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“Nós o aceitamos como um de nós. Um de nós” por Alysson Oliveira

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“Nós o aceitamos como um de nós.Um de nós”por Alysson Oliveira

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Call out the instigatorsBecause there’s something in the air

We’ve got to get together sooner or laterBecause the revolution’s here, and you know it’s right

And you know that it’s right1 Thunderclap Newman, “Something in the air”, música lançada em 1969

This time tomorrow where will we beOn a spaceship somewhere sailing across an empty sea

This time tomorrow what will we knowWell we still be here watching an in-flight movie show

I’ll leave the sun behind me and watch the clouds as they sadly pass me bySeven miles below ma I can see the world and it ain’t so big at all

This time tomorrow what will we see2 The Kinks, “This Time Tomorrow”, música lançada em 1970

Há um momento-chave no filme “Os Sonhadores”, do italiano Bernardo Bertolucci, quando os protagonistas atravessam o Louvre correndo. Os gêmeos franceses Isabelle (Eva Green) e Theo (Louis Garrel), e o americano Matthew (Michael Pitt) querem cruzar os corre-dores do museu no menor tempo possível – batendo o recorde, de 9 minutos e 43 segundos, estabelecido pelos personagens de “Bando à parte”, que Jean-Luc Godard lançou em 1964. O trio consegue o feito, e, após isso, o casal de irmãos comemora entoando “Nós o aceita-mos como um de nós. Um de nós”, célebres frases do controverso clássico “Monstros, de Tod Browning, de 1932, cantada na ocasião da chegada de algum novo membro ao “circo de hor-rores” onde se passa o filme. Com esse filme, Bertolucci, um “veterano da década de 1960”, para usar uma expres-são de Fredric Jameson3, revisita um tema, um momento e um período caros à sua obra. Na ocasião do lançamento, em 2004, ele disse ao jornal inglês The Guardian, que não se tratava de uma viagem nostálgica, mas de passar “uma mensagem de esperança à juventude de hoje. Há uma grande diferença entre aquela época e o presente. Em 1968, havia a percepção do futuro, uma suposição de que o mundo podia melhorar, e você seria parte disso. Hoje não é o caso. Então eu queria falar desse sentimento”4.

1 “Chamem os incitadores/ Porque há algo no ar/ Precisamos nos unir agora ou depois/ Porque a revolução está aqui, e você sabe que é certo/ E você sabe que é certo”. 2 “Amanhã a essa hora, onde estaremos/ Numa espaçonave em algum lugar navegando num oceano vazio/ Amanhã a essa hora, o que saberamos/ Estaremos ainda aqui assistindo a um filme abordo de um avião/ Eu deixarei o sol para trás e assitirei às nuvens enquanto melancolicamente passam por mim/ Sete milhas abaixo, e eu posso ver o mundo, e ele não é tão gran-de”. 3 JAMESON, Fredric. “Periodizing the 60s”. In.______. The Ideologies of Theory – Essays 1971-1986 - Volume 2: The Syntax of History. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1988, p. 178-208.

4 BERTOLUCCI, Bernardo. “Stealing Beauty”. Entrevista a Xan Brooks publicada em The Guardian, 5 de fevereiro de 2004. Disponível em https://www.theguardian.com/film/2004/feb/05/features.xanbrooks . Acessada em 20 de agosto de 2017.

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O cineasta italiano podia ter a melhor das intenções, mas seu filme acaba preso numa espécie de intersecção entre dois passados, um mais remoto (maio 68) e outro nem tanto (as décadas finais do século XX). A trama começa em algum momento daquele ano – antes de maio – quando Henri Langlois, diretor da Cinémathèque Française, foi destituído do cargo pelo ministro da cultura André Malraux. A demissão gerou manifestações de repúdio, e numa delas, Matthew conhece Isabelle, presa por correntes às grades do portão da instituição. Logo ela o apresenta para seu irmão, e o triangulo está formado. É sintomático que o primeiro contato dos personagens se dê em frente à cinemateca, pois o cinema se tornará mediador da relacionamento deles. Cenas e diversos filmes são evocadas ao longo de “Os Sonhadores”, como forma de ilustrar os laços de amizade e amor que os prende, mas também como uma nostalgia de um momento que eles não viveram. Nostalgia, aliás, pode ser uma palavra na compreensão do filme de Bertolucci. Ele evoca um período, sem a preocupação de o historicizá-lo. Trabalhando com um roteiro es-crito pelo romancista escocês Gilbert Adair – a partir de seu próprio romance “The Holly Innocents”, de 1988 –, ao diretor interessa mais a revolução pessoal de cada um do que o movimento da história de forma mais ampla. Nesse sentido, o filme se concentra no trio, e investiga o despertar sexual de Matthew que flerta com o casal de irmãos, e acaba deflorando Isabelle5. É pelo filtro da nostalgia de Bertolucci sobre uma época da esperança da possibilidade de um mundo melhor, parafraseado suas palavras, que o filme se compõe. Com a viagem dos pais dos gêmeos, o trio se instala no apartamento da família em Paris, e passa a viver uma relação um tanto tórrida, um tanto inocente, e rememorar filmes que os agradam. A lista é longa, e inclui, entre outros, “Persona”, “Blow up – Depois daquele beijo”, “Rainha Christina”, “Acossado” e “Mouchette, a virgem possuída”. É uma bolha que se fecha cada vez mais, e dessa forma, o diretor justifica a história ficar do lado de fora do apartamento. A bolha literalmente explode já bem perto do final do longa, quando Eva liga o gás, enquanto os rapazes dormem, e leva a mangueira até a cabana onde estão na sala. Ela se deita ao lado deles, e parece esperar a morte chegar, até que uma pedra quebra a vidraça, e ela abor-ta seu plano. É a “Noite das Barricadas”, como ficou conhecida a de 10 de maio de 1968. Na cena seguinte, as ruas estão tomadas, jovens enfrentam a polícia que também parte para cima deles. O trio cinde. Isabelle e Theo se armam com um molotov e vão à ação. Matthew, com um rosto melancólico e uma sensação de covardia, vai em sentido oposto, atravessando a multidão de moças e moços que se preparam para o confronto. Na trilha sonora, Edith Piaf canta “Non, je ne regrette rien”. Quem não se arrepende de nada, no filme, não fica claro. “Os Sonhadores” acaba exatamente no momento em que a rebelião começa. Bertoluc-ci poderia ter chamado seu filme de “Antes da Revolução”, mas já fizera isso na sua obra

5 No roteiro original havia um relacionamento homossexual entre Matthew e Theo, mas Bertolucci acabou por excluí-lo do filme – “eu achei que era muita coisa. Acabaria se tornando redundante”, disse na citada entrevista ao The Guardian.

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exibida no Festival de Cannes em 1964, e lançada na França no final de 1967, começo de 1968, fazendo enorme sucesso no país: “saiu em um momento em que as coisas que [o protagonis-ta] dizia, que ele gritava e reivindicava, eram coisas que todos os jovens da época diziam” , explicou O longa dos anos 2000, no entanto, pode ressoar de outra maneira. O que a obra sedimenta em si é o arco que existe entre a experiência comunal de 1968 e o individualismo exacerbado século XXI, que começaram a se delinear e se tornar hegemônico no período entre esses dois extremos. Matthew é mais “um de nós”. Um de nós – cada um é único, a ideia de grupo está dissolvida em suas unidades. Poderia ser diferente (“somos todos um”, ou algo assim), mas o filme destaca um a um – e suas pequenas revoluções muitas delas burguesas. É como se ao falar de 1968, o filme fosse tingido pelas cores neoliberais das décadas que separam o seu presente de produção e o presente da narrativa, que o impedissem de ver além do presente. É óbvio que nem o filme, nem Bertolucci, se alinha ao neoliberalismo, mas é como essa ideologia estivesse ali como uma forma de contenção, que “Os Sonhadores” não consegue superar. Fruto de seu tempo, o longa não tem como evitar isso em suas entranhas – e, às vezes, até na pele, de forma discreta. Não muito depois de Bertolucci, em 2005, o francês Philippe Garrel lança o seu “Amantes Constantes”, que começa mais ou menos no ponto em que o filme do italiano ter-mina. Novamente Louis Garrel (filho do diretor) é o personagem central, o jovem francês François Dervieux, um poeta que se apaixona por uma escultora, chamada Lilie (Clotilde Hesme). Mas de certa forma, aqui temos uma resposta a “Os Sonhadores”, no qual a Noite das Barricadas mais parece um ato de irresponsabilidade juvenil. Garrel trabalha com a dúvida moral, com as nuances – tais quais a fotografia esmerada em preto e branco do filme, assinada por William Lubtchansky – de seus personagens. Lilie, por exemplo, a certa altura conta que assistiu ao próprio “Antes da Revolução”, no qual o jo-vem protagonista, filho de uma família burguesa, acaba por desprezar o socialismo rejeitando o Partido Comunista, e abraçando de vez a vida abastada. Filha de um imigrante italiano e operário comunista, ela acaba abandonando François para tentar a carreira nos Estados Uni-dos. O filme segue o après-mai, a vida de seus personagens depois das barricadas – mos-tradas na primeira meia-hora do longa – quando François e Lilie começam a participar de um grupo fundando por Antoine (Julien Lucas), burguês rico e jovem, que diz ter feito a revolu-ção com o dinheiro que herdou: “Com o meu dinheiro, eu criei para mim um reino sem leis”. Essa alienação intelectual, levará à derrocada dos personagens. O filme investiga o vácuo que se forma na vida dos personagens quando a rebelião se dispersa. François passa os dias junto do grupo de Antoine, fumando ópio, que declara “O dinheiro sou eu”. O diretor – a partir do roteiro assinado por ele, Arlette Langmann e Marc Cholodenko – retrata revolucionários jovens que podem “fazer a revolução” porque tem di-

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nheiro, ou alguém que os sustente. No caso, de “Os sonhadores”, os pais de Isabelle e Theo dei-xam, quando saem em viagem, um cheque gordo para eles sobreviverem em Paris. Quando o dinheiro acaba, graças às suas extravagancias, na companhia de Matthew vasculham o lixo em busca de algo para comer. Aqui, Antoine é a fonte inesgotável de francos, até que se muda para Marrocos, e deixa François sem rumo e um tostão no bolso. Antes disso, no entanto, o que os personagens não precisam é tomar decisões. Vivem no luxo de uma inércia patrocinada, devotados à arte e ao seu amor. Parecem viver num mundo à parte, onde os acontecimentos do mundo real são vistos de longe e com curiosidade. Suas interações com o lado de fora de sua redoma são eventuais – mas, em dado momento, inevitáveis, quando a escultora precisa escolher entre o amor e o trabalho. Lilie tem interesse em mudar de vida, em sair do comodismo. François não. “Amantes Constantes” é um filme que, como o de Bertolucci, trabalha com a indivi-dualização das revoluções. Separando-as em células pessoais, investigando os efeitos (anterio-res e posteriores) de Maio de 68 na vida de seus personagens. Aqui, porém, há algo de uma experiência comunal – com o grupo de Antoine – mas essa não é o foco do filme. Uma das estratégias de Garrel é evocar tanto a excitação quanto o tédio da vida desses indivíduos –e isso, ele traduz nas três horas de filme que transita exatamente entre esses dois polos. “Amantes Constantes” examina as decepções e mudanças nas vidas individuais de seus personagens depois de um decepção histórica. O diretor aponta não apenas aquilo que poderia mudar, mas também como tudo fica quando as coisas não mudam. Trabalhando com as convenções de uma história de amor, o filme deixa que seus personagens façam suas pró-prias escolhas, mesmo que essas inevitavelmente os levará à ruina. Um dos momentos mais bonitos do filme de Garrel é a passagem de 1968 para 1969. Os números na fachada de uma casa indicam “69”, e a trilha traz “This Time Tomorrow”, da banda The Kinks, enquanto, em cena, jovens dançam alucinadamente, como se não houvesse amanhã. Mas, como todos bem sabemos, houve – e não é dos melhores.

BibliografiaAMANTES Constantes. Direção: Philippe Garrel, Produção: Gilles Sandoz, Imovision 2005. 1 DVD (183 min.). Título Original: Les amants réguliers.BERTOLUCCI, Bernardo. “Stealing Beauty”. Entrevista a Xan Brooks publicada em The Guar-dian, 5 de fevereiro de 2004. Disponível em https://www.theguardian.com/film/2004/feb/05/features.xanbrooks. Acessada em 20 de agosto de 2017.______.“Bernardo Bertolucci”. Entrevista a Angela Prudenzi e Elisa Resegotti. In. PRUDEN-ZI, Angela; RESEGOTTI, Elisa. Cinema Político Italiano. Trad. Roberta Barni e Dóris Nátia Cavallari. Cosac Naify, 2006, p. 126-127.JAMESON, Fredric. “Periodizing the 60s”. In.______. The Ideologies of Theory – Essays 1971-1986 - Volume 2: The Syntax of History. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1988, p. 178-208.SONHADORES, Os. Direção: Bernardo Bertolucci, Produção: Jeremy Thomas, 20th Century Fox, 2003. 1 DVD (115 min.). Título Original: The dreamers.

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