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  • 8/14/2019 Marvin Carlson

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    A cidade como teatro1

    The city as a theatre

    Marvin Carlson

    Traduo Jaqueline Rodrigues e Evelyn F.W. Lima

    Resumo

    Este captulo do livro Places of Performancecom base na semiologia do

    espao- sugere o quanto importante compreender o significado daexperincia das encenaes teatrais do Ocidente, em especial quandorealizadas em espaos no inseridos na estrutura arquitetnicaconvencional, ou seja, as encenaes realizadas em espaos apropriadospelos espetculos em espaos urbanos ou alternativos. Partindo dasencenaes medievais, o texto investiga a semitica de espaosarquiteturais e urbanos que em diferentes temporalidades foram utilizadospara representaes, transformando a cidade no prprio teatro.

    Palavras chave| Semitica do espao | espao urbano | arquitetura teatral|espao encontrado

    Abstract

    This chapter of the book Places of Performance-based on the semiology ofspace suggests how important it is to understand the meaning of theexperience of theatrical performances in the West, especially when held inspaces not included in conventional architectural structures, i.e.performances carried out in the found spaces in urban or alternativespaces. Starting from the medieval performances, the article investigatesthe semiotics of architectural and urban spaces, which have been used indifferent temporalities for theatrical representations, transforming the cityinto the theatre itself.

    Key-words | Semiotics of space | Urban Space | Theatre Architecture,Found Spaces

    Marvin Carlson Professor de Teatro e Literatura Comparada no Centrode Graduao da Universidade da Cidade de Nova Iorque, nos EstadosUnidos. Doutor honoris causapela Universidade de Atenas, e foi agraciadocom diversos prmios, entre eles o ATHE Career Achievement Award, oASTR Distinguished Scholarship Award, o prmio George Jean Nathan decrtica dramtica, e o Calloway Prize para autores de estudos teatrais.

    1

    Agradecemos ao autor e Cornell University Press pela autorizao para a publicao destetexto, extrado do livro Places of Performance: The Semiotics of Theatre Architecture. Ithaca:Cornell University Press,1989.

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    ISSN 2176-7017

    Volume 04 Nmero 01 agosto-dezembro/2012 2

    editor-fundador do jornal Western European Stages, e autor de mais decem artigos acadmicos nas reas de histria e teoria do teatro e literaturadramtica. Entre seus principais ttulos publicados esto: Teorias do Teatro(UNESP, 1997), Performance: uma introduo crtica(UFMG, 2010) e, aindano traduzidos para o portugus, The Theatre of the French Revolution

    (1966), Goethe and the Weimar Theatre (1978), Places of Performance(1989), Theatre Semiotics: Signs of Life(1990), Voltaire and the Theatre ofthe Eighteenth Century (1998), The Haunted Stage (2001), Speaking inTongues(2006), Theatre is More Beautiful than War (2010) e The Theatresof Morocco, Algeria, and Tunisia (2012). Suas obras j foram traduzidaspara catorze lnguas.

    Marvin Carlson is the Sidney E. Cohn Professor of Theatre andComparative Literature at the Graduate Center of the City University of NewYork. He has received an honorary doctorate from the University of Athens,the ATHE Career Achievement Award, The ASTR Distinguished ScholarshipAward, The George Jean Nathan Award for Dramatic Criticism, and theCalloway Prize for writing in Theatre. He is the founding editor of theJournal Western European Stages, and the author of over one hundredscholarly articles in the areas of theory history, and dramatic literature.Among his books are The Theatre of the French Revolution(1966), Goetheand the Weimar Theatre (1978), Theories of the Theatre(1984) Places ofPerformance(1989), Theatre Semiotics: Signs of Life(1990) Performance:A Critical Introduction (1996), Voltaire and the Theatre of the EighteenthCentury (1998), The Haunted Stage (2001), Speaking in Tongues (2006),Theatre is More Beautiful than War (2010) and The Theatres of Morocco,Algeria and Tunisia (2012).His work has been translated into fourteenlanguages.

    Jaqueline Rodrigues mestre e Especialista em Artes Cnicas,Pesquisadora Associada PACC/ UFRJ Plo Digital, Membro da IFTR Grupode Pesquisa: Theatre and Intermediality.

    Jaqueline Rodriguesis master and Specialist in Performing Arts, AssociateResearcher - PACC / UFRJ Digital Hub, Member of IFTR Research Group:Theatre and Intermediality.

    Evelyn Furquim Werneck Lima professora associada da UniversidadeFederal do Estado do Rio de Janeiro, coordenadora do Laboratrio deEstudos do Espao Teatral e Memria Urbana e pesquisadora do CNPq e daFaperj. Autora dos livros premiados Arquitetura do Espetculo (2000) eAvenida Presidente Vargas: uma drstica Cirurgia (1990 e 1995). PublicouDas vanguardas tradio (2006) e organizou Espao e Teatro (2008),Espao e Cidade (2004 e 2007) e Cultura, Patrimnio e Habitao(2004).Publicou em co-autoria Arquitetura e Teatro (2010) e EntreArquiteturas e Cenografias (2012).

    Evelyn Furquim Werneck Lima is currently Associate Professor at theFederal University of Rio de Janeiro State, where she coordinates theLaboratory of Theatrical Space and Urban Memory Studies and is aresearcher for the CNPq and Faperj. Author of the award-winning books

    Arquitetura do Espetculo(2000) andAvenida Presidente Vargas: a drasticsurgery (1990 and 1995). Published From The avant-garde to tradition

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    (2006) and organized Space and Theatre(2008), Space and City(2004 and2007) and Culture, heritage andhousing (2004).PublishedArchitecture andtheatre (2010) (with Ricardo Cardoso)and Between Architectures and SetDesigns (2012) ( with Cassia Monteiro).

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    A Cidade como Teatro

    Marvin Carlson

    Traduo Jaqueline Rodrigues e Evelyn F.W. Lima

    O final da Idade Mdia e a Renascena constituem um longo perodo

    histrico, ocasio em que o teatro existiu como uma parte importante da

    vida urbana sem que houvesse qualquer elemento arquitetnico especfico

    destinado exclusivamente ao seu uso exclusivo. A ausncia de uma

    estrutura teatral especfica entre o repertrio de objetos arquitetnicos nas

    cidades medievais, de maneira alguma significa que a situao fsica da

    encenao teatral dentro da cidade era destituda de significado simblico.

    Ao contrrio, a situao que permitia aos que produziam as encenaes

    localiz-las em qualquer lugar que lhes fosse mais conveniente significava

    que o teatro poderia usar em seu benefcio prprio as conotaes j

    existentes de outros espaos tanto neles mesmos quanto em relao a sua

    disposio dentro da cidade; o que de fato ocorria consistentemente. Tal

    dinmica era particularmente favorvel viso de mundo medieval, que se

    encantava pela descoberta de correspondncias e pela construo de ricas

    estruturas simblicas, por meio do relacionamento de diversos sistemassgnicos uns com os outros.

    O centro simblico da cidade medieval era a catedral e nenhum

    outro lugar da cidade era to rico em concentrar valiosos referenciais

    simblicos. Uma passagem famosa de Notre Dame de Parisde Victor Hugo

    considera que a catedral era o repositrio central de signos para aquela

    cultura. Lenda, alegoria, doutrina, o somatrio total do conhecimento

    medieval sobre o mundo, divino e humano, estava ali representado napintura, na escultura, no vitral e no espao. Ao mesmo tempo, esta

    tessitura de smbolos de tamanha riqueza tambm servia como um cenrio,

    um container para os sistemas simblicos cada vez mais centrados nos

    rituais realizados pela igreja, por meio dos quais os cidados eram

    conduzidos a uma participao direta nos mistrios divinos.

    O drama litrgico que crescia no interior da catedral ocupava uma

    posio que oscilava de alguma maneira entre o ritual religioso e o ricoenquadramento da arquitetura, escultura e vitrais que envolviam aquele

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    ritual e acentuavam o potencial simblico de cada um. Carol Heinz

    documentou a conexo estreita entre os macios frontes ocidentais que

    surgiram no perodo carolngio e os smbolos iconogrficos e arquitetnicos

    da morte e da ressurreio daquela poca. Como tema corriqueiro dos

    portais nas fachadas ocidentais, o julgamento final tambm foi associado a

    essa rea, assim como o batismo (a morte simblica e a ressurreio do

    pecador penitente). (Heinz, 1963) Um altar para o Salvador tambm era

    freqentemente colocado aqui em relao a estes acontecimentos. nessa

    parte da catedral, j to rica por associaes apropriadas, que Heinz sugere

    que tenha sido apresentada a primeira pea litrgica da Pscoa. A opinio

    mais tradicional admite que essas encenaes se realizavam prximas ao

    altar-mor, com a cripta subterrnea servindo como um cone para otmulo2. Seja qual for o entendimento mais correto, os historiadores

    concordam que a nova representao dramtica construda por meio das

    conotaes j se apresentava em um espao criado para propsitos no

    dramticos.

    Gradualmente as encenaes litrgicas comearam a utilizar outras

    partes da catedral e a mesma dinmica continuava. A prpria catedral era

    arquitetonicamente orientada pelos supostos eixos do mundo, a linhaprincipal percorrendo o leste e o oeste, com um eixo transverso menor no

    sentido norte-sul. Para o leste ficavam Jerusalm e o presumvel lugar do

    Paraso perdido e o celebrante ao entrar na dirigia-se nesta direo at

    alcanar o altar-mor. O caminho das procisses da igreja, para leste em

    direo ao altar-mor ou para oeste em direo ao altar do Salvador, j

    evocativo do mundo ou das viagens csmicas, acompanhava os mesmos

    eixos dos dramas litrgicos - a viagem para Emas, a corrida dos discpulos

    para a tumba, a viagem dos Reis Magos.

    A diviso tripartite da catedral, leste-centro-oeste em coro, nave e

    nartex, fornecia uma orientao espacial suplementar. Entre o altar do

    Salvador com sua evocao da Paixo, a ressurreio, e o julgamento

    final e o altar oriental da Virgem sugerindo a natividade e a prpria

    igreja o meio da nave ou o cruzamento dos tranceptos fornecia um

    2

    Para uma comparao sobre esses pontos de vista, ver Elie Konigson. Lespace thtralmdieval. Paris: 1975, 15-37. Konigson sustenta a opinio de Heinz com mais algumaqualificao.

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    espao religioso menos pesado e carregado, um espao no s de

    procisses na direo de um ponto ou outro da igreja, mas de localizaes

    mais terrenas necessrias aos dramas litrgicos. Assim, na Catedral de

    Rouen, o drama litrgico Jeu de plerins dEmmaus coloca o castelli

    Emmausno meio da nave, o Office de ltoile em Bilsen ali posiciona o

    palcio de Herodes e ainda em Rouen a Procession des prophtes

    coloca neste mesmo local a virulenta fornalha de Nabucodonosor (Cohen,

    1955 e Young, 1933). Os arranjos espaciais variavam naturalmente um

    pouco de catedral para catedral, conforme os santurios e capelas

    fornecessem locais com fortes valores simblicos, particularmente para

    determinadas histrias, mas as estratgias bsicas para o uso da conotao

    espacial e figurativa para reforar as encenaes litrgicas eramencontradas em qualquer lugar onde fossem oferecidas.

    Os eruditos do incio do sculo XX consideravam que os Mistrios

    apresentados fora das igrejas eram descendentes diretos dos dramas

    litrgicos, porm, pesquisas mais recentes desafiaram esta teoria, citando

    como evidncia no apenas a sobreposio das formas, mas diferenas

    muito importantes quanto organizao, aos temas e funo social. No

    obstante, no que concerne significao urbana e espacial, as encenaeslitrgicas e os Mistrios tinham similaridades importantes. Um sistema

    simblico similar poderia ser encontrado em quase todas as montagens do

    drama medieval ao ar livre, nos locais onde a configurao fsica assim o

    permitisse. Em Frankfurt (ca. 1350), Lucerna (1583) e Donaueschingen (ca.

    1600), para citar apenas trs importantes exemplos, havia uma plataforma

    representando o Cu para o leste, assim como o altar-mor na catedral, uma

    Boca do Inferno diablica do lado oposto oeste e localizaes mundanas

    espalhadas entre elas. Tanto em Frankfurt quanto em Lucerna, era utilizado

    um templo como elemento para definir esta rea central e todos trs

    posicionavam a crucificao no meio do caminho entre o centro mundano e

    o paraso.

    As cidades ofereciam uma variedade de locaes ricamente

    significantes para a encenao do drama religioso. Em muitas delas o

    espao imediatamente adjacente catedral era aparentemente empregado,

    como para a famosa pea medieval, o Jeu dAdam, ficando a catedral

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    como um todo como a moradia de Deus e provavelmente do coro angelical

    (Hardison, 1965). Como a cripta da catedral, os cemitrios e campos santos

    serviam como locais para as peas da paixo e da ressurreio, como por

    exemplo, em Rouen e Viena. Geralmente um local favorecido era a praa do

    mercado, que, como a cidade circundada, poderia ser vista como um

    smbolo do palco no qual qualquer homem encenava seu papel mundano.

    As conotaes do espao da praa do mercado faziam-na especialmente

    apropriada para esta funo. Geralmente contgua prefeitura, cercada por

    residncias e lugares de negcios dos principais comerciantes da cidade, o

    prprio centro para comrcio, recreao e trocas de sociabilidade, esta

    praa era de fato o palco no qual a nova classe burguesa urbana

    representava suas vidas, a secular, o corao geogrfico da cidade; que,assim como a catedral era o corao espiritual (embora essas duas

    orientaes no fossem to claramente separadas como se tornariam

    posteriormente: as organizaes de negcios e as associaes medievais

    ainda tinham um componente religioso importante). Os Mistrios escritos

    no vernculo e enfatizando a similaridade entre o mundo fsico dos sujeitos

    bblicos e o dos espectadores eram extremamente bem servidos por um

    espao reminiscente de consideraes vernaculares e contemporneas,

    assim como, o mais abstrato e ritualstico drama litrgico era

    complementado pela iconografia das esculturas moldadas nas fachadas da

    catedral.

    Em uma escala maior, a cidade como um espao sagrado poderia

    ser tambm utilizada como um espao teatral. De fato, Lewis Munford

    assim v como uma de suas funes principais: Sejam quais forem as

    necessidades prticas da cidade medieval, ela era acima de todas as coisas,

    em sua vida turbulentamente ocupada, um palco para as cerimnias da

    Igreja. Nisto reside o seu drama e sua consumao ideal. A chave para

    compreender a cidade medieval, para Munford, est no cortejo ou

    procisso,

    acima de tudo nas grandes procisses religiosas que

    perpassavam pelas cidades e lugares antes de finalmente

    adentrarem a igreja ou a catedral para a grande cerimnia.

    Estas grandes procisses uniam, assim como as cerimnias

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    nas igrejas, espectadores, comunicadores e participantes.

    At os curvas tortuosas das ruas medievais contribuam para

    este efeito, permitindo queles que estavam na procisso,

    olhares sobre os outros participantes da cidade de tal forma

    que tambm se tornavam espectadores, visto que nunca

    poderiam estar em uma parada formal em uma rua reta

    (Munford, 1961).

    Essas grandes procisses e os cortejos dramticos que, como as

    procisses, desfilavam pela cidade medieval reivindicando a cidade inteira

    como cenrio, tambm representavam um apelo para que cada cidado se

    envolvesse para alm dos grandes espetculos na praa do mercado.

    Embora as encenaes dramticas possam no ter envolvido diretamente o

    mesmo nmero de cidados das grandes procisses, elas ainda

    encorajavam a participao ativa, apagando regularmente qualquer barreira

    possvel entre a encenao e o espao pblico. A paixo de Viena do sculo

    XV, que comeou na praa do mercado, sem dvida alguma assumiu as

    conotaes seculares e sociais daquela rea, mas, quando o ator

    representando Cristo subseqentemente carregava sua cruz pelas ruas

    sinuosas da cidade para o cemitrio distante, onde a crucificao seriarepresentada, os espectadores que acompanhavam o percurso eram

    levados de forma mais direta para o mundo simblico da pea, tornando-se

    participantes ativos no drama csmico do sacrifcio e da redeno, em uma

    cidade que durante essa encenao lidava com as conotaes da cidade

    universal, Jerusalm (Jacquot apudKonigson, 1975).

    Na Alta Idade Mdia as procisses dramticas e religiosas

    compartilhavam o palco urbano com outro tipo de procisso, aparentementesimilar, mas com uma srie de conotaes radicalmente diferentes: a

    entrada real. Muitas procisses religiosas evoluam de um dos portes da

    cidade para a catedral em um trajeto que simbolizava a aproximao do

    poder real ao centro espiritual da comunidade, embora outros trajetos at

    aqueles totalmente opostos dirigindo-se do centro da cidade para os seus

    limites eram possveis, como a paixo de Viena demonstrava. Tal

    flexibilidade era impossvel para a entrada real, que, representando as boas

    vindas da cidade para um visitante importante, necessariamente tinha que

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    se deslocar dos portes da cidade (a mais importante locao simblica

    para este tipo de cerimnia) para o centro, representado usualmente pela

    catedral ou pelo palcio que servia para receber o visitante privilegiado. As

    primeiras entradas reais eram essencialmente um pouco mais que uma

    cerimnia de boas vindas, mas medida que o poder do soberano

    aumentava e a autonomia da cidade declinava, as conotaes dessas

    cerimnias refletiam as mudanas. A abertura dos portes da cidade ou a

    apresentao das chaves ao soberano simbolizaram submisso e o

    reconhecimento de um poder superior, e a procisso na direo do centro

    da cidade se tornou um ato de possesso e uma demonstrao de

    autoridade (Guene & Lehoux, 1968 e Dumur, 1965).

    O nobre visitante no era mais cortejado por meio de smbolos de

    riqueza, poder e prosperidade da cidade; em vez disso, ele encontrava

    monumentos e pinturas alegricas e quadros que refletissem sua prpria

    significao. A cidade ainda era usada como um espao teatral, porm, um

    espao anteriormente apropriado por seus habitantes que passa a ser usado

    pelo prncipe. Uma vez que essa usurpao se completava, a cidade no

    estava mais disponvel como palco, principalmente para as cenas

    individualizadas dos dramas dos cidados - procisses de casamento efuneral ou cortejos cvico-religiosos- mas, tornou-se preferencialmente uma

    cena para a demonstrao de poder do prncipe, da qual os cidados

    participavam por tolerncia apenas como espectadores.

    O arranjo fsico da cidade medieval era imprprio, de vrias formas,

    para essas demonstraes de poder do prncipe. No importando quais

    fossem os smbolos alegricos de domnio e autoridade unificados nos

    quadros vivos que eram colocados ao longo da rota do prncipe, amensagem denotada pelo prprio espao urbano era muito diferente. As

    estreitas e tortuosas ruas medievais, com estruturas pendentes,

    caprichosamente alargadas e estreitadas, no sugeriam conotaes de

    subservincia ou at de maleabilidade, mas preferencialmente aquelas de

    individualidade obstinada. O caminho que o prncipe seguia para o centro da

    cidade no era um caminho fcil e sugeria em termos de dinmica espacial,

    menos uma procisso triunfante do que uma linha difcil de um labirinto

    potencialmente ameaador.

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    Para que o novo poder poltico pudesse se mostrar apropriadamente

    no palco urbano, novas estruturas espaciais foram necessrias, como

    tinham sido nos tempos clssicos quando a democrtica cidade grega foi

    substituida pela autocrtica cidade helenstica. Neste caso a cidade tambm

    deixou de ser um palco no qual cada cidado tinha um papel com uma

    contribuio democrtica a fazer e transformou-se muito mais em um lugar

    de espetculo para o poder centralizado. Os grandes triunfos e coroaes do

    perodo helenstico no puderam ser acomodados fisicamente nas estreitas

    e sinuosas ruas da Atenas do quinto sculo antes de Cristo. Vastas avenidas

    sinuosas foram necessrias para tornar a cidade helenstica apropriada

    como uma arena para shows pblicos: um containerpara espectadores.

    Por fim, na medida em que as novas regras da Renascena se

    consolidavam, elas comearam a impor suas prprias exigncias ao texto

    urbano, remanejando-o gradualmente no sentido da construo da cidade

    barroca, transformando-a em palco mais apropriado para a exibio de seu

    esplendor. As entradas reais podem ser consideradas o primeiro passo em

    direo quela cidade reconstruda, seguido pelos espetculos da

    Renascena e do desenvolvimento dos espaos aristocrticos nas cidades,

    como os da Florena renascentista. As entradas reais, quase desde o incio,encorajaram uma transformao do texto urbano como eles se depararam

    com ele. Para a entrada de Charles VI em Paris em 1380, as ruas e os

    quarteires estavam to adornados de tapearias que eles se

    assemelhavam aos templos, e, a partir de vrias fontes artificiais, leite,

    gua e vinho escorriam em abundncia (Gune & Lehoux, 1968). Tais

    fontes e as tapearias no serviam apenas de decorao e propsitos

    alegricos, mas, como observa Konigson, tambm funcionavam para se

    sobrepor na cidade real um caminho idealizado, enquanto removiam o

    espao vivido(Konigson,1975).

    A idealizao do caminho seguido da entrada real de fato tinha

    muito em comum com a triunfal via pblica, uma caracterstica do perodo

    helenstico. Intimamente associada a essa viso espacial estava a

    conveno pictrica da perspectiva, a qual enfatizava a ordem imposta no

    espao pelo mestre poltico daquele espao, a centralidade da viso daquele

    mestre e a incrvel insignificncia de objetos, na medida em que eles eram

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    localizados em uma posio mais distante do poder. Michel Foucault cita um

    principio atribudo aos gregos, que a aritmtica deveria ser a preocupao

    das cidades democrticas visto que ela ensina as relaes de igualdade,

    enquanto a geometria deveria ser ensinada s oligarquias, desde que ela

    mostra as propores em desigualdade(Foulcault, 1971). No h dvida

    que a perspectiva se tornou um dispositivo signico central para os novos

    prncipes da Renascena na Itlia. Para os Mdici, afirma Ludovico Zorzi, a

    perspectiva tornou-se o veculo metodolgico para um discurso poltico,

    que se imps aos objetos elaborados pela cultura medieval (a cidade sendo

    um exemplo representativo) com o intuito de modific-los e adapt-los s

    finalidades de sua prpria ordem egocntrica de conhecimento (Zorzi,

    1977).

    Esse processo pode ser visto literalmente no trabalhoA Entrada de

    Herique II em Lyon,em 1548. Somando-se a usual cobertura das fachadas

    ao longo do caminho da procisso, telas eram instaladas nos cruzamentos

    de ruas mascarando as ruas tortuosas da cidade medieval com falsas

    perspectivas pintadas no trompe loeil (Guigu, 1927). Iconograficamente,

    pelo menos, o soberano j tinha atingido a conquista do espao urbano que

    seria transformada em realidade durante o perodo barroco. A texturaurbana da cidade medieval resistiria a essa mudana por algum tempo,

    entretanto, ela continuou a servir como um tipo de autenticao irnica

    para expedientes efmeros, como a perspectiva da pintura da entrada de

    Henri II ou os temporrios arcos do triunfo, os quais eram freqentemente

    construdos para servir mais apropriadamente como um signo inicial para a

    entrada do que para representaes dos portes mais proibidos, com suas

    conotaes de defesa em vez de submisso.

    A idia do espao urbano barroco foi desenvolvida nas cidades

    governadas pelos prncipes renascentistas na Itlia e o teatro desempenhou

    um papel crucial na transio entre os conceitos medieval e barroco da

    organizao urbana. Pierre Levedan na sua Histoire durbanisme assim

    descreve o processo:

    Convergncia e simetria, estes princpios foram

    aplicados cidade somente aps ela ter sido, alguns podemdizer, vulgarizada por dois intermedirios: o teatro e a arte

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    do jardim. O teatro amarra a geometria ao urbanismo. A

    decorao teatral deveria ter seu efeito na decorao

    urbana, enquanto a cenografia nasceu dos tratados da

    perspectiva (Lavedan, 1959).

    Florena, um dos centros mais ativos de teatro do perodo, fornece

    uma ilustrao bem clara desta dinmica no trabalho. Durante a Idade

    Mdia, Florena seguiu os padres tpicos de empregar seus espaos

    abertos no centro da cidade para a encenao dos Mistrios, destacando-

    se um cortejo repetitivo de dezesseis horas realizado na Piazza della

    Signoria para a festa de S. Joo em 1454. Grandes festivais e procisses

    cvicas e religiosas ainda eram oferecidos no espao pblico de tempos em

    tempos durante o sculo seguinte, porm o retorno da comdia latina, que

    teve inicio por volta de 1500, acontecia usualmente em academias eruditas

    e, mais freqentemente, em residncias aristocrticas, particularmente,

    com o passar do tempo, naquelas dos Mdici. Ao mesmo tempo, os pintores

    italianos estavam explorando as possibilidades espaciais da perspectiva,

    sendo um dos temas preferidos a cidade ideal. Estes interesses

    convergiram para as propostas de desenhos teatrais elaboradas por artistas

    como Baldassare Peruzzi e Sebastiano Serlio.

    Logo, a viso da cidade abstrata ideal destes artistas comeou a ser

    aplicada em representaes idealizadas da prpria cidade de Florena. O

    desenho cenogrfico, criado por Baldassare Lanci para a produo de

    Vedova de 1569 no recentemente aberto Salone dei Cinquecento do Palcio

    Ducal, um exemplo notvel desse desenvolvimento. A grande cpula de

    Brunelleschi para a catedral de Florena foi utilizada nesta obra para criar

    um elemento terminal para uma rua imaginria que o artista, maneiraPeruzzi-Serliana, estendeu diretamente para o plano dos fundos de sua

    pintura. Significantemente, no entanto, a cpula central no sequer

    mencionada nas crnicas contemporneas desta encenao, podendo-se

    notar que A cena era a cidade de Florena e representava um lugar

    particular nesta cidade, e este lugar era a esquina do Antellesi com a

    fachada do Palcio Ducal como vista de l(Giunti, 1569).

    O Palcio Ducal com sua torre, agora o smbolo arquitetnico dopoder dos Mdici, significa um forte elemento nesta representao da rua,

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    exemplo de cenografia urbana para expressar, por sculos vindouros, o

    poder e a importncia dos Mdici de Florena.

    A apropriao teatral da paisagem urbana pelos prncipes da

    Renascena foi arquitetonicamente confirmada pelo fato de que estaapropriao cnica ocorreu, assim como em Florena, nos espaos

    arquitetnicos privados. Quando as primeiras estruturas teatrais

    permanentes dos tempos ps-clssicos foram construdas, grande maioria

    delas era localizada dentro dos novos palcios principescos. Algumas das

    implicaes desta nova disposio sero consideradas no prximo capitulo,

    mas aqui vamos continuar a falar do teatro sem casa, aquele teatro ainda

    excludo de qualquer associao, com o repertrio de objetos arquiteturais

    da Ps-Renascena, mas no obstante uma parte contnua da cultura

    urbana ocidental.

    Da Renascena em diante, as ruas das cidades e as praas do

    mercado continuaram a servir s antigas prticas de diverso cvica- as

    paradas e procisses, as operetas, as apresentaes para venda de

    medicamentos e dos charlates, os acrobatas, os farsantes e mmicos, cujos

    descendentes ainda podem ser vistos hoje: nos palhaos, nos engolidores

    de fogo e malabaristas encontrados em lugares urbanos populares e de

    encontro, como na praa em frente ao Beaubourg em Paris. A cidade ao

    redor dessas diverses mudou, mas em geral elas se adaptaram s

    mudanas sem ajustes radicais na semitica de seus espaos particulares.

    Procisses e paradas ainda so planejadas de acordo com caminhos

    simblicos e pontos de referncia importantes (landmarks) no contexto da

    cidade. Os acrobatas e os mmicos, tal como existiam nos mercados

    tradicionais situados nas praas das cidades desapareceram, procuraramseus equivalentes modernos nas ruas de pedestres.

    O teatro institucionalizado de uma sociedade educada, uma vez

    tendo abandonado as ruas, em geral deixando-as para a diverso popular, e

    esta diviso ainda permanece viva hoje em dia. Porm, alguns

    desenvolvimentos no teatro moderno, em alguns casos, apropriaram-se

    novamente de espaos no teatrais de particular interesse para utilizao

    teatral. A organizao moderna de festivais de teatro em muitas cidades daEuropa dedica-se a este desenvolvimento. Uma combinao de espaos

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    teatrais tradicionais limitados e o desejo de diretores experimentais de

    experimentarem locais no convencionais encorajaram o uso de praas,

    ptios e outros espaos urbanos para as encenaes dos festivais,

    especialmente no sul da Europa. Em Dubrovnik, a descoberta de novos

    espaos urbanos para encenao se tornou parte da agitao do festival,

    tendo como resultado que nos anos mais recentes, quase toda a cidade foi

    teatralizada. E esta atividade no precisa estar restrita ao perodo do

    festival. Outras cidades Iugoslavas como Split e Subotica utilizaram os

    espaos urbanos para encenaes de maneira to entusiasmada como em

    Dubrovnik, de forma menos extensiva, para encorajar o orgulho cvico, para

    estimular uma renovao urbana, e geralmente, para reforar um tipo de

    viso utpica da cidade (Klajic, 1987).

    Um estmulo um tanto diferente para determinadas encenaes

    teatrais deixarem que seu enquadramento arquitetural tradicional surgiu

    gradualmente dos tericos romnticos interessados em cor local e

    verossimilhana. Como parte de seu argumento contrrio unidade

    tradicional de lugar, Victor Hugo insistiu na importncia da especificidade do

    lugar no drama histrico:

    O local exato um dos primeiros elementos da

    realidade. Os personagens que falam ou os que atuam no

    podem sozinhos gravar a impresso fidedigna dos fatos na

    alma do espectador. O lugar onde tal catstrofe acontece, a

    torna uma terrvel e inseparvel testemunha desta

    catstrofe e a ausncia deste tipo de personagem silencioso

    torna as grandes cenas da histria dramtica incompletas.

    Poderia atrever-se o poeta a assassinar Rizzo em qualqueroutro lugar que no o quarto de Mary Stuart? A punhalada

    de Henrique IV em qualquer outro lugar seno a rua de La

    Ferronier, obstruda com carroas e carruagens? Queimar

    Joana dArc em qualquer outro lugar que no na Antiga

    Praa do Mercado? (Victor Hugo, 1885).

    Para os contemporneos de Hugo, e para os realistas que o

    seguiram, esta prescrio recaia geralmente sobre cenrios deautenticidade impecvel, culminando nas florestas realistas de Herbert

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    Beerbohm-Tree e nos interiores autnticos dos restaurantes de David

    Belasco. Mas, outra possvel implicao do argumento de Hugo comeou a

    ser explorada somente no final do sculo XIX, como diretores

    experimentais, comeando a desafiar o palco com proscnio, consideraram

    primeiramente outras formas de encenar dentro das estruturas teatrais

    tradicionais e depois, possivelmente, encenando interiamente fora do

    edifcio teatral. Assim, por exemplo, os English Pastoral Players em 1884-85

    encenaram cenas deAs You Like Ite The Faithful Shepherdessede Fletcher

    nas florestas de Coombe, recebendo do peridico Era o comentrio

    entusistico: No apenas a montagem no deixou nada para a imaginao,

    mais do que apenas a imitao da realidade com preciso fotogrfica, era a

    realidade ela prpria(Era,junho, 1885).

    Em um esprito similar, o grande diretor do sculo XX, Max

    Reinhardt criou, em 1920, uma das mais famosas produes da poca, a

    verso de Hugo Von Hofmannsthal do drama medieval Everyman, encenado

    na praa diante da grande catedral de Salzburg, utilizando ruas

    circundantes e torres de igrejas como espaos auxiliares para a encenao.

    Durante os anos 1930 Reinhardt tambm apresentou a comdia de

    Shakespeare,A Midsummer Nights Dream, em bosques verdadeiros e, emuma realizao particularmente surpreendente das especulaes de Hugo,

    encenou The Merchant of Venice em uma praa veneziana, o Campo San

    Trovaso, onde existia uma pequena ponte sob a qual gndolas reais

    passavam e uma casa pitoresca onde, de acordo com a pesquisa de

    Reinhardt, tinha sido na realidade a residncia de um mercador judeu no

    sculo XVI.

    Desde a poca de Reinhardt, este tipo de utilizao teatral doscenrios que em grande medida so realmente as coisas que eles

    representam, foi particularmente desenvolvido no cinema, o qual pode

    controlar suas locaes mais efetivamente do que o teatro, mas o conceito

    de Hugo continuou a influenciar algumas maneiras das encenaes

    contemporneas. A sua idia do espao, do prdio ou da rua como um

    personagem silencioso nos grandes dramas histricos fundamentam as

    extremamente populares produes de son et lumire desenvolvidas na

    Europa nos anos 1960 e desde ento se expandiram pelo mundo. Em 1975,

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    na proposta de uma encenao sound and light para a Frente Leste do

    Capitlio dos EUA, o presidente da Sociedade Histrica do Capitlio dos

    Estados Unidos da Amrica descreveu tais espetculos como evocaes dos

    maiores eventos da histria nos lugares reais onde eles aconteceram, por

    encenarem - no em um palco - mas em uma estrutura e na imaginao do

    espectador. O presidente relatou que naquele instante havia mais de 150

    encenaes acontecendo: a de maior sucesso acontecendo na Acrpolis em

    Atenas, The Tower of David in Jerusalm, Les Invalides em Paris, The

    Pyramidsno Egito e Persepolis no Iran. Algo do esprito de Reinhardt vive

    tambm nestas organizaes, como o Vermont Ensemble Theatre, uma

    companhia de environmental theatre organizada em 1984, cuja produo

    mais conhecida foi a verso de 1986 de Our Townde Thorton Wilder comcada ato apresentado em uma igreja diferente ou, nos arredores do

    povoado verde de Wilderesque Middleubury, Vermont. Com encenaes ao

    ar livre, de vinhetas da vida do povoado apresentadas para os espectadores

    na medida em que eles passeavam guiados por luzes de lanternas de um

    prdio para o outro.

    Outra inspirao importante para as encenaes modernas fora das

    estruturas tradicionais do teatro se encontra nas teorias de Rousseau, quereconheceu a conexo entre a instituio teatro e a cultura urbana na qual

    ela se desenvolveu e, desconfiando do ltimo, tambm desconfiou do

    anterior. Ambas as instituies o teatro e sua construo arquitetnica

    foram banidas de sua republica ideal, que deveria ter apenas festivais ao ar

    livre e celebraes cvicas.(Rousseau, 1821) Alguns escritores

    subseqentes, como Romain Rolland a certos tericos socialistas,

    identificaram a condenao da sociedade urbana contempornea por

    Rousseau como uma reprovao ao capitalismo e sua luta pela diverso ao

    ar livre como um encorajamento dos prazeres do proletariado. Um povo

    livre e feliz, disse Rolland, precisa mais de festivais do que de edificaes

    teatrais(Rolland, 1913).

    A convico declarada por Wagner em meados do sculo e,

    freqentemente repetida desde ento, que, desde a Renascena as classes

    dominantes usurparam o teatro da populao menos favorecida inspirada

    em dois tipos de reao. De um lado havia o movimento que devemos

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    discutir depois, comeando com Volksbhnen e ainda observvel hoje em

    dia na nova pera do povo em construo em Paris, dedicada a criar

    estruturas teatrais separadas, mas iguais para os menos favorecidos. Por

    outro lado, os seguidores de Rousseau freqentemente tomavam a posio

    de que todas essas estruturas eram elas prprias a personificao de poder

    e privilgio e que o verdadeiro teatro do povo deveria abster-se de tal

    institucionalizao. Ambas as reaes foram operativas durante o perodo

    da Revoluo Francesa, quando o governo empreendeu ambas para

    estabelecer estruturas nacionais especficas, como os teatros populares e

    para organizar grandes festivais ao ar livre celebrando temas nacionais. As

    duas tradies do interesse de Rousseau em grandes festivais cvicos e as

    de Hugo em conotaes de uso de certos espaos histricos fundiram-senos grandes espetculos dramticos encenados na Rssia imediatamente

    aps a Revoluo. O Proletcult organizou alegorias modernas em praas

    pblicase recreaes de episdios da Revoluo, envolvendo milhares de

    participantes, nas mesmas locaes onde aqueles eventos realmente

    aconteceram. A produo mais famosa deste tipo foi a de Nikolai Evreinov,

    Storming of the Winter Palace, em Novembro de 1920. O diretor

    orgulhosamente descreveu sua produo como uma ao coerente

    desenrolada simultaneamente em trs palcos: dois eram palcos teatrais

    convencionais e o terceiro era o lugar real onde o evento histrico

    acontecera(Evreinov, 1947).

    A idia de um teatro do povo sem uma entidade arquitetural foi

    amplamente aceita pelos praticantes de teatro politicamente engajados nos

    anos 1960 e 1970. No pequeno vilarejo toscano de Monticchiello, a praa da

    cidade se tornou mais uma vez o lugar para as encenaes teatrais anuais,

    mas agora ilustrando preocupaes populares como liberdade poltica,

    poluio industrial, ou cuidado dos idosos, em roteiros criados pelos

    prprios atores por meio de suas experincias pessoais (Suro, 1987). O

    drama poltico iugoslavo The Liberation of Skopje fez turn para muitas

    cidades na Europa e na Amrica do Norte, sempre atuando em locaes

    urbanas exteriores, preferencialmente em dois ptios adjacentes. Alguns

    praticantes de teatro deste perodo, especificamente nos EUA e na Frana,

    viram a rua como smbolo de liberdade poltica e o edifcio teatral como um

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    smbolo da indstria cultural, um aspecto do capitalismo que deve ser

    destrudo, e assim criaram encenaes nas ruas da cidade para atrairem

    conotaes populistas.

    Em um caso recente admirvel, esse interesse levou a umatentativa de levar a rua para dentro da estrutura teatral - no para

    control-la, como os prncipes da Renascena tentaram, mas para

    incorporar estas conotaes sociais dentro do espao elitista assumido.

    Florian Beigel da Half Moon Company de Londres olhou para trs para o

    manifesto da companhia sobre as origens da funo da rua no teatro, antes

    do seu controle ter sido assumido no sculo XVI pela sociedade educada.

    No novo espao da companhia, terminado em 1986, a rua em frente ao

    teatro limtrofe de um ptio e este por sua vez se abre para um espao

    teatral com fachadas designadas como casas de anotaes, significando

    que suas aberturas, imitando verdadeiras janelas abertas para o ptio e

    para a rua adjacente, no atendem a verdadeiros espaos de vivncia, mas

    podem ser usadas ou por atores ou pelo pblico, dependendo da produo.

    Notas de um crtico: A conexo da rua era obrigatoriamente atrada para

    uma companhia ao vivo, orgulhosa de suas relaes comunitrias, de sua

    clientela local e que se v como uma alternativa radical e socializadora parao West End. Todavia, essa interessante tentativa de unir a semitica da rua

    com o espao do teatro experimental peculiar. Geralmente falando, os

    diretores socialmente engajados que utilizaram as ruas e outras locaes

    urbanas no tradicionais durante os ltimos vinte anos no desejaram

    repetir as encenaes em um local especfico, mas, ao contrrio,

    procuraram novos espaos para cada produo, espaos onde a semitica

    j existente poderia prover um elemento importante da encenao. A

    cidade, como nos tempos medievais, tem sido utilizada como um palco, mas

    agora com questes sociais e conscincia poltica mais evidentes. Richard

    Schechner, discutindo o uso contemporneo do espao encontrado, em

    1968, formulou a hiptese de que o prottipo americano de teatro em

    estruturas no teatrais foi a confrontao e a marcha dos direitos civis,

    que converteram as ruas em arenas pblicas, terrenos de testes, palcos

    para as encenaes de moralidade.

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    Assim como, os organizadores das peas da Paixo ou das Entradas

    Reais, os diretores de teatro de rua dos anos 1960 e 1970 freqentemente

    utilizavam elementos especificamente urbanos simbolicamente relacionados

    s suas encenaes. Assim, o Six Public Acts encenado pelo Living Theatre

    em Ann Arbor, Michigan, em Maio de 1975, era distribudo em seis locaes

    da cidade, cujas conotaes eram consideradas especialmente adequadas

    para cada pea - a adorao a um bezerro de ouro em frente a um banco,

    um ritual de sangue em frente a um memorial militar, e por a em diante.

    Similarmente em uma produo que lidava com uma figura do perodo da

    Guerra Civil Espanhola, Armando Gatti rejeitou o teatro como espao de

    encenao com base no fato de que seu protagonista nunca havia pisado

    em um teatro e que para mostr-lo l, teria que t-lo tirado de seuelemento, isolando-o de seu contexto, do ar que ele respirava, de tudo que

    fazia dele o que ele era. Os espaos mais apropriados para esse mrtir pela

    causa da liberdade, eram a fbrica e a priso, e de acordo, a encenao foi

    criada em uma fbrica abandonada na Blgica. L, Gatti fez uma descoberta

    surpreendente sobre a dinmica da criao deste tipo de drama:

    Como este tipo de assunto normalmente o lugar, a

    arquitetura que faz a escrita. O teatro no foi localizado emalgum tipo de lugar utpico, mas em um lugar histrico, um

    lugar com uma histria. L havia graxa e havia marcas de

    cidos, porque era uma fbrica qumica; voc poderia ainda

    ver traos de trabalho; ainda havia roupas de trabalho em

    volta, ainda havia marmitas na esquina, etc. Em outras

    palavras, todas essas marcas de trabalho deixadas, tinham

    sua linguagem prpria. Esses espaos que conheceram o

    trabalho de seres humanos dia aps dia tinham a sua

    prpria linguagem e, ou voc usava essa linguagem ou no

    dizia nada... por isso que eu escrevi em um artigo uma

    pea com a autoria de uma fbrica (Gatti, 1982).

    Tais ambientes experimentais como estes exemplos sugerem so

    normalmente limitados a uma produo nica, embora, seja tambm

    possvel que um ambiente seja utilizado por uma srie de produes que se

    baseia na mesma semitica ambiental e, de fato, desenvolvem novos

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    cdigos a partir da experincia acumulada pela encenao. Um exemplo

    deste tipo de trabalho pode ser visto em Vidlaks Family Cafe em Omaha,

    Nebraska, onde uma companhia organizada por Douglas Paterson tem

    apresentado peas h vrios anos em uma lanchonete em funcionamento. O

    interior da lanchonete utilizado iconicamente, com os personagens

    entrando ou saindo pelas mesmas portas que os clientes e utilizando o

    mesmo espao e objetos materiais. As peas so escritas especificamente

    com esta lanchonete em mente, incluindo as mesmas caractersticas, como

    as decoraes das paredes e alguns personagens recorrentes, que agora

    so aceitos virtualmente pelo pblico como freqentadores da lanchonete.

    Hugo sugeriu que os arredores fsicos de eventos histricos

    poderiam ser considerados como personagens silenciosos nestes eventos.

    A declarao de Gatti, com implicaes semiticas mais claras, sugere que

    no apenas os grandes eventos da histria, mas as estrias menos

    espetaculares de pessoas, como seu meio esquecido mrtir poltico, devem

    ser ditas em parte pela linguagem daquilo que o cercou fisicamente. Essa

    fbrica, assim como a lanchonete de Paterson, demonstra que quase todo

    espao identificvel dentro da cidade pode se tornar um espao para

    encenao. Por meio da encenao o espao vai inevitavelmente adquiriralgumas expectativas da semitica do prprio teatro, mas, ao menos

    igualmente importante, trar para a experincia teatral as suas prprias

    conotaes culturais e espaciais, as quais o produtor sensvel procurar

    imprimir com efeito mximo no trabalho apresentado ao pblico.

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