Número Zero

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Revista do blogue coletivo literário O BULE Colunistas: Bruna Mitrano, Geraldo Lima, Homero Gomes, Jean Roberto de Oliveira, Mauro Siqueira, Rodrigo Novaes de Almeida e Rogers Silva Colaboradores (textos): Claudio Parreira e Chico Pascoal | Ilustrações e diagramação: Rodrigo Novaes de Almeida Ars totum requirit hominem (A arte reclama o homem inteiro) http://o-bule.blogspot.com/ Número Zero, Ano 1 - 2010

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Revista O BULE nº Zero

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Page 1: Número Zero

Revista do blogue coletivo literário O BULE

Colunistas: Bruna Mitrano, Geraldo Lima, Homero Gomes, Jean Roberto de Oliveira, Mauro Siqueira, Rodrigo Novaes de Almeida e Rogers SilvaColaboradores (textos): Claudio Parreira e Chico Pascoal | Ilustrações e diagramação: Rodrigo Novaes de Almeida

Ars totum requirit hominem(A arte reclama o homem inteiro)

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Número Zero, Ano 1 - 2010

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C.T.I. Por Bruna Mitrano

Não era pra eu estar aqui. (A luz não apaga nunca). Não era pra ninguém estar aqui. (Nada de cânticos celesti-

ais). Mas estamos. (Esse pi-pi-pi eterno). Então, fechemos os olhos, todos, de uma só vez, pra enxergarmos mãos dadas, pra fazermos o mesmo pedido, pedir a quem?, não importa, juntos, distantes, cada um em sua cama branca, tudo branco.

* * * * *

Assim que acordei, pela primeira vez nesse lugar, depois de dormir não sei quantas horas ou dias ou séculos, esse

senhor deitado ao meu lado direito puxou conversa. Disse-me que sairia logo. Isso foi anteontem. Ontem ele perdeu o movi-mento do corpo. Hoje ele está desse jeito. É triste ouvir a filha dizer “eu sei que você está me ouvindo”. Ela chora falando “pa-pai” (com essa pausa de afeto).

A senhora da frente não larga aquele livro (capa dura viran-do refeição pra traças, fita durex nas juntas). Queria eu ter um livro velho recheado de ácaros para abafar o cheiro de éter. Mal sabe a tal senhora que a invejo, não sei se pelo livro ou se pelo cuidado do alguém que trouxe o livro. “O livro”, ainda não descobri o título. Suponho que seja um romance natural-ista daqueles que a gente passa a vida lendo. Penso num au-tor português; vai ver que é porque os olhos miúdos da sen-horinha lembram os da minha avó, que quando podia lia Eça e Camilo Castelo Branco.

Agora tem esse silêncio no lado esquerdo. Levaram dali o carinha esquizofrênico. Sei lá se ele era esquizofrênico, sei que xingava todo mundo de filho da puta, menos eu, eu era puta mesmo. Ele fedia. O fedor ficou. Daqui a pouco vão trazer para o lugar que era dele um motociclista todo quebrado, que vai acabar com minha paz, vai gritar por tudo, até para mijar.

CRÔNICA Ouço dizerem que lá fora cai um dilúvio. E eu presa na arca, sem tempo bom ou ruim, sem ar morno na cara. Aplicam uma injeção no tubinho transparente que está devidamente aco-plado ao meu corpo e eu sinto o cheiro do mato que nasce nas fendas da calçada rachada da minha casa, mato molhado, dilúvio. “Não me deixa morrer”, peço agarrando o jaleco da doutora Márcia. Dra. Márcia Munis é o que vejo, bordado num bolso, minha cara está bem nos peitos dela; a médica não tem cabeça, mas se tem coração, peço.

* * * * *

Acordo outra vez. A senhora de olhos miúdos não está mais na minha frente. Pena não ter deixado o livro. As

pessoas ficam pouco tempo aqui, já percebi. Quero sair logo, seja como for. Mentira. Quero sair viva. Aprendi a ter medo da morte. Dizem que ela é bonita. Quase nos encontramos outro dia. Não cheguei a vê-la, mas já sei de antemão que não faz meu tipo. Comigo não tem essa de querer experimentar sen-sações novas, nem aquela ladainha de superação. Já superei o sol de janeiro, o cheiro dos postos de gasolina e a programa-ção de férias da tevê; é o suficiente. Pra que me doar mais?, peço tão pouco em troca, quero quase nada, só o meu corpo dormindo por conta própria na minha cama que espera desar-rumada por mim (espera por mim, desarrumada por mim). Cama de verdade. Era pra eu estar no meu quarto agora, não era para eu estar no CTI. Aliás, não era pra ninguém estar no CTI.

Bruna Mitrano - Tem 24 anos e mora no “velho oeste carioca”. Trabalhou tanto em micropaleontologia como em alfabetização de idosos. Hoje não faz muita coisa além de ler, ouvir música e observar pessoas desconhecidas. Teima em manter o http://www.deliriolilas.blogspot.com/.Ah: e nunca publicou um livro.

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A Seita do Caos, de J. P. Balbino e a importância da literatura de entretenimento Por Rogers Silva

Ação. Pura ação. Ação de perder o fôlego. Ágil como um filme de ação dos bons. Soma-se à ação a ficção científica. Soma-se à ação e aos traços de fc o suspense policial. São esses os gêneros de A seita do caos. E são justamente essas as

qualidades do romance de estréia de J. P. Balbino. Despretensioso e bom. Simples e bom. Ele não se propôs a ser uma obra-prima (e não é), mas sim um bom entretenimento. Ponto pro autor, porque conseguiu.

Primeiramente quero começar a falar das minhas ex-antipatias pelos gêneros supracitados. As minhas antipatias por esses gêneros, mais especialmente por ação e fc, surgiram na verdade a partir do cinema, e não da literatura. Pouquíssimos filmes de ficção científica e de ação me agradavam. Os de ação sempre me passaram a impressão de entretenimento barato, feito por um diretor medíocre e pra um público preguiçoso. Aos de fc faltava algo, que falasse da condição humana (ou que a abordasse explicitamente), com a qual nos familiarizamos ao lermos um livro ou assistirmos a um filme.

Devo ressaltar que essas antipatias não têm nada a ver com preconceitos acadêmicos e/ou intelectuais. Muito antes de ingressar num curso superior ou ter o hábito de leitura eu já não gostava de filmes desses e de outros gêneros. São antipatias conseqüência de não-sei-lá-o-quê, que faz a gente gostar disso e não daquilo, ou de gostar mais disso do que daquilo. Incitavam minha curiosidade filmes brasileiros, dramas, filmes históricos, algumas comédias (sobretudo nacionais), alguns suspenses, pouquíssimos infantis. Mas ação e fc, não – raramente surgia a vontade de assistir a filmes cujos motes eram explosões de carro e tiros (no caso de ação) ou filmes de robôs, passados num futuro próximo ou distante. Sim, pra mim esses gêneros se resumiam a isso mesmo, sem colocar nem pôr.

No entanto o tempo passou, muita coisa aconteceu. Inclusive cheguei a publicar em duas antologias de literatura fantástica, cujo gênero principal era a ficção científica: Portal Solaris e Portal Neuromancer (ambas organizadas por Nelson de Oliveira). Nesse meio tempo li muitas obras policiais, das quais (das boas) passei a gostar muito. Autores como Flávio Moreira da Costa e Rubem Fonseca, com algumas de suas obras taxadas como policiais, são importantes não só para o gênero, mas também para a literatura brasileira. Assim, hoje, por várias e várias razões, sei do valor da literatura de ação, suspense e ficção científica para a formação de leitores. É aí onde quero chegar.

A seita do caos, do iniciante em livros (não levando em consideração suas participações em antologias) J. P. Balbino, é bom não porque levanta questões de ordem filosófica, política, afetiva, universal. Mas porque entretém. É um bom romance não porque (ab)usa de uma linguagem refinada, experimental, original. Mas porque sua linguagem é simples, direta e competente em sua proposta, estilo e gênero. A seita do caos é um bom romance não porque é pretensioso, complexo e rico, mas, ao contrário, porque é despretensioso, simples e limitado em seu projeto: de ser uma história de entretenimento.

Antes da sinopse do livro, comecemos pelo começo. A capa, a meu ver, poderia ser melhor: um olhar, entre uma máscara médica, ocupando a metade do espaço, e a visão de uma cidade, ocupando a outra metade, não dizem muito. No miolo,

RESENHA

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há pequenas falhas de impressão; nada comprometedor. Alguns probleminhas de gramática que, a meu ver, não deveriam ter passado, visto que há um revisor responsável por isso. Por outro lado, o tamanho da fonte, o espaçamento entre linhas e o espaço das margens (superior, inferior, esquerda, direita) são aprazíveis à leitura. A esses pontos positivos, somam-se um livro com orelhas e um marca-texto, tão esquecidos por tantos autores iniciantes. No geral, ponto pra editora, pro diagramador e pro autor.

Agora uma breve sinopse... Um ano após Klaus Lennertz (o protagonista) descobrir a cura para o Ius, um vírus que causou temor na humanidade e que foi responsável por algumas dissidências diplomáticas entre os países, quando tudo parecia estar resolvido, ele recebe em seu celular uma mensagem estranha e misteriosa dum indivíduo chamado Leonardo Cass: um recado sobre o pai de Klaus, que acabara de morrer, e sobre a possível volta do vírus mortal. A partir daí o leitor se depara com a procura por esse tal Leonardo e, em conseqüência, com uma série de perseguições contra o protagonista e seu grupo (sua namorada, seu irmão bandido e um amigo hacker do seu irmão).

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Rogers Silva - Publicou nas antologias Retalhos (org. Edson Rossato), Portal Solaris e Portal Neuromancer (org. Nelson de Oliveira). É autor do ainda inédito Manicômio (contos/novelas). Mora em Uberlândia, MG.Bloga em http://www.rogerssilvaoriginal.blogspot.com/

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Perseguições, muita ação, troca de tiros, explosão de carros, suspense, uma teoria absurda sem ser de todo inverossímil, espaços futuristas, traições, reviravoltas, heróis e vilões – eis o que o leitor encontra em sua leitura d’A seita do caos, de Balbino. Não pense o crítico literário mais ácido que é fácil fundir tudo isso num romance, descrever cenas de ação/troca de tiros/explosão de carros, entreter e, ainda por cima, convencer, ao ponto de incitar o leitor a continuar lendo, a fim de descobrir o que virá em seguida. Mas em seu primeiro romance J. P. Balbino consegue.

O romance é dividido em capítulos e, no interior desses capítulos, em quadros. A divisão em quadros, esses separados por espaços, ao mesmo tempo contribui e confunde. Contribui, juntamente com sua linguagem direta e fácil, para a agilidade do enredo, o que vai ao encontro da sua proposta inicial, de ser um romance de entretenimento. No entanto, confunde porque são apresentados ao leitor, a todo momento, situações, ambientes e personagens novos. Muitos desses personagens, ora porque têm o nome iniciado com a mesma letra ora porque não são bem descritos física e psicologicamente, confundem o leitor. Além do mais, alguns deles não têm sua função bem definida e, por isso, são dispensáveis ao enredo.

Enredo – é exatamente ele o protagonista do romance de Balbino. É exatamente por causa dele que o leitor segue em sua leitura, porque é ele responsável por prender a atenção do leitor e entretê-lo. A seita do caos é literatura de entretenimento. E a literatura de entretenimento é talvez a maior responsável por fisgar os (novos) leitores. Dê a um adolescente A seita do caos e Os lusíadas, de Camões, e ao final da sua leitura lhe pergunte de qual mais gostou. A resposta é óbvia.

Há leitores e leitores, há obras e obras. Há obras para leitores iniciados. Há obras para os leitores médios. Há momentos em que os leitores iniciados querem obras de leitura fácil e rápida. Chega um momento em que esses leitores médios necessitam de obras mais exigentes. Todas essas nuances e processos devem ser levados em conta pelos professores, críticos literários e demais especialistas. Mas infelizmente não é isso o que acontece. O que acontece, na verdade, é o oposto. Entre inúmeros equívocos, o mais comum é exigir de um adolescente de 14 anos a leitura de obras como a já citada epopéia de Camões e as do Pe. Antônio Vieira, por exemplo.

A seita do caos, de J. P. Balbino, está em circulação. Que os leitores possam conhecê-lo. Com certeza encontrarão entretenimento dos bons.

* Livros podem ser enviados para o colunista Rogers Silva a fim de serem resenhados. Tratar pelo email [email protected] Após lido, o livro será sorteado entre os leitores/seguidores d’O BULE.

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CONTO

ZaratustraPor Rodrigo Novaes de Almeida

Ontem Zaratustra sonhou com dois leões e uma besta negra. Eles o intimidavam, como ocorrera em outro sonho, no qual sete leões o perseguiam. Ele correra, tentando chegar ao cume de uma montanha. Cer-

caram-no. A besta negra surgira também e se transformara num samurai. Lutaram com espadas. Zaratustra alcançaria, numa outra noite, o cume daquela montanha. Uma leoa prostrada diante de uma mão sem corpo fecharia o seu caminho à última pedra, e também primeira. Um lago com milhares de ametista sob as águas seria a sua única e derradeira alternativa, mas um macaco de pêlos dourados conspurcava o corpo de Eva na margem ocidental. E o silêncio. Tinha o silêncio. A guerra estava longe agora, nas planícies. Apenas uma es-pécie humana sobreviveria então. Zaratustra não pensava em seus filhos que ainda levariam ciclos de tempo para nascer, mas olhava através deles, de crianças brincando sobre um piso de mármore. Aqueles olhos, eram os seus olhos, olhos grandes em faces pequenas, olhos que diziam futuro. A espada do samurai atravessou o seu peito, mas ele não caiu. Continuou lutando, e antes que cortasse o seu adversário em dois, o adversário se tornou mulher. Longe dali dois leões e uma besta negra quebrantavam outro Zaratustra. O dilúvio começara. A água era escura e cheirava mal. Podre. Era um pântano, mas era também uma floresta fechada. Zaratus-tra subiu em uma das árvores e avançou para a seguinte. Os dois leões ficaram para trás, mas a besta negra mantinha o seu propósito. Zaratustra não sobreviveria. Seus filhos não nasceriam futuro. O mundo não veria mais sol, que explodisse o sol, que explodissem todos os sóis. Andrômeda já atravessara meia galáxia. Eram uma coisa só, uma borboleta dançando no Cosmo. Mas não havia explosões. Não haveria explosões; não até o devido ciclo de tempo. Zaratustra sabia. Nós sabíamos! Um tempo festivo já começara. A dança galáctica, sim! As crianças futuro. Por que Zaratustra ainda sonhava? Por que voltava o seu olhar para o passado, justo agora? Ele trouxe o futuro, mas seus sonhos, mesmo tanto tempo... Ai, o que nós estamos dizendo? Não foi ontem. Tudo agora. Sem amanhã. Mas Zaratustra viu. Viu amanhã e vê agora-ontem. E algo ficou preso no passado, algo que precisa... não... algo que quer se mostrar para Zaratustra. Estou velho, diz ele. Minhas crianças cresceram. Espalharam-se no bater de asas de Borboleta. Agora todos dançam. A nova galáxia festeja. Desde a queda da besta negra do mundo. Eu sou o último da minha espécie. Eu sou passado, agora. Os sonhos me dizem a verdade, sempre. É hora de partir, espírito do tempo. O fluxo em mim deve desvanecer. Precisa. Eu quero. Eu não quero: mais. O ciclo do tempo humano se fechou em mim; como princípio, volto a ser criança. Então. Zaratustra. Presença. Faz-se Esquecimento. Desfaz-se. Uma ode ao homem morto. Pequeno recorte. Dobradura. Borboleta bate suas asas. O sol nasce, como ontem, mas não há mais olhos humanos para vê-lo. Crianças brincam, entre as estrelas. Até que um dia, pleno será o repouso das nascentes dos rios do tempo; é lá que Zaratustra nos espera, agora.

Rodrigo Novaes de Almeida - Publicou, pela Multifoco Editora, o livro de contos Rapsódias – Primeiras Histórias Breves (2009), pela Mojo Books, a ficção A saga de Lucifere, e participou das antologias Portal Stalker e Portal Fundação (org. Nelson de Oliveira). Mora no Rio de Janeiro, RJ. Bloga em http://rodrigonovaesdealmeida.blogspot.com/

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LauraPor Claudio Parreira

Não importa, eu vou. Escalando as costas da tarde, que se precipita feito uma flecha em direção ao depois.Porque assim tem sido desde sempre: logo cedo a questão me abraçou: você escolhe entre voltar, permanecer ou seguir.

Não aprendi a voltar; permanecer é doloroso. Seguir, portanto. É o que tenho feito.Cada segundo traz nos bolsos o mistério. A aspereza do oxigênio. O suor em chamas. O nome dela é Laura.Foi num sonho. Laura era um susto. Não pude ver o seu rosto, o seu corpo. Névoa de sono. Mas sim, os sentidos todos apon-

tando pra ela, a mulher.Quando acordei toda a cama era um oceano. Peixes transparentes no ar. Na boca um gosto amargo de estrelas. Laura era fiapo

de sonho, impalpável, mas já existia em mim.Daí todos os meus dissabores.- Laura, foi quando eu suava labaredas. No sonho, ela estava no sonho. Viu ela por aí?Riam de mim. Esse o mal das pessoas: ninguém acredita nos sonhos alheios.Minha única certeza era uma só. Nunca no meu passado, no meu presente de maneira confusa. Só depois, talvez. Laura só no

futuro.Por isso escalo os calendários com a determinação de um condenado. Não me cabe permanecer aqui. O desespero é hoje, nunca

ontem. O sofrimento é agora.Longa a estrada. Os gatos no caminho. Uma conversa esclarecedora.- Não sei como ela é – dizem os gatos –, mas tenho amigos que moram lá, no depois. Falam de Laura, Lauras. Depois é cheio de

Lauras.Suspeito, portanto, de que estou no caminho certo. Um homem que acredita na palavra dos gatos. Talvez por escrever.As primeiras letras também foram difíceis. Difícil subir ao caderno, acomodar-se às dobras das sílabas, domar consoantes.

Porque no princípio toda palavra é vertigem. Como as mulheres. Desconhecido azul.O rigor. Porque as palavras fogem à falta de rigor. Precisam de um braço para contê-las. De maneira que o meu aprendizado

com as mulheres começou com as palavras.Mas eis que agora me vejo aqui sem nenhuma delas. Há tempos não escrevo uma mulher. Laura é sabedora da minha condição.

Por isso veio no sonho. Vapor-mulher, a direção que faltava aos meus pés.Quanto mais avanço menos gatos eu vejo. Os poucos que ainda restam temem falar. Depois é um território nebuloso, eu sinto.

Só os gatos mais corajosos chegam lá. Só os homens mais corajosos se dispõem a chegar lá. Depois. Laura não está. Laura é lá.Econômica a minha paisagem. Uma estrada, só, uma tempestade de girassóis do lado direito, do esquerdo os cardumes: peixes

azuis amarelos pretos, tantos peixes – e não dão a mínima para os gatos.- Não como os peixes sonhados pelos homens – diz um gato amarelo. – Não tenho essa capacidade.Sonhos particulares. Cai por terra a minha teoria de que os sonhos pertenciam a todos. Não pertencem aos gatos, pelo menos.- Os nossos são de outra natureza – dizem os gatos verdes. – Basta um sonho de gato para o seu mundo sair do eixo.O meu mundo saiu do eixo desde que sonhei com Laura. Seria o meu, então, um sonho de gato?- Só um gato sonha sonhos de gato – dizem os gatos azuis. – Eis aí uma questão a ser considerada.Vejo Laura pela primeira vez, finalmente. Está ao alcance da minha mão. E ela não é mais névoa, nem sonho.- Mas você não pode me tocar – ela diz, o sorriso tranqüilo no rosto.Estendo meu braço e o que encontro na extremidade é uma pata de gato. Meu braço é um gato. Eu sou o gato.- É por isso? – protesto. – Não sou um gato, não era até há pouco. Estou gato, e isso é diferente!Laura sorri. Todo o meu trabalho foi inútil. A minha caminhada. Malditos gatos! E agora de nada me adiantam as palavras, são

vento.- Tanto faz pra mim se você está gato ou elefante – ela diz, a voz serena. – Você nunca vai me alcançar.A tempestade de girassóis. Os cardumes. Laura é o caos.- Agora – diz Laura, os lábios sorrindo sílaba por sílaba. – Você é agora. Percebe?Nenhum gato mais. Somos apenas eu e ela.- Eu sou agora.- E eu, depois – ela diz.- Por mais longe que eu vá, serei sempre agora.- Depois é a minha maldição.O universo tem essas cápsulas que separam as coisas, as pessoas. Não posso alcançar o ontem.Laura é névoa mais uma vez. Sempre será. Mas não aprendi a voltar; permanecer é doloroso. Sigo, portanto.

Claudio Parreira - Escritor, chargista e vigarista. Foi colaborador da Revista Bundas, do jornal O Pasquim 21, Caros Amigos on line, Agência Carta Maior, entre outras publicações. Teve contos incluídos nas antologias Contos de algibeira (Ed. Casa Verde), Fiat voluntas tua (Ed. Multifoco) e Dimensões.br (Ed. Andross). Mora em São Paulo, SP. Mantém na Internet o BLOG PPC! http://claudioparreira.blogspot.com/ E-mail: [email protected]

CONTO

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Última chancePor Mauro Siqueira

ÚLTIMA CHANCE. Daqui posso vê-la do espelho: acaricia uma das costas do próprio braço, como que tímida, estranha por estar ali... ela ainda parece decidir, fazer parecer sensato. Eu não posso demorar, não posso deixar

que aquela sombra ganhe corpo, sentido. Dúvida é a sombra, algo além do categórico, algo palpável: um véu, que apesar de fino e translúcido e mínimo, uma barreira intransponível entre nós. A dúvida: o limite.

Última chance. É só o que consigo pensar: última chance... última chance... última chance... uma locomotiva anunci-ando a última saída, a chance que tenho de embarcar, ela já no trem sem olhar para trás; corro pela plataforma de mão estendida, tentado alcançar qualquer coisa para me agarrar a ele... a ela.

* * * * *

Corro a mão pelo seu corpo por mais uma vez...

Eu sei que amanhã ela vai achar tudo isso um erro, vai sentir nojento tudo que se dará e sentirá quase-agora – seus olhos nunca mentiram, e já até vejo: ela irá tomar um banho: um banho quente, muito quente, do jeito que não gosta. Abrindo todos os poros da pele maculada; vai se esfregar com força a esponja no corpo, querendo se limpar, limpar-se de mim, cada leve contato, cada forte lembrança (um véu). Ela vai sentir raiva. Como nunca sentiu. E qualquer coisa que eu faça, qualquer coisa que eu possa tentar fazer para que esta noite permaneça terá sido inútil diante do dia em que lhe dei as costas pelo efêmero.

Talvez.

Hoje eu vou contar com a sorte para inverter clichês.

Ela nunca me perdoou. Então esse é o nome do trem que tenho que agarrar: desespero – a última chance. Eu tenho de consertar o que eu fiz, colar cacos (ainda que cole, será o mesmo vaso?). Hoje sei que sempre foi ela. Um pouco tarde, certamente. Sinto-me oco. Dentro de mim... vago espectro pela remissão, buscando consolo nos lábios, colos alheios, sugando algo que elas não têm para oferecer... virei um estranho íncubo. (Viver faz mal). Mas com ela, corpo reconstruído, restaurado, estilhaços que era não mais. Com ela meu fingimento dura pouco: sou autêntico.

Em algum lugar, ela ainda me guarda. E foi isso que a trouxe aqui, uma saudade (uma dor dela), mas está claro no seu corpo que será só isso: nostalgia (catarse de fato dessa dor, está curada...). Não poderei dizer no seu ouvido, olhando nos olhos dela, que a amo, se não, nem essa nostalgia vou ter, e ela passará por aquela porta. Ouço o apito da locomotiva...

...última chance, última chance, última chance... uma locomotiva anunciando a última saída.

Ela não me deu escolhas a não ser de eu trocar os móveis de lugar e estar aqui (em algum lugar, ela ainda me guarda. E foi isso que a trouxe aqui), num motelzinho de 29,90 por 4 horas, fazendo amor com ela e com camisinhas que furei enquanto a olhava acariciar o braço pelo espelho, na esperança desesperada de uma gravidez indesejada.

Hoje, hoje eu vou inverter clichês.

Mauro Siqueira - Carioca, rubro-negro, escorpiano e míope até a medula. Formado em Letras pela UERJ, é assessor editorial. Publicou em 2008 De vermes e outros animais rastejantes (Ed. Multifoco), seu primeiro livro de contos. Prepara o segundo livro, também de contos, Simplesmente complicado. Passa a maior parte do tempo livre lendo, pensando em literatura, rock (inglês), filmes (bons e ruins) e trocadilhos infames (e claro, na internet, para desgosto da sua namorada).Bloga em http://devermeseoutrosanimaisrastejantes.blogspot.com

CONTO

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Seis microcontos,do livro inédito ‘Breu’ Por Geraldo Lima

O inesperado

Fazia tempo que não nos víamos. Ela tentou ainda correr o fer-rolho. Inútil. Com a ponta do sapato impedi que fechasse a

porta. Recuou aterrada, desintegrada pelo medo. Entrei. Desliguei a luz e avancei dentro do breu.

Por trás daquele sorriso

De dentro do sorriso saltaram os ferrinhos comprimindo os dentes. Tarde demais. Ferro contra ferro, língua contra lín-

gua, dente contra dente. Saliva, murmúrios. Depois, o abismo, a voz de Deus cada vez mais distante.

Sanctus

Deus não aprovaria isso, essa carne devassa, esse sexo exposto, faminto sempre. Só a morte lhe trará a verdadeira satisfação.

Eu curo os doentes, amanso os loucos, dou descanso aos desen-ganados. Deus anda comigo pelos caminhos mais turvos. E agora estamos aqui, junto ao seu leito enfermo, o coração repleto de amor e piedade.

Missão

Quando adentrei o recinto, havia ainda uma nesguinha de Deus em mim. Confesso: quase senti piedade, remorso pelo

que ia fazer. Quase, quase. Mas de repente as vistas turvaram, ad-veio uma noite medonha. O restinho de luz finou de vez. Agora, só o tumulto de gritos, clamor e desespero dentro do breu.

Oh!

Tentou ainda dizer algo como Deus está... Cortei com um beijo seco, quase violento. Deixa Deus fora disso, Ele é só remorso,

temor... Quis retrucar, mas tapei-lhe a boca de novo: um beijo ávi-do, sufocante. Gemeu, como se algo morresse dentro dela. Desli-guei então a luz para que ela não visse, não pensasse, não buscasse a face de Deus em meio aos estertores.

Macega

A gente avançou no meio do escuro, rumo ao lugar de onde vieram os gritos. Meu pai indo adiante, só coragem, medo

nem de Deus nem do diabo. Eu indo bem no meio, dominado pelo terror. Por que estávamos indo até lá? Para a memória carregar pra sempre o charco de sangue, a ruína do corpo?

Meu pai avançava, sem fome de perguntas, senhor do nada.

MICRONARRATIVAS

Geraldo Lima - Publicou A noite dos vagalumes (contos, Prêmio Bolsa Brasília de Produção Literária), Baque (con-tos, LGE Ed.), Nuvem muda a todo instante (infantil, LGE Ed.) e UM (romance, LGE Ed.). Participou da Antologia do conto brasiliense (Projecto Editorial, org. Ronaldo Cagiano), de Todas as gerações - o conto brasiliense contemporâ-neo (LGE Ed., org. Ronaldo Cagiano) e das revistas Solaris e Neuromancer (org. Nelson de Oliveira). Bloga em http://baqueblogdogeraldolima.blogspot.com/

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Dos insetos – Uma fábula curta Por Chico Pascoal

Era uma vez uma borboleta chamada SunTzu que, em um café da moda,

conheceu uma barata chamada Gregor Samsa. Entre um chá verde e um café expresso, entabularam animada conversa e descobriram interesses comuns: livros, vinhos, charutos, belas mulheres, música clássica... Mas como tudo é efêmero e superficial nessa vida, entre baforadas espessas o sonho logo se dissipou: Sun Tzu voltou a vender pastel na feira aos sábados; e Gregor Samsa a cuidar da sua lojinha de miudezas no bairro do Bom Retiro.

MICRONARRATIVA

Chico Pascoal - Publicitário (Fac. Cásper Libero), trabalha na área de TI de uma ex-estatal. Publicou na antologia Contos imediatos (Ed. Terracota, org. Roberto de S. Causo). Mora em Sampa.Bloga em http://microrelatosdocheeko.blogspot.com

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FOLHETIM

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Homero Gomes - (Curitiba/PR, 1978). Escritor. Vem tentando tuitar seu livro Jamé Vu, que está no prelo, em http://twitter.com/hgomesjamevu. Autor, também, dos trabalhos ainda inéditos Sísifo desatento (contos) – com o qual foi finalista do Prêmio Sesc de Literatura, edição de 2007 –, Três (teatro) e A jornada de A Bao A Qu (infanto-juvenil). Possui publicações nos periódicos Rascunho, Cult e Ficções. Responderá a todos os contatos feitos pelo e-mail: [email protected]

Jamé Vu - Abertura

Por Homero Gomes

o que se busca incansavelmente essa luta diária sem oponente esse bate-estaca cada vez indo mais fundo o som de órgãos anunciando a entrada da noiva o que se busca filósofos religiões e os bêbados cada um dá sua explicação sua resposta felicidade salvação o corpo quente de alguém a casa o peito o norte onde está o norte buscamos alegrias a salvação das nossas almas a alma gêmea o que se busca como podemos buscar algo que não sabemos felicidade através de deus diabo fama dinheiro sexo ocasional mas isso passa dizem alguns a salvação de nossas almas mas como é que é possível comprometer uma vida para garantir a eternidade para uma coisa que não temos certeza absoluta se existe ou não talvez nem esse amor verdadeiro exista as almas que se combinam se tornando uma só o que a total apatia busca a destruição do organismo e a angústia o que buscam será que buscamos realmente alguma coisa só passamos só não deixamos pegadas deixamos sombras talvez sonhos não há objetivos talvez quase nada exista de verdade talvez eu seja uma marionete ou talvez você leitor um sonho que eu sonhei na noite passada