problema maior no a extenso dos perodos em si, mas a complexidadeque tende a acompanhar a extenso. Evidentemente, essa complexidade condenada pelos autores de manuais de redao oficial e empresarial, a

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    exemplo de Gold (1999), que consideram esse mecanismo um fator deobscuridade, ou seja, que propicia uma falta de clareza na comunicao.

    No corpus estudado, vrios exemplares de ofcio apresentam perodoslongos e, no mais das vezes, ocupam todo o pargrafo. Neles, ficaevidenciada a tendncia de se comprimir toda a informao referente aotema ou a um tpico do tema num s perodo. Isso o que se v noexcerto a seguir, retirado de um exemplar que apresenta um nicopargrafo, atravs do qual se estende o nico perodo do texto.

    (60) Visando atender solicitao do Instituto Nacional de Estudose Pesquisas Educacionais (INEP) relativamente ao ExameNacional de Cursos de 1999 (PROVO), encaminhamos a V.So Questionrio de Avaliao dos Cursos, juntamente com cpiada prova que foi aplicada, para que seja procedida sua anlise eavaliao pelos professores do Departamento de Letras Clssicase Vernculas, para posterior envio quele rgo.

    Reconhea-se, entretanto, que nem todos esses perodos extensos sonecessariamente complexos a ponto de dificultar a compreenso. Veja-se, por exemplo, o perodo apresentado no excerto a seguir (60), que,mesmo exibindo um certo acmulo de informaes, estas so dispostaspraticamente de forma linear, atravs de seqncias expositivas.

    (61) Vimos por meio deste, mui respeitosamente, convocar V. S, aparticipar de uma OFICINA PARA POTENCIALIZAODO COMIT MUNICIPAL DE FOMENTO GERAODE EMPREGO E RENDA DE MACEI, com a presena detodos os membros do comit, que ser realizada no prximo dia12 de abril do corrente, das 8:30 s 18 horas, na Superintendnciado Banco do Nordeste, situado Rua Melo Moraes, 165 Centro, nesta capital.

    Mas quando predomina a argumentao, e medida que esta se tornamais densa, a complexidade sinttica se acentua, atravs da ordem inversa,

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    da presena de oraes intercaladas e de conectores interfrasais; alm,naturalmente, da grande quantidade de informaes. Nesse caso, pode-seaventar uma certa dificuldade para a compreenso, exigindo do leitor umprocessamento mais lento e mais monitorado da informao visual. Oexcerto (62) apresenta um pargrafo que contm um nico perodocomplexo, em que se esgota toda a informao, argumentao e inteno doescrevente. O excerto (63) apresenta dois pargrafos interdependentes, sendoque o perodo de maior complexidade se verifica no segundo pargrafo.

    (62) Tendo em vista a mudana da poltica econmicagovernamental, e a indisponibilidade oramentria, por partedas entidades que estariam nos apoiando para a realizao doXIX Congresso Brasileiro de Guias de Turismo e II CongressoInternacional de Guias de Turismo e considerando o objetivodo evento que a realizao de trabalhos tcnicos, voltados parao aperfeioamento e melhoramento da categoria, o que requerinvestimento de maiores recursos financeiros, vimo-nos foradosa transferir a data da realizao do evento que anteriormenteseria de 24 a 29 de maio de 1999 para 12 a 16 de setembro docorrente ano.

    (63) Preliminarmente, gostaramos de ressaltar que, nos ltimostrs anos, no nos foi permitido repor a fora de trabalho originadapor aposentadorias voluntrias e exoneraes incentivadas, muitasdelas, pelo programa de demisso voluntria.

    Por outro lado, a Reforma da Educao Profissional, baseadana lei 9394/96, decreto 2208/97, portaria /MEC 646/97 edecreto 2406/97, prevendo ampliao da oferta deste tipo deensino no Pas, vem ensejar maiores encargos para a rede federalde educao tecnolgica e, considerando-se ainda que h umcompromisso do governo, manifestado, inclusive, pelo Exmo.Sr. Presidente da Repblica, de que a educao dentre outrasreas no seria afetada por essa medida, vimos solicitar o seu

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    empenho pessoal no sentido de evitar que ocorram demisses emnossas instituies.

    Nas atitudes populares, bem como nos estudos sociolingsticos,assinala Fowler (1985, p. 72), a complexidade sinttica tem sidotradicionalmente relacionada s distines sociais que envolvem poder eprestgio. O autor lembra a conhecida e controvertida teoria de Bernstein(1971) sobre os cdigos restrito e elaborado. Como se sabe, essa teoriaatribui a complexidade classe mdia, e a simplicidade classetrabalhadora. A despeito de toda polmica que tal teoria tem provocado,h de se concordar com Fowler (op. cit.) quando este afirma ser a sintaxecomplexa uma propriedade do discurso do conhecimento e da autoridade.

    Apesar da heterogeneidade inerente aos textos, principalmente no quese reporta aos seus elementos mais prximos microestrutura, observa-se no corpus a recorrncia de um determinado tipo de orao. Trata-se dachamada orao reduzida de gerndio, que pode estabelecer no perodovrias relaes semnticas, tais como causa, finalidade, condio, etc.,geralmente atribudas aos advrbios. No corpus, esse tipo de orao aparecenos textos de nove exemplares (18,75%). Vejam-se, a seguir, o excerto64, em que a orao reduzida gerundial assume a relao de finalidade, eo excerto 65, em que ela assume a relao de causalidade.

    (64) Atendendo solicitao do Pr-Reitor de Ps-Graduao ePesquisa, convidamos V.Sa. a participar da reunio do Plenodeste Programa de Ps-Graduao que se realizar no dia 21 deJunho de 1999 de 1999, s 14:00 h, em nosso auditrio, com oobjetivo de realizar as eleies do colegiado, do vice-coordenador(a) e do coordenador(a).

    (65) Tendo em vista problemas operacionais ocorridos durante oprocesso de matrcula, com a implantao do novo sistemaacadmico, estamos remetendo as cadernetas provisrias dasdisciplinas desse Departamento.

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    Coincidentemente, em todos os nove exemplares em que aparece essetipo de orao, ela vem na abertura do primeiro pargrafo, inferindo-seda o efeito retrico a que o escrevente visa: destacar a informao e aimportncia que essa informao assume na argumentao.

    Na tentativa de se entender a recorrncia desse tipo de orao nosexemplares do corpus, h de se considerar que as oraes reduzidas degerndio esto bem prximas daqueles dispositivos que colaboram paraa impessoalizao do enunciado, principalmente da nominalizao, jque o gerndio uma das formas nominais do verbo.

    7 Os tempos verbais

    Um outro aspecto significativo a ser considerado na anlise doselementos lingsticos retrico-gramaticais do gnero em estudo serelaciona questo do tempo verbal e sua funo no discurso em tela.Para isso, recorre-se proposta de H. Weinrich16, explicitada e defendidapor Koch (1984, p. 37-48), segundo a qual as situaes comunicativas sedividem em dois grupos, predominando em cada um deles um dos doisgrupos temporais:

    a) os tempos do mundo comentado (canto, tenho cantado, cantarei,terei cantando, vou cantar, acabo de contar, estou cantando, etc.;

    b) os tempos do mundo narrado (cantei, cantava, tinha cantado,cantaria, teria cantado, ia cantar, acabava de cantar, estavacantando, etc.

    Explicitando muito sucintamente a teoria, diz-se pertencer ao mundonarrado todos os tipos de relatos literrios ou no, permitindo aosinterlocutores uma atitude mais relaxada. Ao mundo comentado, porsua vez, pertencem a lrica, o drama, o ensaio, o dilogo, o comentrio,etc., proporcionando uma atitude tensa nos falantes durante a interaointerlocutiva. Retomando Weinrich, diz Koch (op. cit., p. 38) quecomentar falar comprometidamente, pois o uso dos tempos do mundo

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    comentado um indicativo de que o locutor trata de algo que o afetadiretamente e demanda uma resposta. O tempo presente, afirma Koch,repetindo Weinrich, o tempo principal do mundo comentado,designando uma atitude comunicativa de engajamento, de compromisso.

    Sendo o ofcio uma forma de interao discursiva que se aproxima dodilogo (o ofcio um tipo de carta, e esta uma conversao distncia),a atitude do falante diante da situao comunicativa (ou situao scio-retrica, se se quer) que demanda o gnero ofcio determina o uso dostempos do mundo comentado. De fato, isso corroborado pelo fato dehaver, nos exemplares do corpus, a predominncia de formas verbais notempo presente, que aparecem em todos os exemplares, principalmentenos movimentos retricos onde se explicitam no s os propsitoscomunicativos dominantes, como tambm os que lhes servem de apoio,designando, assim, o engajamento do locutor e a busca do comprometimentodo interlocutor. Vale lembrar aqui o uso de atos de fala diretos atravs deverbos performativos (que aparecem em itlico no texto a seguir). Observe-se, pois, neste exemplar, o uso tpico predominante dos tempos verbaispertencentes ao mundo comentado.

    Tendo em vista problemas operacionais ocorridos durante oprocesso de matrcula, com a implantao do novo sistemaacadmico, estamos remetendo as cadernetas provisrias dasdisciplinas desse Departamento.

    Informamos a V.Sa. que no foi possvel implantar nestalistagem, os alunos de Disciplinas Isoladas (crdito no seriado,alunos de outras instituies e Projeto Recomear). Esperamos quebrevemente essa modalidade esteja regularizada, a fim de quepossamos concluir nossa matrcula.

    Esclarecemos que, no caso da ausncia de nome dos alunos napagela, constatada pelos professores ao proceder a chamada, aorientao deve ser no sentido de procurar imediatamente aCoordenao do Curso. Salientamos que no sero consideradas

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    freqncias e notas de alunos que no estejam regularmentematriculados no sistema.

    Informamos, ainda, que o prximo dia 27 de maio serconsiderado limite para os reajustes finais da matrcula e queestaremos enviando as cadernetas definitivas no dia 31 de maio.

    Ao tempo em que solicitamos ampla divulgao dessasinformaes aos professores e alunos, agradecemos a compreensoe o apoio, nos colocando disposio de V.Sa. para o que se fizernecessrio.

    No exemplar acima, percebem-se tambm formas verbais no futuroque, depois do presente, aparece com freqncia considervel nosexemplares do corpus, principalmente nos ofcios de convite para evento.Mas a questo dos tempos verbais nos ofcios, apesar de bastante regular,no escapa s inovaes que vo surgindo na lngua. Mesmo considerandoa resistncia que o registro dito burocrats tem em relao renovao e criatividade lingstica, tanto no seu sentido positivo, ou seja, no sentidode ser referendado pela norma culta, quanto naquilo que osnormatizadores consideram como modismo vicioso ou cacoete lingstico.Assim sendo, interessante salientar-se a presena do chamado gerundismoem alguns exemplares do corpus. Essa tendncia, considerada como umuso abusivo do gerndio, aparece sublinhada no texto acima e em mais3 exemplares do corpus, como se vem nos excertos a seguir.

    66. Visando o crescimento do nosso esporte, estaremos realizandomais duas competies do nosso calendrio de 1999...

    67. Nos dias 03, 04 e 05 de junho de 1998, estaremos realizandomais um ENCONTRO REGIONAL DE DIRIGENTES...

    68. ... temos certeza de que os temas a serem tratados neste eventoestaro sendo socializados tambm, com sua instituio...

    O uso do gerundismo se deu mais entre os ofcios de convite paraevento, e sua recorrncia nesse tipo de ofcio no to relevante, mas

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    tambm no desconsidervel. (aparece em trs exemplares num corpus deoito). Afinal, a construo perfeitamente aceitvel no sistema da lngua.Com certeza, evidncias mais seguras poderiam ser obtidas num corpusmais extenso, mais atualizado e mais diversificado em termos de instituiesprodutoras de ofcios.

    8 Consideraes Finais

    Os resultados da pesquisa sobre o burocrats aqui apresentadosevidenciaram o princpio de que a lngua reflete as relaes sociais, querepresentam, no caso deste trabalho, as relaes de fora e manutenodas prticas e das instncias de poder vigentes na burocracia estatal eempresarial.

    Acreditamos que o estudo e o desvelamento das articulaes entrelngua e estrutura social tm muito a contribuir para o desenvolvimentoda conscincia crtica, atravs da conscientizao sobre as relaes entre aideologia, as prticas sociais e os usos da lngua e seus inmeros recursos.Obviamente, as aplicaes dessas noes no ensino efetivo da lnguadevem democratizar os acessos aos mecanismos de naturalizao dosprocessos de exerccio e manuteno das relaes de poder e da veladaopresso que se cristalizam pelos usos efetivos da lngua atravs dacirculao dos gneros textuais, em resposta s inmeras situaes retricasdo cotidiano das pessoas e das instituies.

    Notas

    1 A linguagem jurdica, ou juridiqus, alm da terminologia tcnica da rea,apresenta algumas caractersticas estilsticas prprias, dentre as quais apontam-se as palavras e expresses arcaicas, expresses latinas, termos muito formais, etc.

    2 interessante ressaltar tambm que a noo de subjetividade muitas vezes vistaapenas como antnima de objetividade. Esta, por sua vez, implica a noo deneutralidade, como ocorre tambm na viso conservadora do discurso cientfico,que recomenda o uso da 3 pessoa.

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    3 Embora esses construtos de Ducrot (1987) no considerem a enunciao nosentido do contexto ideolgico onde se d a interao, os termos locutor indicandoo responsvel imediato pelo enunciado e o enunciador indicando a vozinstitucional parecem dar conta da polifonia aqui considerada.

    4 A respeito disso, l-se em Beltro (1993, p. 75-76) o seguinte: Claro ousubentendido, por extenso ou abreviado, o pronome [de tratamento] refletediferena hierrquica, tom respeitoso ou no, bem como enseja o reconhecimentode textos extra-rotina ou de rotina, ou a distino entre a correspondncia internae a externa ou a interdepartamental; exemplos:

    Em correspondncia externa cerimoniosa: Solicito a Vossa Senhoria o envio de ...

    Em correspondncia externa informal: Solicito a V.Sa. o envio de ...

    Em correspondncia interdepartamental: Solicito-lhe o envio de ...

    Em correspondncia interna: Solicito o envio de ...

    O uso de pronomes de tratamento um trao cultural da correspondncia oficiale empresarial nos pases de lngua portuguesa. Eles inexistem, por exemplo, nacorrespondncia oficial e empresarial na lngua inglesa.

    5 No se deve confundir o uso vicioso das frmulas de polidez (chaves ou clichs)com o uso eficaz e pertinente de expresses e frases que transmitem elegncia eboa educao como recursos persuasivos, principalmente quando h incitamento ao. Isto geralmente ocorre nos ofcios de solicitao e nos de convite paraevento.

    6 Essas saudaes foram observadas em exemplares autnticos de ofcio do ArquivoHistrico Ultramarino (Torre do Tombo -Lisboa) In: MARTINHEIRA.Tipologias documentais da administrao do antigo regime. Torre do Tombo, Lisboa,1997.

    7 Ofcios da poca da Revoluo de 1817, em Pernambuco, podem ser encontradosnos Documentos Histricos. v. CIV Biblioteca Nacional. Diviso de ObrasRaras e Publicaes, 1954.

    8 Esta expresso a traduo literal de legislative provisions, termo utilizado porBhatia (1993, p. 101ss), cuja pesquisa tem sido direcionada tambm a algunsgneros desta rea.

    9 Citado por Mendona (1987, p. 17).

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    10 As oraes subordinadas adjetivas levam esse nome por funcionarem comoadjetivos. Anexas ou justapostas, mediante um pronome relativo, a umsubstantivo (nome ou pronome), chamado antecedente, funcionam comoadjuntos adnominais (sem pausa), ou como apostos (com pausa), dessesubstantivo. Da a subdiviso: restritivas (adjuntos adnominais) / explicativas(apostos). Essas oraes apresentam-se de forma desenvolvida ou reduzida. Areduo se d com o verbo nas formas nominais e pela supresso do pronomerelativo e do verbo de ligao. Exemplos: (1) Voc viu os livros (que foram)comprados pela Biblioteca? (2) O candidato, (que foi) julgado apto pela banca,conseguiu a aprovao. (LUFT, Celso Pedro. Moderna Gramtica Brasileira. PortoAlegre: Globo, 1976. p. 58.)

    11 Os substantivos anafricos so identificados semanticamente: qualquersubstantivo usado metadiscursivamente pode ser identificado como umsubstantivo anafrico; devendo preencher os dois critrios funcionais: ele deveoperar como um anafrico pro-forma e deve ser apresentado como um elementodado dentro de uma clusula contendo informao nova. (FRANCIS, Gill,1986, p. 6.)

    12 Talvez essas frmulas de polidez possam se encaixar ou estejam prximas modalizao afetiva de que fala Castilho (1992, p. 223). Segundo ele, osmodalizadores afetivos verbalizam as reaes emotivas do falante em face docontedo proposicional, independentemente de quaisquer consideraes decarter epistmico ou dentico. Esses modalizadores se marcam principalmenteatravs de formas adverbiais como felizmente, infelizmente, sinceramente,francamente, etc.

    13 Cervoni (1989, p. 61), ao abordar a chamada modalidade dentica, assinala queToda expresso que implique uma referncia a uma norma ou a qualquer critriosocial, individual, tico ou esttico poder reivindicar a integrao nasmodalidades; no s os advrbios de modo, como no exemplo clssico: Scratescorre rapidamente, mas tambm muitos adjetivos (importante, delicioso, agradvel,etc.), verbos (apreciar, censurar, etc.) e substantivos (entre outros, todos os quecorrespondem aos advrbios, adjetivos e verbos citados). Tais modalidades,num sentido amplo, sero chamadas avaliadoras; as modalidades apreciativas(ou axiolgicas) constituem uma subclasse deste vasto conjunto. TambmBronckart (1999, p. 132) reconhece as modalidades apreciativas, que traduzemum julgamento mais subjetivo, apresentando os fatos anunciados como bons,maus, estranhos, na viso da instncia que avalia.

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    14 Segundo Ducrot (1987), h polifonia quando possvel distinguir numaenunciao dois tipos de personagens: os enunciadores e os locutores. No casoda correspondncia oficial e empresarial, a questo da autoria e conseqentementedas vozes do discurso muito complexa; pois, alm da voz institucional, h de seconsiderar que, no dia-a-dia das reparties e das empresas, nem sempre quemassina a correspondncia (o locutor, ou seja, o responsvel pelo enunciado) necessariamente quem a escreve. Deve-se atentar, portanto, para o fato de que oescriba, isto , a pessoa responsvel pela redao dos documentos numadeterminada repartio ou empresa, na realidade, tambm pode imprimir suas marcasde subjetividade nos enunciados que produz o chamado estilo pessoal -, mesmotendo o cuidado de no se desviar dos propsitos comunicativos recomendadose de seguir as normas oficiais.

    15 Othon Moacir Garcia (1982) refere-se a esses perodos caudalosos como frasescentopicas, e recomenda pensar-se mais no leitor. Naturalmente, ele recomendaa sua partio em perodos mais curtos e mais claros. Gold (1999, p. 71-72)comenta que essas ditas frases de labirinto, sobrecarregadas de informao,cheias de subdivises de idias, do ao leitor a impresso de que nunca iroterminar. De fato, Frank Smith (1989, p. 93), ao estudar os processos cognitivosenvolvidos no ato de ler, chama a ateno para o que ele denomina de viso emtnel (tunnel vision), que o resultado da tentativa que o leitor faz para processaruma grande quantidade de informao ao mesmo tempo, gerando um verdadeirocongestionamento ou engarrafamento no processo de compreenso.

    16 WEINRICH, H. (1964) Tempus. Besprochene und Ehzhlte Wet. (apud KOCH,Ingedore V. Argumentao e linguagem. So Paulo, Cortez, 1984. p. 37.)

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