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    A QUESTO JUDAICA

    Karl MARX

    Tradutor:Artur Moro

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    Apresentao

    Dupla a teno de Marx nestes dois escritos (redigidos no finalde 1843) que versam sobre a questo judaica [ Die Judenfrage]de Bruno Bauer.

    A primeira levar a cabo uma crtica da posio baueriana que,a seus olhos, se limitava a transformar as questes sociais em ques-tes teolgicas e a exigir a emancipao religiosa como condio

    prvia da emancipao poltica. Mas Bauer no se d conta dafonte do antagonismo entre a vida individual e colectiva, e ape-nas combate a expresso religiosa deste conflito. A liberdade quearvora a liberdade de um indivduo isolado, simples mnada so-cial, sem reconciliao possvel entre a esfera privada e o contextocolectivo.

    A segunda realar, na situao histrica presente, a no coin-cidncia entre emancipao poltica e emancipao humana, por-que persiste ainda a diviso ou o hiato entre sociedade civil e Es-tado. A sociedade civil o recinto da vida real mas egosta, nofundo desprovida de laos, simples arena de conflitos e de interes-ses antagnicos. O Estado, pelo contrrio, surge como uma esferade vida colectiva, mas ilusria. A famosa anlise marxiana de al-guns artigos da Declarao dos Direitos do Homem e de vriasConstituies americanas mostra que nelas apenas se referem osdireitos do homem egosta, fechado em si, todo centrado na propri-edade e no seu desfrute, sem considerao pelos outros; consagra-se nelas, portanto, a desintegrao ou a dicotomia do ser humano(seja judeu ou qualquer outra coisa) em cidado e homem.

    Em contrapartida, o fito da emancipao humana fazer que ocarcter colectivo, genrico, da vida dos homens seja vida real, isto

    , que a sociedade, em vez de ser um conjunto de mnadas egostase em conflito de interesses, adopte um carcter colectivo e coincidacom a vida do Estado. O homem individual deve recobrar em si ocidado abstracto e, como ser privado, utilizar as suas foras pr-prias como foras sociais, inserir-se na circulao da espcie noseu trabalho e nas suas relaes.

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    Com este escrito a que muitos estudiosos reprovam o tom,por vezes anti-semita, da apstrofe aqui feita aos judeus alemes Marx afasta-se do iderio puramente poltico, republicano e anti-feudal dos Jovens Hegelianos (David Strauss, Bruno Bauer, L. Feu-erbach, Arnold Ruge e outros) e, graas ideia de um ser humanointegral tingida de matizes utpicos , prope-se o objectivo de

    uma transformao que ultrapasse o conflito entre a vida poltica ea privada, a diviso entre o interesse particular e a comunidade. Aomesmo tempo, afasta-se do naturalismo feuerbachiano e antev, demodo decidido, a importncia da realidade social e histrica.

    Artur Moro

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    A QUESTO JUDAICA

    Karl MARX

    1. BRUNO BAUER, A QUESTO JUDAICA1

    Os judeus alemes buscam a emancipao. Que emancipao de-sejam eles? A emancipao civil, poltica.

    Responde-lhes Bruno Bauer: na Alemanha, ningum poli-ticamente emancipado. Tambm ns no somos livres. Como po-deremos libertar-vos? Vs, judeus, sois egostas se para vs, comojudeus, pedirdes uma emancipao especial. Como alemes, de-

    vereis trabalhar pela emancipao poltica da Alemanha e, comohomens, pela emancipao da humanidade. Devereis sentir o tipoparticular da vossa opresso e do vosso oprbrio, no como excep-o regra, mas como confirmao da regra.

    Ou pretendero antes os judeus ser colocados em p de igual-dade com os sbditos cristos? Se reconhecem o Estado cristocomo legalmente estabelecido, reconhecem tambm o regime degeral escravido. Porque seria, ento, penosa a opresso particular,se aceitam a opresso geral? Por que razo deve o alemo estarinteressado na libertao do judeu, se o judeu no se interessa pelalibertao do alemo?

    O Estado cristo sabe apenas de privilgios. Neste Estado,tambm o judeu possui o privilgio de ser judeu. Enquanto ju-deu, tem privilgios que os cristos no possuem. Porque desejaele direitos que no tem, mas de que os cristos usufruem?

    1 Die Judenfrage, Braunschweig, 1843.

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    Ao querer a emancipao do Estado cristo, est a pedir ao Es-tado cristo que abandone o seu preconceito religioso. Renunciarele, judeu, ao seu preconceito religioso? Ter ento o direito deexigir que outro renegue a sua religio?

    O Estado cristo, pela sua prpria natureza, incapaz de eman-cipar o judeu. Mas o judeu acrescenta Bauer , pela sua natureza,no pode ser emancipado. Enquanto o Estado permanecer cristo eo judeu continuar a ser judeu, so igualmente incapazes aquele de

    conferir, e este de receber a emancipao.Quanto aos judeus, o Estado cristo pode apenas actuar ma-neira do Estado cristo, isto , sob a forma de privilgio, ao per-mitir o isolamento do judeu relativamente aos restantes sbditos,deixando-o porm sentir as presses das outras esferas segregadas,e tanto mais energicamente quanto o judeu se encontra em opo-sio religiosa religio dominante. Mas ao judeu tambm s possvel adoptar uma atitude, ou seja, de estrangeiro, em relaoao Estado, j que contrape a sua nacionalidade quimrica na-cionalidade concreta, a sua lei ilusria lei real. Considera comodireito prprio separar-se da humanidade; por uma questo de prin-cpios, no toma parte no movimento histrico e aguarda um futuroque nada tem em comum com o futuro geral da humanidade. Tem-se por membro do povo judaico e olha o povo judaico como povoeleito.

    A que ttulo, pois, desejais vs, judeus, a emancipao? Porcausa da vossa religio? Mas ela o inimigo mortal da religiode Estado. Como cidados? Mas, na Alemanha, no h cida-dos. Como homens? Mas vs no sois homens, como tambmno aqueles a quem recorreis.

    Depois de criticar as anteriores posies e solues, Bauer for-

    mula noutros termos a questo da emancipao judaica. Qual pergunta a natureza do judeu que busca a emancipao, e a do Es-tado cristo que o emancipar? Responde com a crtica da religiojudaica, analisa a oposio religiosa entre judasmo e cristianismo,explica a essncia do Estado cristo o que faz com impetuosi-

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    dade, claridade, humor e profundeza, num estilo que to precisoquanto sucinto e vigoroso.

    De que modo resolve Bauer a questo judaica? Qual o re-sultado? A formulao de uma questo a sua resoluo. A crticada questo judaica a resposta questo judaica. Ei-la em brevespalavras: temos de emancipar-nos a ns prprios, antes de poder-mos emancipar os outros.

    A mais obstinada forma de oposio entre o judeu e o cristo

    a oposio religiosa. Como se resolve uma oposio? Tornando-aimpossvel. E como impossibilitar a oposio religiosa? Abolindoa religio. Logo que o judeu e o cristo reconhecerem to-s nassuas religies opostas diferentes estdios no desenvolvimento doesprito humano peles de serpente expelidas pela histria e ohomem como a serpente que com elas se vestiu j no se encon-traro em oposio religiosa, mas numa relao puramente crtica,cientfica e humana. A ciencia constituir ento a sua unidade. Asoposies na cincia sero, porm, resolvidas pela prpria cincia.

    O judeu alemo, em particular, sofre da geral carncia de eman-cipao poltica e do acentuado cristianismo do Estado. Mas, naacepo de Bauer, a questo judaica tem um significado geral, in-dependente das condies especificamente alems. o problemada relao entre religio e Estado, da contradio entre precon-ceito religioso e emancipao poltica. A emancipao da religiope-se como condio, quer ao judeu que aspira emancipao po-ltica, quer ao Estado que o deveria emancipar e emancipar-se a siprprio.

    Muito bem diz-se (e o judeu assim afirma) , mas o judeuno deve ser emancipado por ser judeu, em virtude de possuir umexcelente princpio humano e universal de moralidade; o judeu

    deve antes retirar-se para trs do cidado e ser um cidado, em-bora seja e deseje permanecer judeu. Por outras palavras, e per-manece judeu, embora seja um cidado e viva numa condio hu-mana universal: a sua natureza judaica e restrita acaba sempre portriunfar das suas obrigaes humanas e polticas. O preconceito

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    persiste, apesar de superado por princpios gerais. Se permanece,sobrepujar assim antes tudo o mais. S em sentido sofisticado,segundo a aparncia, poder o judeu, na vida poltica, permanecerjudeu. Por conseguinte, se quisesse ficar judeu, a simples aparnciaconverter-se-ia no essencial e venceria; por outras palavras, a suavida no Estado reduzir-se-ia a uma aparncia ou a uma excepomomentnea ao essencial e regra2.

    Vejamos igualmente como Bauer estabelece a funo do Es-

    tado.A Frana diz forneceu-nos recentemente3 , em conexocom a questo judaica e, portanto, com todas as outras questes

    polticas [desde a revoluo de Julho]* , o espectculo de umavida que livre, mas que anula a sua liberdade pela lei, declarando-a assim como pura aparncia, e que, por outro lado, nega pelosactos a sua lei livre4.

    Na Frana, a liberdade universal no ainda lei, e a questojudaica tambm ainda no est resolvida, porque a liberdade legal,isto , a igualdade de todos os cidados, surge coarctada na vida,por enquanto dominada e fragmentada por privilgios religiosos, eporque a falta de liberdade da vida influencia a lei, obrigando-a asancionar a diviso dos cidados, que em si so livres, em opresso-res e oprimidos5.

    Quando que, ento, a questo judaica ser resolvida na Frana?O judeu deixaria realmente de ser judeu se, por exemplo, atra-

    vs do seu cdigo religioso, no aceitasse ser impedido do cumpri-mento dos deveres para com o Estado e para com os concidados;se assistisse e participasse, ao sbado, nos assuntos pblicos da C-mara de Deputados. Alm disso, seria necessrio abolir todos os

    privilgios religiosos, incluindo o monoplio de uma Igreja privi-

    2 Bauer, Die Fhigkeit der heutigen Juden und Christen, frei zu werden.Einundzwanzig Bogen, p. 57. O sublinhado de Marx.

    3 Cmara de Deputados. Debate de 26 de Dezembro, 1840. Adenda deMarx.

    4 Bauer, Die Judenfrage, p. 64.5 Ibid., p. 65.

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    legiada. Se, depois, alguns ou muitos ou at a esmagadora mai-oria se sentissem obrigados a cumprir os deveres religiosos, talcumprimento ser-lhes-ia permitido como assunto absolutamenteprivado6 Toda a religio cessa a partir do momento em que jno existe uma religio privilegiada. Retire-se religio o poderde excomungar e deixar de existir7. Mr. Martin du Nord viuna sugesto para se abolir da lei toda a meno do Domingo umaproposta para declarar que o cristianismo deixara de existir. Com

    igual direito (e o direito encontra-se bem fundado), a declarao deque a lei do sbado j no obrigatria para o judeu equivaleria aproclamar o fim do judasmo8 .

    Bauer, por um lado, deseja que o judeu renuncie ao judasmoe que o homem em geral abandone a religio, a fim de se eman-cipar como cidado. Por outro, pensa e com necessidade lgica que a abolio poltica da religio constitui a abolio de toda areligio. O Estado que pressupe a religio no ainda um Estadoverdadeiro ou real. Sem dvida, a ideia religiosa proporciona aoEstado algumas garantias. Mas a que Estado? A que espcie deEstado?9., p. 97.

    Salienta-se aqui a formulao unilateral da questo judaica.No bastava perguntar: quem deve emancipar? Quem ter de

    ser emancipado? A crtica teria ainda de fazer uma terceira per-gunta: que espcie de emancipao est em jogo? Que condiesse fundam na essncia da emancipao que se procura? A crtica daprpria emancipao poltica era apenas a crtica final da questojudaica e da sua dissoluo na geral questo da poca.

    Por no formular o problema a este nvel, Bauer cai em contra-dies. Estabelece condies que no se baseiam na natureza daemancipao poltica. Levanta questes que a sua tarefa no con-

    tm e resolve problemas que deixam sem resposta a sua questo.6 Loc. cit.7 Bauer, Die Judenfrage, p. 66.8 Ibid., p. 71.9 Ibid

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    Quando, a respeito dos que se opunham emancipao judaica,afirma: O seu erro consistiu apenas em pressupor que o Estadocristo era o nico verdadeiro e que no tinha de se submeter mesma crtica que o judasmo10 vemos o engano de Bauer nofacto de s submeter crtica o Estado cristo e no o Estadocomo tal, de no examinar a relao entre emancipao polticae emancipao humana, portanto, de pr condies que s se ex-plicam pela confuso acrtica da emancipao poltica c da eman-

    cipao humana universal. Bauer pergunta aos judeus: Tereis vs,do vosso ponto de vista, o direito de pedir a emancipao poltica?Ns fazemos a pergunta oposta: do ponto de vista da emancipa-o poltica, existir o direito de exigir ao judeu o abandono dojudasmo, ao homem a abolio da religio?

    A questo judaica recebe uma formulao diferente conformeo Estado em que o judeu se encontra. Na Alemanha, onde noexiste nenhum Estado poltico, nenhum Estado como tal, a questojudaica puramente teolgica. O judeu encontra-se em oposioreligiosa ao Estado, que proclama o cristianismo como seu funda-mento. Semelhante Estado teolgico, ex professo. A crtica aqui crtica da teologia; crtica bivalente, crtica da teologia crist eda teologia judaica. Movemo-nos sempre no domnio da teologia,por muito criticamente que nos movamos.

    Na Frana, no Estado constitucional, a questo judaica umaquesto de constitucionalismo, de insuficincia de emancipao

    poltica. Porque aqui se mantm a aparncia de uma religio deEstado, embora s numa insignificante e contraditria frmula, nafrmula de uma religio da maioria, a relao dos judeus ao Estadoretm igualmente a aparncia de uma oposio religiosa, teolgica.

    S nos Estados livres da Amrica do Norte pelo menos em

    alguns deles que a questo judaica perde o significado teol-gico e se torna uma questo verdadeiramente secular. S onde oEstado poltico existe na sua forma plenamente desenvolvida quea relao do judeu, do homem religioso em geral, ao Estado pol-

    10 Bauer, Die Judenfrage, p. 3.

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    tico pode surgir na sua especificidade, na sua pureza. A crtica detal relao deixa de ser teolgica, logo que o Estado cessa de man-ter uma atitude teolgica perante a religio, quer dizer, quando secomporta como Estado, ou seja, de forma poltica. A crtica torna-se ento crtica do Estado poltico. Neste pomo, onde a questodeixa de ser teolgica, a crtica de Bauer deixa tambm de ser cr-tica.

    Nos Estados Unidos, no h nem religio de Estado ou re-

    ligio dita da maioria, nem o predomnio de uma religio sobreoutra. O Estado alheio a todos os cultos11 . H at alguns Es-tados na Amrica do Norte em que a constituio no impe ascrenas e a prtica religiosa como condio de privilgios12 . E, to-davia, ningum nos Estados Unidos acredita que um homem semreligio possa ser honesto13. E a Amrica do Norte , acima detudo, o pas da religiosidade, como em unssono asseguram Beau-mont14, Tocqueville 15 e o ingls Hamilton16 . No entanto, os Es-tados da Amrica do Norte apenas servem de exemplo. A questo: qual a relao entre total emancipao poltica e religio? Semesmo no pas da plena emancipao poltica descobrimos que areligio no s continua a existir, mas viosa e cheia de vigor, sinal de que a existncia da religio no se ope de modo algum perfeio do Estado. Mas, uma vez que a existncia da religioconstitui a existncia de um defeito, a fonte de semelhante imper-feio deve procurar-se na natureza do prprio Estado. A religioj no surge como a base, mas como a manifestao da insuficin-cia secular. Explicamos, pois, os constrangimentos religiosos so-

    11 Gustave de Beaumont, Marie ou lesclavage aux tats-Unis, , Bruxelas,1835, 2 vols., II, p. 207. Marx menciona outra edio, Paris, 1835.

    12Ibid., p. 216. Beaumont refere-se, de facto, a todos os Estados da Amrica

    do Norte.13 Ibid., p. 217.14 G. de Beaumont, op. cit.15 A. de Tocqueville, De la dmocratie en Amrique16 Tomas Hamilton, Men and Manners in North America, Edimburgo, 1833,

    2 vols. Marx cita a traduo alem, Mannheim, 1834.

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    bre os cidados livres a partir dos seus constrangimentos seculares.No afirmamos que devem transcender a sua estreiteza religiosaa fim de se libertarem das limitaes seculares. Asserimos queultrapassaro a sua estreiteza religiosa, logo que tiverem superadoas limitaes seculares. No transformamos as questes secularesem questes teolgicas; transformamos as questes teolgicas emseculares. A histria dissolveu-se na superstio ao longo de muitotempo; ns agora reduzimos a superstio histria. A questo da

    relao entre emancipao poltica e religio torna-se para ns oproblema da relao entre emancipao poltica e emancipaohumana. Criticamos as imperfeies religiosas do Estado polticopor meio da crtica do Estado poltico na sua construo secular,sem prestar ateno s suas deficincias religiosas. Exprimimosem termos humanos a contradio entre o Estado e uma religiodeterminada, por exemplo o judasmo, revelando a contradio en-tre o Estado e elementos seculares particulares, entre o Estado e areligio em geral, entre o Estado e os seus pressupostos gerais.

    A emancipaopoltica do judeu, do cristo do homem religi-oso em geral a emancipao do Estado em relao ao judasmo,ao cristianismo e religio em geral. O Estado emancipa-se da re-ligio sua maneira, segundo o modo que corresponde a sua pr-pria natureza, libertando-se da religio de Estado; ou seja, ao noreconhecer, como Estado, religio alguma e ao afirmar-se pura esimplesmente como Estado. A emancipao poltica da religiono a emancipao integral, sem contradies, da religio porquea emancipao poltica no a forma plena, livre de contradies,da emancipao humana.

    Os limites da emancipao poltica surgem imediatamente nofacto de o Estado se poder libertar de um constrangimento, sem

    que o homem se encontre realmente liberto; de o Estado conseguirser um Estado livre, sem que o homem seja um homem livre. Oprprio Bauer admite tacitamente este raciocnio quando faz de-pender a emancipao poltica da seguinte condio: Seria aindanecessrio abolir todos os privilgios religiosos, incluindo o mo-

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    noplio de uma Igreja privilegiada. Se, depois, alguns ou muitosou at a imensa maioria se sentissem obrigados a cumprir os deve-res religiosos, tal cumprimento ser-lhes-ia permitido como assuntointeiramente privado. O Estado pode assim ter-se emancipado dareligio, embora a imensa maioria continue a ser religiosa. E aimensa maioria no deixa de ser religiosa pelo facto de o ser naintimidade.

    A atitude do Estado, especialmente do Estado livre, a respeito

    da religio apenas a atitude perante a religio dos homens quecompem o Estado. Donde se depreende que o homem se liberta deum constrangimento atravs do Estado, politicamente, ao transcen-der as suas limitaes, em contradio consigo mesmo e de modoabstracto, estreito e parcial. Alm disso, ao emancipar-se poli-ticamente, o homem emancipa-se de modo oblquo, por meio deum intermedirio, por mais necessrio que tal intermedirio seja.Por fim, mesmo quando se declara ateu atravs da mediao do Es-tado, isto , ao proclamar que o Estado ateu, encontra-se aindaimplicado na religio, porque s se reconhece a si mesmo por viaindirecta, atravs de um intermedirio. A religio apenas o re-conhecimento do homem de maneira indirecta; quer dizer, atravsde um intermedirio. O Estado o intermedirio entre o homem ea liberdade humana. Assim como Cristo o mediador a quem o ho-mem atribui toda a sua divindade e todo o seu constrangimento re-ligioso, assim o Estado constitui o intermedirio ao qual o homemconfia toda a sua no divindade, toda a sua liberdade humana.

    A elevao poltica do homem acima da religio compartilhatodas as carncias e todos os mritos da elevao poltica em geral.Por exemplo, o Estado como Estado abole a propriedade privada(isto , o homem, de modo poltico, decreta a abolio da pro-

    priedade privada), ao abolir o censo para a elegibilidade activa epassiva, como aconteceu em muitos Estados da Amrica do Norte.

    Hamilton interpreta este facto de modo inteiramente correcto sobo ponto de vista poltico: As massas obtiveram uma vitria sobre

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    os detentores da propriedade e sobre a riqueza financeira17. Noestar a propriedade privada idealmente abolida quando o no pro-prietrio se tornou legislador do detentor da propriedade? O censo a ltima forma poltica em que se reconhece a propriedade priva-da.

    Mas a supresso poltica da propriedade privada no abole to-s a propriedade privada; pressupe de facto a sua existncia. OEstado elimina, sua maneira, as distines estabelecidas por nas-

    cimento, posio social, educao e profisso, ao decretar que onascimento, a posio social, a educao e a profisso so distin-es no polticas; ao proclamar, sem olhar a tais distines, quetodo o membro do povo igual parceiro na soberania popular eao tratar do ponto de vista do Estado todos os elementos que com-pem a vida real da nao. No entanto, o Estado permite que a pro-priedade privada, a educao e a profisso actuem sua maneira,isto , como propriedade privada, como educao e profisso, e ma-nifestem a sua naturezaparticular. Longe de abolir estas diferenasefectivas, ele s existe na medida em que as pressupe; apreende-secomo Estado poltico e revela a sua universalidade apenas em opo-sio a tais elementos. Por conseguinte, Hegel define muito bem arelao do Estado poltico religio, quando afirma: Para que oEstado surja como a realidade tica autoconsciente do esprito, essencial que ele se distinga das formas de autoridade e de f. Mastal distino s emerge na medida em que h divises no interior daprpria esfera eclesistica. S assim que o Estado, por cima dasigrejas particulares, alcanou a universalidade do pensamento - oprincipio da sua forma e a traz existncia18. No h dvida!S assim, por cima dos elementos particulares, que o Estado seconstitui como universalidade.

    O Estado poltico aperfeioado , por natureza, a vida gen-rica19 do homem em oposio sua vida material. Todos os pres-

    17 Hamilton, op. cit., I, pp. 288, 306, 309.18 Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechts, I., Aufgabe, 1821, p. 346.19 Os termos vida genrica (Gattungsleben) e ser genrico (Gattungswesen)

    procedem de Feuerbach. Este, no captulo I de Das Wesen des Christentums (A

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    supostos da vida egosta continuam a existir na sociedade civil,fora da esfera poltica, como propriedade da sociedade civil. Ondeo Estado poltico alcanou o pleno desenvolvimento, o homem levauma dupla existncia celeste e terrestre, no s no pensamento,na conscincia, mas tambm na realidade, na vida. Vive na comu-nidade poltica, em cujo seio considerado como ser comunitrio,e na sociedade civil, onde age como simples indivduo privado,tratando os outros homens como meios, degradando-se a si mesmo

    em puro meio e tornando-se joguete de poderes estranhos. O Esta-do poltico, em relao sociedade civil, justamente to espiri-tual quanto o cu em relao terra. Persiste em idntica oposio sociedade civil, vence-a, tal como a religio supera a estreitezado mundo profano; isto , tem sempre de reconhec-la de novo, derestabelec-la, de permitir que por ela seja dominado. O homem,na sua realidade mais ntima, na sociedade civil, um ser profano.Precisamente aqui, onde aparece a si mesmo e aos outros como in-divduo real, surge como fenmeno ilusrio. Em contrapartida, noEstado, onde olhado como ser genrico, o homem o membroimaginrio de uma soberania imaginria, despojado da sua vida re-al individual, dotado de universalidade irreal.

    O conflito em que o homem, enquanto adepto de uma religioparticular, se v envolvido com a sua qualidade da cidadania e comos outros homens enquanto membros da comunidade, reduz-se aocisma secular entre o Estado poltico e a sociedade civil. Para ohomem como bourgeois20 , a vida no Estado apenas aparnciaou uma excepo fugaz ao normal e ao essencial. verdade que o

    Essncia do Cristianismo), Leipzig, 1841, discute a natureza do homem, que sedistingue dos animais por um tipo especfico de conscincia. Diz esta respeitono s ao indivduo em si mesmo, mas tambm enquanto membro da espcie

    humana, apreendendo assim uma essncia que idntica em si e nos outroshomens. A capacidade de conceber a espcie , para Feuerbach, o elementoracional bsico (A cincia a conscincia da espcie.) Marx, no entanto,serve-se da conscincia genrica sobretudo para definir o ser humano comoser genrico, isto , como ser social.

    20 Como membro da sociedade civil.

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    bourgeois, tal como o judeu, participa na vida poltica s de modosofstico, tal como o citoyen21 s sofisticamente judeu ou bourge-ois. Mas a sofisticao no pessoal. a sofisticao do prprioEstado poltico. A diferena entre o homem religioso e o cidado a diferena entre o comerciante e o cidado, entre o jornaleiro eo cidado, entre o proprietrio de terras e o cidado, entre o indi-vduo vivo e o cidado. A contradio em que o homem religiosose encontra com o homem poltico igual contradio em que o

    bourgeois se v com o citoyen e o membro da sociedade civil coma sua poltica pele de leo.Esta oposio secular a que se reduz a questo judaica a re-

    lao entre o Estado poltico e os seus pressupostos, quer estessejam elementos materiais como a propriedade privada, etc., querelementos espirituais como a cultura ou a religio, conflito entre ointeresse geral e o interesse privado, a ciso entre o Estado polticoe a sociedade civil estas contradies profanas deixa-as Bauer in-tactas, ao dirigir a polmica contra a sua expresso religiosa. precisamente esta base quer dizer, as necessidades que assegurama existncia da sociedade civil e garantem a sua indispensabilidade

    que expe a sua existncia a contnuo perigo, mantm nela umelemento de incerteza, produz esta mistura de riqueza e pobreza,de prosperidade e misria em permanente transformao e, acimade tudo, gera a mudana22 .

    Compare-se toda a seco intitulada Sociedade civil23 , quesegue de perto as caractersticas distintivas da filosofia do direito deHegel. A sociedade civil, na sua oposio ao Estado poltico, julga-se necessria porque tambm o Estado poltico se admite comoindispensvel.

    A emancipao poltica representa, sem dvida, um grande

    progresso. No constitui, porm, a forma final de emancipaohumana, antes a forma final de emancipao humana dentro da

    21 O indivduo com direitos polticos.22 Bauer, Die Judenfrage, p. 8.23 Ibid., pp. 8-9.

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    ordem mundana at agora existente. Nem vale a pena dizer queestamos aqui a falar da emancipao real, prtica.

    O homem emancipa-se politicamente da religio, ao bani-la dodireito pblico para o direito privado. A religio j no o esp-rito do Estado, em que o homem se comporta, embora de maneiralimitada e numa forma e esfera particular, como ser genrico, emcomunidade com os outros homens. Tornou-se o esprito da so-ciedade civil, da esfera do egosmo e do bellum omnium contra

    omnes. J no constitui a essncia da comunidade, mas a essnciada diferenciao. Tornou-se no que era originalmente, expressoda separao do homem da sua comunidade, de si mesmo e dosoutros homens. agora apenas a confisso abstracta da loucura in-dividual, da fantasia privada, do capricho. A infinita fragmentaoda religio na Amrica do Norte, por exemplo, j externamente lheconfere a forma de assunto estritamente privado. Foi relegada parao nmero dos interesses privados e banida da vida da comunidadeenquanto tal. Mas ningum deve iludir-se quanto aos limites daemancipao poltica. A ciso do homem em pessoa pblica e pes-soa privada, o deslocamento da religio do Estado para a sociedadecivil, no uma fase, mas a consumao da emancipao polti-ca. Desta maneira, a emancipao poltica no abole, nem sequerprocura abolir, a religiosidade real do homem.

    A desintegrao do homem em judeu e cidado, protestante ecidado, homem religioso e cidado, no uma fraude praticadacontra o sistema poltico, nem sequer um subterfgio da emanci-pao poltica. a prpria emancipao poltica, o modo polticode se emancipar da religio. Sem dvida, nos perodos em que oEstado poltico enquanto tal nasce violentamente na sociedade ci-vil, em que a autolibertao humana se procura realizar sob a forma

    da emancipao poltica, o Estado pode e deve prosseguir na abo-lio e na destruio da religio; mas s da maneira como rea-liza a abolio da propriedade privada, pela declarao de um m-ximo, por confiscao ou por taxao progressiva, ou da maneiracomo decide abolir a vida, por meio da guilhotina. Nos momen-

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    tos da sua especial autoconscincia, a vida poltica procura abafaros prprios pressupostos a sociedade civil e os seus elementos e estabelecer-se como a genuna e harmoniosa vida genrica dohomem. Mas s conseguir isso mediante a contradio violentacom as prprias contradies de existncia, declarando a revoluocomo permanente. Por isso, o drama poltico termina necessari-amente com a restaurao da religio, da propriedade privada, detodos os elementos da sociedade civil, tal como a guerra termina

    com a paz.De facto, o Estado cristo aperfeioado no o chamado Es-tado cristo que admite o cristianismo como sua base, como re-ligio de Estado, adoptando portanto uma atitude de excluso pe-rante as outras religies; antes o Estado ateu, o Estado demo-crtico, o Estado que relega a religio para o meio dos outros ele-mentos da sociedade civil. O Estado que ainda teolgico, queainda professa oficialmente o credo cristo e que ainda no ousadeclarar-se como Estado, no conseguiu expressar em forma secu-lar, humana, na sua realidade como Estado, a base humana de queo cristianismo constitui a expresso exttica. O chamado Estadocristo simplesmente o no-Estado; porque no o cristianismocomo religio, mas s o fundo humano da religio crist que sepode realizar em criaes verdadeiramente humanas.

    O chamado Estado cristo a negao crist do Estado, masno a realizao poltica do cristianismo. O Estado, que professa ocristianismo como religio, no a professa de forma poltica, por-que mantm ainda uma atitude religiosa a respeito da religio. Poroutras palavras, semelhante Estado no a genuna realizao dabase humana da religio, uma vez que anda estimula a ambigui-dade, a forma imaginria deste cerne humano. O chamado Es-

    tado cristo o Estado imperfeito, ao qual a religio crist servede suplemento e de santificao da prpria imperfeio. A religiotorna-se assim forosamente um dos seus meios; e ele o Estadoda hipocrisia. H uma grande diferena entre dizer: (i) que o Es-tado perfeito, em virtude de uma deficincia na natureza geral do

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    Estado, considera a religio como um dos seus pressupostos, ou (ii)que o Estado imperfeito, devido a uma deficincia na sua existn-cia particularcomo Estado imperfeito, declara a religio como suabase. No ltimo caso, a religio torna-se poltica imperfeita. Noprimeiro, a prpria imperfeio da poltica aperfeioada revela-sena religio. O chamado Estado cristo precisa da religio crist afim de se realizar como Estado. O Estado democrtico, o Estadoreal, no necessita da religio para a sua consumao poltica. Pelo

    contrrio, pode dispensar a religio, porque a base humana da reli-gio se realiza nele de modo profano. O chamado Estado cristo,por outro lado, tem uma atitude poltica perante a religio e umaatitude religiosa em face da poltica. Ao reduzir as formas do Es-tado a uma aparncia reduz a aparncia igualmente a religio.

    De modo a esclarecer ainda mais esta contradio, examinaremoso modelo de Bauer do Estado cristo, modelo que extrado do seuestudo sobre o Estado germano-cristo.

    Muito recentemente diz Bauer , para demonstrar a impos-sibilidade ou a no-existncia de um Estado cristo, citaram-secom frequncia as passagens do Evangelho com as quais o Estadono se conforma e no pode conformar-se a no ser que desejedestruir-se por completo. Mas a questo no se pe assim comtanta facilidade. Que que exigem essas passagens do Evangelho?A renncia sobrenatural, a submisso autoridade da revelao, arecusa do Estado, a abolio das condies profanas. Mas o Es-tado cristo exige e cumpre todas estas coisas. Assimilou o esp-rito evanglico, e se no o reproduz exactamente nos termos queo Evangelho utiliza apenas porque exprime este esprito em for-mas polticas, em formas tiradas do sistema poltico e deste mundo,mas que, no renascimento religioso a que tm de se sujeitar, ficam

    reduzidas a meras aparncias. Afasta-se do Estado e, para a suarealizao, serve-se das instituies polticas24.

    Bauer prossegue, demonstrando como o povo do Estado cris-to apenas um no-povo, j sem vontade prpria; mas possui

    24 Bauer, Die Judenfrage, p. 55.

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    a sua verdadeira existncia no chefe a que se submete, o qual,pela origem e natureza, lhe surge como estranho, j que foi im-posto por Deus, sem qualquer participao do povo. As leis desemelhante nao no constituem obra sua, mas so revelaes di-rectas. O chefe supremo, nas suas relaes com o povo concreto,com as massas, exige intermedirios privilegiados; e estas massasdesintegram-se numa multido de esferas particulares, formadase determinadas ao acaso, diferenciadas uma das outras pelos res-

    pectivos interesses, paixes e preconceitos especficos, adquirindocomo privilgio a permisso de mutuamente se isolarem, etc.25

    Diz o prprio Bauer: A poltica no ser poltica, se for re-duzida religio, como tambm o limpar frigideiras no ser tra-balho domstico ordinrio, se se considerar como assunto religi-oso26. Mas no Estado germano-cristo a religio questo doms-tica, tal como os assuntos domsticos so religio. No Estadogermano-cristo, o poder da religio a religio do poder.

    A separao entre o esprito do Evangelho e a letra do Evan-gelho um acto irreligioso. O Estado que exprime o Evangelhona letra da poltica, ou em qualquer outra letra diferente da do Es-prito Santo, comete sacrilgio, se no aos olhos dos homens, pelomenos aos olhos da prpria religio. O Estado que admite a B-blia como sua Carta e o cristianismo como sua regra suprema deveavaliar-se pelas palavras da Bblia, j que a linguagem da Bblia sagrada. Tal Estado, como tambm o refugo humano em que sebaseia, v-se envolvido em penosa contradio, que insolvel doponto de vista da conscincia religiosa, ao referir-se s palavras doEvangelho com as quais no se conforma e no pode conformar-se a no ser que deseje destruir-se por completo como Estado.E por que razo no deseja a prpria destruio? Nem o Estado

    nem os outros conseguem responder. Perante a sua prpria cons-cincia, o Estado cristo oficial um dever-ser, cuja realizao impossvel. No pode afirmar a realidade da prpria existncia

    25 Ibid., p. 56.26 Ibid.,p. 108.

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    sem mentir a si mesmo e, portanto, permanece sempre a seus olhoscomo objecto de dvida, como objecto incerto e problemtico. Acrtica encontra-se, pois, no pleno direito de compelir o Estado, quese baseia na Bblia, para uma total desordem de conscincia em quej no distinga se ele iluso ou realidade; em que a infmia dosseus objectivos profanos (aos quais a religio serve de manto) entreem conflito insolvel com a probidade da sua conscincia religiosa(para a qual a religio surge como a meta do mundo). Este Estado

    s conseguir esquivar-se angstia interior, transformando-se emlacaio da Igreja Catlica. Perante esta, que declara o poder secularcomo uma das corporaes ao seu servio, o Estado impotente;igualmente impotente o poder secularque pretende ser a regra doesprito religioso.

    O que prevalece no chamado Estado cristo no o homem,mas a alienao. O nico homem que conta o Rei encontra-se especificamente diferenciado dos outros homens e surge aindacomo ser religioso directamente ligado ao cu e a Deus. As rela-es aqui existentes so ainda relaes de f. O esprito religiosono se encontra por enquanto realmente secularizado.

    Mas o esprito religioso no pode realmente secularizar-se. Pois,no ele a simples forma no secularde um estdio evolutivo doesprito humano? O esprito religioso s pode realizar-se, se o es-tdio evolutivo do esprito humano, de que ele a expresso religi-osa, se manifestar e constituir na sua forma secular. o que acon-tece no Estado democrtico. A base deste Estado no o cristia-nismo, mas a base humana do cristianismo. A religio permanececomo a conscincia ideal, no secular, dos seus membros, porque a forma ideal do estdio evolutivo humano que nele se alcanou.

    Os membros do Estado poltico so religiosos por causa do du-

    alismo entre a vida individual e a vida genrica, entre a vida dasociedade civil c a vida poltica. So religiosos no sentido de queo homem trata a vida poltica, distante da vida individual, como sefosse a sua verdadeira vida; e na medida em que a religio aqui oesprito da sociedade civil, a expresso da separao e da alienao

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    do homem em relao ao homem. A democracia poltica crist nosentido de que o homem, no s um homem, mas todo o homem, nela considerado como ser soberano e ser supremo; mas o ho-mem ignorante, insocivel, o homem tal como na sua existnciafortuita, o homem como foi corrompido, perdido para s mesmo,alienado, sujeito ao domnio das condies e elementos inumanos,por toda a organizao da nossa sociedade numa palavra, o ho-mem que ainda no surge como real ser genrico. A criao da

    fantasia, o sonho, o postulado do cristianismo, a soberania do ho-mem mas do homem como ser alienado distinto do homem real , na democracia, realidade tangvel e presente, mxima secular.

    Na democracia aperfeioada, a conscincia religiosa e teolgicaaparece a si mesma como mais religiosa e teolgica pelo facto deaparentemente no possuir significado poltico ou objectivos ter-restres, de ser assunto de corao retirado do mundo, expressodos lmites do entendimento, produto da arbitrariedade e da fanta-sia, verdadeira vida no alm. O cristianismo atinge aqui a expres-so prtica do seu significado religioso universal, porque as maisvariadas vises do mundo se renem na forma do cristianismo e,ainda mais, porque o cristianismo no pede a ningum que professeo cristianismo, mas apenas que tenha qualquer espcie de religio(ver Beaumont, op. cit.). A conscincia religiosa prolifera na ri-queza da contradio e da diversidade religiosas.

    Mostrmos, portanto, que a emancipao poltica da religiodeixa permanecer a religio na existncia, embora j no se tra-te de uma religio privilegiada. A contradio em que o adeptode uma religio particular se encontra quanto sua cidadania apenas uma parte da universal contradio secular entre o Estado

    poltico e a sociedade civil. A consumao do Estado o Estado

    que se reconhece simplesmente como Estado e abstrai da religiodos seus membros. A emancipao do Estado a respeito da religiono a emancipao do homem real quanto religio.

    No dizemos, pois, aos judeus como Bauer: no podeis emancipar-vos politicamente sem de todo vos emancipardes do judasmo. Di-

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    zemos antes: porque podeis emancipar-vos politicamente, sem re-nunciar por completo e de modo absoluto ao judasmo, que aemancipao poltica em si no a emancipao humana. Se de-sejais emancipar-vos politicamente, sem humanamente vos eman-cipardes, a inadequao e a contradio no reside de todo em vs,mas na natureza e na categoria da emancipao poltica. Se vospreocupais com esta categoria, compartilhais o constrangimentogeral. Assim como o Estado evangeliza quando, embora seja Es-

    tado, adopta uma atitude crist a respeito dos judeus, tambm ojudeu actua politicamente quando, embora judeu, pede direitos ci-vis.

    Mas se o homem, embora judeu, pode ser politicamente eman-cipado e obter direitos civis, poder ele exigir e alcanar os cha-mados direitos do homem? Bauer diz que no. A questo se ojudeu como tal, isto , o judeu que confessa estar constrangido pelasua prpria natureza a viver eternamente separado dos outros, sercapaz de adquirir e conceder aos outros os direitos universais dohomem.

    A ideia dos direitos do homem s foi descoberta no mundocristo, no ltimo sculo. No uma ideia inata ao homem; pelocontrrio, foi conquistada na luta contra as tradies histricas emque o homem, at agora, foi educado. Por conseguinte, os direitosdo homem tambm no so nenhum dom da natureza, nenhum doteda histria passada, mas o prmio da luta contra o acidente do nas-cimento e contra os privilgios que a histria at agora transmitiude gerao a gerao. Constituem resultados da cultura e s podepossu-los quem os mereceu e ganhou.

    Poder o judeu apossar-se realmente deles? Enquanto per-manecer judeu, a natureza limitada que dele faz um judeu pre-

    valecer sobre a natureza humana que, enquanto homem, o as-sociaria aos outros homens; e isol-lo- de todo aquele que no judeu. Declara assim, por esta separao, que a natureza parti-cular que dele faz um judeu constitui a sua verdadeira e suprema

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    natureza, perante a qual a prpria natureza humana se deve apa-gar.

    De modo anlogo, o cristo enquanto tal no pode garantir osdireitos do homem27.

    Segundo Bauer, o homem v-se forado a sacrificar o pri-vilgio da f a fim de adquirir os direitos gerais do homem. Con-sideremos, por um momento, os chamados direitos do homem;examinemo-los na sua forma autntica, na forma que possuem en-

    tre aqueles que os descobriram, os Norte-Americanos e os Fran-ceses! Os direitos do homem so, em parte, direitos polticos, ques podem exercer-se quando se membro de uma comunidade.O seu contedo a participao na vida da comunidade, na vida

    poltica da comunidade, na vida do Estado. Integram-se na cate-goria de liberdade poltica, de direitos civis que, como vimos, nopressupem de nenhum modo a abolio consistente e positiva dareligio; nem portanto do judasmo. Fica ainda por considerar aoutra parte, a saber, os droits de lhomme enquanto distintos dosdroits du citoyen.

    Entre eles, encontra-se a liberdade de conscincia, o direitode praticar a religio que se escolher. O privilgio da f ex-pressamente reconhecido, ou como um direito do homem, ou comoconsequncia de um direito do homem, isto , a liberdade.

    Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, 1781, Ar-tigo 10: Ningum deve ser perturbado em virtude das suas opi-nies, mesmo religiosas. Na seco I da Const. de 1791 garante-se, como um dos direitos do homem, a liberdade de cada qual parapraticar o culto religioso a que adere.

    A Declarao dos Direitos do Homem, etc., 1793, enumera en-tre os direitos do homem (Artigo 7): O livre exerccio do culto.

    Mais ainda, afirma-se at, a propsito do direito de exprimir ideiase opinies, realizar encontros e praticar uma religio, que: A ne-cessidade de enunciar estes direitos pressupe ou a existncia ou

    27 Bauer, Die Judenfrage, pp. 19-20.

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    a recente memria do despotismo. Compare-se a Constituio de1795, Seco XIV, Artigo 354.

    Constituio da Pensilvnia, Artigo 9, pargrafo 3: Todos oshomens receberam da natureza o imprescritvel direito de veneraro Omnipotente segundo os ditames da sua conscincia, e ningumpode legalmente ser compelido a seguir, estabelecer ou apoiar con-tra a prpria vontade qualquer religio ou culto religioso. Nenhumaautoridade humana pode, em quaisquer circunstncias, interferir

    em matria de conscincia ou dominar as foras da alma.Constituio do New Hampshire, Artigos 5 e 6: Entre os di-reitos naturais, alguns so por natureza inalienveis, j que nada ospode substituir. Esto entre eles os direitos de conscincia28.

    A incompatibilidade entre a religio e os direitos do homemencontra-se to pouco manifesta no conceito dos direitos do ho-mem que o direito de ser religioso, segundo o costume de cadaqual, e de praticar o culto da sua religio particular, aparece en-tre eles expressamente includo. O privilgio da f um direitouniversal do homem.

    H que distinguir entre os direitos do homem e os direitos docidado. Quem este homme distinto do citoyen? S pode ser omembro da sociedade civil. Porque que ao membro da sociedadecivil lhe chamam homem, simplesmente homem, e porque queos seus direitos recebem o nome de direitos do homem? Comose explicar semelhante facto? Pela relao entre o Estado polticoe a sociedade civil, pela natureza da emancipao poltica.

    Constatemos, em primeiro lugar, o facto de que os chamadosdireitos do homem, enquanto distintos dos direitos do cidado,constituem apenas os direitos de um membro da sociedade civil,isto , do homem egosta, do homem separado dos outros homens

    e da comunidade. A constituio mais radical, de 1793, declara:Art. 2. Estes direitos, etc. [os direitos naturais e imprescritveis]so: igualdade, liberdade, segurana, propriedade.

    Em que que consiste a liberdade?

    28 Beaumont, op. cit., II, pp. 206-7.

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    Artigo 6: A liberdade o poder que o homem tem de fazertudo o que no prejudique os direitos dos outros, ou segundo aDeclarao dos Direitos do Homem de 1791: A liberdade consisteem poder fazer tudo o que no prejudique outrem.

    Por conseguinte, a liberdade o direito de fazer tudo o que nocause dano aos outros. Os limites dentro dos quais cada um podeactuar sem prejudicar os outros so determinados pela lei, tal comoa fronteira entre dois campos assinalada por uma estaca. Trata-se

    da liberdade do homem enquanto mnada isolada, retirado para ointerior de si mesmo. Por que motivo segundo Bauer o judeuincapaz de adquirir os direitos do homem? Enquanto permanecerjudeu, a natureza limitada que dele faz um judeu prevalecer sobrea natureza humana que, enquanto homem, o associaria aos outroshomens; e isol-lo- de todo aquele que no judeu. Mas a li-berdade como direito do homem no se funda nas relaes entrehomem e homem, mas antes na separao do homem a respeitodo homem. o direito de tal separao, o direito do indivduocircunscrito, fechado em si mesmo.

    A aplicao prtica do direito humano de liberdade o direitoda propriedade privada. Em que consiste o direito da propriedadeprivada?

    Artigo 16 (Constituio de 1793): O direito da propriedade o que pertence a cada cidado de desfrutar e de dispor como qui-serdos seus bens e rendimentos, dos frutos do prprio trabalho ediligncia.

    O direito humano da propriedade privada , portanto, o direitode fruir da prpria fortuna e de dela dispor como se quiser, semateno aos outros homens, independentemente da sociedade. odireito do interesse pessoal. Esta liberdade individual e a respectiva

    aplicao formam a base da sociedade civil. Leva cada homem aver nos outros homens, no a realizao, mas a limitao da suaprpria liberdade. Afirma acima de tudo o direito de desfrutar edispor como se quiserdos seus bens e rendimentos, dos frutos doprprio trabalho e diligncia.

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    Restam ainda os outros direitos do homem, a igualdade e a se-gurana.

    A igualdade no tem aqui significado poltico. apenas oigual direito liberdade, como antes foi definido; a saber, todo ohomem igualmente considerado como mnada auto-suficiente. AConstituio de 1795 define o conceito desta igualdade, segundo oseu sentido:

    Artigo 3 (Constituio de 1795): A igualdade consiste no

    facto de que a lei igual para todos, quer ela proteja ou puna.E a segurana?Artigo 8 (Constituio de 1793): A segurana consiste na pro-

    teco concedida pela sociedade a cada um dos seus membros paraa preservao da sua pessoa, dos seus direitos e da sua proprie-dade.

    A segurana constitui o supremo conceito social da sociedadecivil, o conceito da polcia. Toda a sociedade existe unicamentepara garantir a cada um dos seus membros a preservao da suapessoa, dos seus direitos e da sua propriedade. neste sentidoque Hegel chama sociedade civil o estado de necessidade e derazo.

    O conceito de segurana no chega para elevar a sociedade ci-vil acima do prprio egosmo. A segurana surge antes como agarantia do seu egosmo.

    Assim, nenhum dos supostos direitos do homem vai alm dohomem egosta, do homem enquanto membro da sociedade civil;quer dizer, enquanto indivduo separado da comunidade, confinadoa si prprio, ao seu interesse privado e ao seu capricho pessoal.O homem est longe de, nos direitos do homem, ser consideradocomo um ser genrico; pelo contrrio, a prpria vida genrica a

    sociedade surge como sistema externo ao indivduo, como limi-tao da sua independncia original. O nico lao que os une anecessidade natural, a carncia e o interesse privado, a preservaoda sua propriedade e das suas pessoas egostas.

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    j enigmtico que uma nao, que comeara precisamente alibertar-se, a eliminar todas as barreiras entre as diferentes secesda populao e a estabelecer uma comunidade poltica, tenha deproclamar solenemente (Declarao de 1791) os direitos do ho-mem egosta, separado dos outros homens e da comunidade, e te-nha de renovar semelhante proclamao num momento em que sa mais herica dedicao pode salvar a nao (e, por conseguinte,a isso chamada com urgncia), num momento em que o sacri-

    fcio de todos os interesses da sociedade civil elevado a ordemdo dia e o egosmo deve ser castigado como crime. (Declaraodos Direitos do Homem, etc., 1793). O tema toma-se ainda maisincompreensvel, ao observarmos que os libertadores polticos re-duzem a cidadania, a comunidade poltica, a simples meio parapreservar os chamados direitos do homem; e que, por consequn-cia, o citoyen declarado como servo do homem egosta, a esferaem que o homem age como ser genrico surge rebaixada esferaonde ele actua como ser parcial; e que, por fim, o homem comobourgeois, e no o homem como citoyen, que considerado comoo homem verdadeiro e autntico.

    O objectivo de toda a associao poltica a preservao dosdireitos naturais e imprescritveis do homem (Declarao dos Di-reitos do Homem, etc., 1791, Artigo 2). O governo institudo afim de garantir ao homem o desfrute dos seus direitos naturais eimprescritveis (Declarao, etc., 1793, Artigo 1). Deste modo,mesmo no perodo do seu entusiasmo juvenil, que atingiu o cl-max pela fora das circunstncias, a vida poltica declara-se comosimples meio, cuja finalidade a vida da sociedade civil. Sem d-vida, a sua prtica revolucionria encontra-se em flagrante contra-dio com a teoria. Por exemplo, enquanto a segurana procla-

    mada como um dos direitos do homem, a violao da intimidadeda correspondncia estava claramente na ordem do dia. Enquantoa ilimitada liberdade de imprensa (Constituio de 1793, Artigo122), como corolrio do direito do homem, da liberdade individual, garantida, a liberdade de imprensa inteiramente destruda, uma

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    vez que a liberdade de imprensa no deve ser permitida quandocompromete a liberdade pblica29. Equivale isto a dizer: o direitohumano liberdade deixa de ser um direito a partir do momento emque entra em conflito com a vida poltica, enquanto na teoria a vidapoltica apenas a garantia dos direitos do homem, dos direitos dohomem individual e deve, portanto, suspender-se logo que entreem contradio com o seu objectivo, os direitos do homem. Masa prtica constitui apenas a excepo, e a teoria a regra. Mesmo

    que algum quisesse considerar a prtica revolucionria como acorrecta expresso desta relao, o problema permaneceria idn-tico: porque ser que, na conscincia dos libertadores polticos, arelao se encontra invertida, o fim aparece como meio e o meiocomo fim? Esta iluso ptica da sua conscincia constituir sempreo mesmo enigma, embora um enigma psicolgico e terico.

    Mas o enigma resolve-se com facilidade.A emancipao poltica ao mesmo tempo a dissoluo da an-

    tiga sociedade, sobre a qual assentam o Estado e o poder soberano,estranhos ao povo. A revoluo poltica a revoluo da socie-dade civil. Qual era a natureza da antiga sociedade? possvelcaracteriz-la com uma s palavra. A feudalidade. A antiga socie-dade civil possua um carcter directamente poltico; quer dizer, oselementos da vida civil como a propriedade, a famlia ou os tiposde trabalho tinham sido elevados, na forma de suserania, ordeme cooperao, a elementos da vida poltica. Determinavam destaforma a relao do indivduo singular ao Estado como totalidade;isto , a sua situao poltica, a sua relao de separao e exclusodos outros elementos da sociedade. Esta organizao da vida na-cional no elevou a propriedade ou o trabalho a elementos sociais,mas levou antes a cabo a sua separao do Estado como totalidade

    e constituiu-os em sociedades distintas no seio da sociedade. Noentanto, pelo menos no sentido feudal, as fundaes e as condiesvitais da sociedade civil permaneceram polticas; excluam o indi-

    29 Buchez et Roux, Robespierre jeune. Histoire parlementaire de la Rvolu-tion franaise, tomo XXVIII, p. 159.

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    vduo do Estado como totalidade e transformaram a relao parti-cular[que existia] entre a sua corporao e o Estado numa relaogeral entre o indivduo e a vida social, tal como transformaram asua actividade e situao civil especfica na sua actividade e situa-o geral. Como resultado de semelhante organizao, a unidadedo Estado, a conscincia, a vontade e a actividade da unidade doEstado, o poder poltico geral, revelam-se tambm necessariamentecomo o assunto privado de um governante e dos seus servidores,

    separados do povo.A revoluo poltica que derrubou o poder do soberano e elevouos negcios do Estado a negcios do povo, que constituiu o Estadopoltico como assunto geral, isto , como Estado geral, abalou for-osamente todas as ordens, corporaes, guildas, privilgios, queeram outras tantas expresses da separao entre o povo e a suavida comunitria. A revoluo poltica aboliu, portanto, o carc-ter poltico da sociedade civil. Dissolveu a sociedade civil nosseus elementos simples, de um lado, os indivduos, do outro, oselementos materiais e culturais que formam o contedo vital, a si-tuao civil destes indivduos. Ps em liberdade o esprito polticoque, por assim dizer, tinha sido desfeito, fragmentado e perdidonos vrios becos sem sada da sociedade feudal; congregou-o apartir desta disperso, libertou-o da sua adulterao com a vida ci-vil e constituiu-o como a esfera da comunidade, o interesse geraldo povo, numa independncia ideal dos elementos particulares davida civil. A actividade e a situao vitais especficas mergulharamnuma significao puramente individual. Deixaram de constituir arelao geral entre o indivduo e o Estado como totalidade. O as-sunto pblico tornou-se, antes, assunto geral de cada indivduo e afuno poltica transformou-se na sua funo geral.

    Mas a consumao do idealismo do Estado era, ao mesmo tempo,a realizao do materialismo da sociedade civil. Os laos que acor-rentavam o esprito egosta da sociedade civil foram removidos juntamente com o jugo poltico. A emancipao poltica foi si-

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    multaneamente uma emancipao da sociedade civil a respeito dapoltica, e at da aparncia de um contedo geral.

    A sociedade feudal foi dissolvida no seu elemento bsico, ohomem; mas no homem que constitua o seu real fundamento, nohomem egosta.

    Este homem, o membro da sociedade civil, agora a base e opressuposto do Estado poltico. Como tal reconhecido nos direi-tos do homem.

    Mas a liberdade do homem egosta e o reconhecimento destaliberdade surge mais exactamente como o reconhecimento do mo-vimento frentico dos elementos culturais e materiais, que formamo contedo da sua vida.

    Assim o homem no se libertou da religio; recebeu a liberdadereligiosa. No ficou liberto da propriedade; recebeu a liberdade dapropriedade. No foi libertado do egosmo do comrcio; recebeu aliberdade para se empenhar no comrcio.

    A constituio do Estado poltico e a dissoluo da sociedadecivil em indivduos independentes, cujas relaes so regulamentadaspor lei, da mesma maneira que as relaes entre os homens nas or-dens e guildas eram reguladas por privilgio, cumprem-se num se mesmo acto. O homem, como membro da sociedade civil o ho-mem apoltico , surge necessariamente como o homem natural.Os droits de lhomme aparecem como droits naturels, porque a ac-tividade autoconsciente se concentra na aco poltica. O homemegosta o resultado passivo, apenas dado, da dissoluo da soci-edade, objecto de certeza imediata e, por conseguinte, um objectonatural. A revoluo poltica dissolve a sociedade civil nas suascomponentes sem revolucionar estas componentes e as submeter crtica. Esta revoluo considera a sociedade civil, o mundo das

    necessidades, o trabalho, os interesses privados e a lei civil como abase da sua prpria existncia, como um pressuposto inteiramentesubsistente, portanto, como a sua base natural. Por fim, o homemcomo membro da sociedade civil identificado como o homem au-tntico, o homme como distinto do citoyen, porque o homem na

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    sua existncia sensvel, individual e imediata, ao passo que o ho-mem poltico unicamente o homem abstracto, artificial, o homemcomo pessoa alegrica, moral. Deste modo, o homem tal como na realidade reconhece-se apenas na forma do homem egosta, e ohomem verdadeiro, unicamente na forma do citoyen abstracto.

    A abstraco de homem poltico bem formulada por Rous-seau: Quem quer que ouse empreender o estabelecimento das ins-tituies de um povo sentir-se- como se fosse capaz de mudara

    prpria natureza humana, de transformarcada indivduo que, noisolamento, um todo completo mas solitrio, emparte dealgoque maior do que ele, do qual ele deriva de certa maneira a sua vidae o seu ser; de mudar a natureza do homem a fim de a fortificar;de substituir uma existncia parcial e moral pela vida fsica e in-dependente [com a qual todos somos dotados por natureza]. Numapalavra, a sua tarefa consiste em tirar ao homem as suas prprias

    foras e dar-lhe em troca foras alheias, que ele s poder utilizarcom a ajuda dos outros homens30.

    Toda a emancipao uma restituio do mundo humano e dasrelaes humanas ao prprio homem.

    A emancipao poltica a reduo do homem, por um lado,a membro da sociedade civil, indivduo independente e egosta e,por outro, a cidado, a pessoa moral.

    A emancipao humana s ser plena quando o homem real eindividual tiver em si o cidado abstracto; quando como homemindividual, na sua vida emprica, no trabalho e nas suas relaesindividuais, se tiver tornado um ser genrico; e quando tiver reco-nhecido e organizado as suas prprias foras (forces propres) comoforas sociais, de maneira a nunca mais separar de si esta fora so-cial como fora poltica.

    30 J. J. Rousseau, Du contrat social, Livro II, Captulo VIII, O legislador.Marx citou esta passagem em francs e o itlico seu; omitiu as partes includasentre parntesis recto.

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    2. BRUNO BAUER, A CAPACIDADE DE OSACTUAIS JUDEUS E CRISTOS SE TORNAREMLIVRES31

    sob esta forma que Bauer estuda a relao entre as religiesjudaica e crist e tambm a sua relao com a crtica moderna. Estaltima relao a relao com a capacidade de se tornar livre.

    E chega a esta concluso: O cristo tem apenas de subir umgrau, elevar-se acima da sua religio, para abolir a religio em ge-ral e, deste modo, se tomar livre; em contrapartida, o judeu deveromper no s com a sua natureza judaica, mas tambm com o pro-cesso para o cumprimento da sua religio, processo que lhe perma-neceu estranho32.

    Bauer transforma assim a questo da emancipao judaica numaquesto puramente religiosa. O escrpulo teolgico sobre se o ju-deu, ou o cristo, tem melhores probabilidades de alcanar a sal-vao reproduz-se aqui na sua forma mais esclarecida: qual dos

    dois mais capaz de emancipao? J no se pergunta: que queliberta o judasmo ou o cristianismo?Pelo contrrio, agora a pergunta soa: que que liberta a ne-

    gao do judasmo ou a negao do cristianismo?Se os judeus desejarem libertar-se, no devem abraar o cris-

    tianismo enquanto tal, mas o cristianismo em dissoluo, religioem decadncia; quer dizer, o iluminismo, a crtica e o seu resultado,uma humanidade livre33.

    Trata-se ainda, pois, de os judeus professarem, no j o cristia-nismo como tal, mas o cristianismo em dissoluo.

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    Die Fhigkeit der heutigen Juden und Christen frei zu werden, in Ein-undzwanzig Bogen aus der Schweiz, (Ed. G. Herwegh), pp. 56-71.32 Loc. cit., p. 71.33 Ibid., p. 70.

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    Bauer pede aos judeus para romperem com a essncia da reli-gio crist, mas semelhante exigncia no deriva, como ele admite,do desenvolvimento da natureza judaica.

    A partir do momento em que Bauer, no final da sua Questojudaica, viu no judasmo apenas uma rude crtica do cristianismoe lhe atribuiu, portanto, um significado apenas religioso, era deesperar que a emancipao dos judeus se transformasse em actofilosfico-teolgico.

    Bauer concebe a essncia ideal e abstracta do judeu a sua reli-gio como a totalidade da sua natureza. Conclui, portanto, acer-tadamente: o judeu no presta qualquer contributo humanidade,quando menospreza a sua prpria lei limitada, quando renuncia atodo o seu judasmo34

    A relao entre judeus e cristos torna-se assim a seguinte: onico interesse que a emancipao do judeu oferece ao cristo um interesse humano e terico geral. O judasmo um fenmenoque ofende o olhar religioso do cristo. Logo que o olhar do cristodeixa de ser religioso, o fenmeno perde o seu carcter de ofensa.Consequentemente, a emancipao do judeu no em si e por siuma tarefa que cumpre ao cristo levar a cabo.

    Por outro lado, se o judeu pretende emancipar-se, deve tam-bm empreender, alm da prpria tarefa, o trabalho do cristo acrtica dos Sinpticos, da vida de Jesus, etc.35

    A eles cabe arranjar as coisas; sero eles prprios a decidir oseu destino. Mas a histria no tolera ser objecto de escrnio36 .

    Tentaremos esquivar-nos formulao teolgica da questo.Para ns, o problema relativo capacidade do judeu para a emanci-pao transforma-se noutra questo: qual o elemento social espec-fico que importa vencer, a fim de abolir o judasmo? A capacidade

    do judeu actual para se emancipar a relao do judasmo com34 Loc. cit., p. 65.35Marx alude aqui a Bruno Bauer, Kritik der Evangelischen Geschichte der

    Synoptiker, vols. I-II, Leipzig, 1841; vol. III, Braunschweig, 1842, e DavidFriedrich Strauss, Das Leben Jesu, 2 vols., Tbingen, 1835-6.

    36 Bauer, Die Fhigkeit... , etc., p. 71.

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    a emancipao do mundo contemporneo. A relao deriva for-osamente da situao particular do judasmo no presente mundoescravizado.

    Consideremos o judeu mundano real; no o judeu de sbado,objecto da considerao de Bauer, mas o judeu de todos os dias.

    No busquemos o segredo do judeu na sua religio, mas procu-remos o segredo da religio no judeu real.

    Qual a base profana do judasmo? A necessidade prtica, o

    interesse pessoal. Qual o culto mundano do judeu? A traficncia.Qual o seu deus mundano? O dinheiro.Muito bem! Ao emancipar-se do trfico e do dinheiro e, por-

    tanto, do judasmo real e prtico, a nossa poca conquistar a pr-pria emancipao.

    Uma organizao da sociedade que abolisse os pressupostos datraficncia e, por conseguinte, a prpria possibilidade de traficar,impossibilitaria a existncia do judeu. A sua conscincia religi-osa dissolver-se-ia como um vapor inspido na atmosfera real, to-nificante, da sociedade. Por outro lado, quando o judeu reconhececomo ftil a sua naturezaprtica e se esfora por aboli-la, comea aafastar-se da anterior via de desenvolvimento, trabalha pela eman-cipao humana geral e vira-se contra a expresso prtica supremada auto-alienao humana.

    Descobrimos, pois, no judasmo um elemento anti-social uni-versal do tempo presente, cujo desenvolvimento histrico, zelosa-mente coadjuvado nos seus aspectos perniciosos pelos judeus, atin-giu agora o ponto culminante, ponto em que tem necessariamentede se desintegrar.

    No seu significado ltimo, a emancipao dos judeus a eman-cipao da humanidade a respeito do judasmo.

    O judeu j se emancipou maneira judaica. O judeu, que simplesmente tolerado em Viena, por exemplo, determina a sortede todo o imprio pelo seu poder financeiro. O judeu, que podeencontrar-se totalmente sem direitos no mais pequeno Estado ger-mano, decide o destino da Europa. Enquanto as corporaes e as

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    guildas excluem o judeu ou, pelo menos, se mostram desfavor-veis a seu respeito, a audcia da indstria zomba da obstinao dasinstituies medievais37.

    No se trata de um facto isolado. O judeu emancipou-se ma-neira judaica, no s pela aquisio do poder do dinheiro, mas tam-bm porque o dinheiro, atravs dele e independentemente dele, setornou um poder mundial, enquanto o esprito judaico prtico seconverteu no esprito prtico das naes crists. Os judeus emanciparam-

    se na medida em que os cristos se tomaram judeus.Assim, por exemplo, o capito Hamilton relata que o piedosoe politicamente livre habitante de Nova Inglaterra uma espciede Laocoonte que no faz o mnimo esforo por se esquivar sserpentes que o subjugam. Mamona o seu dolo, que adora nos com os lbios, mas com todas as foras do seu corpo e do seuesprito. A seus olhos, a Terra no passa de uma bolsa de valores eest convencido de que o seu nico destino aqui em baixo tomar-se mais rico do que o vizinho. A traficncia apoderou-se de todosos seus pensamentos e a sua recreao consiste apenas em permutarobjectos. Quando viaja transporta, por assim dizer, os bens ou obalco s costas e s fala de lucro e de ganho. Se por instantesperde de vista o prprio negcio s para esquadrinhar o negciodos seus concorrentes38.

    Na Amrica do Norte, o domnio prtico do mundo cristo pelojudasmo acabou por se manifestar de forma comum e inequvoca;a prpria pregao do Evangelho, a pregao crist, tomou-se ar-tigo de comrcio e o negociante falido na igreja comporta-se damesma maneira que o clrigo prspero no comrcio. Este ho-mem que ali vs frente de uma respeitvel congregao comeoucomo negociante; tendo falhado o negcio, tornou-se pastor. Este

    aqui comeou pelo sacerdcio, mas logo que juntou algum dinheiro37 Bauer, Die Judenfrage, p. 14.38 Hamilton, op. cit., p. 213. Marx parafraseia a passagem.

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    abandonou o plpito pelo comrcio. Aos olhos de muita gente, oministrio religioso constitui uma verdadeira carreira industrial39.

    Segundo Bauer, trata-se de uma situao hipcrita quando, nateoria, o judeu se encontra privado dos direitos polticos, enquantona prtica exerce um tremendo poder e usa em grande escala dainfluncia poltica que lhe negada em assuntos de menor impor-tncia40.

    A contradio que existe entre o poder poltico prtico do judeu

    e os seus direitos polticos a contradio entre a poltica e o poderdo dinheiro em geral. A poltica , em princpio, superior ao poderdo dinheiro, mas na realidade tornou-se seu escravo.

    O judasmo conservou-se ao lado do cristianismo, no s comocrtica religiosa do cristianismo, no s como dvida incorporadaacerca das origens religiosas do cristianismo, mas tambm porqueo esprito judaico-prtico, o judasmo41, se perpetuou na sociedadecrist e nela alcanou mesmo o seu mximo desenvolvimento. Ojudeu, que figura como um membro distinto na sociedade civil,apenas manifesta de modo distintivo o judasmo da sociedade civil.

    O judasmo foi preservado, no apesar da histria, mas pelahistria.

    a partir das prprias entranhas que a sociedade civil gera in-cessantemente o judeu.

    Qual a verdadeira base da religio judaica? A necessidade pr-tica, o egosmo.

    Por conseguinte, o monotesmo do judeu surge, na realidade,como o politesmo das numerosas necessidades, um politesmo quefaz do prprio lavabo um objecto de regulamentao divina. Anecessidade prtica, o egosmo o princpio da sociedade civil erevela-se como tal logo que a sociedade civil produziu plenamente

    39 Beaumont, op. cit., II, p. 179.40 Bauer, Die Judenfrage, p. 14.41 O termo Judentum tinha, na linguagem da poca, o significado secundrio

    de traficncia; Marx joga aqui com o seu duplo sentido.

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    o Estado poltico. O deus da necessidade prtica e do interessepessoal o dinheiro.

    O dinheiro o ciumento deus de Israel, a cujo lado mais ne-nhuma divindade pode existir. O dinheiro rebaixa todos os deusesdo homem e transforma-os em mercadoria. O dinheiro o va-loruniversal e auto-suficiente de todas as coisas. Por conseguinte,destituiu todo o mundo, tanto o mundo humano como a natureza,do seu prprio valor. O dinheiro a essncia alienada do trabalho

    e da existncia do homem; esta essncia domina-o e ele presta-lheculto e adorao.O deus dos judeus foi secularizado e tornou-se o deus deste

    mundo. O cmbio o deus real do judeu. O seu deus apenas ocmbio ilusrio.

    A percepo que se obteve da natureza, sob o imprio da pro-priedade privada e do dinheiro, o real desdm, a degradao pr-tica da natureza, que existe de facto na religio judaica, mas s naimaginao.

    neste sentido que Thomas Mnzer declara intolervel quetoda a criatura se tenha transformado em propriedade os pases,as aves no ar, as plantas na terra: tambm a criatura se deve tornarlivre42.

    O que se contm de forma abstracta na religio judaica odesprezo pela teoria, pela arte, pela histria e pelo homem comofim em si mesmo o ponto de vista real, consciente e a virtudedo homem de dinheiro. At a prpria relao genrica, a relaoentre homem e mulher, se transforma em objecto de comrcio! Amulher trocada por coisas sem valor.

    A nacionalidade quimrica do judeu a nacionalidade do ne-gociante e, acima de tudo, do financeiro.

    42Citado do panfleto de Thomas Mnzer contra Lutero, nHochverursachteSchutzrede und Antwort wider das geistlose, sanftlebende Fleisch zu Witten-berg, welches mit verkehrter Weise durch den Diebstahl der heiligen Schrift dieerbrmliche Christenheit also jmmerlich besudelt hat. (p. B. iii. 1524).

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    A lei, sem base ou razo, do judeu no passa da caricatura reli-giosa da moralidade e do direito em geral, sem base ou razo, dosritos puramente formais de que o mundo do interesse pessoal serodeia.

    Tambm aqui a condio suprema do homem a sua situaolegal, a sua relao s leis que para ele no so vlidas, no porserem as leis da sua vontade e essncia, mas porque surgem comoleis dominantes e qualquer infraco a seu respeito ser vingada.

    O jesuitismo judaico, o mesmo jesuitismo prtico que Bauerdescobre no Talmud, a relao do mundo do interesse pessoals leis que governam este mundo, leis que este mundo com suasprincipais artes procura enganar.

    Na verdade, o movimento deste mundo dentro da sua lei ne-cessariamente uma contnua preterio da lei.

    Ojudasmoj no podia desenvolver-se como religio, de formaterica, porque a viso do mundo da necessidade prtica , em vir-tude da prpria natureza, circunscrita e a delineao das suas ca-ractersticas depressa se esgota.

    A religio da necessidade prtica no podia, segundo a sua na-tureza, encontrar a sua realizao na teoria, mas s na prtica, pre-cisamente porque a prtica a sua verdade.

    O judasmo no seria capaz de criar um mundo novo. Con-seguiria apenas trazer as novas criaes e condies do mundo-para dentro da prpria esfera de actividade, porque a necessidadeprtica, cuja razo o interesse pessoal, sempre passiva, no podeexpandir-se vontade, mas j se encontra alargada com incessantedesenvolvimento da sociedade.

    O judasmo alcana o apogeu com a consumao da sociedadecivil; mas a sociedade civil s atinge a sua perfeio no mundo

    cristo. S sob a dominao do cristianismo, que exterioriza parao homem todas as relaes nacionais, naturais, morais e tericas,podia a sociedade civil separar-se inteiramente da vida do Estado,romper todos os laos genricos do homem, estabelecer em seu

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    lugar o egosmo e a necessidade interesseira, dissolvendo o mundohumano num mundo de indivduos atomizados e antagnicos.

    O cristianismo proveio do judasmo. De novo foi reabsorvidono judasmo.

    Desde o incio, o cristo foi o judeu teorizador; por conse-guinte, o judeu o cristo prtico, e o cristo prtico tomou-sede novo judeu.

    Foi s na aparncia que o cristianismo venceu o judasmo real.

    Era excessivamente purificado, demasiado espiritualista para eli-minar a crueza da necessidade prtica, a no ser elevando-a aoreino etreo.

    O cristianismo o pensamento sublime do judasmo; o ju-dasmo a vulgar aplicao prtica do cristianismo. Mas esta apli-cao prtica s poderia tornar-se universal quando o cristianismo,enquanto religio aperfeioada, tivesse realizado, de maneira te-rica, a auto-alienao do homem relativamente a si mesmo e na-tureza.

    S ento que o judasmo alcanaria o domnio universal epoderia transformar o homem alienado e a natureza alienada emobjectos alienveis, prprios para venda, na subservincia neces-sidade egosta e traficncia.

    A exteriorizao a prtica da alienao. Assim como o ho-mem, enquanto permanece absorto na religio, s pode objectivara sua essncia atravs de um ser estranho e fantstico, assim sob adominao da necessidade egosta s pode afirmar-se a si mesmo eproduzir objectos na prtica, subordinando os produtos e a prpriaactividade ao domnio de uma entidade alheia, e atribuindo-lhes osignificado de uma entidade estranha, a saber, o dinheiro.

    Na sua prtica de todo realizada, o egosmo espiritual do cris-

    tianismo torna-se necessariamente o egosmo material do judeu, anecessidade celestial muda-se em necessidade terrestre, o subjecti-vismo em interesse pessoal. A tenacidade do judeu tem de se ex-plicar, no pela sua religio, mas pela base humana da sua religio a necessidade prtica e o egosmo.

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    Porque a essncia real do judeu se realizou e secularizou uni-versalmente na sociedade civil que a sociedade civil no foi capazde convencer o judeu da irrealidade da sua essncia religiosa, queconstitui precisamente apenas a representao ideal da necessidadeprtica. Por conseguinte, no s no Pentateuco e no Talmud, mastambm na sociedade contempornea, que encontramos a essnciado judeu actual; no como essncia abstracta, mas como essnciaextremamente emprica; no s como uma limitao do judeu, mas

    como a mesquinhez judaica da sociedade.Logo que a sociedade conseguir abolir a essncia emprica dojudasmo a traficncia e os seus pressupostos o judeu tornar-se- impossvel, porque a sua conscincia deixa de ter objecto, porquea base subjectiva do judasmo a necessidade prtica toma umaforma humana e o conflito entre a existncia individual, sensvel,do homem e a sua existncia genrica abolido.

    A emancipao social do judeu a emancipao da sociedadeem relao ao judasmo.

    [Nota do Tradutor]

    Esta verso portuguesa do presente escrito de Marx data j de1975; foi revista e reeditada em 1989. Foi, agora, de novo sujeita aexame e aperfeioada.

    O texto alemo original encontra-se nos electro-stios seguintes:

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