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i UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES FABIO BERGAMINI MARCIO BAHIA E A “ESCOLA DO JABOUR” CAMPINAS 2014

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

FABIO BERGAMINI

MARCIO BAHIA E A “ESCOLA DO JABOUR”

CAMPINAS

2014

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

FABIO BERGAMINI

Márcio Bahia e a “Escola do Jabour”

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música do

Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestre

em Música, na Área de Concentração: Práticas Interpretativas.

Orientador: Prof. Dr. Fernando Augusto de Almeida Hashimoto

Este exemplar corresponde à versão final de Dissertação defendida pelo aluno Fabio

Bergamini, e orientado pelo Prof. Dr. Fernando Augusto de Almeida Hashimoto.

_________________________________

CAMPINAS

2014

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Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas

Biblioteca do Instituto de Artes

Eliane do Nascimento Chagas Mateus - CRB 8/1350

Bergamini, Fabio, 1975-

B452m Márcio Bahia e a "Escola do Jabour" / Fabio Bergamini. – Campinas, SP :

[s.n.], 2014.

Orientador: Fernando Augusto de Almeida Hashimoto.

Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de

Artes.

1. Bahia, Marcio, 1958-. 2. Instrumentos musicais - Bateria. 3. Percussão. 4.

Performance. 5. Música popular. I. Hashimoto, Fernando Augusto de Almeida,1972-. II.

Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Marcio Bahia and the "School of Jabour"

Palavras-chave em inglês:

Bahia, Marcio, 1958-

Musical instruments - Drum set

Percussion

Performance

Popular music

Área de concentração: Práticas Interpretativas

Titulação: Mestre em Música

Banca examinadora:

Fernando Augusto de Almeida Hashimoto [Orientador]

Hermilson Garcia do Nascimento

Daniel Marcondes Gohn

Data de defesa: 29-08-2014

Programa de Pós-Graduação: Música

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Resumo

Este trabalho visa investigar a performance musical do músico Márcio Villa Bahia,

focando o período de 1981 a 1993, quando este passou a integrar o grupo do músico Hermeto

Pascoal. A partir das entrevistas, transcrições e análises de trechos dos cinco discos gravados

nesse período, procuramos identificar as principais características e peculiaridades nas

performances de Márcio Bahia dentro desse contexto. Durante esse período de doze anos,

Márcio Bahia teve uma intensa convivência com Hermeto e seu grupo – formado por Jovino

Santos, Carlos Malta, Itiberê Zwarg e Pernambuco – numa intensa “jornada” de

experimentações, ensaios, shows e estudos musicais. Essa espécie de “laboratório” musical

foi chamada por Hermeto e pelos próprios integrantes do grupo de “Escola do Jabour”.

Abstract

This work aims to investigate the musical performance of the musician Márcio Bahia

Villa, focusing on the period from 1981 to 1993 when he joined the ensemble of the musician

Hermeto Pascoal. We tried to identify the main features and peculiarities in his performances

within the group by interviews, analysis of transcripts and excerpts of the five albums

recorded by the group during this period. Márcio Bahia had an intense relationship over

twelve years with Hermeto and his group – formed by Jovino Santos, Carlos Malta, Itiberê

Zwarg and Pernambuco – in an intense "journey" of trials, rehearsals, shows and musical

studies. This kind of musical "laboratory" was called by Hermeto and by the members of the

group "School of Jabour".

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Sumário

Introdução..............................................................................................................................1

Capítulo 1. A trajetória de Márcio Bahia............................................................................8

1.1 O início e as principais referências.....................................................................................9

1.2 Os estudos: Sérgio Murilo e Edgar Nunes Rocca (Bituca)...............................................19

1.3 A escola do Jabour...........................................................................................................23

Capítulo 2. Estudo Interpretativo......................................................................................28

2.1 Aspectos específicos da bateria e da técnica de Márcio Bahia..........................................28

2.2 As interpretações do samba e do choro na bateria............................................................36

2.3 A leitura musical como diferencial na performance de Bahia e as peças escritas para a

bateria....................................................................................................................................67

2.4 As interpretações dos ritmos do Nordeste brasileiro na bateria (baião, xaxado, xote, frevo

e maracatu) ............................................................................................................................91

2.5 As performances de Márcio Bahia nos compassos ímpares...........................................109

2.6 A “Música Universal” de Hermeto Pascoal e as peculiares interpretações de Márcio

Bahia...................................................................................................................................117

Considerações finais..........................................................................................................132

Referências bibliográficas.................................................................................................136

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Para Graziela Bergamini, Luli e Léo,

com todo meu amor...

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Agradecimentos

Ao Professor Fernando Hashimoto, pela paciência e amizade.

Ao grande músico que inspirou esse trabalho: Márcio Bahia.

Aos queridos Jovino Santos e André Marques.

À Graziela Bergamini por todo o suporte e incentivo.

Aos amigos: Lucas Casacio, Budi Garcia, Daniel Gohn, Daniela Vecchia, Otavio

Galli, Rubinho Antunes, Sidney Ferraz, Fabio Augustinis, Paulinho Ronqui, Zé Alexandre,

Jayme Pladevall, Antonio Dias (Nanah), Ricardo Matsuda, Aquiles Faneco, Gustavo

Scaranello, Juan Megna, Guilherme Marques, Andrés Zuñiga, Raphael Gonçalves, Leandro

Barsalini, Martin Lazarov, Emilio Martins, Ricardo Zhoyo, Martina Marana, Helio Cunha,

Daniel Pezim, Jorge Schoroeder, Tatiana Ubinha, Adriana Mendes, Ivan Corilow, Julio

Caliman, Flávio Corilow, Vagner Concon, Thito Camargo, Claudio Oliveira, Ari Colares,

Elaine Menezes e a todos que contribuíram para esse projeto.

À minha família querida que tanto me apoia.

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Lista de Figuras e Tabelas

Figura 1: Notação da bateria utilizada na dissertação...............................................................7

Figura 2: Transcrição da linha de bateria da música Far More Blues executada por Joe

Morello..................................................................................................................................12

Figura 3: Trecho dos oito primeiros compassos da bateria da música Sorrindo (Hermeto

Pascoal e Grupo de 1982)......................................................................................................39

Figura 4: Dois primeiros compassos da bateria da música Sorrindo......................................40

Figura 5: Levada de tamborim “Teleco-teco” retirada do Livro Didático do Projeto Guri, pg

44, escrito por Ari Colares.....................................................................................................40

Figura 6: Levada básica de pandeiro Livro Didático Projeto Guri........................................40

Figura 7: Levada de samba retirada da Apostila de Ritmos Brasileiros escrita por Márcio

Bahia.....................................................................................................................................41

Figura 8: Idem.......................................................................................................................41

Figura 9: Trecho dos oito primeiros compassos da bateria com a melodia da música

Sorrindo.................................................................................................................................43

Figura 10: Exemplo de Samba Partido Alto retirado da “Apostila de Ritmos Brasileiros de

2003” escrita por Márcio Bahia.............................................................................................44

Figura 11: Trecho final da bateria na música Sorrindo........................................................45

Figura 12: Trecho dos oito primeiros compassos da bateria da música Salve,

Copinha.................................................................................................................................49

Figura 13: Exemplo de Samba retirado da “Apostila de Ritmos Brasileiros” de Márcio

Bahia.....................................................................................................................................49

Figura 14: Trecho dos quatro primeiros compassos da melodia e bateria da música Salve

Copinha.................................................................................................................................50

Figura 15: Levada de bateria da música Intocável................................................................50

Figura 16: Primeira frase da melodia e a bateria da música Intocável...................................51

Figura 17: Padrão básico de bateria usado na música Canção da Tarde................................51

Figura 18: Representação do ritmo do violão de João Gilberto na música Chega de Saudade,

de 1959..................................................................................................................................51

Figura 19: Levada básica da música Surpresa......................................................................51

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Figura 20: Transcrição dos primeiros seis compassos da música Aquela Coisa ...................56

Figura 21: Transcrição dos compassos de 7 à 12 da música Aquela Coisa.............................56

Figura 22: Transcrição do compasso 13 ao 18 da música Aquela Coisa................................57

Figura 23: Transcrição dos quatro primeiros compassos da música Rebuliço......................59

Figura 24: Trecho da bateria da segunda repetição da parte A (A2) da música

Rebuliço.................................................................................................................................60

Figura 25: Padrões de maxixe retirados da “Apostila de Ritmos Brasileiros” de Márcio

Bahia.....................................................................................................................................60

Figura 26: Transcrição da parte B da música Rebuliço.........................................................61

Figura 27: Trecho dos doze primeiros compassos da parte em samba da música Peneirando

Água......................................................................................................................................62

Figura 28: Legenda (bula) do surdo......................................................................................62

Figura 29: Levada de surdo de samba retirada do livro Batuque é um Privilégio de Oscar

Bolão de 2003.......................................................................................................................62

Figura 30: Transcrição dos 6 primeiros compassos da música Ginga Carioca (bateria, surdo,

baixo, piano e melodia).........................................................................................................63

Figura 31: Transcrição dos compassos de 7 a 12 da música Ginga Carioca (bateria, surdo,

baixo, piano e melodia)..........................................................................................................64

Figura 32: Trecho final em 7/8 da música Ginga Carioca......................................................65

Figura 33: Primeiro ostinato da bateria da música Magimani Sagei.....................................69

Figura 34: Segundo ostinato de bateria da música Magimani Sagei.....................................70

Figura 35: Linha de contrabaixo da música Magimani Sagei...............................................70

Figura 36: Terceiro ostinato da bateria da música Magimani Sagei.....................................70

Figura 37: Frases de flauta no primeira exposição do tema da música Magimani Sagei........71

Figura 38: Quarto ostinato de bateria da música Magimani Sagei.........................................71

Figura 39: Quinto ostinato de bateria da música Magimani Sagei..........................................71

Figura 40: Sexto ostinato de bateria da música Magimani Sagei............................................72

Figura 41: Sétimo ostinato de bateria da música Magimani Sagei.........................................72

Figura 42: Melodia da flauta construída sobre o sétimo ostinato da música Magimani

Sagei......................................................................................................................................73

Figura 43: Partitura manuscrita feita por Márcio Bahia da música Magimani Sagei.............73

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Figura 44: Trecho da transcrição (feita por mim) dos primeiros quatro compassos da música

Mestre Radamés....................................................................................................................77

Figura 45: Primeira página do manuscrito de Márcio Bahia da música Mestre Radamés.......78

Figura 46: Trecho da grade feita por Jovino Santos da música Mestre Radamés....................79

Figura 47: Trecho da grade feita por Jovino Santos da música Série de Arco (compasso 33

ao 37).....................................................................................................................................84

Figura 48: Trecho da grade feita por Jovino Santos da música Série de Arco (compasso do

67 e 68)..................................................................................................................................86

Figura 49: Trecho da grade feita por Jovino Santos da música Série de Arco (compasso do

69, 70 e 71)............................................................................................................................87

Figura 50: Trecho da grade feita por Jovino Santos da música Série de Arco (compasso do

74 e 75)..................................................................................................................................87

Figura 51: Trecho da grade feita por Jovino Santos da música Série de Arco (compasso do

81 ao 83)................................................................................................................................88

Figura 52: Alfaia de maracatu, baque de Malê, retirado do livro O Zabumba Moderno de

Éder Rocha............................................................................................................................88

Figuras 53 e 54: Grooves lineares retirados do livro de Gary Chafee Linear Time Playing...89

Figura 55: Groove linear feito por Márcio Bahia na música Série de Arco.........................90

Figura 56: Introdução da música Lá na Casa da Madame eu vi, bateria e contrabaixo........91

Figura 57: Trecho dos oito primeiros compassos da parte A da música Lá na casa da madame

eu vi.......................................................................................................................................92

Figura 58: Levada básica de Baião retirada da “Apostila de Ritmos Brasileiros

2003”.....................................................................................................................................93

Figura 59: Legenda do Zabumba..........................................................................................93

Figura 60: Quatro levadas de zabumba retiradas do livro Zabumba Moderno de Éder Rocha

(página 28, 29).......................................................................................................................93

Figura 61: transcrição dos quatro primeiros compassos da parte B da música Lá na Casa da

Madame eu vi.........................................................................................................................94

Figura 62: Levada da parte B2 da música Lá na casa da Madame eu vi.................................94

Figura 63: Introdução da música Papagaio Alegre, baixo e bateria, (compassos de 1 a

4)...........................................................................................................................................95

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Figura 64: Introdução da música Papagaio Alegre, bateria e baixo, (compassos do 5 ao

8)...........................................................................................................................................95

Figura 65: Levada de bateria da parte A da música Papagaio Alegre.....................................96

Figura 66: Melodia da parte A da música Papagaio Alegre..................................................96

Figura 67: levada da parte A da música Spock na escada.......................................................97

Figura 68: Levada da parte B da música Spock na escada......................................................97

Figura 69: levada básica da parte A da música De sábado para Dominguinhos...................98

Figura 70: Levada básica da parte B da música De sábado para Dominguinhos..................99

Figura 71: Quatro levadas de xaxado do livro Zabumba Moderno de Éder Rocha...............101

Figura 72: Trecho da Introdução da música Sempre Feliz do álbum Brasil Universo de

1986.....................................................................................................................................102

Figura 73: Transcrição dos oito primeiros compassos da parte A da música Sempre

Feliz.....................................................................................................................................102

Figura 74: Triângulo, agogô e bateria da música O tocador quer beber..............................103

Figura 75: Transcrição dos quatro primeiros compassos da parte A da música Novena,

contendo sobreposição de duas linhas de prato à dois sobre a linha de bateria...................104

Figura 76: Levada de Xote na zabumba retirada do livro Zabumba Moderno de Éder Rocha

2005.....................................................................................................................................105

Figura 77: Levada de xote de Márcio Bahia na música Candango.....................................105

Figura 78: Transcrição dos dez primeiros compassos da música Candango, contendo a

melodia, o triângulo e a bateria...........................................................................................105

Figura 79: Legenda do pandeiro e do surdo........................................................................107

Figura 80: Levada básica de frevo da música Rancho das Sogras contendo pandeiro, surdo e

bateria..................................................................................................................................108

Figura 81: Levada de frevo no prato....................................................................................108

Figura 82: Levada básica da música Quiabo.......................................................................109

Figura 83: Padrões de ritmos brasileiros em outras métricas..............................................111

Figura 84: Levada da música De bandeja e Tudo em 7/8...................................................112

Figura 85: Transcrição dos dez primeiros compassos da música De bandeja e Tudo...........113

Figura 86: Transcrição do arpejo de piano, a levada básica da bateria e o primeiro motivo

melódico da música Zurich..................................................................................................115

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Figura 87: Levada de zabumba da música O Galo do Airam...............................................116

Figura 88: transcrição dos quatro primeiros compassos da música Ilha das Gaivotas por

Lucas Casacio......................................................................................................................118

Figura 89: Melodia, bateria e harmonia da primeira parte da música A Taça.......................121

Figura 90: Levada de Jazz waltz retirada do livro The Art of Bop Drumming de John Riley

(1994)..................................................................................................................................122

Figura 91: Transcrição da parte B da música A Taça, contendo a melodia, a bateria e os

acordes.................................................................................................................................123

Figura 92: Transcrição da segunda exposição do tema A da música A Taça, com

reagrupamento rítmico........................................................................................................123

Figura 93: Levada de baião no trecho final da música A Taça...........................................124

Figura 94: Dois primeiros compassos da Introdução da música Rainha da Pedra

Azul......................................................................................................................................125

Figura 95: Transcrição dos quatro primeiros compassos da música Canção no Paiol em

Curitiba...............................................................................................................................126

Figura 96: Transcrição dos oito primeiros compassos da música Cores, do álbum Hermeto

Pascoal e Grupo, de 1982....................................................................................................127

Figura 97: Levada de bateria da música Cores contendo sobreposição de camadas, polirritmia

e polimetria..........................................................................................................................127

Figura 98: Ostinato de bateria da música Cores..................................................................128

Figura 99: Introdução da música Fazenda Nova. Sobreposição da levada em dois sobre o

compasso 7/8.......................................................................................................................129

Figura 100: Levada da bateria na música Arapuá................................................................130

Tabelas

Tabela 1: Tabela com os cinco discos de Hermeto Pascoal, as sessenta e sete músicas e o

número referente ao grupo de análise em que cada música foi abordada............................4

Tabela 2: Tabela com a estrutura rítmica da primeira parte da música Ginga Carioca.....63

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Introdução

Márcio Bahia tem uma trajetória muito particular na história da bateria brasileira.

Podemos basear essa afirmação em três fatores que têm impacto direto nas peculiaridades de

sua performance: 1. O início de sua carreira como baterista de rock, sobretudo o rock

progressivo; 2. A formação musical dentro do campo da percussão erudita; e 3. A vivência

de mais de doze anos de trabalho ao lado de Hermeto Pascoal e seu grupo, experienciando

uma rotina praticamente diária de ensaios, estudos, experimentações e concertos. É sobre

esse período – o qual chamamos aqui de “Escola do Jabour” – que foi cerceado o foco desta

pesquisa.

É importante lembrar que esta dissertação faz parte das pesquisas realizadas pelo

grupo de estudos da Unicamp denominado “Percussão Brasileira: histórico, estudo

interpretativo e seu repertório”, coordenado pelo professor Fernando Hashimoto, e está em

diálogo direto com outros trabalhos do grupo, como a pesquisa de Guilherme Marques

(2013), de Lucas Casacio (2012) e de Leandro Barsalini (2009).

Cada um desses trabalhos aborda a trajetória de alguns dos principais bateristas

brasileiros, dentre eles Airto Moreira, Helcio Milito, Luciano Perrone e Edison Machado. Se

fizermos uma comparação, em linhas gerais, entre o histórico de Márcio Bahia e a trajetória

musical dos bateristas citados acima, podemos dizer que Márcio tem um caminho ímpar na

história da bateria brasileira. O histórico de vida de Bahia, sua formação musical e sua

vivência no grupo de Hermeto Pascoal, contribuíram para uma abordagem muito peculiar

sobre como tocar o instrumento, com destaque para: 1) sua técnica e independência de

membros muito apuradas (Four Way Coordination); 2) sua preocupação por gerar uma

sonoridade limpa e definida do instrumento; 3) seu profundo conhecimento e fluência nos

ritmos brasileiros; e 4) uma leitura musical muito desenvolvida.

Como dito anteriormente, o objeto de estudo desse trabalho é a performance musical

do baterista Márcio Bahia, dentro do grupo de Hermeto Pascoal, no período que vai desde

sua entrada em 1981 até o ano de 1993, quando o grupo mudou sua configuração e não mais

utilizou uma sistemática de práticas e ensaios que caracterizaram o período anterior. Essa

mudança permitiu, inclusive, que Márcio Bahia começasse a participar de outros projetos, a

tocar com outros artistas e a desenvolver seu próprio trabalho. Essa convivência diária entre

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os membros do grupo que tinham como meta o aprimoramento musical, tanto individual

quanto coletivo, ocorreu na casa de Hermeto Pascoal, que ficava no bairro do Jabour, zona

norte do Rio de Janeiro. É por essa razão que os músicos do grupo e o próprio Hermeto

Pascoal descrevem ou definem esse período como sendo literalmente uma escola: a “Escola

do Jabour”.

Foram cinco os discos gravados durante esse período. São eles: 1. Hermeto Pascoal

& Grupo. Som da Gente, SDG 010/92, 1982; 2. Lagoa da Canoa - Município de Arapiraca.

Som da Gente, SDG 011/92, 1984; 3. Brasil Universo. Som da Gente, SDG 012/93, 1985; 4.

Só não toca quem não quer. Som da Gente, SDG 001/87, 1987; 5. Festa dos Deuses.

Polygram, PLGBR 510 407-2, 1992.

Esses cinco discos, juntamente com as entrevistas, são as principais fontes de pesquisa

para esse trabalho. A pesquisa estará dividida em três partes:

1. O levantamento biográfico de Márcio Bahia, investigando sua formação musical, suas

principais referências, sua experiência profissional antes de entrar para o grupo de

Hermeto e seu desenvolvimento musical dentro desse. A principal fonte de pesquisa

para essa primeira parte foram as entrevistas cedidas por Márcio Bahia, tanto a feita

por mim (juntamente com Lucas Casacio em Belo Horizonte em agosto de 2013),

quanto algumas encontradas na internet e em trabalhos acadêmicos. Dividimos esse

primeiro capítulo em três partes: 1.1. O início e as principais referências; 1.2. Os

estudos: Sérgio Murilo e Bituca; 1.3. A “Escola do Jabour”.

2. O Estudo Interpretativo baseado nas transcrições e análises de trechos musicais

retirados dos cinco primeiros discos gravados por Márcio junto ao grupo. Como

introdução a essa segunda parte, fizemos um levantamento de aspectos característicos

da bateria de Márcio Bahia, como a afinação, peles, medida dos tambores e alguns

aspectos técnicos que influenciam diretamente em suas performances. O recurso

metodológico utilizado para essa parte da pesquisa foi a escuta e transcrição de

trechos relevantes para a identificação das principais características das performances

de Bahia, cujos elementos peculiares foram confrontados com as informações

coletadas nas entrevistas. Partindo desse ponto, deu-se a busca por um respaldo

teórico que desse suporte para o aprofundamento das discussões levantadas em cada

tópico. Dentre os principais materiais utilizados como referencial teórico estão: livros

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e trabalhos que tratam de transcrição e linguagem específica de bateria e percussão,

livros de teoria musical que nos serviram para as definições de conceitos e, ainda,

dissertações e teses que poderiam dialogar com esse trabalho. Os principais livros de

referência serão apontados mais abaixo, no descritivo dos procedimentos e critérios

utilizados nas análises.

3. As considerações finais, ressaltando os pontos principais levantados pela pesquisa,

tanto os que se referem à trajetória de Márcio Bahia como músico, quanto às

características peculiares da sua performance.

O recorte e a organização das transcrições e análises foram feitos a partir da escuta

minuciosa dos cinco discos gravados nesse período. A partir dessa escuta, organizamos a

análise seguindo cinco tipos recorrentes de interpretação: 1. As interpretações do samba e do

choro na bateria; 2. As interpretações das peças escritas para a bateria (considerando a leitura

e a escrita musical como diferencial na performance de Bahia); 3. As interpretações dos

ritmos do Nordeste brasileiro na bateria (baião, xaxado, xote, frevo e maracatu); 4. As

performances de Márcio Bahia nos compassos ímpares; 5. A “Música Universal” de Hermeto

Pascoal e as peculiares interpretações de Márcio Bahia.

Foram ouvidas todas as 67 músicas contidas nos cinco discos gravados durante o

período da “Escola do Jabour”. Ficaram de fora das análises as músicas que não incluíam a

bateria (25 músicas), restando-nos 42 músicas. Vejamos na tabela abaixo os cinco discos, as

67 músicas gravadas pelo grupo nesse período e o número do grupo de análise em que cada

música foi inserida, seguindo os tipos de interpretação citados acima:

TABELA de DISCOS DO HERMETO PASCOAL (De 1981 a 1993)

Hermeto Pascoal e

Grupo (1982)

Lagoa da Canoa- Município de Arapiraca (1984)

Brasil Universo (1985)

Só não toca quem não quer (1987)

Festa dos Deuses

(1992)

Sorrindo 1

Ilza na

Feijoada

3

Mentalizand

o a Cruz

Sem

bateri

a

De sábado

para

Dominguinho

s 3

O Galo do

Airan 4

*Magima

ni Sagei 2

Santa

Catarina

Sem

bateria Surpresa 1 Meu Barco

Sem

bateri

a

A Rainha

da Pedra

Azul 5

Lá na

casa da 3 Tiruliruli

Sem

bateria Peixinho 5 Viagem 5

Viajando

pelo Brasil 3

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4

madame

eu vi

De

bandeja e

tudo 4

Papagaio

Alegre 3

Era pra ser

e não foi 5 Zurich 4

O Farol

que nos

guia

Sem

bateri

a

Série de

Arco 2

Vai mais,

garotinho

Sem

bateria Crianças

Sem

bateri

a

O Correio

Sem

bateri

a

Pensament

o Positivo

Sem

bateri

a

Novena 3

Monte

Santo

Sem

bateria

O tocador

quer beber 3 Intocável 1

Peneirand

o a água 1 e 5

Moreneid

e (Heraldo

do Monte) 5

Spock na

Escada 3 Arapuá 5 Flávia

Sem

bateri

a

Canção no

Paiol em

Curitiba 5

Cores 5

* Mestre

Radamés

2

Salve,

Copinha! 1 Candango 3

Aula de

Natação

Sem

bateri

a

A Taça 5

*Aquela

Coisa

1

Nem dá pra

dizer

Sem

bateri

a

Suíte mundo

grande 3 ou 5

Três

Coisas

Sem

bateri

a

Briguinha

de músicos

malucos

no coreto 5

Frevo em

Maceió

3

Sempre feliz

3

Parnapuã

Sem

bateri

a

Irmãos

latinos 3 e 5

Desencontr

o certo

Sem

bateria

Calma de

repente

Sem

bateri

a

Canção da

Tarde 1

Depois de

baile

1 e 5

Mente Clara

Sem

bateri

a

Quando as

aves se

encontram

Sem

bateri

a

Ilha das

Gaivotas 4

Round

Midnight

Sem

bateri

a

Rebuliço 1

Fazenda

Nova

4 e 5

Convento

Sem

bateri

a

Ginga

Carioca 1

Quiabo 3

Chapéu de

Baeta

Sem

bateri

a

Menina Ilza

Sem

bateri

a

Garrote

Sem

bateri

a

Rancho das

Sogras 3

Tabela 1. Tabela com os cinco discos de Hermeto Pascoal durante o período analisado, contendo as 67 e o

número indicativo referente ao grupo de análise em que cada música foi abordada.

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Durante o levantamento biográfico de Márcio Bahia ficou evidente a escassez de

dados disponíveis para o desenvolvimento dessa pesquisa. Deste modo, optamos pela

realização de entrevistas para a coleta de dados e informações sobre a trajetória do músico.

A principal delas foi a entrevista não diretiva1 ou semiestruturada, com o próprio Márcio,

realizada em Belo Horizonte, em agosto de 2013, onde colhemos aproximadamente cinco

horas de gravação, incluindo trechos de suas performances na bateria, assim como o relato

propriamente dito. Foram também realizadas outras entrevistas complementares,

semiestruturadas, com Jovino Santos, em janeiro de 2014, e com André Marques, em abril

de 2014. Essas entrevistas serviram para esclarecer ou confirmar determinados dados,

informações, conceitos, opiniões ou fatos relatados anteriormente por Márcio Bahia.

Portanto, as fontes primárias nesse trabalho são, em grande parte, constituídas principalmente

pela transmissão oral de conhecimento.

Vale ressaltar que as pesquisas acadêmicas no campo da música popular no Brasil

ainda são relativamente incipientes, principalmente em relação à bateria, fato que justifica a

busca de fontes primárias nas entrevistas. Como cita Guilherme Marques em sua dissertação

de mestrado:

O uso da história oral com fonte primária de dados para a pesquisa é ainda uma

contingência no caso de muitas das pesquisas desenvolvidas no campo da música

popular. A carência de dados e informações que ainda estão armazenadas com os

protagonistas da história (fontes primárias) é um reflexo direto de quão jovem é a

pesquisa em música no Brasil. (MARQUES, 2013, p.24).

Para citar alguns dos referenciais teóricos utilizados nessa pesquisa, podemos

começar com o livro do inglês Paul Thompson, A Voz do Passado (1978), que utilizamos

como base para o desenvolvimento do primeiro capítulo. Para as análises do segundo

capítulo, utilizamos como principal referencial metodológico os livros do baterista norte-

americano John Riley, sobretudo o Beyond Bop Drumming, no qual o autor transcreve trechos

1 Segundo Antonio Joaquim Severino, no livro Metodologia do Trabalho Científico, entrevistas não diretivas

são aquelas em que o entrevistador colhe as informações do sujeito a partir de seu discurso livre, só intervindo

discretamente para, eventualmente, estimular o depoente a falar de determinado assunto.

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de gravações feitas por grandes nomes do jazz. Vejamos o trecho em que Riley descreve a

forma como lida com as transcrições:

(…) transcrições são apenas o que um instrumentista em particular fez em relação

ao que os outros músicos fizeram numa dada gravação. Para mim, uma das razões

pelas quais os grandes instrumentistas são o que são, é porque sua performance está

em constante evolução e sempre sendo refinada. A transcrição não pode definir o

estilo de alguém; é apenas um momento de música preservada em papel para que

possamos refletir sobre ela em nosso próprio ritmo2. (RILEY, 1997, p.12)

Discutiremos, ao longo dessa dissertação, alguns aspectos relevantes relacionados ao

universo temático da bateria, como técnicas, métodos, concepções, conceitos e abordagens

do instrumento. Para isso, recorremos a diversos livros de referência dentro do campo

específico da bateria como o The New Breed, de Gary Chester, e o Rhythmic Illusions, de

Gavin Harrison.

Ao tratar da “interação” entre os instrumentistas em performance, utilizamos como

principais referências os livros Thinking in Jazz (1994), do pesquisador norte- americano

Paul F. Berliner, o livro Saying Something (1996) de Ingrid Monson e ainda Making Music

Together de Alfred Schutz (1964). Apesar de não serem citados explicitamente ao longo do

texto, esses livros serviram de base para as questões que foram levantadas acerca desse

assunto.

Como ideia central para a escrita do trabalho, baseamo-nos sempre na hipótese de que

Márcio Bahia – com sua formação em música erudita, sua leitura apurada e sua acuidade

sonora e técnica, juntamente com sua vivência dentro do grupo de Hermeto ao longo desses

doze anos – desenvolveu uma performance diferenciada e muito peculiar, possibilitando

2 “Transcriptions are only of what a particular player did in relation to what other players were doing on a given

take. To me, one of the reasons that the "legends" are legendary is that their great playing is continually evolving

and being refined. A transcription can´t define someone´s style; its merely a moment of music preserved on

paper for us to ponder at our own pace. (RILEY, 1997) – tradução realizada pelo autor. Todas traduções contidas

nessa dissertação foram realizadas pelo autor, excetuando os casos indicados particularmente.

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novos approachs e novas formas de interpretação no instrumento. Iremos então, ao longo do

texto, visualizar os indícios que comprovam essa hipótese.

Para as análises específicas das performances de Márcio Bahia, definimos então

quatro critérios básicos que norteiam todo o segundo capítulo da pesquisa:

1. Levantamento dos aspectos intrínsecos do baterista em relação ao próprio

instrumento: técnicas, independência de membros, distribuição das vozes pela

bateria, as linhas3 rítmicas da bateria e suas relações com os ritmos brasileiros vindos

da percussão popular, a sonoridade, o equipamento, enfim, tudo o que for relacionado

com os aspectos específicos do baterista em relação ao próprio instrumento.

2. Análise da interação do baterista com os outros instrumentistas: como as

performances da bateria interagem com a linha melódica, ou com a linha de baixo,

com a cadência harmônica ou sobrepõem-se contrapontisticamente, fazendo linhas

rítmico-melódicas complementares aos outros instrumentos.

3. Análise dos aspectos formais da música: como a bateria se comporta nas várias partes

da música e se há um “padrão” encontrado ao longo das análises das performances

em relação à forma da música.

4. Idiossincrasias da performance de Márcio Bahia, evidenciando os traços

característicos e peculiares de sua performance em cada situação levantada.

A notação utilizada em todas as transcrições de bateria é padronizada ao longo de

toda a dissertação, seguindo a legenda abaixo (figura 1). As partituras e transcrições

realizadas por Márcio Bahia ou Jovino Santos seguem outro padrão que será especificado na

ocasião em que aparecerem:

Figura 1: Notação da bateria utilizada na dissertação

3 Optamos por usar o termo linha de bateria ao invés de batida, ou ainda os termos em inglês groove ou pattern.

Quando aparece algum caso em que o ritmo é constante, ou característico à algum gênero específico,

utilizaremos o termo levada.

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Capítulo 1. A trajetória de Márcio Bahia

1.1) O início e as principais referências musicais

Márcio Villa Bahia nasceu em Niterói, em 18 de dezembro de 1958. Seus primeiros

contatos com a música vieram através de sua família. Márcio cresceu em um ambiente

musical e desde cedo teve um grande estímulo para que se desenvolvesse musicalmente.

Vejamos um pequeno trecho de uma entrevista de 2002, encontrada na Enciclopédia Virtual,

que confirma essa informação: “Meu bisavô era mestre de banda em Piraí (RJ). Alguns tios

meus tocavam. Minha mãe toca violão e teclado. Ou seja, a música sempre esteve presente

na vida da família4. (BAHIA, 2002).

Desde o início de sua trajetória, a influência da família e sua vocação por conhecer e

aprender sempre estiveram presentes. Podemos antecipar que, ao longo de seu discurso, o

que mais nos chama atenção em Márcio Bahia é o encantamento, a profundidade e o seu

envolvimento quando o assunto é música, principalmente quando entramos nos aspectos

específicos de seu instrumento: a bateria. Por essa razão inserimos trechos específicos das

entrevistas realizadas com Bahia, para ilustrar o modo como ele fala do instrumento; o zelo

e o cuidado que ele tem com o mesmo.As falas aqui reproduzidas revelam seu grande

comprometimento com o assunto, que vem desde o começo de sua carreira. Podemos

começar com uma passagem, na qual Márcio nos conta seus primeiros contatos com a bateria:

O encantamento pela bateria começou quando eu fui na loja com meu pai e meu

irmão, em 1971. Bom, aí chegou na loja e tinha uma “Pinguim” montada na loja,

uma assim, madre pérola. Uma “Pinguim” tipo white pearl toda linda e eu fiquei

assim, boquiaberto, aí já comecei a tocar com as mãos mesmo, brincando nos

tambores. O vendedor malandro, já disse para o meu pai: - “O garoto leva jeito

hein”! É claro que era só para vender o instrumento. Mas eu estava realmente

encantado com o instrumento: aquela bateria branca, madre pérola, assim na minha

frente (BAHIA, 2013).

4 Depoimento encontrado na Enciclopédia Virtual “Músicos do Brasil” (2002), acessado em 20/05/2014.

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Foi em 1973 que ele ganhou sua primeira bateria, dada pelo seu pai, comprada de um

primo que morava na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Podemos notar no trecho abaixo,

primeiramente, o entusiasmo e a alegria ao ganhar seu primeiro instrumento, e em segundo

lugar, sua intensa ligação com o “equipamento”, ou seja, Márcio demonstra um grande

conhecimento sobre a bateria em seu aspecto físico e material (marcas, madeiras, peles,

pedal, ferragens, etc). Esse entusiasmo e a ligação com o “equipamento” influenciam

diretamente em sua performance até hoje, o primeiro, pela vivacidade e energia com que

toca, e a segunda pelo foco e pela importância que Márcio dá a cada kit de instrumento que

usa, afetando diretamente a sonoridade e os timbres escolhidos pelo músico:

Daí nós fomos em Campo Grande, zona oeste do Rio, buscar essa bateria. E eu

feliz da vida, atravessando de Rio pra Niterói de balsa. Cheguei em casa de noite,

montei a bateria e queria tocar, mas não podia. Era tarde. No dia seguinte de manhã

cedo, eu acordei a família. Sentei na bateria e comecei a tocar e fiquei muito feliz.

Meu irmão sentou ao meu lado e me passou um negócio(...). Depois eu fui saber:

sabe qual era aquela batera? Era um Slingerland Radio King da década de 40, um

tesouro (BAHIA, 2013).

Márcio Bahia cita seu irmão, Mairton Bahia, como sua primeira grande influência

musical. Seu irmão lhe abriu caminhos, primeiro por ser mais velho e já tocar um instrumento

(violão e guitarra) e segundo, por já fazer parte de um ambiente musical em Niterói, o que

possibilitou que Márcio entrasse em contato com diversos grupos, estilos, instrumentistas e

artistas. Segundo Márcio, foi Mairton quem lhe ensinou o primeiro ritmo na bateria: “Eu

sempre digo nas entrevistas, que a primeira batida que eu aprendi quem me passou foi

Mairton” (BAHIA, 2013).

A partir desse “ponta pé” inicial dado pelo seu irmão e seu pai, Márcio começou a se

desenvolver sozinho, como autodidata. Começou ouvindo rock e só mais tarde foi entrar em

contato com os ritmos brasileiros e com o jazz:

Fui aprendendo sozinho, basicamente rock and roll que é o que a galera, quando

começa, toca mais. Fui ouvindo e tocando, ouvindo e tocando... Na época eu ouvia

Led Zeppelin, Black Sabbath, uma banda americana chamada Cactus que gosto

muito, Mountain, uma banda muito legal que o batera me influenciou muito.

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Hendrix lógico: o Mitch Mitchell tocando aquele rock com cara de jazz que era

uma beleza. Santana, gostava muito de Michael Shrieve. Foi o primeiro cara que

eu vi pegando a baqueta traditional. Eu falei “óóóó”, o cara toca uma pegada

traditional. Foi legal pra caramba porque eu aprendi o traditional, eu tocava com

o matched grip, quer dizer, eu toco assim até hoje (BAHIA, 2013).

É importante ressaltarmos que essa relação de Bahia com o rock se mantém viva até

hoje, principalmente em relação ao chamado rock progressivo5, pelo qual ele se declara “um

apaixonado” e um grande apreciador até os dias de hoje. Márcio expõe alguns dos motivos

pelos quais tem grande apreço pelo estilo musical: “Adoro Premiata, Yes, Gentle Giant, King

Crimson, pois os caras eram multi-instrumentistas e tocavam muito bem, uma música super

sofisticada” (BAHIA, 2013). Márcio Bahia cita, como sua principal referência dentro do rock

progressivo, o baterista Bill Bruford.

Mais uma vez vale ressaltar aqui a importância das entrevistas para essa pesquisa.

Talvez, apenas pelas transcrições das músicas, não chegaríamos a perceber a grande

influência que o rock progressivo teve nas performances de Márcio. Citando novamente

Thompson, ele conta em seu livro que, quando o autor Alan Nevins foi escrever a biografia

de Henry Ford, os principais esclarecimentos para sua pesquisa foram feitos durante a

entrevista que Nevins fez a Ford. Isso demonstra “[...]como a evidência oral pode expor, com

muito mais clareza que os documentos, os métodos de trabalho de um grande inovador como

Ford”. (THOMPSON, 1992, p.107).É através do discurso de Márcio Bahia que podemos

evidenciar seus métodos de trabalho, suas principais referências e sua forma de lidar com o

instrumento. No caso do rock progressivo, podemos destacar um trecho da entrevista em que

5 Segundo o Site: http://www.rockprogressivo.com.br/canais/historico.htm, baseado nas características

apontadas pelo jornalista Leonardo Nahoum, em sua Enciclopédia de rock progressivo, a definição de rock

progressivo é: "Música de longa duração, desde os seus quatro minutos até os discos de uma única faixa;

utilização e apropriação de elementos de vários estilos não comumente associados ao rock: a música folclórica

(do país da banda em questão), o jazz, a música erudita (incluindo aí o clássico, o barroco, o medieval...), o

blues, etc; uma maior complexidade das composições, tanto em termos de melodia quanto de arranjos e ritmo,

em comparação ao que normalmente se entende por rock. Uma busca pela experimentação e por sons exóticos,

daí a importância dos teclados e sintetizadores para o estilo; uma variedade de ritmos e tonalidades dentro de

uma mesma composição, gerando a tal impressão de música "difícil e/ou pretensiosa" e o rompimento com o

caráter dançante do rock."

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o músico declara a influência direta que esses grupos tiveram em suas performances dentro

do grupo de Hermeto Pascoal, principalmente em relação aos primeiros contatos com os

compassos ímpares e a influência do baterista Bill Bruford:

Quando entrei no grupo do Hermeto eu já tocava os compassos ímpares pois eu

ouvia muito o King Crimson e o Genesis. Os “Progs” (rock progressivo) tem muito

7/4, 5/4 então eu já tinha uma ideia disso pelo rock progressivo. Gentle Giant era

demais também e o King Crimson para mim era o principal. As superposições

rítmicas que o Bruford fazia no King Crimson, era um quatro que deslocava e

parecia que estava em outro compasso. Então nesse ponto o “Prog.” foi

maravilhoso. Ainda tem o lance que você tem que escutar a melodia que os caras

estão fazendo para perceber o que a bateria faz, é demais”! (BAHIA, 2013).

Márcio então atuou por muitos anos como baterista de rock em vários grupos de

Niterói: “Meu primeiro conjunto foi na escola, com dois vocais, guitarra e bateria, mas depois

fui fazendo vários conjuntos lá na minha cidade” (BAHIA, 2013). O músico destaca também

alguns grupos de rock do Brasil que também tiveram papel significativo em sua formação

musical. Podemos citar aqui os dois principais: O Som Nosso de Cada Dia e os Mutantes:

Um grupo que sou fã até hoje é um grupo chamado O Som Nosso de Cada Dia,

com o finado Pedrinho na batera. É um grupo “prog” que eu sou doido, fanático.

Snags é uma obra prima, é um disco que eu me reciclo ouvindo ele. Era o Manito,

dos Incríveis, de teclado, sax e violino, Pedrão no baixo e Pedrinho de bateria e

vocal. Vocais impecáveis, temas lindos, criatividade. Outra banda que é base na

minha formação é o Mutantes, ouvi muito. Meu irmão é um Mutante maníaco. Eu

toquei com o Arnaldo Batista uma época. Mas o Som Nosso de Cada Dia para mim

foi o melhor “prog” brasileiro que apareceu (BAHIA, 2013).

Portanto, o início de sua atuação como baterista esteve fortemente ligado ao rock. O

contato com o jazz e com a música brasileira, deu-se aproximadamente um ano depois, em

1974, quando Bahia foi estudar com seu primeiro professor, o carioca Sérgio Murilo. Em

suas próprias palavras: “[...] foi aí que conheci o Milton Banana, Hélcio Milito, Edison

Machado, Rubens Barsotti com o Zimbo e também os grupos de jazz” (BAHIA, 2013). Sem

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deixar de lado sua relação com o rock, Márcio então iniciou seus estudos no campo do jazz

e dos ritmos brasileiros.

Na entrevista realizada em agosto de 2013, o músico demonstrou ter um grande

conhecimento sobre a história do jazz e seus principais bateristas, citando características

específicas dentro do estilo de cada um:

Dos bateristas americanos, gosto muito do Tony [Williams] e do Elvin [Jones],

pela liberdade. O Elvin por exemplo pega um compasso e estica assim, não adianta

você medir o que o Elvin faz, não é divisão medida, não é rudimento, é outra coisa.

O Art Blakey também eu gosto muito por causa do straight ahead, do Be Bop

straight ahead. Ele nos ensina a como conduzir uma banda(...). O Jack [deJohnette]

pela coisa do chimbal que está sempre ali, batendo papo com a caixa. O Buddy

Rich eu vim conhecer bem depois, aquela coisa fantástica da big band dele; eu acho

espetacular, mas não sou tão fã como sou por exemplo do Joe Morello, com o

finesse dele, ali é outra coisa. Há coisas que me interessam mais do que apenas um

cara que é só virtuose. O que o Joe Morello faz por exemplo no Far More Blues é

lindo, me pega né” (BAHIA, 2013).

Podemos destacar aqui o foco da atenção de Márcio Bahia com a sonoridade,

a técnica e a sutileza de Joe Morello. As referências destacadas nesse trecho da pesquisa,

como Bill Bruford e Joe Morello, tornam-se relevantes na medida em que afetam

diretamente a sua concepção musical, fazendo parte da construção de seu cabedal de

escolhas e caminhos musicais, tanto no que tange aos sons e timbres de sua bateria,

quanto aos elementos contidos em suas performances. Apenas para ilustrar, segue abaixo

a “levada” básica da música Far More Blues que segundo Márcio “é uma das mais belas

performances de bateria da história” e que seguramente encontraremos implicitamente

presente em suas performances dentro do grupo de Hermeto:

Figura 2: Transcrição da linha de bateria da música Far More Blues executada por Joe Morello

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Um fato curioso é que no livro Rhythmic Illusions, de Gavin Harrison, o baterista Bill

Bruford escreve uma introdução na qual seu discurso se aproxima em muito com o de Márcio

Bahia, principalmente em relação às inovações trazidas por Joe Morello dentro do grupo de

Dave Brubeck:

Eu era um menino, ouvindo os clássicos gravações Dave Brubeck Quartet, com Joe

Morello na ´Time Out` e ´Time Further Out`, quando começei a me familiarizar

com aquela “deliciosa sensação”. Primeiramente, o “chão” da música

gradualmente, ou de repente, deslizou por debaixo dos meus pés. Então, depois de

um período torturante, com a cabeça em um platô rítmico e meus quadris em outro,

ou talvez, com uma perna fazendo seis passos enquanto a outra perna fazia quatro,

viria a “doce libertação”, como se o mundo do ritmo voltasse ao normal e eu então

me sentia muito bem. (HARRISON, apud BRUFORD, 1996, p.4).

Para além do rock e do jazz, Márcio Bahia também teve um longo período de sua vida

dedicado aos estudos da música brasileira. Na entrevista de agosto de 2013, ele traça uma

linha histórica, citando os principais nomes da bateria nacional, desde antes do Luciano

Perrone até os tempos atuais. O que mais nos chamou a atenção foi que Bahia não só falou

sobre a história da bateria brasileira de forma detalhada e aprofundada, como também

demonstrou no instrumento a forma como cada baterista tocava, mostrando na prática os

diversos estilos e tipos de performance que os bateristas citados desempenhavam em cada

período histórico da música do Brasil 6. Outro fato digno de nota é a abrangência de estilos

musicais e a quantidade de nomes que ele considera fundamentais dentro da história da

bateria brasileira, incluindo inúmeros bateristas de samba, de bossa nova, de samba jazz,

assim como os principais bateristas de rock do Brasil, além dos que faziam parte de bandas

de baile e das principais orquestras nacionais. Uma vez que muitos nomes foram citados, ao

selecionar os bateristas brasileiros que causaram maior influência em Bahia, optamos por

pesquisar, nas várias entrevistas do artista, os nomes mais recorrentes. Por exemplo, em

entrevista ao Sesc Instrumental 2013, Márcio declara:

6 O vídeo gravado com a performance de Bahia está disponível no acervo pessoal do autor.

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Bateristas brasileiros que mais me influenciaram eu poderia citar vários: Paulinho

Braga, Robertinho Silva, Nenê baterista, Zé Eduardo Nazário, Milton Banana,

Hélcio Milito, Luciano Perrone, e muitos outros (BAHIA, 2013).

É importante ressaltar desde já, a ligação afetiva de Márcio Bahia com determinados

estilos musicais e tipos de performance, uma vez que isso é determinante em suas escolhas

enquanto performer. Já vimos seu apreço por bateristas como Bill Bruford e Joe Morello.

Podemos destacar, no universo da música brasileira, bateristas como Paulo Braga, Hélcio

Milito e Robertinho Silva, que são nomes recorrentes nas entrevistas de Bahia, e em cujas

gravações podemos notar algumas características em comum, como: o som claro e definido

de bateria e um tipo de performance mais limpa e precisa.

Um outro fato curioso nessa entrevista é que, apesar do profundo conhecimento sobre

o jazz, a bossa nova e os trios de samba jazz - os quais Márcio considera essenciais para os

seus estudos e para sua formação musical - essas não eram as suas principais “fontes de

inspiração”, ou melhor, não eram os estilos musicais que mais o mobilizavam

emocionalmente. Vejamos esse trecho em que ele revela que:

O jazz e a bossa eu usava mais como aprendizado, mas não era uma coisa que me

tocava, o jazz talvez, a bossa algumas coisas, mas não era uma coisa que me

“pegava” totalmente. Era uma coisa que eu escutava, que eu gostava como

informação (BAHIA, 2013).

Depois dessa declaração, perguntamos então quais seriam os artistas e discos que mais

o “marcaram” do ponto de vista emocional e do “gosto” musical e ainda, quais eram os

artistas que ele considerava como suas principais referências dentro da música brasileira.

Mais uma vez surgiu uma enorme quantidade de nomes e grupos que fizeram parte da sua

história musical. Podemos destacar alguns nomes recorrentes como Egberto Gismonti,

Hermeto Pascoal, Vitor Assis Brasil e Tamba Trio:

Eu nunca toquei com ele, mas um músico que me influenciou muito foi o Egberto.

Eu escutava Egberto “pra burro”, sempre. Eram os dois caras que mais escutava, o

Egberto e o Hermeto, como muita gente deve ter feito (...). Outro que eu adorava

também: Vitor Assis Brasil. Eu ia direto ver o show do Vitor, passava temporadas

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vendo o show dele com o Paulo Lajão de batera. Assisti nessa época também o

Tamba trio com Hélcio Milito, foi ali que eu bebi da fonte, principalmente o lance

da vassourinha (BAHIA, 2013).

Sobre alguns discos que Márcio considera essenciais em sua história, ele citou

diversas vezes o Snags, do Som Nosso de Cada dia, e também o disco Imyra, Tayra, Ipy do

compositor Taiguara, que considera como um dos “principais discos gravados na história da

MPB”:

Tem uns discos que me reciclam, um deles é o Snags do Som Nosso de Cada Dia,

o outro é um disco raríssimo do Taiguara chamado Imyra, Tayra, Ipy. Esse disco é

antológico. É um disco em que tocam os principais nomes da época: Toninho

Horta, Novelli, Raul Mascarenhas, Mauro Senise, Zé Eduardo Nazário, Paulo

Braga, todo mundo. Arranjos do Hermeto, regência do Wagner Tiso (BAHIA,

2013).

Para finalizar a vasta lista das principais referências musicais de Márcio Bahia, o que

mais o músico destacou durante toda a entrevista foi a música de Minas Gerais, mais

especificamente o Clube da Esquina. Vejamos abaixo o trecho no qual Márcio revela a

importância da música “mineira” em sua formação:

Do que eu ouvi e do que eu gostava, o que mais entranhou em mim, o que mais

me tocou, a minha maior formação musical chama-se Clube da Esquina, são os

mineiros: Milton, Lô, Beto, Toninho, esse pessoal todo. Não é à toa que hoje eu

moro aqui em BH. Antes de escutar a bossa nova, o samba, eu escutava Milton

Nascimento, esse é “o cara”, sabe por quê? Por causa da beleza melódica das

músicas, da riqueza harmônica. Eu “furei” os discos do Milton. Então, a maior

influência dentro da música brasileira para mim, antes da Bossa Nova, antes de

tudo, foi o Clube da Esquina (BAHIA, 2013).

Portanto, podemos notar claramente que apesar de seu profundo conhecimento sobre

os aspectos técnicos de seu instrumento, a forma como Márcio se relaciona com a música

não passa apenas pela bateria. Seu grande apreço pelas melodias, harmonias, arranjos e

instrumentações é uma das principais características que o faz tocar de maneira tão peculiar

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a bateria. O prazer estético e a escuta refinada estão sempre presentes em seu discurso.

Citando mais um trecho em que Márcio fala sobre o Clube da Esquina:

Os discos do Milton em termos de MPB para mim foram a grande influência. Foi

o que me fez ter tanto gosto pela melodia e pela harmonia. As músicas são lindas.

Os compassos, as levadas, a mágica da música dele me pega totalmente (BAHIA,

2013).

Um outro fator muito importante nesse primeiro capítulo, e que também é

fundamental destacarmos, é a relação de Márcio Bahia com a música erudita. Ele, além de

ter estudado percussão sinfônica por vários anos, se declara um apreciador da música

clássica: “Eu ouvi muita música erudita também. Dvorak, Mussorgsky, com aquela

orquestração do Ravel, aliás Ravel eu ouvi muito, Debussy também, Carl Orff, Shostakovich,

eu adoro” (BAHIA, 2013).

Tomando como referência o livro A Voz do Passado de Paul Thompson, podemos

dizer que entendendo a história de vida, entendemos o processo, e consequentemente os

resultados desse processo. Optamos por inserir ao longo do texto, vários trechos de

entrevistas cedidas por Bahia, para que possamos perceber, através das suas próprias

palavras, as suas relações com o instrumento, as músicas que fizeram parte de sua trajetória

e sua ligação afetiva com a música, tudo isso refletido diretamente em sua prática musical.

Citando novamente Thompson:

A história oral pode ser um meio de transformar tanto o conteúdo quanto a

finalidade da história. Pode ser utilizada para alterar o enfoque da própria história

e revelar novos campos de investigação (...). Pode devolver às pessoas que fizeram

e vivenciaram a história um lugar fundamental, mediante suas próprias palavras”.

(THOMPSON, 1992, contracapa)

No caso de Márcio Bahia, praticamente todos os gêneros citados - desde o rock, o

jazz, a música brasileira, a música erudita - estarão retratados em suas performances. No

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excerto abaixo, ele fala sobre seus estudos no campo da percussão sinfônica e a influência

direta da escuta musical em sua performance:

Tudo que eu escutei até hoje me influencia com certeza, inclusive a percussão

erudita. Me influencia diretamente no jeito que eu toco, nas dinâmicas que eu faço.

Porque a dinâmica é importantíssima e o baterista tem muita responsabilidade com

a dinâmica do grupo (BAHIA, 2013).

Podemos então ressaltar algumas características essenciais no discurso de Márcio

Bahia que tem impacto direto em sua performance: primeiro o “ecletismo” que ele demonstra

em seus relatos, depois, sua forte ligação emocional com a música, não apenas técnica ou

formal. Outra característica muito importante que já citamos anteriormente é a sua escuta

musical e sua relação direta com a melodia e com o arranjo das músicas: “quando eu ouço

uma música eu presto mais atenção mesmo é na melodia, não tanto na letra, mas na melodia

e no arranjo como um todo” (BAHIA, 2013). Isso tudo irá reverberar diretamente nas suas

interpretações e na forma como aborda seu instrumento, enxergando-o não apenas como um

condutor rítmico, mas criando e interagindo diretamente com as linhas melódicas e com os

arranjos presentes nas músicas de Hermeto.

Márcio Bahia não coloca fronteiras rígidas nem em sua escuta musical, agregando

valores a todas músicas que fazem parte de seu repertório e de seu histórico de vida, nem em

sua atuação como músico, demonstrando versatilidade e respeito aos mais diversos estilos e

performances musicais. Como reflexo dessa postura, podemos citar que a percussão erudita,

a percussão popular e a bateria circulam livremente em suas interpretações e performances.

Vejamos a seguir o trecho da entrevista em que Márcio cita Airto Moreira e o baterista

Luciano (do Quinteto Violado), como uma das suas primeiras inspirações em relação às

misturas entre bateria e a percussão:

Uma outra influência muito legal para mim foi o Quinteto Violado. Tinha aquele

batera, o Luciano, que tocava bateria e usava uns maracás nas mãos. Ele tocava

percussão com a mão e com os pés, que é o lance que o Airto fazia com o Quarteto

Novo, que acho que foi um dos primeiros a fazerem isso. Eu ia ver o Luciano fazer

esse lance da percussão nas mãos e os pés da batera, eu adorava e comecei a fazer

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também: tocar caxixi com a mão e fazer o bumbo com o pé. Eu sempre tive esse

tipo de iniciativa (BAHIA, 2013).

Como vimos, Márcio tem uma grande amplitude e profundidade em relação aos

estilos musicais que fizeram e fazem parte de seu repertório e que o influenciaram em sua

maneira de tocar. Contudo, Bahia ressalta que quando entrou para o grupo de Hermeto, ele

não baseou sua performance nos bateristas anteriores (como Nenê, Airto Moreira, Zé Nazário

ou Alfredo Dias Gomes), já que o próprio Hermeto buscava algo novo, diferente. Um aspecto

importante em seu discurso é que, se por um lado ele demonstra um grande envolvimento

com os nomes da música brasileira e mundial, por outro, sempre traz uma busca pelo

desenvolvimento de sua própria linguagem, a busca de sua própria “voz”,como é possível

notar no trecho da entrevista de Márcio Bahia para o Sesc Instrumental em 2013:

Se você falar de todos os bateristas do mundo que eu ouvi, eu tenho alguma

influência, tanto da bateria brasileira, como do rock e do jazz me influenciaram. Só

que eu não os imito. O bacana é que você encontre sua própria voz. Você tem que

usar o estilo de cada um, o poder de cada um, o jeito de tocar de cada um como

uma inspiração para você seguir e achar o teu. A gente não pode ser clone dos

outros (BAHIA, 2013).

Vejamos agora mais uma passagem da entrevista de agosto de 2013, em que Márcio

faz uma pequena “autoanálise”, em que ilustra muito bem suas características como

“ouvinte” e como performer, destacando sua vasta gama de referências musicais e também

sua relação fortemente afetiva com a música:

Você vê como é minha cabeça né: é tudo! Fui do “Som Nosso” para o Taiguara

rapidamente, mas são discos que considero antológicos, independente do estilo.

Milagre dos Peixes também é um disco antológico. Música para mim é o que eu

ouço e que me toca. Ouvi, gostei, me toca, me arrepia, está tudo certo. É isso o que

importa (BAHIA, 2013).

Para concluir essa primeira parte, pudemos perceber até aqui a multiplicidade e

complexidade musical presentes no discurso de Márcio. Ele demonstra uma postura que não

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exclui, mas que está sempre em busca do novo, pesquisando, estudando, se aprimorando e se

desenvolvendo dentro da música, sempre deixando à mostra seu envolvimento afetivo e o

prazer estético em relação a música. Para finalizar, vale a pena citar mais um trecho da

entrevista de 2002 publicada na Enciclopédia Virtual, em que Márcio traz à tona o prazer e

a alegria em tocar e estudar bateria7:

Minhas primeiras coordenações como baterista, o prazer de ouvir e tocar, o

descobrir, o experimentar, a alegria de conseguir os primeiros resultados no

instrumento, aprendi sozinho. Isso me acompanha até hoje na minha vida. Acho

que nunca devemos perder a alegria e espontaneidade dos primeiros dias no

instrumento. Ou seja, alegria e entusiasmo de principiante (BAHIA, 2002).

1.2) Os estudos: Sérgio Murilo e Edgar Nunes Rocca (Bituca)

Iremos focar agora em aspectos mais específicos da formação musical de Márcio

Bahia, procurando investigar seus métodos de estudo, seu desenvolvimento na bateria, sua

formação no campo da percussão sinfônica e seu aperfeiçoamento dentro do grupo de

Hermeto Pascoal. Torna-se relevante esse estudo, uma vez que o objetivo desse trabalho é o

levantamento das principais características da performance de Márcio Bahia dentro do grupo

de Hermeto Pascoal. Assim, consideramos importante fazer um breve relato de sua formação

musical. Podemos destacar aqui, seus estudos de jazz e música brasileira com Sérgio Murilo,

suas aulas de percussão erudita com Bituca e sua convivência com Hermeto Pascoal, que

segundo Márcio, foi o período em que mais se desenvolveu na bateria.

Vamos iniciar colocando como ponto de partida suas primeiras aulas de bateria, que

se iniciaram após um período de mais de um ano como autodidata do instrumento e quando

atuava centralmente no campo do rock em Niterói. Seu primeiro professor de bateria foi

Sérgio Murilo, em 1974. Foi então que Márcio Bahia iniciou seus estudos “formais” de

bateria, estudando leitura, técnica, coordenação motora, ritmos e principalmente, expandindo

suas referências e seu repertório musical:

7 Fonte: Enciclopédia virtual “Músicos do Brasil”, 2002, acessado em 14/02/2014

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Sérgio Murilo, era o nome dele. Me lembro dele com muito carinho. Foi o cara

que me introduziu ao Jazz. Era jazzista e tocava “bossa” muito bem. A bossa nova,

as “coisas do Brasil” e o jazz. Ele me deu as primeiras noções de técnica, de grip,

de tudo. De leitura também, as primeiras noções, ele me ensinava a ler, enfim, toda

essa parte técnica (BAHIA, 2013).

Essa expansão do repertório musical foi um fator fundamental nas aulas de Sérgio

Murilo que passava para Márcio diversas gravações dos principais discos de bossa nova e de

samba jazz em voga nos anos 60 e 70. Foi a partir dessas aulas que Márcio Bahia iniciou sua

atuação dentro da música brasileira:

Foi aí que conheci Milton Banana, que o Sérgio tinha vários discos. Ele [Milton

Banana] é dos meus ídolos até hoje. Hélcio Milito com o Tamba Trio, Edson

Machado, Rubens Barsotti com o Zimbo, que amo de paixão. E vários outros

bateras da época, como aqueles discos da Elis, do começo. Discos de trio que ele

botava para mim. Bateras que eu nem conhecia que tocavam com aqueles trios da

época, como Manfredo Fest, que é um pianista italiano que morou muito tempo

nos EUA. Então eu comecei a entrar nessa onda e isso começou a mudar minha

cabeça (BAHIA, 2013).

Por fim, podemos destacar o papel essencial do professor na carreira de Márcio, e que

reflete até hoje em suas performances, introduzindo-o ao jazz, à música brasileira assim como

no aprimoramento da leitura musical e da técnica do instrumento. Vale ainda citar mais um

trecho da entrevista de agosto de 2013 em que Márcio conta alguns detalhes sobre os

conteúdos que estudou com Sérgio Murilo, destacando o método de bateria do Gene Kruppa,

o qual foi muito utilizado por muitos bateristas nos anos 60 e 70:

Tinha o método de Gene Kruppa que ele me ensinou a ler e me passava os

exercícios. Ele me passou os paradiddles, a concepção do up stroke e do down

stroke que a gente intuitivamente faz, mas ele mostrou pormenorizadamente como

é que faz. A coisa do toque duplo, toque simples. Então ele foi me mostrando essas

coisas, além da leitura e a coisa de ouvir bastante para pegar. Um dos primeiros

discos que ele me mostrou foi do Bill Evans trio, com Marty Morell na bateria,

muito legal. Eu comecei a entrar num outro mundo e estudar para valer. Então eu

tinha uma leitura fraquinha. Ele me ensinou os primórdios da leitura e de técnica e

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de mostrar outras coisas dentro da música. O papel dele foi importantíssimo

(BAHIA, 2013).

Foi em 1976 que Márcio Bahia entrou para a Escola de Música Villa Lobos, onde

ficou estudando por quatro anos, tendo essa parte de sua formação musical sido voltada

principalmente à percussão erudita. Apesar do interesse de Márcio estar voltado quase

sempre para a bateria, ele estudou e atuou durante quase cinco anos como percussionista

sinfônico, trabalhando em orquestras, participando de grupos de percussão e sobretudo,

estudando técnica e leitura musical para dar conta das demandas exigidas pelo mercado de

trabalho. Abaixo, Márcio discorre sobre sua entrada na Escola de Música Villa Lobos:

Então, em 1976 me inscrevi na Escola de Música Villa Lobos para ser aluno do

Bituca. Agora, eu estava crente que seria um curso de bateria; mas não era. Na

verdade era um curso de percussão erudita(...). Eles estavam com carência de

pessoal na orquestra, tinha muita gente se aposentando. Para mim foi

interessantíssimo, porque eu estava muito a fim de estudar, então entrei de cabeça.

Aí eu entrei fundo na coisa da leitura e da técnica, bem mais apurado. Mas batera

mesmo, nada. Era só caixa sinfônica, leitura e técnica pra caramba com o Bituca,

que foi o que me botou um bom leitor e com uma boa técnica (BAHIA, 2013).

Já no primeiro ano de estudos, Márcio Bahia entrou para o Grupo de Percussão da

Escola de Música Villa Lobos, onde também ficou por quatro anos. Através desse grupo,

Márcio ganhou diversos prêmios como instrumentista, como cita Tarcísio Braga em sua

dissertação de mestrado: “Foi junto ao grupo de percussão dessa escola, que o músico

[Márcio Bahia] foi contemplado com o primeiro prêmio como solista, quando o grupo, em

1979, venceu o primeiro concurso da EMVL e do Colégio da Orquestra Sinfônica Brasileira.”

(BRAGA, 2011, p.60)

No final de 1976 participou também do Grupo de Percussão da Rádio MEC, que era

formado por músicos experientes, enquanto ainda era estudante:

E gravei também com o grupo de percussão da rádio Mec que eram só professores

e eu era um aluno lá. Nós tocamos o Rhythmetron do Marlos Nobre, uma peça para

dez percussionistas que o pessoal do erudito conhece bem (BAHIA, 2013).

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Segundo Luís Costa-Lima Neto, “Foi tocando com o Grupo de Percussão da Rádio MEC,

numa série dos Concertos para a Juventude, que Márcio conheceu pessoalmente Itiberê,

Jovino, Hermeto e Pernambuco, além do baterista da época, Nenê, de quem Márcio depois

comprará alguns pratos de bateria” (NETO,1999, p.59).

Em 1977, Márcio Bahia entra para a Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal do Rio

de Janeiro, onde atuou até 1980. Podemos perceber em sua fala que durante o período em

que esteve na orquestra, sua vontade sempre foi a de tocar bateria:

Em 77, o Bituca me convidou, dizendo que tinha aberto uma vaga para estagiário

na Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal. E eu entrei e depois me efetivaram

em 78; então fiquei de 77 a 80 no Teatro Municipal como percussionista. Eu era

um garoto novo e eles me botaram para “jogar”. Aí aparecia vários trabalhos como

batera para fazer que eu tinha que recusar pois eu tinha um contrato com a

orquestra. Eu só podia fazer bateria nas horas vagas e isso foi me deixando meio

triste. Por mais que eu goste de percussão erudita e tudo, a orquestra do municipal

era basicamente uma orquestra de ópera e ballet. Então eu passava o ano inteiro no

fosso. Era fogo, imagina para um garoto de 22 anos ficar no fosso assim, sem ver

nada, só tocando, tocando. Tinha um concerto ou outro e quando tinha eu adorava.

Ao não ser quando tinha ballet de Stravinski ou outras coisas bacanas (BAHIA,

2013).

Ainda sobre a questão da percussão sinfônica, Márcio conta como foi sua decisão de

sair da orquestra para se dedicar exclusivamente à bateria:

Então enquanto eu estava na orquestra, eu tinha que dizer não para a bateria. Até

que eu tive que escolher. Uma hora eu tinha que escolher. No fim de 80 eu saí. A

orquestra pagando bem, um baita de um salário, os caras falavam: “-Você tá

maluco, vai deixar seu futuro.” E eu respondia - “Não para mim isso é passado, já

tá bom.” E eles diziam – “Tira uma férias, pede licença” - E eu dizia – “Não, não,

não”. O Bituca na época ficou muito chateado (BAHIA, 2013).

Foi então em 1980, logo após Márcio ter saído da orquestra, que veio o convite do

percussionista Pernambuco para que fosse tocar com o grupo de Hermeto Pascoal:

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Saí da orquestra em dezembro de 80 e fiquei em casa final de ano, Natal, Ano

Novo. Eu sentado lá em casa, na casa dos meus pais, olhando para a bateria e

pensando: “agora vou parar para te atender como você merece, que é o que eu

quero.” De repente o telefone toca e era o Pernambuco, percussionista do Hermeto,

que eu conhecia do Villa Lobos, e ele disse: - ‘Marcio, o Hermeto tá sem baterista

aqui. Vem aqui dar uma canja”. E eu pensei: - Ce tá maluco, o que eu vou fazer aí?

Não sou maluco e eu sei quem eu sou, o que eu posso fazer? Daí ele insistiu: -

Vem é só pra dar uma canja. E eu pensei: - Ai meu Deus do céu. Vou então, não

tenha nada a perder né? Só tenho a ganhar. Posso dizer para os meus netos até o

fim da vida que eu dei uma canja com o Hermeto, que eu passei uma tarde lá no

Jabour. Eu nem sabia onde era o Jabour. Então liguei para o Malta. Eu e o Malta já

tocávamos juntos em algumas coisas e ele já estava indo lá. Já estava com meio pé

lá dentro. E o Hermeto estava encantado com ele. Então o Malta disse: “eu sei o

caminho me pega aqui que eu vou contigo.” Aí nós fomos (BAHIA, 2013).

1.3) A “Escola do Jabour”

Em janeiro de 1981, Márcio ingressa no grupo de Hermeto. Foi com esse grupo que

Márcio gravou então os cinco discos que iremos analisar nessa dissertação e no qual

permanece até hoje, fazendo turnês internacionais e tocando ativamente pelo Brasil.

O nome “Escola do Jabour” ou “Escola Jabour” não é uma escola no sentido formal

do termo. É apenas uma expressão endógena usada por Hermeto Pascoal e pelos membros

de seu grupo para designar esse período de intensa convivência, ocorrido no bairro do Jabour

durante as décadas de 80 e 90: “O grupo é muito mais do que música, é uma escola, como

até eu gosto de chamar, a ´Escola Jabour`, porque aqui a gente aprende muito” (PASCOAL,

2000). Entretanto, quando questionamos Bahia se podemos considerar esse período no

“Jabour” como uma escola propriamente dita, ele responde veementemente:

O Jabour é sim uma escola e eu sou um aluno dessa escola. Ficava na rua Vitor

Gisard 333, no bairro do Jabour em Senador Camará. É uma escola sim, foi ali que

eu aprendi tudo. Aprendi tudo não: estou aprendendo. Ali era o seguinte: a teoria e

a prática tudo junto. Era o ensaio, o show, o estudo. O exercício que eu fazia em

casa era o que eu tinha que tocar a tarde. É uma escola sim, claro que é, sem dúvida.

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E digo mais, influencia muita gente. Dali começou muita coisa, quer dizer, é uma

escola que influencia o mundo inteiro, sem sombra de dúvida (BAHIA, 2013).

Foi portanto, no bairro do Jabour, no Rio de Janeiro, mais especificamente no período

de 1981 à 1993, que Hermeto e seu grupo – formado por Jovino Santos, Carlos Malta, Itiberê

Zwarg, Márcio Bahia e Pernambuco – tiveram uma intensa convivência e uma rotina de

ensaios, estudos e experimentações que resultou no desenvolvimento de uma linguagem e

uma obra musical significativa dentro do contexto da música instrumental brasileira.

Segundo Luis Costa-Lima Neto:

Durante 12 anos (1981-1993), esse foi o padrão de trabalho desenvolvido por

Hermeto Pascoal & Grupo [...], a rotina diária consistia de ensaios das 14:00 às

20:00 hs, precedidos de trabalho matinal, quando cada músico estudava suas partes

individuais. Com Itiberê, Jovino, Pernambuco, Carlos Malta e Márcio, Hermeto

teve pela primeira vez um grupo de intérpretes trabalhando diariamente juntos,

durante anos. Em 1981, Itiberê tinha 31 anos de idade, Jovino, 27, Carlos Malta,

21, Márcio, 23. Se estes jovens músicos não tinham a experiência dos outros

músicos que tocaram com Hermeto, possuíam em contrapartida, uma capacidade

de doação que transcendeu todas as formações anteriores a 1981. (NETO,1999, p.

61)

Bahia podia não ter a fluência improvisativa e a experiência de seus antecessores no

grupo (como Airto Moreira, Nenê ou Zé Eduardo Nazário), mas podemos olhar com certo

cuidado para o discurso abaixo, já que desde o início o nível de complexidade na performance

de Márcio não era o de um iniciante:

Aí foi onde tudo começou, quer dizer, a grande sabedoria, a coisa mais incrível do

Hermeto, é que ele não me aceitou no grupo pelo que eu tocava na época, porque

eu era muito iniciante, apesar de já tocar bateria, para o nível que ele trabalha. A

grande sacada dele é que ele não viu o momento, ele viu o que podia puxar lá na

frente. Não é todo mundo que tem essa cabeça. Então ele me deu a chance. “Agora

é comigo, vamos arregaçar as mangas e trabalhar”. Aí que começaram a coisa dos

ensaios. Eu perguntei pra ele – “vocês ensaiam quantos dias na semana? Ele disse:

Olha, atualmente a gente ensaia 3 vezes na semana, pois o pessoal mora longe, mas

normalmente a gente ensaiava todo dia. Ah, vocês querem ensaiar todo dia? Então

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todo dia a gente vai estar aqui.” Daí ele: “- Ah, os caras estão interessados”

(BAHIA, 2013).

Podemos perceber desde já algumas características que fizeram Bahia desenvolver

sua forma peculiar de tocar bateria. Uma delas se deve ao fato de ter tido a formação em

percussão erudita, permitindo que Hermeto e o próprio Márcio, é claro, desenvolvessem

novas formas de pensar o instrumento. Segundo Jovino Santos, em entrevista para Luis

Costa-Lima Neto:

O fato de Márcio Bahia ter sido percussionista de orquestra antes de ser baterista

do grupo de Hermeto, tornou possível que Hermeto criasse as partes de bateria da

maneira erudita. A leitura fluente de Márcio somada à sua dedicação ao estudo, fez

com que Hermeto pudesse criar ritmos muito complexos, como por exemplo um

desenho em que o chimbal está em tercina, o bumbo em semicolcheia e o prato em

colcheia. (SANTOS apud NETO, 1997, p.72)

O que nos chama muita atenção é a multiplicidade e riqueza de elementos encontradas

no discurso de Márcio. Ele ressalta a importância de cada fase vivenciada em sua trajetória

musical, sem excluir ou abandonar nada, desde a influência do rock progressivo, os primeiros

contatos com o jazz e a música brasileira, os estudos dentro do campo da percussão erudita,

e principalmente, sua vivência dentro do grupo de Hermeto. Tudo isso contribuiu para sua

formação musical e para o desenvolvimento de sua forma tão peculiar de tocar o instrumento.

Márcio também destaca a importância da leitura musical para sua permanência no grupo, já

que, segundo ele, este era o seu grande diferencial na época. Vejamos abaixo o que Márcio

nos conta sobre o início desse processo:

Tudo o que você aprende, é bom, quer dizer, todo aprendizado da orquestra, lá na

frente encontrou com o Hermeto. Quando eu entrei para o Hermeto, foi uma

mudança muito radical, radical no bom sentido. Eu tinha uma leitura e uma mão

fantástica, mas a cabeça vazia, então o trabalho que eu fiz com o Hermeto, foi de

encher a minha cabeça de ritmos, de elementos, para associar e uma coisa, um

ponto muito importante para eu poder ficar no grupo, foi minha leitura. Porque ele

escrevia e eu tocava. O que eu não sabia, o que eu não tinha ideia de como fazer,

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ele escrevia e eu tocava. Daí ele: Ah você lê é? E eu falei: leio sim. Daí ele

começou a escrever muito (BAHIA, 2013).

Pudemos notar, no trecho acima, um pouco como foi o processo de aquisição do

repertório e das propostas musicais de Hermeto Pascoal. No quarto grupo de análise do

segundo capítulo estarão transcritos alguns ritmos na bateria, que segundo Márcio, ele

aprendeu com Hermeto dentro do grupo. Esses ritmos foram organizados em um manuscrito

que Márcio Bahia usou como suporte quando deu aulas no Festival de Verão de Brasília de

2003. Nesse manuscrito estão contidos os ritmos brasileiros em sua forma mais “original”,

como o samba, o baião, o xote, o frevo, o maracatu, o maxixe, o ijexá, entre outros, assim

como suas transformações para os compassos ímpares de 3, 5 e 7. Essa “apostila” é um dos

principais referenciais que utilizaremos ao longo das análises do segundo capítulo. Voltando

ao processo de aprendizado dos ritmos brasileiros, em suas variadas formas, Márcio declara:

Quando eu entrei no grupo, eu tocava um baião básico, eu tinha uma noção de

samba, mas com o Hermeto veio a coisa mais profunda, a base mesmo. Agora, ele

me dava a base mas já híbrida, ou melhor, primeiro a base e depois suas formas

híbridas, porque ele misturava os ritmos. Vinha primeiro como ele é e depois

tocávamos em 3/4, 5/4, 7/4, mas ele deu sim essa base de maracatu, de frevo, de

xaxado, de xote, isso tudo veio com ele (BAHIA, 2013).

Em outro trecho de uma entrevista8 cedida para o pesquisador Luis Costa Lima Neto,

Márcio descreve um pouco da forma como estudava e como desenvolvia suas linhas de

bateria. Quando ele cita: “(eu) cantarolava o arranjo todinho”, isso demonstra a consciência

que ele tinha em relação às partes dos outros instrumentos, e a partir disso, a consciência em

relação à criação e à interação das linhas de bateria dentro dos arranjos do grupo:

Eu estudava tanto os arranjos, as passagens difíceis, que aquilo ia ficando na

cabeça. (...) Chegou uma época que eu estudava a minha parte de percussão sozinho

e cantarolava o arranjo todinho. (...) Eu tocava a minha parte e sabia o que cada um

8 Entrevista cedida à Luis Costa-Lima Neto em 1998.

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estava fazendo em relação àquela minha parte (...). Eu desenvolvi isso no grupo”.

(BAHIA apud NETO, 1998, p.63)

Isso nos revela a profunda interação das performances de Márcio com a melodia, ou

com as performances dos outros instrumentistas. Em outro trecho da entrevista que Márcio

nos concedeu, ele reafirma essa forma de estudo e nosconta mais sobre esse processo,

ressaltando a importância do que ele chamou de “estudo mental”:

Uma coisa que me ajudou muito foi o estudo mental. Como o Hermeto

normalmente escrevia a parte de bateria por último, eu escutava o arranjo todo

sendo feito. Quando eu tocava a parte de bateria, eu sabia a bateria em relação ao

baixo, ao sax e ao piano. Então eu estudava cantando a linha do baixo ou a linha

do piano ou a linha do sopro. Construia a bateria ouvindo na minha cabeça, eu tinha

o grupo na minha cabeça, mas era um estudo mental. As vezes eu cantava alto, que

é um exercício de coordenação brutal (BAHIA, 2013).

Vejamos abaixo um trecho de entrevista9 cedida por Márcio Bahia ao site

batera.com.br, que confirma alguns importantes fatos para compreensão do seu processo

como baterista, ressaltando aqui a importância da escrita e da leitura como ferramenta para o

desenvolvimento de suas performances dentro do grupo:

Ele escrevia muito para mim, ele aproveitava que eu tinha uma ótima leitura. Além

de escrever os ritmos, ele me passava tocando na bateria. Ele tocava um pouco de

batera também, e era muito legal ter ele na bateria tocando. Quer dizer, ele me fez

um vocabulário rítmico forte, e daí, na maneira dele compor, ele misturava esses

ritmos com outras coisas, ele mudava a origem desses ritmos, misturava os ritmos,

punha esses ritmos em outros compassos. Quer dizer, eu, com a base bem

fundamentada na função original, na estrutura original desses ritmos, eu começava

a levar isso para outros compassos, e o Hermeto que fazia isso comigo; eu tocava

em três, em cinco. E tudo isso são células; quando você tem o padrão rítmico na

cabeça, ele tem um guia que vai te dando a firmeza para você improvisar (BAHIA,

2012).

9Entrevista de Marcio Bahia dada ao site batera.com.br diponível em

http://www.youtube.com/watch?v=Iv5pe8DEykc (acessado em 05/03/2013)

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2) Capítulo 2. Estudo Interpretativo

Antes de começarmos a análise das músicas, julgamos importante ressaltar alguns

aspectos específicos da bateria de Márcio Bahia, como: a configuração de seus set ups, a

afinação dos tambores, as peles, as medidas, as técnicas utilizadas, e também, como isso tudo

foi se transformando ao longo de sua trajetória no grupo. É igualmente importante abordar o

processo em que Márcio inverte a disposição da bateria, passando-a de destro para canhoto,

o que interferiu em alguns aspectos de sua performance.

2.1) Aspectos específicos da bateria e da técnica de Márcio Bahia

O primeiro set up de bateria utilizado por Márcio no grupo era um kit misto: metade

dos tambores eram da Gretsch e a outra metade da Ludwig. Uma primeira observação

importante é que quando Márcio entrou para o grupo, ele mudou seu modo de afinar a bateria,

trazendo os tambores mais para o agudo. Vejamos abaixo um trecho da entrevista no qual

Bahia descreve mais detalhadamente seus set ups e suas preferências em relação às medidas

e à afinação do instrumento:

Você pode ver nos kits que eu uso nos primeiros discos os toms são de 12 e 13

(polegadas) mas são tão agudos que você não diz que são essas medidas. É um tom

Gretsch de 12 e um Ludwig de13. Era uma batera que tinha que era o corpo de uma

Gretsch misturado com uma Ludwig Blue Sparcle, então o surdo de 14 era da

Gretsch e o de 16 era da Ludwig. Esse foi meu set no primeiro e no segundo discos.

Do Brasil Universo em diante era uma Tama que eu tinha trazido da França: 18,

10, 12, 14 e 16. Analisando hoje em dia eu gosto muito mais do tom de 12 afinado

agudo do que você pegar um tom de 10 e afinar na região mediana. O tom de 10

tem um timbre que não me agrada, mas se você pega o de 12 e bota “na tora” (bem

apertado), ele fica lindo (BAHIA, 2013).

Nos primeiros discos, Márcio usava uma quantidade maior de peças. Ao longo do

tempo, ele foi diminuindo seu set up, chegando ao que hoje ele chama de “set standart”.

Podemos notar algumas importantes transformações sofridas ao longo de sua trajetória no

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grupo: primeiro em relação à afinação, que foi ficando cada vez mais aguda, segundo, em

relação ao tamanho do instrumento, que foi ficando cada vez menor: “O meu set up foi aos

poucos reduzindo. No começo do grupo eu tocava com dois toms e dois surdos, porque

também as partituras pediam isso. Hoje eu toco só com um tom e um surdo, um set standard”

(BAHIA, 2013).

Podemos atribuir essas características de Márcio logo que entrou para o grupo (a

afinação mais para o grave e o tamanho do instrumento) à influência dos bateristas de rock

que ele tinha como referência na época. Entretanto, com o uso dos tambores fazendo uma

função “melódica” dentro do grupo, (principalmente pela peça Magimani Sagei que

analisaremos no segundo grupo de análise), Márcio foi mudando a afinação e a configuração

ao longo dos anos. Segue abaixo mais um trecho da entrevista no qual Márcio relaciona a

afinação do instrumento ao uso de ideias melódicas nos tambores:

Eu usava uma afinação média, média para grave, isso quando entrei no grupo. Aí

no grupo comecei a usar a afinação aguda, porque canta mais, eu comecei a querer

uma maior diferença melódica bonita entre os tambores, com diferenças maiores

entre os intervalos. O Hermeto me dizia: olha, afina o tom mais agudo aqui para

você ter range. Hoje em dia é bem para o agudo, como eu uso um tom de 12 e o

surdo de 14 é mais agudinho, mas eu procuro ver bem a região, o surdo na verdade

é grave, mas não é tão grave, é bem apertado mesmo. No caso de ter uma distância

maior entre os tambores mas não deixar o grave muito grave (BAHIA, 2013).

Em relação às peles da bateria, Márcio declara: “por uma questão de vivência mesmo,

eu uso porosa10 dos dois lados. Eu não uso clear em baixo, porque mesmo afinando agudo,

vem o corpo” (BAHIA, 2013). Bahia usa em todos seus tambores as peles ambassador coated

fabricadas pela Remo. Apenas para ilustrar, no site11 do fabricante vem a seguinte definição:

“uma pele com brilho, sonoridade médio-aguda e apropriada para todos os estilos musicais,

sobretudo o jazz”. Um outro ponto importante sobre a afinação, é que ele usa a mesma altura

(ou nota) tanto na pele de cima quanto na pele de baixo do tambor.

10 Pele porosa é uma pele branca, de filme simples, e tem como característica principal ter uma textura áspera, o que favorece o uso das vassourinhas, por isso é muito utilizada pelos bateristas de jazz. 11 Consulta ao Site da Remo: http://www.remo.brasil.com.br/padrao/padrao.php?link=linhas&categoria=E080 acessado em 25/05/2014

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Podemos notar, ao longo da entrevista, que Márcio tem uma ligação, um cuidado, ou

uma preocupação muito grande com a sonoridade do instrumento, observando sempre as

peles, os aros, a madeira, e sobretudo com a afinação dos tambores. Uma curiosidade que

pudemos observar durante a entrevista é que, na maioria das vezes em que Márcio comenta

a performance de algum baterista, ele coloca um foco muito grande no equipamento que esse

baterista usa, assim como na afinação, nas peles, nas medidas e na marca da bateria. Vejamos

abaixo, um breve comentário de Márcio a respeito do baterista Bill Stewart:

O Bill Stewart tem um som de bateria muito bonito. Ele afina muito bem a bateria

eu acho. Você pode ver nos vídeos dele que qualquer instrumento que ele pega,

mesmo que não seja o dele, ele bota sempre as mesmas notas. Ele usa uma Gretsch

com uma caixa Ludwig Suprasonic 14 por 6 polegadas, mas eu já vi ele tocando

em Sonor, em Yamaha, e você pode ver que são sempre as mesmas notas. Eu já

não faço assim, eu vou de acordo com o instrumento que eu tenho na mão e vou

tentando torna-lo o mais harmonioso possível de acordo com o som que ele me dá

(BAHIA, 2013).

Para confirmar as informações de Márcio Bahia, encontramos informações mais

detalhadas sobre na afinação da bateria de Bill Stewart na dissertação de mestrado de Raphael

Gonçalves:

Diretamente ligada à sua performance na bateria, a afinação do instrumento pode

ser considerada o primeiro elemento definidor da sonoridade de Stewart(...).

Devido à bateria ser um instrumento sem notas definidas, as afinações dos

tambores de Stewart estão próximas às seguintes notas: caixa – A4, tom – F#3,

surdo – G#2, e bumbo – F#2. (GONÇALVES, 2013)

Dentro do grupo, Márcio Bahia teve que se adequar às orientações de Hermeto

Pascoal, principalmente em relação à afinação do bumbo e dos graves da bateria, tendo que

abafar um pouco seu instrumento para uma melhor definição das notas, principalmente para

que não “embolassem” com as notas do baixo. Mas vemos que fora do grupo Márcio deixa a

bateria com um som mais “aberto”, ou seja, ressoando mais:

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Em termos de timbre, quando eu toco fora do grupo eu uso uma afinação mais

“gordinha”, eu gosto do bumbo ressonando, pele dupla, só com uma flanelinha por

dentro para secar os harmônicos, mas eu gosto do bumbo cantando. Eu gosto, mas

no grupo não dá para fazer isso, porque a gente elimina os graves, porque tem muita

nota “picada” entre o baixo e o bumbo, então se você usar um bumbo grave embola

tudo. É muita informação que tem, tanto é que o Itiberê toca num registro em que

ele praticamente tira os graves todos (BAHIA, 2013).

Márcio Bahia tem feito muitos trabalhos fora do grupo de Hermeto. Nessa dissertação

não abordaremos essas performances, mas vale a pena ressaltar sua grande versatilidade

atuando ao lado de artistas como: Hamilton de Holanda, Marco Pereira, Leny Andrade,

Jhonny Alf, João Donato, Carlos Lyra, Roberto Menescal, Joyce, João Bosco, Maria

Bethânia, Baden Powell, Fagner, Eliane Elias, Zélia Duncan, entre outros12. Em relação ao

modo de tocar dentro e fora do grupo, Márcio revela:

Eu tenho o jeito que eu toco no grupo, daquele jeito “universal” e livre, mas quando

toco para fora, eu toco em prol do que a música me pede para tocar, dentro de cada

estilo. Se é “brazuca”, se é jazz ou que for, eu tento tocar no estilo que é para ser

tocado. Se é jazz, você tem que tocar jazz, e tocar bem, não pode ser caricato

(BAHIA, 2013).

Podemos ressaltar aqui sua postura como músico em “estar a serviço da música” e

sua procura pela versatilidade, buscando tocar cada estilo dentro de sua própria linguagem.

Isso nos dá uma pista de que Márcio não se restringe a um determinado tipo de interpretação

na bateria, mas busca conhecer as peculiaridades dentro dos mais variados estilos e padrões

estéticos, e sobre eles fazer as inovações e as rupturas que também são características

marcantes em suas performances.

12 Informações retiradas do site oficial de Hermeto Pascoal em:

http://www.hermetopascoal.com.br/grupo/curriculo_marcio.asp

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Eu toquei com a Bethânia por exemplo, então eu pensava, eu tenho uma função a

cumprir ali. Eu não posso tocar com a Bethânia ou com a Zélia [Duncan] como eu

toco no grupo, não vai rolar. Você tem que saber se postar dentro da estética que

você está tocando. Então, você tem que achar a batida legal, a sonoridade bacana,

uma série de outras coisas. Então, você tem que se adaptar ao que você está

tocando, isso te dá maturidade e versatilidade (BAHIA, 2013).

Nos últimos anos, Márcio vem se dedicando também ao seu trabalho próprio, de

composição e arranjo, no qual podemos ver outras facetas que não aparecem dentro do

trabalho do grupo de Hermeto. Um dos principais elementos em sua performance fora do

grupo que vale a pena ressaltar é o domínio do uso das “vassourinhas” (brushes). Não

abordaremos esse tema ao longo dessa dissertação, mas cabe dizer que Márcio Bahia é um

grande pesquisador e um expert no assunto, o que foi observado ao longo da entrevista, e

também em suas performances com Hamilton de Holanda e com seu próprio grupo. Um outro

aspecto interessante é o processo de criação de suas composições. Isso reforça o aspecto de

que Márcio possui uma relação muito próxima com as melodias e harmonias das músicas

com as quais se relaciona. Abaixo, o músico descreve esse processo, que ocorre de forma

intuitiva:

É tudo na cabeça. Eu tenho as ideias das melodias e a harmonia já vem junto. Só

que eu não sei tocar os acordes, então chamo algum amigo violonista ou pianista,

um harmonizador e dou a melodia. Então vamos experimentando até chegar no

acorde, porque estou ouvindo o acorde na minha, eu só tenho o “abismo” de não

saber tocar esse acorde. Inclusive conheço muita gente, que toca muito e não sabe

dar “nome aos bois”. Mas eu acho que precisaria ter umas aulas de piano e

harmonia para eu poder “dar nome aos bois”, para tornar a comunicação mais fácil

(BAHIA, 2013).

Em relação a sua formação musical, Márcio procurou focar seus estudos mais

“formais” na bateria e na percussão, deixando a parte melódica e harmônica baseadas na

percepção e na intuição. Em compensação, podemos ressaltar a profundidade com que

Márcio procurou se especializar, citando, por exemplo, sua pesquisa no campo dos ritmos

brasileiros, em que buscou técnicas específicas e suas “origens” na percussão popular. Além

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dos estudos com o próprio Hermeto, Márcio tornou-se um verdadeiro pesquisador, não só

dos ritmos e dos instrumentos, como também da sonoridade, da técnica e das manulações

utilizadas pelos percussionistas dentro de cada estilo:

Eu comecei a aprender os ritmos na profundidade com ele [Hermeto] e ia ver os

caras tocando também sabe, o jeito, o baqueteamento, é outra onda, é outra escola.

Na hora não adianta pensar em técnica, esquece a técnica rudimentar. A escola

deles é a intuição. Eu com toda a técnica que eu tinha não conseguia tirar o mesmo

som, você tem que então pegar o sotaque da rua. Falar que um cara desses não tem

técnica é um sacrilégio. O cara toca tão bonito, como é que não tem técnica. Então

tudo é importante: a técnica “finesse”, a técnica bem aprendida, o uso correto da

musculatura, mas você também tem que ir para a rua, ver os caras que tem essa

outra escola, eu chamo isso de outra escola (BAHIA, 2013).

Entre os aspectos técnicos que podemos ressaltar de Márcio Bahia, um fator muito

importante é o fato do músico ser canhoto. Nada seria deestranhar, a não ser pelo fato de que,

quando entrou para o grupo em 1981, Márcio montava a bateria e tocava como destro. Com

o passar dos anos, o baterista passou por um processo em que, aos poucos, foi invertendo a

bateria. Vejamos abaixo o trecho em que o músico descreve como se deu esse processo e os

motivos que o levaram a tais mudanças:

Eu comecei com destro e fui até 1988. As dificuldades que eu tinha por ser canhoto

começaram a vir por causa das próprias partituras do Hermeto. Eu não conseguia

vencer, pois é uma coisa natural, o cérebro manda mais para um lado do que para

o outro, então comecei a esbarrar nas limitações do meu lado direito (BAHIA,

2013).

Márcio primeiramente inverteu apenas o prato da condução (ride), trazendo-o para a

mão esquerda, passando a tocar também o chimbal com a mão esquerda de forma “aberta”

(sem cruzar), mantendo ainda os pés como estavam. Manteve essa forma de tocar por dois

anos: canhoto na mão e destro nos pés. Finalmente, inverteu a bateria toda, tocando como

canhoto tanto nos pés como nas mãos:

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Fiquei anos tocando como canhoto de mão e destro de pé, foi legal porque não

precisei tocar cruzado era tudo aberto. Anos depois me veio uma intuição: -E se eu

invertesse tudo? Então criei coragem, eu já tinha gravado o disco Só não toca quem

não quer, que eu gravei como destro conduzindo na esquerda. E foram nas

mixagens dessa gravação, que eu ia para o estúdio B, invertia tudo e começava a

estudar. Aí veio o gostinho, porque eu botei os hemisférios do cérebro tudo para o

mesmo lado, mão forte com pé forte e o outro lado também, então a bateria

começou a fazer um sentido maior vindo de cima para baixo (BAHIA, 2013).

Para finalizar essa introdução ao segundo capítulo, vale ressaltar novamente a busca

de Márcio Bahia pela sonoridade13 do instrumento e por uma técnica apurada. É interessante

também notar, que os bateristas que Bahia cita como suas principais referências também

trazem esse refinamento, tanto em relação ao som de bateria, quanto à técnica mais apurada:

Eu sempre busquei isso: um som puro, bonito, audível, equilibrado. Isso é uma

característica minha, eu acho. Mas esses caras que eu ouvi me influenciaram muito.

Esse solo do Morello em 5/4 me abriu muito a mente, vendo o que se pode fazer

com o pé esquerdo, isso por exemplo me abriu muitas possibilidades e eu tive

contato com isso lá atrás, antes do grupo (BAHIA, 2013).

Para reforçar esse aspecto de fundamental importância para esse trabalho, já que a

sonoridade e o timbre da bateria de Márcio são uma das características que mais chamam

atenção em suas performances, segue mais um trecho da entrevista de agosto de 2013, em

que o músico deixa explícito o cuidado e a preocupação com seu som:

Muitos bateristas sentam e querem sair tocando, fazendo as batidas, as levadas e

não se preocupam com a sonoridade. A sonoridade é de suma importância! Ela é o

seu cartão de visitas. Não importa qual a região que você afina, nem que tipo de

pele você usa, o importante é ter carinho com o instrumento. É como um violonista,

um flautista, um saxofonista na hora de afinar seus instrumentos. Imagina: o cara

põe a boquilha e sai tocando. A bateria é um instrumento de se fazer música, ela

também “canta” (...). Você não afinar bem seu instrumento é você estar sendo

relaxado num dos pontos mais importantes (BAHIA, 2013)

13 Segundo Trotta, a sonoridade é o resultado acústico dos timbres de uma performance” (TROTTA, 2008, p.

4)

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Iniciaremos agora as transcrições e análises dos trechos retirados dos cinco álbuns

gravados pelo grupo no período de 1981 à 1993. São eles: Hermeto Pascoal & Grupo, 1982;

Lagoa da Canoa - Município de Arapiraca, 1984; Brasil Universo, 1985; Só não toca quem

não quer, 1987; Festa dos Deuses, 1992.

São 5 discos, 67 músicas, sendo que vinte e cinco delas não têm a presença da bateria

- portanto foram deixadas de fora dessa dissertação - restando quarenta e duas músicas. A

partir da escuta e análise dessas músicas contidas nesses cinco álbuns, chegamos a cinco tipos

básicos de interpretações, que nos serviram de base para a organização das quarenta e duas

músicas.

Logo no primeiro álbum gravado após a entrada de Márcio Bahia, notamos um alto

nível técnico em suas performances, assim como diferentes approachs em relação à bateria,

como as interpretações das peças escritas para a bateria como Magimani Sagei e Série de

Arco, nas quais a escrita e a leitura musical são essenciais para sua performance. Em outras

músicas desse primeiro álbum, Márcio cria também interpretações bem livres, como em A

Taça e Moreneide. Encontramos ainda os ritmos brasileiros, como o samba em Sorrindo e o

baião em Lá na Casa da Madame eu vi, assim como as interpretações das músicas em

compassos ímpares, como em De bandeja e tudo. Como descreve Luís Costa-Lima Neto a

respeito desse primeiro álbum e da performance dos músicos do grupo nessa gravação:

Menos de um ano após a entrada de Carlos Malta e Márcio Bahia no grupo, o

repertório apresentado neste primeiro disco já revela um alto grau de coesão e nível

técnico-interpretativo. Verdadeiras tours de force são as músicas "Série de Arco"

e "Briguinha de músicos malucos no coreto". Na primeira, o músico mais exigido

sem dúvida, é o pianista Jovino Santos, seguido do baterista Márcio Bahia, mas em

"Briguinha", Hermeto não poupa nenhum membro do grupo (NETO, 1997)

Segue abaixo os cinco grupos de análise e as músicas relacionadas a cada tipo de

interpretação:

Grupo 1: As interpretações do samba e do choro na bateria

Músicas relacionadas: Sorrindo, Ginga carioca, Rebuliço, Surpresa, Intocável, Salve

Copinha, Aquela Coisa, Canção da Tarde e Depois do baile.

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Grupo 2: A leitura musical como diferencial na performance de Bahia e as peças

escritas para a bateria

Músicas relacionadas: Magimani Sagei, Série de Arco e Mestre Radamés

Grupo 3: As interpretações dos ritmos do Nordeste brasileiro na bateria (baião, xote,

xaxado, maracatu e frevo)

Músicas relacionadas: Lá na casa da madame eu vi, Novena, Papagaio alegre, Spock na

Escada, Candango (xote), O tocador quer beber, De sábado para Dominguinhos,

Viajando pelo Brasil, Sempre feliz, Quiabo (maracatu), Rancho das Sogras, Ilza na

Feijoada e Frevo em Maceió.

Grupo 4: As performances de Bahia nos compassos ímpares

Músicas relacionadas: De bandeja e tudo, Galo do Airam, Zurich, Fazenda Nova e Ilha

das Gaivotas

Grupo 5: A “Música Universal” de Hermeto Pascoal e as peculiares interpretações de

Márcio Bahia

Músicas relacionadas: A Taça, Moreneide, Briguinha de músicos malucos no coreto,

Viagem, Peneirando Água, Suite mundo grande, Peixinho, A Rainha da Pedra Azul,

Viajando pelo Brasil, Era pra ser e não foi, Arapuá e Irmão Latinos.

2.2) As interpretações do samba e do choro na bateria

Encontramos em praticamente todos os discos analisados, diversas performances de

Márcio Bahia relacionadas ao samba e ao choro. Na dissertação de mestrado “O Choro

Contemporâneo de Hermeto Pascoal” de Lúcia Pompeu de Freitas Campos, há uma entrevista

com Márcio Bahia em que ele comenta:

No começo do grupo, quando a gente ensaiava todo dia, sempre tinha um choro no

repertório. Ele (Hermeto) tem essa linguagem do choro muito bem

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fundamentada(...). Ele aprendeu tocando nos regionais onde ele tocava acordeon e

pandeiro no choro (BAHIA, 2005).

Fizemos o levantamento de nove músicas em que identificamos características

próprias do samba e do choro, contudo, há uma série de nuances e particularidades dentro

das performances de Bahia que também se aproximam de diversos estilos que colocamos

dentro do “guarda-chuva” do samba, dentre eles a bossa-nova, o samba jazz, o samba funk e

o partido alto. Tomaremos como principais referências para as aproximações das

performances com as nuances dos estilos, tanto os trechos das entrevistas de Bahia, quanto

seus manuscritos contidos na “Apostila de Ritmos Brasileiros de 2003”, na qual estão

presentes uma série de padrões rítmicos que nos servem como base para as definições e

aproximações de cada estilo.

Não nos aprofundaremos nas discussões sobre gêneros e estilos, apenas utilizaremos

esses conceitos para organizar as análises. É importante deixar claro que a intenção não é a

de categorizar as músicas de Hermeto, nem as performances de Bahia, mas sim, nos

aprofundarmos nas peculiaridades e idiossincrasias de suas performances dentro de cada tipo

de interpretação.

Seria certamente um erro crasso enquadrar as performances de Márcio Bahia

tentando-as definir, enquadrar ou restringir apenas de acordo com as características de

determinado gênero ou estilo. Para se determinar um gênero musical, é necessário analisar

uma complexa teia de elementos que se entrelaçam em meio à expressão musical, dentre eles:

a instrumentação, os aspectos da melodia, a harmonia, a temática das letras (quando houver),

o arranjo, a interpretação, assim como o ritmo. Enfim, em um gênero está contida uma vasta

gama de elementos tanto musicais, como simbólicos, culturais e sociais. Segundo Franco

Fabbri, “[...] um novo gênero se forma a partir de transgressões nas regras de um ou mais

gêneros anteriores” (FABBRI, 1981, p.2). Como define o autor: “[...] um gênero musical é

um conjunto de eventos musicais (real ou possível) cujo curso é governado por um conjunto

definido de regras socialmente aceitas” (FABBRI, 1981, p.1)14

14 A musical genre is “a set of musical events (real or possible) whose course is governed by a definite set of

socially accepted rules” (FABBRI, 1981, p.1).

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Portanto, a música de Hermeto Pascoal e as performances de Bahia transgridem, sem

dúvida, os padrões anteriormente produzidos, entretanto, dialoga com esses, expandindo suas

fronteiras ou ainda, criando novos “territórios” estilísticos. Como disse o próprio Hermeto

Pascoal em entrevista a Jazz Magazine:

Eu não posso dizer qual o tipo de música que eu faço. Eu faço música, isto é tudo.

Eu toco uma infinidade de ritmos, de sons, de harmonias, de gêneros, de estilos...

Eu adoro tocar música "clássica" (eu coloco um rótulo porquê as pessoas gostam

disso. Eu detesto!) e de repente mudo para um frevo do carnaval do Recife ou um

baião do nordeste. (PASCOAL, 1984)

Direcionando agora o foco para as performances de Bahia propriamente ditas,

podemos notar que, mesmo quando Márcio toca próximo aos padrões rítmicos do estilo, a

bateria não tem apenas a função de marcar o tempo ou de fazer uma base rítmica sobre a qual

os instrumentos se apoiam. Suas performances são, em sua grande maioria, fluidas e

dinâmicas, de acordo com a interação entre os instrumentos, as relações com a melodia e a

construção de suas linhas em relação à forma musical. Para ilustrar essa premissa, podemos

citar um trecho do artigo de Casacio (2013), no qual o pesquisador comenta a performance

de Bahia na música Ilha das Gaivotas:

Marcio Bahia demonstra em Ilha das Gaivotas uma interessante abordagem sobre

a execução do instrumento na música brasileira instrumental. Sua execução não se

limita a fazer apenas uma base rítmica para o grupo. O baterista mantém uma

constante interação com a música, executando com propriedade e fluência as

complexas estruturas do arranjo, além de possuir grande domínio técnico do

instrumento”. (CASACIO, 2013)

A complexidade encontrada nas linhas de bateria executadas por Márcio Bahia nos

abre portas para muitas discussões tanto sobre assuntos técnicos e específicos do instrumento,

quanto sobre aspectos rítmicos encontrados nas suas performances. As “tramas” rítmicas

encontradas em suas interpretações não são meras reproduções de ostinatos ou padrões, mas

sim o resultado de uma complexa teia de interações e atritos. Para ressaltar a importância

desses estudos rítmicos, podemos citar um trecho da introdução do livro The Rhythm

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Strutucture of Music, dos autores Cooper e Meyer, que descreve bem as intenções que

norteiam essa pesquisa:

Estudar ritmo é estudar toda a música. O ritmo tanto organiza quanto é organizado

por todos os elementos os quais criam e dão forma aos processos musicais. Uma

melodia é mais do que simplesmente uma série de alturas, assim como o ritmo é

mais do que uma mera sequência de durações. Os agrupamentos rítmicos são

resultados da interação entre os vários aspectos dos materiais musicais, como:

altura, intensidade, timbre, textura e harmonia - bem como a duração15. (COOPER,

C. e MEYER, L, 1960)

Utilizaremos também alguns livros de referência para que possamos confrontá-los

com as informações levantadas a partir do discurso e dos manuscritos de Márcio,

principalmente em relação às aproximações de suas performances com as peculiaridades de

cada gênero ou estilo. São basicamente três as principais fontes de referência: Batuque é um

Privilégio, de Oscar Bolão, o Livro Didático de Percussão e Bateria do Projeto Guri escrito

pelo percussionista Ari Colares, e O Zabumba Moderno de Éder Rocha.

Vamos começar com a análise da música Sorrindo, que é a primeira música do disco

Hermeto Pascoal e Grupo gravado em 1982. É uma música com apenas dois minutos e trinta

e três segundos, porém com vários elementos interessantes, dignos de análise. A bateria entra

apenas no trecho final da música (3ª exposição do tema) e Bahia constrói uma linha na qual

as mãos se aproximam ritmicamente dos padrões de samba e choro comumente encontrados

tanto na percussão popular (como veremos abaixo na figura 5 e 6), quanto nas linhas de

bateria usualmente encontradas nas gravações de samba (como veremos na figura 7). O que

chama atenção nessa linha de bateria construída por Márcio, são as inusitadas variações de

bumbo, que, ao mesmo tempo em que se “inspiram” nas variações típicas do surdo do samba,

apoiam determinadas notas da melodia, valorizando pontos de repouso e resoluções das

frases melódicas (o que veremos mais a frente na figura 11). Vejamos primeiramente um

15 To study rhythm is to study all of music. Rhythm both organizes and itself organized by, all the elements

wich create and shape musical processes. Just a melody is more than simply a series of pitches, so rhythm is

more than a mere sequence of durational proportions. Such grouping is the result of the interaction among the

various aspects of the materials of music: pitch, intensity, timbre, texture, and harmony - as well as duration.

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trecho dos oito primeiros compassos da performance de Bahia na bateria da música Sorrindo

(na figura 5 abaixo) e a seguir as suas relações com alguns elementos trazidos da percussão.

Figura 3: Trecho dos oito primeiros compassos da bateria da música Sorrindo (Hermeto Pascoal e Grupo de

1982)

Podemos relacionar as linhas rítmicas feitas por Márcio com algumas referências

encontradas em alguns livros de percussão popular do Brasil. Podemos começar destacando

a condução em semicolcheias que ele realiza no chimbal, o que se aproxima a uma levada de

pandeiro, principalmente o ritmo executado com maior ênfase nas platinelas, ou de um ganzá

por exemplo; já o aro da caixa comporta-se como se fosse a linha tradicionalmente tocada

num tamborim, enquanto que no bumbo, Bahia faz algumas variações que se aproximam de

algumas linhas de surdo do samba. Para exemplificar, vejamos abaixo os dois primeiros

compassos da bateria de Márcio (figura 4) comparada a uma célula rítmica de tamborim

(figura 5). Podemos ainda relacionar o chimbal a uma levada de pandeiro retirada do Livro

Didático do Projeto Guri (figura 6), escrito por Ari Colares:

Figura 4: Dois primeiros compassos da bateria da música Sorrindo

Figura 5: Levada de tamborim “Teleco-teco” retirada do Livro Didático do Projeto Guri, p. 44, escrito por

Ari Colares.

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41

Figura 6: Levada básica de pandeiro Livro Didático Projeto Guri, p. 40

16

Podemos então perceber claramente uma relação muito próxima existente entre a

linha de bateria da música Sorrindo com esses padrões comumente encontrados nos

instrumentos de percussão. Para reforçar ainda mais essa característica, podemos colocar aqui

um pequeno trecho da entrevista realizada em agosto de 2013, no qual Márcio Bahia ressalta

a relação intrínseca entre os ritmos brasileiros tocados na bateria e os instrumentos de

percussão popular do Brasil:

Eu acho que nossos ritmos vêm todos da percussão, o que a gente faz é adaptá-los

para a bateria, mas eles vem todos da percussão. Por isso eu acho super importante

que o batera toque percussão. Eu não tocava tanto quanto depois que eu entrei para

o grupo. Acho que o baterista que toca percussão ele vê a bateria de um outro jeito,

vê mais amplo, porque o universo da bateria pode ser muito restrito dependendo

do jeito que você focaliza. Então, se você pensar a bateria como percussão, você

tem várias possibilidades em cada peça individual, de explorar o timbre de cada

uma, assim como juntas também. A coisa de tocar percussão mudou muito minha

cabeça (BAHIA, 2013).

Entretanto, esses padrões provindos da percussão não são novidades trazidas por

Bahia, pelo contrário, são padrões comumente usados pelos bateristas de samba desde os

anos 50. Podemos citar como referência a própria “Apostila de Ritmos Brasileiros” escrita

por Márcio Bahia, comparando duas “levadas” que o autor considera como “padrões” de

samba, com a linha de bateria desenvolvida na música Sorrindo:

16A escrita do pandeiro refere-se à levada básica de samba e choro formada por quatro batidas básicas que são:

1. Polegar na pele fazendo um som grave (Tu), 2. Ponta dos dedos na parte superior do pandeiro (ki), 3. Punho

na parte de baixo do pandeiro (ti) e 4. Ponta dos dedos novamente (ki). Outra característica da escrita de Ari

Colares são as sílabas onomatopeicas que ele escreve abaixo da levada do pandeiro.

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Figura 7: Levada de samba retirada da Apostila de Ritmos Brasileiros escrita por Márcio Bahia.

Figura 8: Idem

Podemos notar que as mãos nessas duas “levadas” acima, se aproximam muito da

linha de bateria tocada na música Sorrindo (figura 3 acima), exceto pelas variações de bumbo

e pelas aberturas de chimbal.

É possível ainda citar como exemplo a pesquisa feita pelo músico Lucas Casacio

sobre o baterista Hélcio Milito, onde encontramos um padrão rítmico de “tamborim” feito

por Milito na música Batida Diferente idêntico ao utilizado por Márcio na música Sorrindo.

Vejamos abaixo um trecho no qual Casacio analisa a interpretação da bateria de Milito na

música Batida Diferente:

Nesta gravação, Milito executa os acentos da mão direita a partir de variações de

células características de levadas de tamborim. Estas células rítmicas consistem

basicamente em ritmos de dois compassos, que são usados para sustentar o ritmo

de samba, bem como para pontuar a melodia (CASACIO, 2012, p. 68).

Retornando às peculiaridades da performance de Bahia, cabe destacar que algumas

nuances da interpretação dessa música na bateria fazem alusão ao choro, já que muitos

elementos da própria composição nos remetem diretamente ao estilo. Apenas como

ilustração, podemos começar relacionando o título da música Sorrindo - que usa o verbo no

gerúndio – com outros títulos muito comuns nos “choros tradicionais”, como por exemplo

Cochichando ou Vou Vivendo de Pixinguinha. A instrumentação (cavaco, violão e flauta)

também se aproxima bastante de um “regional” de choro. Podemos dizer que a bateria,

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contrariando alguns autores mais “radicais” (como Tinhorão no livro “Música Popular em

Debate” de 1997, que trata a bateria como instrumento típico de Jazz Band e não de música

brasileira), faz parte das gravações de choro desde os anos 40, com as orquestras e grupos de

Radamés Gnattali e Severino Araújo (CAZES, 1998, p.121).

No livro Batuque é um privilégio, de Oscar Bolão, o autor faz duas observações

interessantes, que deixam mais claras as aproximações entre a performance de Bahia e as

características típicas do choro. A primeira refere-se às acentuações do choro que, tanto no

pandeiro quanto na bateria, difere-se do samba, principalmente pelos acentos executados nas

segundas semicolcheias – o que podemos notar nas aberturas de chimbal feitas por Márcio

Bahia, as quais são feitas sempre nas segundas semicolcheias (ver compassos 2, 4 e 6 da

figura 3 acima). Podemos destacar que o piano também reforça esse acento, tocando em cima

das segundas semicolcheias, após a entrada da bateria. A outra observação diz respeito às

relações entre a bateria e as melodias no choro. Bolão cita que: “Ao contrário do samba, onde

um único padrão rítmico pode servir como base de acompanhamento às composições do

gênero, no choro, o ritmo da bateria deve ser feito em cima da linha melódica” (BOLÃO,

2003, p. 109).

Considerando que a linha melódica da música Sorrindo é basicamente toda composta

por semicolcheias, podemos considerar que a subdivisão em semicolcheias, feita pelo

chimbal, serve como base sobre a qual a melodia se constrói, havendo uma grande sinergia

entre essas duas linhas (ver figura 9 abaixo). Para ampliarmos o conceito de subdivisão (para

além das divisões do tempo em partes iguais), podemos citar um trecho do livro Rhythmic

Illusions, de Gavin Harrison, no qual o autor indica que a subdivisão é a referência principal

sobre a qual o baterista “sente” a música:

Você pode pensar em subdivisões como a ´quantização` ou, os pequenos ´pulsos`

que compõem um compasso. Por exemplo, existem 16 semicolcheias que

compõem os pulsos em um compasso de 4/4, ou 8 colcheias e assim por diante. A

subdivisão indica para o baterista como ele vai sentir a música17. (HARRISON,

1996, p. 7)

17 Subdivision you might think of this as the ´quantise` or small ´pulses` that make up a bar. For example, there

are 16 semi-quavers or sixteenth notes that make up the pulses in a bar of 4/4, and 8 quavers or eigth notes and

so on. The subdivision indicates to the drummer what kind of feel the music is going to have (HARRISON,

1996, p.7)

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Portanto, a condução rítmica do chimbal não só traz o apoio rítmico sobre o qual a

melodia deve “pulsar”, como também as nuances estilísticas pertencentes ao choro

(destacado pelos acentos nas segundas semicolcheias). Segue abaixo (figura 9) um trecho dos

oito primeiros compassos da bateria com a melodia:

Figura 9: Trecho dos oito primeiros compassos da bateria com a melodia da música Sorrindo

No que concerne às interações com os instrumentistas, depreendemos que tanto a

condução rítmica de Bahia altera a interpretação melódica, como também, num sentido

inverso, a interpretação dos instrumentos melódicos altera a condução “rítmica” de Bahia.

No livro The Rhythmic structure of music, os autores ressaltam que:

Mudanças na melodia podem alterar um agrupamento rítmico (...). É muito

importante perceber que o entendimento de um ritmo pelo performer influencia

totalmente na interpretação e na colocação das notas fracas e fortes. Tais dinâmicas,

se em uma nota ou em um grupo de notas, são um caminho importante para que os

agrupamentos ou frases possam se tornar mais claros. A dinâmica indica a

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tendência, a principal direção para alcançar o objetivo de uma nota ou de um grupo

de notas (COOPER e MEYER, 1963, p. 14).

Portanto, podemos notar que a linha do bumbo, além de tocar as figuras baseadas nas

características do estilo, o local onde estão as notas, coincidem em sua maioria com notas de

apoio da melodia (figura 9 acima). Vemos no primeiro compasso da bateria, que a nota da

melodia (Fá) que cai com o bumbo, é a resolução da primeira frase melódica do tema (que

inicia na anacruse). Isso ocorre também no quinto compasso, no qual a frase repousa na

cabeça do segundo tempo do compasso, junto com a nota do bumbo. No terceiro compasso,

o bumbo também toca na cabeça do segundo tempo, ressaltando a nota mais grave da melodia

(Mi). Por fim, a resolução do trecho se dá em outra nota grave da melodia junto com o bumbo

e com uma abertura do chimbal que marca o final da parte A da música. Não podemos afirmar

que o bumbo é tocado apenas subjugado à melodia, mas sim que ocorre um conjunto de

interrelações entre o estilo, o ritmo, a composição, a linha melódica e a linha de bateria que

determinam a performance do instrumentista.

Após esse trecho, a música então volta para a parte A, na qual Márcio praticamente

repete o mesmo procedimento. A seguir, a música logo avança para a parte final (Coda), na

qual o baterista passa a condução do chimbal para o prato, enquanto os instrumentos ficam

livres para o improviso. A bateria, nesse trecho, muda de caráter e se distancia das

características do choro, aproximando-se mais de uma levada de Partido Alto encontrada em

alguns dos nossos livros de referência. Serve de ilustração, a própria levada de Partido Alto

que consta na “Apostila do Festival de Verão de 2003” escrita por Márcio:

Figura 10: Exemplo de Samba Partido Alto retirado da “Apostila de Ritmos Brasileiros de 2003” escrita por

Márcio Bahia.

Colocando o foco nesse trecho final da música Sorrindo (Coda), podemos dizer que

os instrumentos fazem uma sobreposição de diferentes ideias rítmico-melódicas, criando uma

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espécie de “improvisação coletiva”, a qual não julgamos necessário transcrever. Tratando

mais especificamente da bateria, podemos notar um “diálogo interno” entre o bumbo, o

chimbal (com o pé) e o aro da caixa, que além de interagirem entre si, também se relacionam

ritmicamente com a improvisação dos outros instrumentos.

Esse trecho dura apenas oito compassos e a música logo termina em fade out.

Vejamos abaixo (figura 11) o trecho final da bateria da música Sorrindo onde podemos notar

as quatro vozes (prato de condução, caixa, chimbal com o pé e bumbo) interagindo entre si:

Figura 11: Trecho final da bateria na música Sorrindo

Observamos aqui, a grande independência de membros de Márcio Bahia, criando

diálogos entre o bumbo, o chimbal (com o pé) e o aro da caixa, distribuindo assim os

“padrões” de samba entre todos os seus membros. Em entrevista ao Sesc Instrumental18,

Márcio Bahia descreve um procedimento que se aproxima da sua performance nesse trecho

final da música Sorrindo:

O que eu gosto de fazer é pegar a forma básica dos ritmos e distribuir de outra

maneira. Por exemplo, ao invés de fazer o samba direto, com aquele padrão de

tamborim no aro e o bumbo tocando direto, você pode pegar isso e distribuir. Então,

ao invés de fazer só o aro, você pega essa célula toda do tamborim, e distribui na

bateria toda. Isso vai depender também do contexto onde isso está sendo tocado

(BAHIA, 2013)

18 Entrevista de Márcio Bahia cedida ao “Bate-Papo” do Sesc Instrumental em São Paulo, agosto de

2013. Publicado no youtube em janeiro de 2014, acessado em 03/05/2014.

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Ainda, segundo o músico, essa forma de tocar utilizando os quatro membros para

formar a linha da bateria é denominada de Four Way Coordination. De acordo com alguns

dos principais livros de bateria norte- americanos, como o John Riley e Gary Chester, o Four

Way Coordination surge mais claramente no Be Bop dos anos 40, em que os quatro membros

do baterista atuam ativamente na construção da linha “rítmico-melódica” da bateria. Vale

citar o livro intitulado Four Way Coordination, de 1963, em que os autores preveem que o

“futuro” da bateria é o desenvolvimento dos quatro membros atuando com equivalente

importância. Vejamos um trecho da introdução do livro19:

Um baterista usa as duas mãos e os dois pés para tocar, mas até recentemente os

pés têm desempenhado papel secundário (...). Há provas abundantes na forma de

tocar de muitas bateristas modernos para indicar que o futuro baterista vai ter que

ser tão proficiente com seus pés quanto ele é com as mãos”. (DAHLGREEN,M.;

FINE,E., 1963, p. 2)

Voltando ao trecho final da música Sorrindo (Figura 13 acima), vemos que Márcio

constrói um diálogo, em que as “vozes” da bateria se complementam, criando uma complexa

interação entre as peças da bateria, demonstrando assim que, desde suas primeiras

performances dentro do grupo, já possuía um grande virtuosismo técnico e uma grande

“independência” de membros. Fazendo um adendo em relação ao termo “independência” de

membros, o baterista John Riley, no livro The Art of Bop Drumming, discute o “mal” uso

dessa expressão, dando preferência ao uso do termo “interdependência”:

Independência é um termo impróprio porque a última coisa que um baterista quer

é que seus membros trabalhem independentemente. O que vc deve trabalhar é o

que eu chamo de interdependência, onde cada membro sabe exatamente o que os

outros estão fazendo e como eles trabalham juntos e não independentes um do outro

(...). Não pense nos seus membros como tendo quatro “cérebros” independentes,

19 A drummer uses both hands and both feet in playing, but until recently the feet have played

subordinate part. The autors feel there is abundant evidence in the playing of many moderns drummers to

indicate that the future drummer will have to be as proficient with his feet as he is with his hands mãos

(DAHLGREEN,M.; FINE,E., 1963, p.2)

.

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ao invés disso, visualize quatro partes interdependentes que trabalham juntas para

criar todo o “balanço da batida” (swinging groove). (RILEY, 1994, p. 17)

Dialogando agora com a dissertação de mestrado do baterista Guilherme

Marques, tomamos emprestada a expressão “tocar nas quebradas”, utilizado pelo autor

quando define a forma em que o baterista Airto Moreira toca o samba. Traçando um paralelo

com a performance de Márcio Bahia no trecho final da música Sorrindo, depreendemos que

“tocar nas quebradas” nos remete a esse modo mais “livre” de tocar o samba, com a condução

no prato e os membros dialogando entre si. Segundo o depoimento do próprio Airto Moreira

para o pesquisador:

Nos anos 60 ''nas quebradas'' era uma gíria que servia para várias coisas diferentes.

Quando eu tocava samba eu fazia uns acentos diferentes ao invés de tocar direto.

Assim, depois de pouco tempo começamos a chamar aquele estilo de “samba nas

quebradas”. Eu não lembro quem inventou esse termo, mas ouvindo o Edison

Machado você pode perceber aquele estilo, pois ele e outros bateristas cariocas já

tocavam assim (MOREIRA apud MARQUES, 2013, p. 49)

Em outro trecho da dissertação de Marques, o autor declara: “A partir deste relato de

Airto percebe-se o uso do termo “nas quebradas” para representar, sobretudo, uma mudança

na postura musical dos bateristas ligados ao sambajazz.20 (MARQUES, 2013, p.50)

Na entrevista com Márcio Bahia, perguntamos se ele conhecia essa expressão, e ele

respondeu: “Tocar nas quebradas” é pegar o padrão básico e distribuir por toda a bateria,

inclusive com os pés. O Tutty Moreno que toca muito bem dessa forma, o Nenê também.”

(BAHIA, 2013)

Portanto, Márcio Bahia, por seu histórico de vida que vimos no primeiro capítulo

dessa dissertação, está em constante diálogo com as “tendências” da bateria contemporânea.

20 A pesquisadora Joana Martins Saraiva faz uma classificação dos discos representativos do que seria o gênero

sambajazz a partir de um estudo extenso baseado nos relançamentos dos catálogos das gravadoras Dubas, Som

Livre e Odeon. A partir de uma listagem onde figuram os nomes dos discos, o ano de lançamento e os músicos

participantes, a autora cria uma relação de músicos ligados ao gênero sambajazz, agrupando-os pelos seus

instrumentos. Nesta relação figuram os bateristas, Edison Machado, Dom Um Romão, Airto Moreira, Ronie

Mesquita, Milton Banana, Hélcio Milito, Wilson das Neves, Toninho Pinheiro, Rubinho Barsotti, Turquinho e

Lauro Bonilha. Não aparecem nesta listagem outros nomes importantes para a época como, Portinho, Chico

Batera, Vitor Manga e Ohana (MARQUES, 2013, p.50).

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O Four Way Coordination e o “Samba nas Quebradas” são exemplos do reflexo que seus

estudos tiveram em sua performance.

Para finalizar a análise dessa primeira música, podemos destacar alguns traços

característicos da performance de Márcio Bahia relacionados com esse grupo de análise:

1) a base de suas linhas de bateria inspiradas nos ritmos brasileiros e suas relações com a

percussão popular, demonstrando domínio nas nuances e idiossincrasias de cada estilo (no

caso da primeira parte da música com o choro e da segunda parte, algumas aproximações

com o samba partido alto e o samba jazz);

2) as interações com a melodia, sobretudo nas inusitadas variações de bumbo e nas aberturas

de chimbal, que deram movimento ao ritmo, ao mesmo tempo em que apoiavam a melodia.

Destacam-se também as aberturas de chimbal nas segundas semicolcheias que, além de terem

reforçado o ritmo feito pelo piano, trouxeram a peculiaridade do acento “típico” do choro;

3) a grande independência de membros, na parte final, com a presença de quatro vozes

independentes (Four Way Coordination) criando uma linha da bateria complexa e bem

construída do ponto da vista da performance. Notamos esse procedimento performático em

outros bateristas citados no texto, como Airto Moreira, Edison Machado, Tutty Moreno e

Nenê, que vão ao encontro dos nomes citados por Bahia no primeiro capítulo como suas

principais referências na bateria.

Dentro desse período estudado, encontramos algumas outras peças que têm

características semelhantes em relação às aproximações com o samba e o choro. Trataremos,

a partir de agora, de algumas outras músicas que se aproximam da performance de Márcio

na música Sorrindo. São análises mais superficiais, que servem apenas para fazer um

levantamento dos traços mais recorrentes nas interpretações de Bahia e para que tenhamos

uma visão panorâmica, permitindo uma análise longitudinal em suas performances ao longo

do período analisado. Podemos citar quatro músicas com interpretações bem próximas à

música Sorrindo, sobretudo em relação à primeira parte da performance analisada

anteriormente. São elas: Salve Copinha, Intocável, Canção da Tarde e Surpresa.

Começando com o tema Salve, Copinha, do álbum Brasil Universo. Essa música traz

características semelhantes à performance de Márcio na música Sorrindo, porém ela segue

um padrão ainda mais próximo das levadas de samba contidas na “Apostila de Ritmos

Brasileiros de 2003”, principalmente por causa da condução direta do bumbo (com o padrão

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colcheia pontuada e semicolcheia ). Novamente encontramos alguns acentos

na condução, dados principalmente pelas aberturas do chimbal, feitas nas segundas

semicolcheias, o que evidencia novamente sua proximidade com o choro (BOLÃO, 2003), e

ainda, reforça algumas notas da melodia, que também é basicamente toda formada por

semicolcheias (assim como na música Sorrindo). Em relação à forma da música, Márcio

mantém a condução no chimbal nas partes A e C, abrindo para o prato apenas nas partes B,

porém, mantendo basicamente a mesma condução rítmica no bumbo e no aro da caixa.

Seguem, abaixo, os oito primeiros compassos da bateria da música Salve, Copinha:

Figura 12: trecho dos oito primeiros compassos da bateria da música Salve, Copinha

Como referência, é visível a semelhança com um dos padrões de samba e choro da

“Apostila de 2003”, principalmente pelas variações do aro da caixa (figura 13 abaixo). O que

podemos evidenciar na música acima (figura 12 acima) são novamente as aberturas de

chimbal na segunda semicolcheia, o que torna mais claro suas aproximações com o choro:

Figura 13: Exemplo de Samba retirado da “Apostila de Ritmos Brasileiros” de Márcio Bahia

Vejamos agora os quatro primeiros compassos da bateria em relação à melodia da

música Salve, Copinha:

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Figura 14: Trecho dos quatro primeiros compassos da melodia e bateria da música Salve Copinha

Começamos então a perceber algumas características recorrentes em alguns outros

sambas e choros gravados por Bahia ao longo dos cinco discos. Um outro exemplo de música

que se aproxima bastante da linha de bateria da música Salve Copinha, é a música Intocável.

A bateria dessa música também mantém basicamente a mesma levada do começo ao fim, não

havendo improvisação, nem grandes variações rítmicas. Podemos ressaltar aqui, que as

aberturas de chimbal já não são todas feitas nas segundas semicolcheias, havendo uma

aproximação maior com a rítmica do samba, graças ao acento dado no segundo tempo do

compasso, (o que nos remete ao surdo do samba). Segue abaixo a levada básica de bateria da

música Intocável:

Figura 15 :Levada de bateria da música Intocável

Vale a pena fazermos um paralelo da linha rítmica da bateria com a primeira frase da

melodia da parte A. Podemos reparar na figura 16 abaixo, que a última nota do primeiro

compasso (nota Mi, ligada) coincide com a antecipação do aro, assim como as próximas duas

notas (Ré e Dó), no início do segundo compasso, caem junto com o aro. Aqui ocorre uma

“simbiose” entre a divisão rítmica comumente encontrada no samba com o contorno

melódico da composição de Hermeto, em que a linha de bateria, ao mesmo tempo em que

faz a condução rítmica, interage com a melodia.

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Figura 16: Primeira frase da melodia e a bateria da música Intocável

Outra música com características que se encaixam dentro das interpretações de samba

é Canção da Tarde, do álbum Só não toca quem não quer. Porém, essa música tem uma

aproximação muito grande com alguns padrões do estilo bossa nova contidos na mesma

“Apostila de 2003”. A parte A da música é toda tocada no chimbal, com o acompanhamento

do pandeiro. A música repete novamente no mesmo padrão, e apenas na segunda vez que a

música vai para a parte B (B2), Márcio Bahia “abre” para o prato, ficando um pouco mais

livre, porém, mantendo basicamente o mesmo padrão rítmico durante a música toda. Segue

abaixo a levada básica da música Canção da Tarde:

Figura17: Padrão básico de bateria usado na música Canção da Tarde

Utilizemos como referência rítmica de bossa-nova, o ritmo básico do violão de João

Gilberto na música Chega de Saudade, (do álbum Chega de Saudade de 1959), que traz o

mesmo desenho rítmico do aro da caixa tocado por Bahia na música Canção da Tarde.

Vejamos abaixo (figura 18) uma representação rítmica da “levada” básica feita por João

Gilberto, sendo a nota grave a representação do polegar fazendo o “baixo” no violão e as três

notas agudas representando os três dedos da mão direita de João Gilberto, que fazem a mesma

figura rítmica do aro da caixa feita por Márcio Bahia na música Canção da Tarde.

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Figura 18: Representação do ritmo do violão de João Gilberto na música Chega de Saudade, de 1959

Na música Surpresa, Márcio tem uma interpretação um pouco diferente das demais.

Nesse tema, ele também mantém uma única ideia praticamente a música toda. Mesmo no

improviso, enquanto os outros instrumentos ficam mais “soltos”, a bateria continua em seu

“padrão”, só que agora se aproximando de um samba funk ou partido alto encontrado

também nos manuscritos de Márcio. Essa linha de bateria, apesar de a colocarmos em meio

aos sambas, possui um padrão que se completa de quatro em quatro tempos, por isso a escolha

da escrita em 4/4 e não em 2/4. Podemos perceber a antecipação do acento na última

semicolcheia do compasso, reforçado pela abertura de chimbal. Seguem abaixo os primeiros

compassos da levada básica da música Surpresa:

Figura 19: levada básica da música Surpresa

Pudemos perceber até aqui algumas características recorrentes nas performances de

Márcio Bahia dentro do gênero samba tais como: a apropriação das levadas dos instrumentos

de percussão, as aberturas de chimbal e as variações do aro da caixa e do bumbo apoiando a

melodia, as aproximações e transformações dos mais variados estilos dentro do gênero samba

como a bossa nova, o choro, o samba funk, o partido alto e o maxixe.

Na Música Aquela Coisa, do álbum Lagoa da Canoa – Município de Arapiraca,

Márcio Bahia tem uma performance um tanto diferente da música Sorrindo e das outras

quatro músicas comentadas acima. Em entrevista, Márcio diz que a música Aquela Coisa é

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um samba jazz, cuja condução é feita toda no prato e os pés não mantêm a base contínua do

samba. Vejamos como Márcio Bahia define o samba jazz:

O samba jazz seria o quê? O samba mais conduzido em cima do que em baixo. Não

tem aquele bumbo ´tum-titutum-titutum`. Esse bumbo direto é determinante, ele

deixa claro: é isso e pronto. Para certos momentos funciona bem, mas para outros

não. Imagina que você toca o tema todinho com aquele bumbo, daí na hora do

improviso também, aí não! Só se for no contexto de uma banda de baile ou de

gafieira, mas no contexto jazzístico eu toco bem mais solto, só pontuando algumas

notas (no bumbo) (BAHIA, 2013).

Aproveitamos essa música para abordar um tema que foi recorrente em várias

entrevistas feitas para essa dissertação (com Jovino Santos, André Marques e o próprio

Márcio Bahia): o “modo de interpretação” utilizado dentro do grupo de Hermeto, no qual o

termo “inversão” (1ªinversão, 2ª inversão, 3ªinversão) aparece com um sentido diferente do

usualmente utilizado na harmonia. Através dos estudos e da prática em conjunto feita no

Jabour, o grupo tinha em sua rotina de estudo, pesquisar e praticar os ritmos brasileiros,

procurando conhecer suas peculiaridades (como vimos nas análises acima) e saber tocá-los

bem próximos à linguagem “original” de cada estilo. Eles denominam esse “modo” de

interpretação de “1ª inversão”. Esse termo tem um uso mais expandido em relação ao usado

comumente na harmonia, em que o acorde é tocado em sua primeira inversão e depois pode

ser invertido na segunda e na terceira inversão, trocando a ordem das notas do acorde em

questão. Dentro do grupo, a primeira inversão significa: tocar o ritmo mais próximo do

“padrão”, fazer os acordes característicos do gênero e as frases rítmicas e melódicas dentro

da linguagem do estilo. Segundo André Marques21, pianista atual do grupo:

Quando falamos inversão, normalmente a gente pensa no acorde. Mas lá no grupo

o termo inversão é um outro conceito. A gente pode pensar como se fossem

camadas. Por exemplo, se for pensar num baião: a primeira camada, ou, a primeira

inversão é o “baião de raíz”, é o tradicional, é tocado pensando no ritmo mais

certinho, como ele é, normalmente com uma harmonia mais simples, tentando

21 Entrevista com André Marques feita em São Paulo em abril de 2014.

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improvisar pensando nas frases dentro da linguagem. Já a segunda inversão você

já pensa num ritmo mais solto, já começa a mudar um pouco a harmonia: não

deixando de tocar a linguagem, é dentro da linguagem do estilo, só que com outros

elementos a mais (...). A terceira inversão, daí já é loucura total, é bem livre mesmo

(MARQUES, 2014).

Para reforçar essa conceitualização a respeito das inversões, podemos usar as palavras

do próprio Márcio:

Quando fala de inversão, em termos de bateria, é quando você tem uma batida

básica e vai ficando solto em relação a essa base (...). Mesmo tocando um samba

solto, você tem que manter o “caminho de casa” senão fica só solto e não é mais

samba. Você tem que usar os elementos do samba só que de forma mais livre

(BAHIA, 2013).

Em sua dissertação, o baterista Guilherme Marques utiliza uma outra referência, que

traz uma nova nomenclatura para esses “modos de interpretação”. Ele cita um depoimento

do baterista Michael Carvin para a autora Ingrid Monson, que “[...] associa as partes onde

predomina a manutenção do tempo a um suposto estado musical ´sólido`, ao passo que às

partes onde há o predomínio de ideias rítmicas mais livres associa-se um estado musical

´líquido`. (CARVIN apud MONSON, 1996, p. 55)

No caso da dissertação de Guilherme, ele considera a performance de alguns

bateristas mais “sólida”, na medida em que tocam de forma mais “fechada”, mantendo mais

o ritmo em seus padrões originais, (como alguns bateristas de samba e de bossa nova),

enquanto outros tocam de maneira mais “líquida”, ou seja, de forma mais “aberta e livre”,

como por exemplo Airto, Nenê ou Tutty Moreno (e outros bateristas ligados ao samba jazz,

como Edison Machado). No caso de Márcio Bahia, não podemos fazer essa generalização,

graças à multiplicidade de performances presentes no repertório analisado. Encontramos

interpretações em que Márcio toca de forma tanto “sólida” quanto “líquida” de forma

equilibrada, ou como dissemos, na “primeira inversão” mantendo mais o ritmo, como nas

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músicas citadas anteriormente, assim como na “segunda ou na terceira inversões”, como

veremos abaixo.

Outro fator relevante, também analisado na dissertação de Guilherme Marques,

é o uso do termo “bateria melódica”. Segundo o depoimento de Tutty Moreno para Marques:

“o baterista ´melódico` é aquele que não pensa unicamente no ritmo, ele toca em cima da

melodia [...] quer dizer, mistura o ritmo com a melodia” (MORENO apud MARQUES, 2013,

p.52). Podemos ressaltar essa postura em relação às performances de Márcio Bahia, já que

em vários trechos de seu discurso ele declara que se baseia na melodia para criar suas linhas

de bateria, assim como é possível descrever como ocorre esse procedimento na prática, graças

às transcrições dos trechos ao longo dessa dissertação. Segue abaixo mais um trecho da

dissertação de Marques no qual o autor complementa o conceito da bateria “melódica”:

Além desta ideia que associa a execução rítmica do baterista à melodia22,

especialmente através das suas intervenções, que ora seguem o desenho rítmico de

uma melodia e ora complementam ou preenchem este mesmo desenho através de

um diálogo mútuo, para Tutty Moreno outro componente importante que

caracteriza a atuação melódica do baterista é a consciência do caminho harmônico

das músicas. Neste caso, as intervenções dos bateristas possuíam significado não

apenas como contribuição para o desenvolvimento das ideias de um solista, mas

tinham o caráter de reforçar, enfatizar ou até mesmo “quebrar” a estrutura da

música (MARQUES, 2013, p. 52).

Tratando da performance na música Aquela Coisa, podemos observar que na

interpretação de Bahia, os padrões básicos do samba (1ª inversão) não estão tão explícitos

como nas músicas anteriormente analisadas, dando-nos a liberdade de dizer que essa música

está sendo tocada na 2ª Inversão. Como dissemos acima, a segunda inversão é uma

interpretação mais livre do estilo, podendo haver maior variação e maior liberdade de criação

sobre o material musical em questão.

Nessa música fica bem evidente a interação da bateria com a linha melódica. Em

segundo plano, também notamos alguns acentos e finalizações de frases que seguem o ritmo

22 A melodia neste caso se refere tanto ao conteúdo melódico que caracteriza um tema, com suas partes

constituintes e suas diversas recorrências e repetições, quanto ao desenvolvimento improvisado de uma melodia

por um solista dentro de um determinado ciclo harmônico (MARQUES, 2013, p. 52).

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do piano. Incluímos, abaixo, um trecho dos seis primeiros compassos da música Aquela

Coisa, contendo a melodia, o ritmo do piano e a bateria:

Figura 20: Transcrição dos primeiros seis compassos da música Aquela Coisa do álbum Lagoa da Canoa-

Município de Arapiraca, contendo a melodia, o ritmo do piano e a bateria23.

Já no primeiro compasso, Bahia toca junto com o “ataque” dos acordes e depois, a

partir do segundo, busca um equilíbrio entre o contorno melódico e o ritmo do piano. No

quarto compasso, no qual há uma nota mais longa da melodia, Bahia preenche os espaços,

mantendo ao mesmo tempo a condução em semicolcheias e os acentos junto com o ataque

dos acordes. Abaixo, na figura 21, vemos que ele interage mais com o ritmo do piano do que

com a própria melodia. Por exemplo, no oitavo compasso os acentos nas últimas

semicolcheias de cada grupo de quatro seguem o padrão do ritmo dos acordes. Também no

décimo compasso, a bateria prepara e executa junto a tercina presente no segundo tempo do

compasso da linha da harmonia. Depois dessa tercina há três compassos onde o ritmo do

piano fica livre, sem indicação específica do que deve ser feito. Neste trecho, a bateria

continua fazendo a condução rítmica e passa a interagir mais com a melodia da música (a

partir do décimo primeiro compasso).

23 A melodia e o ritmo do piano foram extraídos do Livro Tudo é Som editado por Jovino Santos.

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Figura 21: Transcrição dos compassos de 7 à 12 da música Aquela Coisa, contendo a melodia, o ritmo do

piano e a bateria

Após esses três compassos, nos quais o ritmo do piano é mais livre, há no décimo

quarto compasso (figura 22 abaixo), uma convenção24 na qual todos os instrumentos

acentuam juntos. Seguem-se então mais três compassos em que a bateria interage com a

melodia, finalizando o trecho em mais uma convenção onde todos acentuam juntos.

Figura 22: Transcrição do compasso 13 ao 18 da música Aquela Coisa, contendo a melodia, o ritmo do piano

e a bateria.

24 Convenção é um termo comumente usado pelos músicos para denominar uma figura rítmica ou um acento

previamente convencionado em um determinado trecho musical. Geralmente a convenção é tocada por todos

os instrumentistas ao mesmo tempo e no caso da bateria, a convenção pode ser preenchida com outras notas,

como podemos ver na figura 22. (nota do autor).

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Essa interação tão próxima entre melodia, harmonia e bateria só se dissolve no trecho

do improviso de flauta, onde o baterista, apesar de manter a condução rítmica, fica bem mais

livre, sem seguir padrões pré-estabelecidos; em outras palavras, a bateria interage mais com

o solista, que cria, durante a improvisação, atmosferas e dinâmicas, mas em cada execução,

a interação entre os instrumentos resulta em diferentes sonoridades e em novas linhas rítmicas

e melódicas (nesse caso optamos por não transcrever nenhum trecho, devido a tamanha

liberdade encontrada na interpretação de Bahia). Podemos dizer que no trecho do improviso

da flauta, a bateria aproxima-se da “terceira inversão” citada por Márcio, no qual os padrões

de samba servem apenas como inspiração já que a performance de Bahia nesse trecho é muito

livre e solta. Encontramos esse procedimento em várias músicas analisadas, em que no

momento do improviso Bahia fica muito livre (terceira inversão) sem se ater tanto aos

padrões rítmicos do estilo.

Para finalizar, podemos ressaltar que os traços característicos da performance de

Márcio Bahia na música Aquela Coisa são:

1. A interação direta com a melodia e com o ritmo do piano.

2. A questão das “inversões” utilizadas nas interpretações do grupo, principalmente em

relação aos ritmos brasileiros.

3. A interpretação livre na parte do improviso de flauta (terceira inversão) no qual

Márcio demonstra novamente seu virtuosismo técnico principalmente em relação ao

Four Way Coordination.

Essas características também são recorrentes em um outro samba chamado Rebuliço,

do álbum Só não toca quem não quer. A interpretação de Márcio Bahia nessa música é

também bastante complexa, com uma performance bem “livre”, incluindo um aumento no

andamento na parte final da música. Podemos dizer que, nessa música, Márcio Bahia começa

fazendo a 1ª inversão do ritmo de samba e depois vai aos poucos se distanciando dessa base,

tornando sua interpretação cada vez mais livre e cheia de variações. Na entrevista realizada

com Jovino Santos25, o pianista usa o conceito de “inversão rítmica” para diferenciar da

inversão harmônica. Cabe aqui expor um trecho dessa entrevista já que está diretamente

relacionada com a interpretação de Márcio Bahia na música Rebuliço:

25 Entrevista realizada por Skype no dia 22/01/ 2014 por Lucas Casacio e Fabio Bergamini

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O que chamo de ´inversão rítmica` é diferente da concepção da ´inversão

harmônica` porque não é tão linear. No caso da inversão rítmica é uma concepção

mais ´centrífuga` do que linear, ou seja, você tem um ritmo central da música e

depois os ritmos que vão cada vez se distanciando daquele centro, mas ainda

conectados a ele”. (SANTOS, 2014)

Seguindo as palavras de Jovino, a interpretação de Márcio na música Rebuliço inicia-

se com uma levada na “1ª inversão”, bem próxima aos padrões de samba que já vimos

anteriormente (veja figura 23 abaixo). Contudo, logo na segunda vez da parte A (A2), Bahia

“abre” a condução para o prato e começa aos poucos a se distanciar do “centro”, ou seja, do

padrão básico de samba, criando uma interpretação mais próxima à “segunda inversão”. No

improviso de Hermeto, a bateria fica totalmente livre, interagindo com o solista, de maneira

bem ativa e intensa, o que caracteriza esse trecho como “terceira inversão”. Essa

interpretação, apesar de única, aproxima-se da performance de Márcio na música Aquela

Coisa analisada acima. Podemos aqui ressaltar a atuação da bateria em relação à forma

musical. Na entrevista de agosto de 2013, Márcio cita:

Eu procuro sempre construir uma linha que vai ´evoluindo`. Faço uma coisa no A,

no B já mudo, fazendo uma coisa um pouco mais interessante, no solo dou uma

mudada na condução. Eu sempre gostei de fazer assim, de fazer a bateria ficar

dinâmica dentro da música, não só estática. Mas respeitando a música que eu estou

tocando é claro, tudo dentro do contexto em que você está tocando (BAHIA, 2013).

Podemos notar essa construção na música Rebuliço. A forma é AABB, sendo que

Bahia tem uma interpretação diferente para cada trecho da música. Vejamos abaixo os quatro

primeiros compassos da parte A1 com a bateria na “primeira inversão” acompanhada da

melodia e dos acordes:

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Figura 23: Transcrição dos quatro primeiros compassos da música Rebuliço

Nesse primeiro trecho, Bahia permanece próximo aos “padrões” de samba e choro,

mantendo o chimbal em semicolcheias, a mão esquerda no aro e o bumbo conduzindo direto

em colcheia pontuada e semicolcheia ( ).

Na segunda repetição da parte A (A2), Márcio Bahia tem uma interpretação diferente

da executada na primeira repetição (A1), abrindo a condução para o prato, passando a mão

esquerda do aro para a pele (da caixa) e o bumbo não mais mantém o padrão de samba,

fazendo variações que se aproximam mais dos padrões de maxixe, como podemos ver abaixo

(figura 24). Aqui novamente podemos observar o chamado Four Way Coordination, em que

as quatro “vozes” da bateria participam ativamente na construção da sua linha rítmica.

Vejamos agora a bateria na segunda repetição do tema A (A2) da música Rebuliço:

Figura 24: Trecho da bateria da segunda repetição da parte A (A2) da música Rebuliço.

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O diálogo mais intenso nessa parte ocorre entre a caixa e o bumbo, em que aos poucos

ele vai se transformando da célula do samba, para um “padrão” mais próximo ao maxixe.

Vejamos abaixo alguns padrões de maxixe escritos por Márcio Bahia na “Apostila de Ritmos

Brasileiros” de 2003:

Figura 25: Padrões de maxixe retirados da Apostila de Ritmos Brasileiros de Márcio Bahia

Na parte B da música, notamos mais uma mudança: a melodia passa a fazer figuras

de sextinas, enquanto o bumbo se aproxima do terceiro padrão do maxixe citado acima na

figura 25:

Figura 26: Transcrição da parte B da música Rebuliço, contendo a bateria, a melodia e o ritmo da mudança

dos acordes.

Nos dois primeiros compassos, as mãos estão divididas entre o prato e o chimbal (mão

direita no prato e esquerda no chimbal), enquanto o bumbo faz uma célula que nos remete ao

terceiro padrão de maxixe citado acima. No terceiro compasso, há um acento no primeiro

tempo junto com o acorde (figura mínima) e a seguir um preenchimento do compasso com

um rulo no prato. Só a partir do quarto compasso que Márcio retoma a “levada” da música,

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repetindo a parte B toda com uma condução rítmica mais constante. Apenas no sétimo

compasso do B2, é que há uma série de convenções onde a bateria acentua junto com os

demais instrumentos. A partir daí (B2) a bateria tem uma interpretação mais livre, baseada

na interação com os solistas e com os acentos da melodia. Outra característica recorrente é a

mudança de andamento ocorrida no trecho final da música Rebuliço, acelerando a volta do

tema A, onde Márcio faz uma condução na cúpula do prato (em colcheias) e há uma

predominância da levada do pandeiro sobre a bateria.

Podemos citar ainda, no último álbum Festa dos Deuses, a música Peneirando Água,

que tem um trecho que nos remete às interpretações mais “abertas” de samba. Nessa música,

a levada do samba é distribuída por toda a bateria, inclusive nos toms e no surdo. Na

entrevista de agosto de 2013, Márcio denominou essa levada de samba batucada. Segue

abaixo um trecho dos doze primeiros compassos da bateria da música Peneirando Água:

Figura 27: Trecho dos doze primeiros compassos da parte em samba da música Peneirando Água

Nota-se que Márcio inicia o trecho tocando no aro da caixa e a partir do segundo

tempo do terceiro compasso ele começa a distribuir a linha do “tamborim” pelos tambores

(caixa e surdo). Nesse trecho, o chimbal (com o pé) se mantém no contratempo, enquanto o

bumbo faz algumas variações, colocando algumas pausas na “cabeça” do tempo, como

podemos notar no quarto compasso, assim como nos dois últimos compassos (11º e 12º).

Para finalizar a parte das análises do samba e choro na bateria, vamos falar sobre a

música Ginga Carioca, do mesmo álbum Festa dos Deuses, de 1992, em que o arranjo dispõe

de uma interessante estrutura rítmica, sobre a qual transcorre uma complexa melodia. Nas

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palavras de Márcio Bahia: “o Ginga Carioca é um pandeiro dividido entre os instrumentos e

depois só fica solto no improviso” (BAHIA, 2013)

A música inicia com o surdo fazendo uma marcação bem típica do samba, tocando na

primeira e na quarta semicolcheias. No terceiro compasso, entra a bateria com o chimbal

conduzindo em semicolcheias, a caixa acentuando a quarta semicolcheia e o bumbo tocando

apenas na primeira nota de cada compasso. As linhas do piano e do baixo vão preencher os

espaços entre a marcação do surdo e os acentos da caixa, sendo que o piano toca em todas as

segundas semicolcheias de cada tempo e o baixo nas terceiras (contratempo), formando uma

compacta estrutura rítmica, muito bem amarrada, sem espaço para variações. Podemos notar

que há uma abertura de chimbal (na segunda semicolcheia do segundo tempo do compasso),

que reforça a linha do piano (2ª semicolcheia) – onde o chimbal abre – e ao mesmo tempo a

linha do baixo (3ª semicolcheia) – onde o chimbal fecha. Resumindo, cada semicolcheia do

ritmo é preenchida por diferentes instrumentos. Para uma melhor visualização, observemos

a tabela abaixo contendo as oito semicolcheias do compasso 2/4 que formam a estrutura

rítmica da música Ginga Carioca:

1ªsemicolcheia 2ª 3ª 4ª 5ª 6ª 7ª 8ª

Bumbo+

Chimbal +

Surdo com

baquetas

Chimbal+

Piano

Chimbal+

Baixo

Bumbo+

Caixa

com Buzz

roll +

Chimbal+

surdo com

a mão

Bumbo +

Chimbal+

Surdo

com

baquetas

Abertura

de

Chimbal+

Piano

Chimbal

fecha+

Baixo

Bumbo+

Caixa+

Chimbal+

Surdo

com a

mão

Tabela 2. Estrutura Rítmica da Música Ginga Carioca nas oito semicolcheias que constituem o ritmo

O surdo reforça a linha da bateria, fazendo uma “levada” tradicional de samba.

Vejamos abaixo um padrão básico de surdo retirado do livro Batuque é um privilégio de

Oscar Bolão26:

26 As notas executadas no surdo pela mão abafando a pele, tocadas na quarta semicolcheia de cada tempo (que

antecedem as batidas da marcação do surdo) são quem definem as alturas das notas, sendo que as notas mais

agudas são compostas pelo abafamento da pele com uma das mãos, enquanto a outra toca na pele com a baqueta.

A nota mais grave é dada pelo toque da baqueta na pele solta, sem o abafamento da mão.

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Figura 28: legenda (bula) do surdo

Figura 29: Levada de surdo de samba retirada do livro Batuque é um Privilégio de Oscar Bolão

(BOLÃO, 2003, p. 29)

Apresentamos agora uma grade contendo a bateria, o surdo, o baixo, o piano e a

melodia da música Ginga Carioca:

Figura 30: Transcrição dos 6 primeiros compassos da música Ginga Carioca (bateria, surdo, baixo, piano e

melodia)

A estrutura rítmica vai se construindo aos poucos, iniciando com o surdo, depois de

dois compassos entra a bateria que é complementada, após mais dois compassos, pelo piano

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e pelo baixo. A melodia só entra no 9º compasso, quando a estrutura rítmica já está

construída:

Figura 31: Transcrição dos compassos de 7 a 12 da música Ginga Carioca (bateria, surdo, baixo, piano e

melodia)

A bateria segue esse mesmo padrão durante toda primeira exposição do tema (A B e

C), mudando apenas na reexposição do tema, quando o surdo para e entra um pandeiro

fazendo uma condução em semicolcheias. Nessa parte, a bateria muda sua condução para o

prato, ficando um pouco mais livre. É interessante citar, que na parte B, da segunda vez da

música, aparecem algumas fusas na melodia e o pandeiro dobra sua condução por cinco

compassos, voltando para sua condução em semicolcheia na parte C. Notamos aqui que o

padrão da bateria se mantém por um longo trecho fazendo a mesma figura, graças a rígida

estrutura rítmica do arranjo. Podemos citar aqui um trecho da entrevista de agosto de 2013,

no qual Márcio comenta o processo vivenciado pelo grupo dentro dos estudos na “Escola do

Jabour”, e ressalta os contrastes existentes entre a forma de tocar mais “fechado” e

“constante” e a forma mais “aberta”e “livre”:

Teve uma época que a gente queria tocar tudo solto, e não é. O Hermeto chegava

para a gente e falava: - ´Tem a hora de uma coisa e a hora da outra, não é para tocar

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sempre solto`. Então a gente exercitava isso(...). Normalmente no tema a gente

determinava o que ia ser tocado, agora no improviso a gente queria sempre tocar

muito solto e o Hermeto fazia a gente ir por etapas, para exercitar: - ´Vamos tocar

só o básico, agora vamos ficar um pouquinho mais solto, mas usando os elementos

do básico, agora vamos botar o básico na cabeça e ficar solto de verdade´. Por isso

é escola né, era um exercício, a gente exercitava muito isso juntos (BAHIA, 2013).

Nos improvisos da música Ginga Carioca, enquanto o pandeiro se mantém um pouco

mais contido fazendo a condução do samba, a bateria fica bem mais solta, interagindo e

contribuindo para reforçar as atmosferas e dinâmicas criadas pelos solistas (Carlos Malta no

sax alto e Hermeto no teclado). Outro fator importante que podemos levantar nessa música é

que no trecho final, há um coda em 7/8. Percebemos aqui as execuções dos ritmos brasileiros

em compassos ímpares, onde o pandeiro faz uma condução mais contínua enquanto a bateria

fica um pouco mais livre, acentuando junto com algumas notas da melodia em 7/8. Abaixo,

encontram-se dois compassos dessa parte final da música:

Figura 32: trecho final em 7/8 da música Ginga Carioca

Para encerrar as análises do primeiro grupo de músicas, pudemos perceber algumas

características marcantes nas performances de Márcio Bahia, dentre elas: o conhecimento

dos padrões e nuances dos estilos de samba, assim como a criação de variações e a

interpretação livre do estilo. Tanto na primeira inversão, como nas inversões mais “soltas”

(2ª e 3ª inversões), percebemos a forte interação da bateria com as linhas melódicas das

músicas. De modo geral, vimos que nos trechos em que há improvisação de algum “solista”,

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a bateria “abre”, conduzindo no prato e fazendo uma linha rítmica mais livre e com mais

variações, interagindo então com o solista em questão. Nessa última música, observamos

também as performances de Bahia nas variações do samba em outras fórmulas de compasso

(no caso em 7/8).

2.3 A leitura musical como diferencial na performance de Bahia e as peças

escritas para a bateria

Nesse segundo grupo de músicas, abordaremos as performances de Márcio Bahia

relacionadas às interpretações de peças escritas para a bateria. Logo no primeiro disco,

Hermeto começou a escrever várias composições e arranjos para o grupo, o que talvez fosse

o grande diferencial em relação às formações anteriores. Segue abaixo a percepção de Bahia

em relação a essa nova formação:

Era uma outra etapa do trabalho dele (Hermeto) em que veio aquela coisa da Série

de Arco e aqueles discos do Som da Gente. Era um novo grupo. Ele começou a

escrever bastante, coisa que ele não fazia tanto nas outras formações. Antes era

mais solto, nessa ele tinha uma coisa de fazer arranjo para o grupo mesmo. Ele

escrevia muito porque todo mundo lia bem, e na hora do palco a gente “quebrava

o pau” (BAHIA, 2013)

Quanto à interpretação das partituras, podemos citar um outro trecho da entrevista em

que Márcio explicita as orientações de Hermeto e o modo como ele via as peças que eram

escritas:

Ele (Hermeto) sempre falou uma coisa muito inteligente: - Olha, isso aqui é um

guia, se inspira nisso aqui e cria o seu. Eu não tinha que ficar restrito à partitura.

Mas eu estava tão interessado em saber o que ele queria, que eu pensava: - Espera

aí, antes de eu criar eu tenho que ver o que ele quer aqui. Então eu ia fundo no que

estava escrito, eu demorava para sair da partitura porque eu queria assimilar o que

ele quis dizer com isso (BAHIA, 2013)

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Se, por um lado, Márcio entendia a partitura apenas como um script – como discute

Nicholas Cook no texto Changing the musical object: Approaches to performance analysis

– por outro, a escrita musical teve papel essencial no desenvolvimento de suas performances

dentro do grupo. Talvez sem esse recurso, Bahia não conseguisse visualizar e executar

algumas complexas sobreposições rítmicas, como em Série de Arco por exemplo, ou ainda,

não conseguisse memorizar sequências rítmicas tão longas, como em Mestre Radamés.

Iniciaremos com a análise da música Magimani Sagei, do álbum Hermeto Pascoal e

Grupo, de 1982. Essa é uma música bastante importante para esse trabalho, pois o processo

composicional iniciou-se pela elaboração de alguns ostinatos rítmico-melódicos na bateria.

A partir de sete “temas” compostos por Hermeto para a bateria, foram sobrepostos elementos

como: latidos de cachorro, improvisos de flauta, palavras “indígenas”, conduções de ganzás

e caxixis, frases de cavaquinho, baixo e gritos.

Segundo Luis Costa-Lima Neto o processo composicional aconteceu da seguinte

maneira:

Ao contrário das outras músicas, Magimani Sagei foi feita na bateria, explorando

o instrumento melodicamente. O compositor (Hermeto) sentou-se ao instrumento

e começou a criar diferentes frases, que o baterista Márcio Bahia ia anotando na

partitura. Foram feitas ao todo sete frases rítmico-melódicas que foram utilizadas

como levadas. O passo seguinte foi a transcrição das notas da bateria para o baixo,

que passa a tocar em uníssono com a bateria ou em outros momentos respondendo

a ela. Por último, foram compostos os sopros (flauta em dó e flautim), os chocalhos

e guizos da percussão e as convenções onde os músicos gritam "selvagemente". No

estúdio, foram acrescentadas as palavras "indígenas" inventadas pelo técnico de

gravação e os latidos dos cachorros foram gravados na casa de Hermeto, depois da

gravação feita em estúdio (NETO, 1999, p. 119).

Nessa música, é possível perceber a possibilidade de utilização do pensamento

melódico na execução da bateria. A afinação dos tambores em Magimani Sagei determinou,

por muito tempo, as alturas usadas por Márcio. Como ele descreve:

Quando Hermeto compôs Magimani Sagei eu saquei: a bateria é um instrumento

melódico! Ele escreveu essa peça para mostrar isso. Você explora as notas, as

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alturas, não só aquela coisa de rudimento e coisas rítmicas, mas coisas melódicas.

Magimani Sagei é o maior exemplo disso (BAHIA, 2013).

Nessa peça, o sentido de “bateria melódica” utilizado por Márcio é diferente do que

citamos anteriormente, quando esse conceito referia-se às interações das performances do

baterista com a melodia. No caso de Magimani Sagei, os tambores são utilizados como um

“instrumento melódico”, e quem interage com a bateria são os outros instrumentos, que se

sobrepõem a esses sete “temas” desenvolvidos por Hermeto na bateria. Podemos destacar

aqui, a sonoridade da bateria de Márcio, com a afinação dos toms e do surdo bem aguda. As

notas de seu set são aproximadamente: a caixa em Si bemol 4, o tom 1 em Fá 4, o tom 2 em

Lá bemol 3 e o surdo em Si bemol 3, uma oitava abaixo da caixa. Não conseguimos

identificar uma nota de referência do bumbo, por ser mais seco e bafado, mas esta é

aproximadamente uma oitava abaixo do Si bemol do surdo.

Cumpre destacar desde já, a execução precisa e limpa feita por Bahia de cada frase

criada por Hermeto. O som que Márcio tira do instrumento é algo a ser sempre ressaltado

como uma das principais características em sua performance. Incluímos abaixo, os sete

ostinatos da bateria da música Magimani Sagei:

Figura 33: primeiro ostinato da bateria da música Magimani Sagei

O primeiro padrão foi escrito em compasso quaternário, pois, apesar de haver uma

aproximação com o ritmo de baião que normalmente se escreve em 2/4, a frase melódica se

completa em quatro tempos, por isso optamos por escrevê-lo dessa forma. Há um equilibrio

na frase deste primeiro “tema” feito pela bateria. A figura rítmica feita pelo bumbo no

primeiro tempo se aproxima da figura rítmica feita pelos toms no terceiro tempo, assim como

a ideia rítmica do segundo tempo se aproxima do quarto. As alturas, dadas pela afinação dos

toms e o uso da caixa sem a esteira, formam os padrões rítmicos melódicos como num jogo

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de pergunta e resposta. A frase se inicia no segundo tempo do compasso – onde há o apoio

do chimbal com o pé – ficando “suspensa” em sua nota mais aguda, executada no tom 1 no

terceiro tempo. Em sua continuação, a frase repousa apenas com a finalização do seu segundo

trecho, que se inicia na última semicolcheia do terceiro tempo, e se resolve com o apoio do

bumbo tocado na primeira nota do compasso.

O segundo padrão é uma sutil variação do primeiro, invertendo apenas o grupo de

notas que estão no quarto tempo do compasso, acrescentando também mais um bumbo na

última semicolcheia do compasso. O segundo tema é sempre apresentado como continuidade

do primeiro, tornando tarefa difícil diferenciá-los, principalmente em meio a tantos elementos

que foram sendo sobrepostos na música. Contudo, na segunda apresentação da sequência dos

sete ostinatos da bateria, é que o baixo entra junto com este segundo tema. Primeiramente ele

apoia as notas do bumbo, e depois faz uma frase idêntica ao padrão da bateria (figura 35),

tanto no que se refere à parte rítmica, quanto às alturas sugeridas pelo tema proposto pela

bateria:

Figura 34: Segundo ostinato de bateria da música Magimani Sagei

Figura 35: linha de contrabaixo da música Magimani Sagei

No terceiro padrão escrito na figura 36, há uma mudança significativa no desenho

rítmico, a qual se aproxima do padrão de baião utilizado por Márcio em outras músicas,

principalmente nos dois primeiros tempos do compasso. Enquanto os pés em uníssono

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continuam fazendo a célula rítmica do baião, as mãos desenvolvem a frase no terceiro e

quarto tempos, sem interromper a condução rítmica da levada de baião.

Neste momento, já na primeira exposição, a flauta em meio a seu constante improviso,

começa a sugerir um tema que vai se desenvolvendo ao longo da música e que se aproxima

muito dos padrões rítmico-melódicos tocados pela bateria, como podemos ver na figura 37:

Figura 36: terceiro ostinato da bateria da música Magimani Sagei

Figura 37: frases de flauta na primeira exposição do tema da música Magimani Sagei

Este quarto padrão, escrito abaixo, é uma variação do terceiro, mudando apenas a

sequência das notas no terceiro e quarto tempo do compasso.

Figura 38: quarto ostinato de bateria da música Magimani Sagei

Neste quinto ostinato, começa uma sequência de levadas nos tambores, tornando a

sonoridade mais densa e “escura”, devido à ausência dos pratos e à característica mais grave

dos tambores. Na primeira vez que este tema é tocado, há uma pequena pausa no improviso

de flauta, e a bateria fica em evidência, apenas com a voz que fala algumas palavras

“indígenas” que, segundo Luís Costa-Lima Neto “foram inventadas pelo técnico de som”

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(NETO, 1999). Mais uma vez podemos destacar a clareza da execução de Márcio Bahia,

deixando bem nítidas e evidentes cada nota executada nos tambores:

Figura 39: quinto ostinato de bateria da música Magimani Sagei

Quando Márcio passa para o sexto ostinato, inicia-se o trecho onde a textura musical

tem mais densidade de elementos, no qual as flautas passam a fazer um improviso coletivo,

os latidos de cachorro se tornam mais evidentes e o cavaco aparece fazendo seus primeiros

ataques.

Figura 40: sexto ostinato de bateria da música Magimani Sagei

O último ostinato segue como continuidade do trecho com maior tensão e densidade

da música. Na terceira e última vez que este é apresentado, surge um pequeno tema tocado

pelas flautas que se evidencia como o ápice da música, tendo neste trecho uma maior

quantidade de notas e de elementos tocados ao mesmo tempo:

Figura 41: sétimo ostinato de bateria da música Magimani Sagei

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Figura 42: Melodia da flauta construída sobre o sétimo ostinato da música Magimani Sagei

Na entrevista realizada em agosto de 2013, Márcio Bahia disponibilizou o manuscrito

feito por ele em 1981, quando registrou no “papel” a música Magimani Sagei. Nota-se na

gravação que ele toca praticamente todas as notas, exatamente como estão escritas, exceto

pelo chimbal com o pé que, no primeiro ostinato, não toca em todos os quatro tempos (apenas

no tempo 2, como visto na figura 35). Vale também ressaltar, que hoje em dia Márcio tem

uma interpretação um pouco diferente, adaptando a peça para seu kit atual, e fazendo nuances

interpretativas que foi desenvolvendo ao longo dos anos, como o chimbal marcando o

contratempo, algumas manulações que ele foi mudando e algumas dinâmicas e acentos que

ele foi acrescentando. Vejamos na figura 43 a cópia do manuscrito:

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Figura 43: Manuscrito da música Magimani Sagei realizado por Márcio Bahia

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Notamos a forte presença da escrita e da leitura musical como importante recurso para

a performance de Bahia. Vale ressaltar a direta influência de sua formação musical na área

da percussão erudita, tanto no que diz respeito à leitura, quanto nos aspectos técnicos, que

resultam numa sonoridade limpa e numa execução clara das idéias escritas. As manulações

escolhidas por Bahia para a execução da peça Magimani Sagei requerem uma grande

habilidade motora e velocidade de movimentos, que se constituem em características muito

específicas do intérprete. Talvez pelo fato de ser canhoto e ter tocado muito tempo como

destro, Márcio desenvolveu um equilíbrio entre as mãos e uma técnica com os pés que é algo

que nos chama muito a atenção. Insistimos em destacar a sonoridade e a clareza na exposição

das ideias musicais, o que deixa bem nítido para o ouvinte, o contorno melódico de cada

parte, assim como as mudanças dos trechos musicais utilizando-se de dinâmicas, intenções,

densidades e manulações que são muito peculiares de Márcio Bahia.

Analisando as peças escritas para bateria, nos cinco discos analisados, notamos a

presença de diversas músicas ou trechos musicais em que a linha de bateria foi criada ou

pensada de modo semelhante a uma peça de música erudita, com suas linhas escritas e bem

definidas, sem grandes espaços para a improvisação. Nesse ponto, consideramos que o

grande diferencial de Márcio Bahia seja – principalmente em relação aos outros bateristas

que o antecederam no grupo de Hermeto – justamente sua leitura e sua formação musical

dentro do campo da percussão erudita, o que permite fazermos uma aproximação da bateria

a um set up de percussão múltipla. Na entrevista de agosto de 2013, Márcio comentou que

durante seus estudos na Escola de Música Villa Lobos, ele se deteve por um longo tempo nos

estudos de percussão múltipla, já que havia uma necessidade de novos percussionistas que

tivessem esse tipo de desenvoltura, sendo que “a geração anterior, como a dos professores da

EMVL, eram especializados em determinada área ou determinado instrumento”, e nessa

época eles queriam formar novos instrumentistas que tocassem tanto teclados barrafônicos,

quanto tímpanos e sobretudo a percussão múltipla. (BAHIA, 2013) Portanto, o exame das

músicas nas quais Márcio apoia sua performance em partituras escritas por Hermeto (ou por

ele próprio “transcrito” das idéias de Hermeto), nos permite traçar esse paralelo entre seus

estudos de percussão múltipla e suas performances na bateria. Talvez esse seja um dos pontos

altos no que concerne às peculiaridades de suas performances e ao diferencial de Márcio

Bahia, principalmente em relação aos bateristas que o antecederam no grupo de Hermeto.

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Vamos agora abordar uma das músicas mais complexas e exigentes nas performances

de bateria dentre todos os discos analisados: a música Mestre Radamés. Para iniciar, podemos

citar um trecho da entrevista em que Márcio fala sobre essa música:

Tem arranjos no grupo que eu gosto de tocar exatamente o que está escrito porque

é muito bonito, tipo Mestre Radamés por exemplo. É tudo escrito e aquilo ali não

tem como mudar, ou melhor, posso até mudar, mas é tão bonito que eu não quero

mudar, é diferente. Eu gosto tanto da estética que eu não mudo (BAHIA, 2013).

Nessa música não há um gênero musical ou algum ritmo predominante. Trata-se de

uma composição na qual a bateria desenvolve um longo “percurso” interpretativo, sem

repetições de trechos, interagindo diretamente com o baixo e o piano que se sobrepõe a uma

extensa melodia, compostas por notas longas, onde não há ritornelos ou repetições, numa

crescente construção de sobreposições rítmicas e melódicas que fazem de Mestre Radamés

uma das mais importantes composições do ponto de vista desse trabalho. Enquanto a melodia

“passeia” em suas notas longas, a linha da bateria é composta por algumas complexas e

intrincadas sobreposições rítmicas, que levam os quatro membros do baterista Márcio Bahia

a trabalhar incessantemente, num desafio de técnica e interpretação. No livro “Hermeto

Pascoal, musicalmente falando...”27 o baixista Itiberê Zwarg define a música Mestre

Radamés da seguinte maneira:

Mestre Radamés para mim é o Hermeto mostrando como domina as inversões e

como é bom inverter tudo! Ele colocou o piano e o baixo tocando bateria e a bateria

tocando piano e baixo. Enquanto a melodia era de notas longas, ele fez a gente

movimentar tudo(...). É uma música muito rica. Está na concepção musical de

Hermeto misturar ritmos. É a música universal”. (ZWARG apud PETRINI, 2002,

p.59)

Em Mestre Radamés não há uma métrica ou uma fórmula de compasso predefinida,

já que a composição é feita por frase contínuas, em constante fluência irregular sem que

27 Entrevista realizada pelo autor Paulo Petrini em novembro de 2002 e publicada no livro Hermeto Pascoal, musicalmente falando” em 2002.

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prevaleça algum tempo forte ou ciclo que possamos identificar como um compasso

claramente definido.

A linha da bateria é construída a partir de basicamente duas vozes: uma feita pelo

prato junto com o bumbo, e a outra feita pela caixa e pelo chimbal (com o pé). A linha do

baixo e do piano foram construídas a partir da bateria, sendo que o baixo toca basicamente

junto com o bumbo (e o prato), e o piano com a caixa e o chimbal (com o pé). Uma

característica interessante desta peça é que não há improvisação e todos os instrumentos

obedecem a uma linha escrita pré-estabelecida. Também não há repetição de nenhum trecho,

sendo uma contínua construção contendo sobreposições de “camadas” melódicas do começo

ao fim da música. Em relação à partitura dessa música farei um breve relato pessoal que

penso ser relevante para esse trabalho. Primeiramente, eu havia transcrito um pequeno trecho

da bateria dessa música em 4/4. Contudo, na entrevista de agosto de 2013, Márcio Bahia nos

cedeu o manuscrito da partitura da bateria da música utilizada por ele desde seus estudos em

1983 até a gravação em 8428. Em sua partitura não havia fórmula de compasso e havia

algumas poucas diferenças em relação à escrita que eu havia feito no que diz respeito às

figuras rítmicas. O que estava diferente eram as linhas onde se localizam as peças da bateria

no pentagrama e o fato de Márcio não ter definido a fórmula de compasso. Posteriormente,

o pianista Jovino Santos – que nos cedeu uma entrevista em janeiro de 2014 – enviou-nos a

grade toda da música escrita em em 4/4 (exceto pelo primeiro compasso em 2/4), porém com

as notas todas com o dobro do valor, como se tivessem sido escritas em 2/2. Podemos discutir

aqui um pouco desse processo de escrita em relação à fórmula de compasso, à métrica e ao

pulso. No livro The Rhythmic Structure os Music, os autores Cooper e Meyer (1960) colocam

e seguinte definição29:

O ritmo é independente da métrica em dois sentidos distintos. Em primeiro lugar,

o ritmo pode existir sem que haja uma métrica regular, como acontece no caso do

28 Márcio Bahia deixos-nos tirar cópia da música Mestre Radamés no dia da entrevista feita por mim e Lucas

Casacio em Belo Horizonte em agosto 2013. 29 Rhythm is independent of meter in two separate senses. First, rhythm can exist without there being a regular

meter, as it does in the case of gregorian chant. That is, unaccented notes may be grouped in relation to an

accented one without there being regularly recurring accent measuring metric units of equal duration. Indeed,

rhythm is at least theoretically independent of pulse. Second, and more important for our purpose, rhythm is

independent of meter in the sense that any one of the rhythmic groupings given above can occur in any type of

metric organization.

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canto gregoriano. Ou seja, as notas não acentuadas podem ser agrupadas em relação

a um grupo de notas acentuadas sem que haja regularmente acentos recorrentes

medindo unidades métricas de igual duração. De fato, o ritmo é, pelo menos

teoricamente, independente do pulso. Em segundo lugar, e mais importante para a

nossa finalidade, o ritmo é independente da métrica, no sentido de que qualquer

um dos grupos rítmicos dadas acima pode ocorrer em qualquer tipo de organização

métrica (COOPER; MEYER, 1960, p. 6)

Outra importante observação que os autores fazem é que “nem sempre a barra de

compasso representa a métrica da música30” (COOPER; MEYER, 1996, p.88), ainda mais

no caso de Mestre Radamés cuja estrutura contínua não caracteriza nenhuma métrica

específica, dando liberdade para a escrita em diversas fórmulas de compasso, ou ainda, sem

determinar nenhuma especificamente.

Na grade de Mestre Radamés que Jovino gentilmente nos enviou (figura 46), podemos

observar claramente a interação entre os instrumentos: o baixo toca junto com o bumbo e

prato, o piano junto com a caixa e o chimbal, e a melodia “sobrevoa” essa densa estrutura

rítmica com suas notas longas. A título de curiosidade colocamos abaixo, primeiramente um

trecho do que eu havia transcrito, em 4/4. A seguir o manuscrito feito por Márcio 20 anos

atrás, e logo abaixo, um trecho da grade enviada por Jovino Santos.

Figura 44: Trecho da transcrição (feita por mim) dos primeiros quatro compassos da música Mestre Radamés

Na figura abaixo vemos o manuscrito de Márcio Bahia de 1984:

30 Bar lines do not always accurately reflect the real metric organization. (COOPER; MEYER, 1996, p.88)

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Figura 45: Primeira página do manuscrito de Márcio Bahia da música Mestre Radamés

Na figura 46, vemos a partitura de Jovino contendo o tema do saxofone, a linha de

piano, de baixo e de bateria:

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Figura 46: Trecho da transcrição feita por Jovino Santos da música Mestre Radamés

Tomando como referência a partitura de Jovino, notamos que logo no primeiro

compasso, o baixo toca junto com o bumbo, enquanto o piano sobrepõe-se à caixa. Jovino

usa uma notação diferente, escrevendo o chimbal com o pé na primeira linha complementar

superior. A linha da bateria se inicia com algumas figuras rítmicas mais simples em

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semínimas e colcheias, mas vai ficando cada vez mais complexa ao longo da composição.

Podemos notar que no sétimo compasso (ver figura 46), enquanto a melodia faz uma tercina

de semínima, a bateria toca uma figura em semicolcheias distribuídas entre as duas vozes

(bumbo e prato / caixa e chimbal com o pé) que exigem muita destreza, tanto de Márcio

Bahia, quanto dos outros instrumentistas do grupo, já que Itiberê tem que tocar com as notas

do bumbo e Jovino com as notas da caixa, enquanto Malta e Hermeto fazem uma outra voz

completamente diferente. Não entraremos nas análises específicas da composição, mas vale

destacar aqui o desempenho de Márcio Bahia, tanto na leitura quanto na técnica do

instrumento. Essa peça Mestre Radamés é uma das que melhor exemplifica as

particularidades do baterista, incluindo a sonoridade, a clareza na execução das ideias, a

fluente leitura e execução fiel das partes escritas, a técnica e independência de membros

muito desenvolvida e a musicalidade na interpretação, com suas dinâmicas e nuances

performáticas que o fazem ser esse baterista tão ímpar na história da música brasileira.

Um fato que nos chamou muita atenção quando fizemos a entrevista em agosto de

2013, foi a forma como Márcio Bahia nos mostrou a música Mestre Radamés e o

procedimento que ele adotou para estudar a execução dessa peça. Márcio então tocou a parte

da bateria, ao mesmo tempo em que cantava a melodia da música. Podemos abrir um

parêntese para discutirmos algumas questões relacionadas aos estudos específicos da bateria.

Na dissertação de mestrado do percussionista Tarcísio Braga31, o pesquisador faz uma

analogia entre o estudo da música Mestre Radamés com o método de bateria New Breed de

Gary Chester. Refletindo sobre isso, podemos questionar qual a relação entre esses estudos

aparentemente tão distintos. Podemos partir da premissa que um dos problemas que

encontramos hoje na formação do baterista de modo geral, talvez seja o estudo estritamente

técnico, desvinculado de uma aplicação diretamente musical. O estudo feito dessa maneira

torna o aprendizado fragmentado ou segmentado, separando as áreas de estudo, como técnica,

coordenação motora, fraseado, improvisação, percepção, tudo isso abordado separadamente

e muitas vezes não vinculado a um repertório ou uma aplicação prática efetiva. O que Márcio

justamente nos traz, através da música Mestre Radamés (e muitas outras), é um estudo mais

completo e complexo, não no sentido de difícil, mas no sentido de se ter uma vivência de

31 BRAGA, Tarcísio. A caixa clara na bateria: Estudo de caso de performances dos bateristas Zé Eduardo

Nazário e Marcio Bahia. Dissertação de mestrado UFMG. Belo Horizonte, 2011.

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diversos estudos que se unem e acontecem concomitantemente, já aplicados à prática e à

formação de um repertório:

As próprias partituras eram meus exercícios de técnica, de coordenação, de

improvisação, tudo no mesmo pacote. É o estudo e a prática junto. As “partes” já

me davam dificuldades técnicas, de coordenação, independência o suficientes para

eu me desenvolver” (BAHIA, 2013).

Se por um lado o New Breed é um método voltado para o desenvolvimento técnico e

da coordenação motora, por outro, Chester cita na introdução do livro, uma importante

ferramenta para os estudos de bateria – que vem ao encontro da prática musical de Márcio

na época da “Escola do Jabour” – a qual Chester intitulou de: a Importância do Cantar (The

importance of singing). Voltando à entrevista, Márcio Bahia nos relatou que sempre estudava

suas partes, cantando as linhas dos outros instrumentos e isso era um exercício fundamental

para o desenvolvimento de suas performances dentro do grupo.

Eu estudava cantando a linha do baixo, ou cantando a linha de piano, ou cantando

a linha de sopro. Construia a bateria ouvindo na minha cabeça, mas isso era um

estudo mental. Muitas vezes eu cantava alto, que é um exercício de coordenação

brutal (BAHIA, 2013).

Gary Chester cita em seu livro alguns benefícios sobre essa prática32:

1. Primeiramente “o canto pode ser um quinto membro” na prática da bateria

desenvolvendo sobretudo a independencia entre os membros.

2. Desenvolve a habilidade de ouvir e sentir o tempo.

3. Desenvolve a habilidade da “leitura a primeira vista”. (sight reading).

4. Auxilia no entendimento das partes individuais: ao tocar figuras complexas com os

quatro membros, você deve ficar atento a cada parte individual que compõe a

figura.

32 Elenco aqui em inglês os subtítulos de cada tópico retirado do livro de Gary Chester no capítulo “The Importance of Singing”: 1. Using the voice like a fifth limb, 2. Ability to hear and feel the quarter note, 3. Sight Reading ability, 4. Understanding of individual parts, 5. Alleviate mechanical Reading, 6. Awareness of pitch and timbre, 7. Awareness of spacing, 8. Energy, 9. Breathing.

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5. Alivia a leitura mecânica: ao conseguir cantar as partes, sua leitura ficará menos

mecânica e mais musical.

6. Consciência da altura e timbre, enfim, contribui para uma sonoridade mais definida

e clara do instrumento.

7. Consciência do espaçamento: cantar ajuda você a perceber o lugar de cada tempo e

os espaços entre cada nota. Cantar vai ajudar você a desenvolver uma consciência

precisa do espaçamento entre as notas.

8. Energia: cantar gera entusiasmo e energia na performance.

9. Respiração: cantar auxilia você a respirar corretamente durante a performance.

Para finalizar esse trecho, podemos citar a declaração de Márcio Bahia a Lucas

Casacio em 2003: “Meu grande método de bateria foi o Hermeto (...); coordenação, ritmos,

tudo foi com o Campeão” (BAHIA, 2003)33.

A terceira peça selecionada para esse grupo de análise está contida no primeiro disco

gravado por Márcio após sua entrada no grupo. Trata-se da música intitulada Série de Arco.

Assim como nas duas músicas anteriores, a bateria de Série de Arco é toda escrita e também

aproxima a bateria de um set up de percussão múltipla, no sentido de não haver “levadas”

durante a música, mas sim linhas complementares ou “camadas” rítmico-melódicas que se

sobrepõem, tanto em relação aos outros instrumentos, quanto intrinsecamente, em relação às

vozes internas da própria bateria. Essa sobreposição de vozes feitas pelos quatro membros

do baterista exige extrema coordenação motora, precisão rítmica, clareza na sonoridade, e

uma desenvolvida independência de membros. No caso da peça Série de Arco, o performer

deve necessariamente ter uma ótima “escuta” e uma precisão rítmica impecável, para que a

interação da bateria com os outros instrumentos seja viável, devido ao alto grau de

complexidade das polirritmias, contrapontos e sobreposições de diversas camadas rítmico-

melódicas contidas nessa música. Como descreve Luís Costa-Lima Neto:

O processo de criação de Hermeto se caracteriza pela adição sucessiva de

"camadas" instrumentais. "Série de arco" é praticamente toda escrita. Não há solos,

no sentido atribuído ao termo no jazz tradicional, ou seja, a criação (improvisação)

33 Entrevista realizada por Lucas Casacio. Brasília, janeiro de 2003.

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melódica feita por um instrumentista a partir de uma base harmônica pré-

estabelecida. As dinâmicas das diferentes partes da música não estão escritas e

devem ter sido convencionadas oralmente durante os ensaios que antecederam a

gravação (NETO, 1999, p.105).

Segundo Neto, a música Série de Arco foi composta especialmente para uma

performance de ginástica olímpica feita pela irmã de Jovino. A princípio, era uma peça para

piano solo, e depois Hermeto acabou escrevendo também para os outros instrumentos.

A bateria entra na segunda parte da música (B) começando com quatro compassos de

rulo no prato que vai crescendo (figura 47) e culmina numa linha em semicolcheias, na qual

a caixa, a partir do compasso 37, toca a segunda, a terceira e a quarta semicolcheias de cada

tempo, enquanto o prato conduz em colcheias e o bumbo faz um desenho rítmico que se

aproxima de um xaxado. Usaremos como referência alguns trechos da partitura gentilmente

enviada por Jovino Santos, contendo a flauta, o piano, o baixo e a bateria. Podemos notar a

partir do compasso 37 que, enquanto a bateria tem como subdivisão básica as semicolcheias,

os outros instrumentos (piano, flauta e baixo) subdividem o tempo em três (tercina) ou seis

(sextina) notas por tempo.

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Figura 47: Trecho da grade feita por Jovino Santos da música Série de Arco (compasso do 33 ao 37)

No próximo trecho (figura 48), podemos observar que logo no primeiro compasso as

figuras se invertem: enquanto a melodia está basicamente em semicolcheias e o baixo em

semínimas, a bateria faz uma linha em sextinas, criando ainda uma sobreposição de um grupo

de quatro notas sobre a sextina. O pesquisador Luís Costa-Lima Neto, descreveu esse trecho

da seguinte forma:

Como o próprio modelo rítmico do piano, que foi o primeiro instrumento a ser

feito, é polirrítmico, os outros instrumentos partilham e incrementam esta

polirritmia. Principalmente a bateria, a partir de sua entrada em B, ora executa

simultaneamente os mesmos padrões rítmicos do piano, ora faz um contra-ponto a

estes, superpondo polirritmicamente divisões binárias e ternárias. Observa-se que

no exemplo a seguir (compasso 67), a acentuação no surdo ocorre de quatro em

quatro seisquiáteras, o que torna o desenho não apenas polirrítmico, mas também

polimétrico, por causa da superposição defasada dos quartos e oitavos de tempo de

piano e flauta, com os sextos de tempo - acentuados a cada quatro sextos – da

bateria (NETO, 1999, p. 107).

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Figura 48: Trecho da grade feita por Jovino Santos da música Série de Arco (compasso do 67 e 68)

No compasso 67 acima exposto (figura 48), podemos visualizar o que Neto chamou

de linha polimétrica e polirrítmica, na qual a bateria, além de tocar quiálteras de sextinas,

reagrupa esse conjunto de seis notas, de quatro em quatro, criando uma “ilusão rítmica”,

como se o tempo estivesse no início de cada grupo de quatro notas. Vejamos uma definição

sobre “ilusão rítimica” contida no livro Rhythmic Illusions, de Harrison, na qual o baterista

cita também o termo “Modulação rítmica”34:

A ´Modulação Rítmica` é como pegar um ritmo que está num tempo diferente e

sobrepor sobre o tempo que você está tocando. Fica parecendo que o tempo mudou

mas, na verdade é só uma forma diferenciada de agrupar subdivisões. Porque

estamos apenas criando este efeito (ilusório) por alguns compassos”. (HARRISON,

1996, p.7)

Ainda na figura 48 acima, notamos que no compasso 68 a bateria faz uma outra “voz”

em relação à melodia, dobrando suas figuras rítmicas (colcheias), abrindo assim uma outra

“camada” melódica feita pela mão direita distribuídas nos tambores. Podemos notar que

todos os instrumentos tocam colcheias, enquanto isso, a mão esquerda preenche o desenho

34 “Rhythmical modulation” is like taking a rhythm that is in a different tempo and superimposing it over the

tempo you are currently playing in. It may appear to sound like a tempo change but it is in fact just a different

way of grouping the subdivisions. Because we are only creating this (illusionary) effect for a couple of bars.

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melódico no aro da caixa, tocando na segunda e quarta semicolcheias, o que se estende até o

compasso 69 (figura 49).

Na sequência abaixo, os compassos 70 e 71 (figura 49) contêm um procedimento

performático de Bahia, o qual podemos designar como “groove linear”. Os chamados

“grooves lineares” são linhas de bateria em que os membros do performer praticamente não

tocam juntos (ao mesmo tempo), e sim criam uma linha em que cada um complementa o

outro de forma mais “horizontal” do que “vertical”; em outras palavras, podemos comparar

um “groove linear” a uma linha melódica (sequência de notas uma após a outra) e não

harmônica, em que há notas simultâneas. No último compasso Márcio já nos remete a um

toque de xaxado no zabumba adaptado ao bumbo da bateria. (Veremos alguns padrões de

xaxado no zabumba no próximo grupo de análises onde aprofundaremos as discussões a

respeito dos ritmos e estilos do Nordeste brasileiro). Vejamos abaixo os compassos 69, 70 e

71:

Figura 49: Trecho da grade escrita por Jovino Santos, compassos 69, 70 e 71

No compasso 74 abaixo (figura 50), encontramos um desenho rítmico em que a

bateria intercala um grupo de 8 fusas com um grupo de três (quiáltera de tercina de colcheias),

enquanto a melodia fica em colcheias.

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Figura

50: Trecho da grade feita por Jovino Santos da música Série de Arco (compasso do 74 e 75)

Segue-se então mais dois compassos inspirados nas figuras rítmicas ligadas aos

ritmos brasileiros (xaxado e maracatu) enquanto a melodia continua em colcheias. No último

compasso (83), podemos perceber uma mudança no padrão melódico (em tercinas de

colcheias), assim como uma complexa polirritmia que comentaremos logo abaixo:

Figura 51: Trecho da grade feita por Jovino Santos da música Série de Arcos (compasso do 81 ao 83)

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O que mais chama atenção nesse último trecho é o compasso 83, no qual a bateria

desenvolve uma complexa sobreposição rítmica (polirritmia), a caixa faz uma linha em

tercinas de semínima e o bumbo toca apenas na terceira nota de cada tercina. Enquanto isso,

a mão direita faz uma linha que se aproxima de uma alfaia de maracatu35.

Figura 52: Alfaia de maracatu, Baque de Malê, retirado do livro O Zabumba Moderno de Éder Rocha.

Cabe aqui uma breve definição do conceito de polirritmia tanto usado ao longo dessa

dissertação. No livro denominado Polyrhythms o autor Peter Magadini define polirritmia

como sendo “dois ou mais ritmos tocados simultaneamente ou um contra o outro”

(MAGADINI, 1993, p.1). Já no livro de Teoria da Música de Bohumil Med, o autor define

polirritmia como sobreposição de ritmos diferentes construídos sobre duas ou mais

pulsações, ou ainda, pluralidade de ritmos combinados (MED, 1996, p. 125). Sendo assim,

podemos definir esse último compasso, como uma sobreposição de um ritmo baseado nas

tercinas de semínima (caixa e bumbo) e outro baseado em subdivisões de semicolcheias

(prato).

Um outro conceito que surge muitas vezes nas entrevistas e pesquisas sobre a música

de Hermeto é que muitos dos arranjos e composições são pensados a partir da sobreposição

de camadas rítmico-melódicas. Esse procedimento composicional é muito recorrente na

música erudita, principalmente na música contemporênea do século XX e XXI. Isso não quer

dizer que Hermeto estivesse consciente de tal procedimento. Para ilustrar e ter uma referência

sobre o uso das sobreposições de camadas rítmico- melódicas, podemos citar como exemplo

a dissertação de Tadeu Moraes Taffarello que trata das composições de Almeida Prado e das

intersecções com outros compositores do século XX como Messiaen, Villa Lobos e Ligeti:

Ainda relacionada à busca por uma escrita textural, outra característica marcante

nos VI Momentos estudados no capítulo II, (em Cartas Celestes I, de Almeida

Prado), é a escrita por camadas. Esse procedimento é destacado por Paulo de Tarso

35 Referência: O Zabumba Moderno de Éder Rocha, página 23.

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em sua tese de doutorado como algo de especial interesse em ambos os cadernos

de Proles de Villa- Lobos. No de nº 2, encontrou-se tal procedimento em “O

Cachorrinho de Borracha” e em “O Gatinho de Papelão” onde as camadas texturais

se diferenciam pela região do piano, provocando um alargamento do Espaço

Sonoro e criando o efeito de “grandioso” demonstrado na partitura(...). No estudo

das Cartas Celestes I, percebeu-se duas técnicas utilizadas por Almeida Prado que

se assemelham com dois procedimentos utilizados também por Ligeti na criação

da micropolifonia. São eles: a sobreposição de quiálteras diversas; a utilização de

notas muito próximas com a finalidade de criar texturas e timbres (TAFFARELO,

2010, p.180).

Pudemos perceber nesse segundo grupo de análises uma outra faceta nas

performances de Márcio Bahia, talvez a que mais o diferencie dos demais bateristas que

já passaram pelo grupo de Hermeto. A leitura, aliada à grande independência (ou

interpendência) de membros, a precisão rítmica, dinâmica e sonoridade são algumas das

principais características que pudemos observar nas músicas acima. Vale destacar a

presença da bateria agindo como uma das diversas “camadas” presentes nos arranjos de

Hermeto, interagindo com a melodia tanto de forma simbiótica (dobrando suas notas),

como de forma complementar, fazendo uma outra voz que não necessariamente segue os

padrões da melodia. Outra característica fundamental nessas performances de Bahia, são

as polirritmias internas presentes nas linhas de bateria, onde as vozes do instrumento

sobrepõem-se entre si de maneira a criar complexos ritmos, exigindo muito do performer.

É possível traçar um paralelo entre composição em “camadas” de Hermeto e as linhas de

bateria, que em alguns momentos são construídas pela sobreposição de camadas rítmicas

onde cada membro de Márcio toca uma diferente “voz”. Entretanto, notamos também

uma outra peculiaridade em que, a bateria não estabelece relações tão “verticais” como

nas polirritmias citadas acima, mas sim, toca linhas que se desenvolvem horizontalmente,

a que chamamos de “lineares”36, nas quais as peças da bateria são tocadas

individualmente, construindo uma linha em que sobressaem-se as alturas e timbres do

instrumento na construção do ritmo. Usemos como exemplo um “groove linear” retirado

do livro de Gary Chafee Linear Time Playing:

36 Referência Linear Time Playing: Funk & Fusion Grooves for the Modern Styles por Gary Chafee, 1993

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Figuras 53 e 54: “grooves lineares” retirados do livro de Gary Chafee Linear Time Playing

Na figura 55 vemos um exemplo de “groove linear” feito por Márcio Bahia na música

Série de Arco:

Figura 55: “groove linear” feito por Márcio Bahia na música Série de Arco.

Portanto, as principais características e peculiaridades nas performances de Bahia

nesse segundo grupo de análise são:

1. Presença da leitura e da escrita como ferramenta importante na construção de suas

performances.

2. Aproximação da bateria de um set de percussão múltipla.

3. Uso de polirritmias, sobreposições e ilusões rítmicas nos trechos analisados.

Construção das linhas de bateria em “camadas rítmico melódicas”, formando

complexas estruturas.

4. Execução de ideias “lineares” na qual a bateria constrói uma linha “horizontal”,

tocando mais melodicamente (uma nota por vez) do que harmonicamente (notas

juntas).

5. Alto desempenho técnico, tanto no que concerne à limpeza e refinamento dos

toques, quanto à independência de membros (Four Way Coordination).

6. Procedimentos melódicos aplicadas à bateria, e a criação de motivos e temas nos

tambores da bateria. Destaque para a afinação aguda da bateria e execução limpa

e clara das ideias rítmico melódicas nas performances de Bahia.

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2.4) As interpretações dos ritmos do Nordeste brasileiro na bateria (baião,

xaxado, xote, frevo e maracatu)

Trataremos nessa parte das performances de Márcio Bahia ao executar os principais

estilos ou ritmos oriundos do nordeste brasileiro, os quais estão presentes nos cinco discos

gravados no período analisado. Dentre esses ritmos encontramos: o baião, o xaxado, o xote,

o frevo e o maracatu.

Assim como nos sambas analisados no primeiro grupo, as performances de Bahia nos

ritmos do Nordeste também passam pelas inversões dos ritmos, tocando-os ora de forma mais

“fechada” e próximos aos padrões, ora mais “aberta”, tocando de forma mais “solta” ou livre.

Iniciaremos com a análise do primeiro baião gravado no disco Hermeto Pascoal e

grupo chamado Lá na casa da madame eu vi. Nessa música, a bateria tem um desenho muito

definido para cada parte. A forma básica da música é: Intro AABB. Depois de executada uma

vez a forma completa, a música volta para a linha da introdução, sobre a qual são

desenvolvidos os solos. Após os solos, a música se repete mais uma vez, com uma

performance praticamente idêntica a da primeira exposição, e assim termina.

Na introdução, Bahia faz uma condução em colcheias no prato e coloca a caixa e

chimbal (com o pé) no contratempo acentuando junto com a linha do baixo. Logo no terceiro

compasso há uma convenção para a entrada do tema A. Podemos destacar nesse trecho a

interação da bateria com a linha do baixo. Segue abaixo os três compassos da introdução da

bateria e do contrabaixo:

Figura 56: Introdução da música Lá na Casa da Madame eu vi, bateria e contrabaixo.

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Na parte A da música Márcio faz uma “levada” constante de baião, alternando as

mãos entre o chimbal e o aro da caixa. Na entrevista de agosto de 2013, ele diz ter sido essa

a primeira “levada” que Hermeto passou para ele nos ensaios do Jabour. Essa levada também

está na “Apostila de Ritmos Brasileiros” de Bahia, como primeiro exemplo de “padrão” de

baião. Atentemos, agora, para os oito primeiros compassos da parte A da música Lá na casa

da madame eu vi contendo a melodia, o ritmo do piano, os acordes e a bateria; a seguir a

levada retirada da “Apostila de 2003”:

Figura 57:Trecho dos oito primeiros compassos da parte A da música Lá na casa da madame eu vi

Como podemos perceber, a levada se mantém praticamente similar durante todo o

trecho, havendo apenas uma variação no quarto compasso onde há um acento no prato e

bumbo junto com o acorde de lá maior. As figuras que seguem nos mostram uma breve

comparação entre o ritmo de baião básico da “Apostila de Ritmos brasileiros” de Márcio

Bahia (figura 58) – e que é utilizada na parte A da música Lá na casa da madame eu vi – e

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algumas levadas de baião na zabumba retiradas do livro Zabumba Moderno do percussionista

Éder Rocha como visto na figura 60:

Figura 58: Levada básica de Baião retirada da “Apostila de Ritmos Brasileiros 2003”

O Zabumba no Baião

Figura 59: Legenda do Zabumba

Figura 60: Quatro levadas de zabumba retiradas do livro “Zabumba Moderno” de Éder Rocha (páginas 28 e

29).

Na Parte B da música, há uma mudança de padrão rítmico na bateria, no qual o aro

da caixa passa da segunda e quarta semicolcheias, para a condução em colcheias junto com

a mão direita, que por sua vez passa do chimbal para o prato de condução (Ride). Isso se deve

também à mudança de padrão das figuras rítmicas da melodia e do padrão rítmico da

mudança dos acordes (ritmo do piano). Vejamos os quatro primeiros compassos da parte B:

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Figura 61: transcrição dos quatro primeiros compassos da parte B da música Lá na Casa da Madame eu vi

Na repetição da parte B (B2), Márcio muda novamente o padrão fazendo uma

condução na caixa, colocando algumas notas nos toms. Os pés agora fazem a figura do baião

em “uníssono”, tocando a mesma figura, conforme a “levada” básica da segunda vez da parte

B (B2):

Figura 62: Levada da parte B2 da música Lá na casa da Madame eu vi

Depois da exposição do primeiro tema completo, segue uma parte de improviso tendo

como base a mesma estrutura rítmica e harmônica da introdução. Bahia volta à condução no

prato, ficando um pouco mais livre, porém respeitando a estrutura rítmica da introdução,

tocando baseado sobretudo na linha do baixo. Ao final dos solos, a música volta para o tema

A e Márcio repete quase idêntico os trechos escritos acima.

Assim como nos sambas analisados anteriormente, notamos que dentro do baião

também há uma série de estilos e formas de interpretação. Nessa primeira música, Márcio

segue uma interpretação mais próxima à primeira inversão do ritmo, interagindo sobretudo

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com a melodia e com a linha do baixo. Vamos agora analisar algumas músicas nas quais

encontramos alguns padrões recorrentes da performance de Márcio.

Nas músicas de Hermeto, um aspecto muito interessante é a interação entre o baixo e

a bateria. Em muitos grupos, o baixo e a bateria andam sempre juntos, quase sempre dobrando

linhas rítmicas, principalmente entre bumbo e baixo. No grupo de Hermeto essa relação

torna-se muito mais complexa. Em alguns trechos, baixo e bateria tornam-se “simbióticos”

fazendo a mesma linha rítmico-melódica, entretanto, em outros momentos são

complementares, criando linhas independentes, ou “contrapontísticas” que se completam ao

longo da música. Como vimos na música Magimani Sagei, por exemplo, a bateria mantém

alguns ostinatos fixos enquanto o baixo, ora sobrepõe a mesma linha rítmico-melódica, ora

responde à esta, criando padrões complementares. Podemos citar a música Papagaio Alegre

como um bom exemplo de interação entre a bateria e o baixo, ressaltando ainda uma

interpretação um pouco mais livre de baião, se comparada à música Lá na casa da madame

eu vi. O trecho seguinte da Introdução da música Papagaio Alegre do álbum Lagoa da

Canoa-Município de Arapiraca, de 1984, demonstra um momento de completa interação

entre a bateria e o baixo:

Figura 63: Introdução da música Papagaio Alegre, bateria e baixo, compassos de 1 a 4.

Logo no primeiro compasso acima (figura 63), as figuras rítmicas (colcheias) são as

mesmas em ambos os instrumentos. Depois, Márcio cria uma condução rítmica que

acompanha a linha do baixo. Nota-se que, por exemplo, no segundo compasso, o bumbo da

bateria toca junto com o baixo (na segunda e quarta semicolcheias) enquanto a caixa e os

pratos preenchem os espaços entre as notas tocadas pelo baixo. Aqui, o desafio de Márcio

Bahia, além de interagir com os outros instrumentos, é manter a condução rítmica e preencher

certos espaços deixados pela melodia ou, no caso, pela linha do baixo. Vejamos abaixo, por

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exemplo, o sétimo compasso, onde o baixo toca colcheias e a bateria preenche os espaços

entre elas com duas notas formando tercinas de semicolcheias (ou sextinas), mantendo os

acentos junto com as notas do baixo.

Figura 64: Introdução da música Papagaio Alegre, bateria e contrabaixo, compassos do 5 ao 8.

Depois da introdução, a música segue para a parte A, na qual Márcio faz uma

interessante ¨levada” com o chimbal (no pé) marcando o tempo, enquanto a mão direita

conduz em colcheias no prato e a mão esquerda reforça a célula do baião distribuindo as notas

entre a caixa e o surdo:

Figura 65: Levada de bateria da parte A da música Papagaio Alegre

A nota do surdo reforça a nota de repouso da melodia. Veja na figura 66 o início da

melodia onde a bateria entra somente a partir do terceiro compasso, sendo que a nota do surdo

coincide com a nota Si (ligada) da melodia terminando a primeira frase da parte A.

Figura 66: Melodia da parte A da música Papagaio Alegre

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Na parte B da música, Márcio para de tocar a bateria e começa a tocar um interessante

set de percussão feito a partir de potes plásticos (tupperware) e tampas, o qual ele nomeou

de “Jererê”. Citando novamente Luís Costa-Lima Neto:

Papagaio alegre é a primeira das músicas que analisamos que utiliza sonoramente

os domésticos tupperware, acondicionadores de alimento feitos de plástico. Ao

levar camarão dentro dos tupperware para a casa de Hermeto, um dia, o baterista

Márcio estava casualmente conversando e batucando nas embalagens já esvaziadas

de seu conteúdo. Hermeto gostou do som e assim um conjunto de tupperware de

diversos tamanhos foi constituído. Márcio chegou a ter vários destes pendurados

ao lado de sua bateria durante o período 1982-1992, incorporando-os

definitivamente à sua bateria combinada com arsenal percussivo. O instrumento

foi batizado de Jererê (NETO, 1999, p.153).

Essa expansão do kit de bateria através de inusitados instrumentos de percussão é um

recurso utilizado por vários bateristas brasileiros, anexando ao set up, instrumentos como

tamborins, cowbells, sinos, tampa de panelas, entre muitos outros adereços. Podemos citar

dois exemplos que ilustram bem o uso de instrumentos inusitados associados ao kit “básico”

da bateria: o primeiro é a Tamba, utilizada por Hélcio Milito no Tamba trio descrita por

Casacio (2012) e o outro é o set de Airto Moreira que se utiliza de diversos instrumentos que

ficam “ao lado” da bateria descrita por Guilherme Marques. Segundo Casacio:

“No final da década de 1950, em busca de uma sonoridade que se desvinculasse de

alguma forma da bateria e de sua ligação com o jazz, Helcio Milito idealizou e

desenvolveu um instrumento que batizou de tamba. A tamba, que em tupi-guarani

significa concha (TIBIRIÇA, 2009), consiste em um instrumento formado por

quatro frigideiras, caixa-clara, três tambores e pedaços de bambu, tocado por

diversos tipos de baquetas”. (CASACIO, 2012, p.47)

Em entrevista cedida ao pesquisador Guilherme Marques, o próprio Airto descreve

os instrumentos que utilizava em seu set up, principalmente após sua participação no

Quarteto Novo:

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Eu deixava as coisas do lado esquerdo da bateria. E não era no alto não, era bem

baixinho. E eram poucos instrumentos [...]Tinha caxixi, tinha pandeiro, tinha

triângulo e tinha uns negocinhos que eu fiz com aquela chapinha [platinela] do

pandeiro. Eram quatro, cinco [platinelas] e elas tinham uma base onde elas ficavam

em pé [...] Então tinha dois blocos de madeira, aquele negócio que eu tocava e

pandeiro. Pandeiro tinha com pele e sem pele. (MOREIRA apud MARQUES,

2013, p.160)

Há ainda diversas músicas ou trechos inteiros em que Márcio toca apenas o “Jererê”,

como em Arapuá ou Rainha da Pedra Azul.

Voltando ao repertório, há outras duas músicas que exemplificam a performance de

Márcio dentro do Baião e que tem características muito próximas a sua performance em Lá

na Casa da Madame eu vi que são: o Spock na Escada do álbum Lagoa da Canoa – município

de Arapiraca e a música De Sábado para Dominguinhos do álbum Só não toca quem não

quer. Percebemos a presença de procedimentos performáticos idênticos principalmente no

que tange à construção da linha de bateria em relação à forma da música. Na música Spock

na Escada, Márcio faz uma levada na parte A conduzindo no prato. Porém, o que nos chama

a atenção nessa parte é a linha do bumbo, que não segue exatamente os padrões de baião. Na

parte B, Márcio vai para uma levada da caixa praticamente idêntica ao da música anterior.

Após esses dois padrões bem definidos, ele executa os outros trechos de forma mais livre,

abrindo no prato, interagindo mais com a melodia e com os acentos pré determinados da

música. Vale ressaltar também a presença do triângulo ao longo de toda a música.

Figura 67: levada da parte A da música Spock na escada

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Figura 68: levada da parte B da música Spock na escada

Já na música De sábado para Dominguinhos, acontece também esse mesmo padrão

de performance em relação à forma, no qual Márcio inicia com um padrão mais “fechado”

de baião na parte A (com chimbal e aro), no B vai para a caixa fazendo uma levada que se

aproxima das variações de xaxado que veremos mais abaixo. Novamente, a partir do C, ele

“abre” para o prato, interagindo mais com o grupo e com os acentos propostos em cada parte

da música, o que podemos classificar como 2ª inversão do ritmo de baião. Segue abaixo as

levadas básicas da parte A e B da música De sábado para Dominguinhos:

Figura 69: levada básica da parte A da música De sábado para Dominguinhos

Figura 70: levada básica da parte B da música De sábado para Dominguinhos

Como dissemos acima, essa última levada se aproxima daquelas de xaxado

exemplificadas por Márcio na “Apostila de ritmos brasileiros de 2003”. Estudemos agora

mais alguns exemplos da atuação de Márcio dentro do estilo xaxado. Importante frisar

novamente que não é nossa intenção classificar as performances de acordo com o estilo, mas

sim fazer aproximações com esses, tendo como objetivo levantar traços característicos das

performances de Bahia.

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Segundo Éder Rocha: “o xaxado é uma variante do baião que possui um maior

número de variações rítmicas” (ROCHA, 2005, p.30). Baseando-nos nessa definição,

veremos algumas músicas que trazem essas variações, principalmente em relação `as figuras

rítmicas feitas pelo bumbo, que segundo Márcio, é totalmente inspirado na zabumba: “Eu

faço bumbo pensando na zabumba mesmo” (BAHIA, 2013). Vejamos algumas levadas de

xaxado no zabumba retiradas do livro “Zabumba Moderno” de Éder Rocha:

Figura 71: Quatro levadas de xaxado do livro Zabumba Moderno de Éder Rocha, p. 31.

Um bom exemplo de xaxado é a música Sempre Feliz do álbum Brasil Universo.

Nessa música, há uma introdução no compasso 7/8 na qual os instrumentos todos tocam em

“uníssono” fazendo a mesma divisão rítmica. Vemos (figura 72 abaixo) que Márcio toca as

primeiras figuras no chimbal e na caixa, e nas duas notas mais longas (ligadas) ele acentua

abrindo o chimbal na primeira e finaliza a frase com uma nota no prato, ambas junto com o

bumbo. Após essa introdução a música se transforma em um xaxado, muito próximo dos

padrões encontrados na “Apostila de Ritmos Brasileiros” disponibilizada por Márcio.

Há uma interação interessante em que o chimbal faz uma condução de três notas e

acentua junto com o triângulo. Este por sua vez faz algumas aberturas (representadas pelos

pequenos círculos em cima de cada nota) na segunda e terceira semicolcheias, que reforçam

a linha da caixa. Segue abaixo a introdução em 7/8 e a seguir a transcrição dos oito primeiros

compassos da música Sempre Feliz (figura 73):

Introdução em 7/8

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Figura 72: Trecho da Introdução da música Sempre Feliz do álbum Brasil Universo de 1986

Tema A (xaxado)

Figura 73: Transcrição dos oito primeiros compassos da parte A da música Sempre Feliz.

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Conseguimos perceber que tratam-se praticamente das mesmas variações encontradas

na parte B da música De sábado para Dominguinhos citada anteriormente na figura 68.

Outras duas músicas que seguem basicamente o mesmo padrão de xaxado escrito

acima são O Tocador quer beber e Novena. Uma característica dessas músicas é a constante

condução do triângulo e a bateria fazendo o “papel” do zabumba. Na entrevista de agosto de

2013 Márcio nos conta:

Quando eu toco um baião ou um xaxado e não tem a zabumba, eu faço o bumbo

pensando na zabumba mesmo, eu não fico só no padrão, é como se eu tivesse

tocando zabumba mesmo. Isso é influência direta de eu tocar percussão (BAHIA,

2013).

Não seria demais ressaltar mais uma vez a forte relação entre as performances de

Márcio e os ritmos provindos da percussão popular. Há várias músicas do repertório em que

o músico toca triângulo, zabumba, agogô, cowbells, entre muitos outros instrumentos de

percussão, portanto, Bahia tem plena consciência da linha que fazem esses instrumentos

dentro da música, e mais do que interagir, ele traz os elementos timbrísticos e rítmicos do

universo da percussão para suas performances na bateria. A próxima figura retrata a interação

entre a bateria e os instrumentos de percussão na música O Tocador quer beber, com o

triângulo e o agogô reforçando o acento no contratempo.

Figura 74: Triângulo, agogô e bateria da música O tocador quer beber

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Na música Novena, do primeiro álbum Hermeto Pascoal e grupo, o arranjo recria a

atmosfera de uma banda de coreto, principalmente pela presença da tuba e da percussão.

Contudo, destaca-se uma sobreposição entre duas linhas de “prato à dois” em que um deles

se mantém no contratempo enquanto o outro toca em semínima pontuada, se deslocando num

ciclo que dura três compassos:

Figura 75: Transcrição dos quatro primeiros compassos da parte A da música Novena, contendo

sobreposição de duas linhas de prato à dois sobre a linha de bateria

Essa mesma ideia de sobreposição de semínima pontuada sobre uma base rítmica em

2/4 ocorre na música Cores do mesmo álbum Hermeto Pascoal e grupo. Encontramos no

livro de Gary Chafee o conceito de cross-Rhythm, que são ritmos que “cruzam” as

“fronteiras” das barras de compasso atravessando-as, ou seja, se aproximam das polimetrias

e polirritmias vistas anteriormente, porém numa amplitude maior, durando vários compassos

até que seu ciclo volte a acontecer. No livro Advanced Concepts de Kim Plainfield, ele

explana brevemente a diferença entre cross-rhythm (ritmos cruzados) e polirritmia37: “ao

contrário dos cross-rhythms (ritmos cruzados), os tempos fortes na polirritmia coincidem um

com o outro” (PLAINFIELD, 1992, p.83).

Para encerrar as análises do xaxado, gostaríamos de apenas citar a música Viajando

pelo Brasil, na qual a percussão tem um papel fundamental, incluindo o primeiro “tema” da

música feito pelos agogôs (bells). Durante toda a música encontramos a presença do triângulo

e do reco-reco conduzindo em semicolcheias, acentuando no contratempo. Nessa música

37 Unlike cross rhythms the downbeats of polyrhythms coincide with one another.

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Márcio utiliza basicamente os mesmos padrões de xaxado escritos anteriormente, por isso

não julgamos necessário transcrever novamente.

Um outro estilo que faz parte do universo do forró e dos ritmos do Nordeste, é o xote.

O xote é um ritmo um pouco mais lento que o baião e o xaxado e teve origem nos ritmos

europeus como o schottish, a polca e a mazzurca38. Segundo Ari Colares (2011) no Livro

Didático do Projeto Guri: “o xote é um ritmo mais cadenciado, isto é, mais lento. Seu nome

deriva de uma dança de salão europeia chamada schottish, dançado em par enlaçado, assim

como o baião” (COLARES, 2011, p.85).

Na música Candango, do álbum Só não toca quem não quer, a bateria “sintetiza” a

percussão do xote, onde o bumbo e aro da caixa fazem a função da zabumba, e o chimbal se

aproxima muito com a condução do triângulo. Nessa música também podemos comparar a

levada feita por Márcio ao “padrão de xote” contido na “Apostila de Ritmos Brasileiros” de

2003 (figura 76).

Figura 76: levada básica de xote retirada da “Apostila de Ritmos Brasileiros” de Márcio Bahia 2003

O exemplo a seguir é uma levada de xote presente no livro Zabumba Moderno de

Éder Rocha (ROCHA, 2005, p.28). Apenas relembrando, a nota grave é dada pela batida da

maceta (baqueta macia) na pele de cima do zabumba, e o “X” representa a nota aguda dada

pelo chamado “bacalhau”- que é uma baqueta fina feita de bambu ou plástico - tocado na

pele de baixo do instrumento.

Figura 77: levada de Xote na zabumba retirada do livro Zabumba Moderno de Éder Rocha 2005

38 Referência: O Zabumba Moderno, de Éder Rocha (2005).

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Segundo o percussionista Ari Colares no Livro Didático do Projeto Guri, existem três

linhas básicas possíveis para a percussão: a marcação, a condução e a “clave”. Geralmente,

a marcação é feita por um instrumento grave, como o surdo da escola de samba por exemplo,

a condução é feita por instrumentos agudos, como o ganzá ou as platinelas do pandeiro por

exemplo; e a “clave” foi denominada por Colares pela linha que faz a célula típica dentro de

cada estilo, como por exemplo o tamborim do samba. No caso do xote, o zabumba teria uma

dupla função: a de marcação e da clave, que faz a linha rítmica que caracteriza o estilo. Como

instrumento de condução, encontramos na instrumentação típica do xote, o triângulo. Na

música em questão, percebemos que a bateria faz a função do zabumba e mantém-se o

triângulo como instrumento condutor do ritmo. Um fator interessante nessa música é que a

“levada” do triângulo apresenta uma subdivisão, ou melhor, uma “intenção” que se aproxima

das tercinas de semicolcheias (sextinas), ou, como comumente usa-se na linguagem dentro

da prática musical: o triângulo apresenta um “feeling tercinado”, contrastando com a figura

de semicolcheias tocada pelo chimbal da bateria. Na notação do triângulo, os pequenos

círculos escritos em cima da segunda e terceiras semicolcheias dentro cada grupo de quatro

notas, representam o som aberto do instrumento, enquanto o “x” representa o som fechado

(abafado). A melodia da música segue o padrão rítmico do xote e, provavelmente, foi

construída a partir desse padrão. Vejamos abaixo a transcrição dos dez primeiros compassos

da música, analisando a melodia, o triângulo e a bateria:

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Figura 78: Transcrição dos dez primeiros compassos da música Candango, contendo a melodia, o triângulo e

a bateria.

Iremos agora sair um pouco do âmbito do forró, passando a analisar alguns outros

ritmos que estão no repertório de Hermeto e que também pertencem ao universo dos ritmos

do Nordeste brasileiro, como o frevo e o maracatu.

O Frevo é um gênero típico do Pernambuco, mais especificamente do Recife, e tem

como principal característica os andamentos rápidos e suas melodias bem trabalhadas,

geralmente baseadas em semicolcheias e que são muito exigentes para os músicos que as

tocam (TELES, 2000, p.35). Apenas para ilustrar, na contracapa do livro Do frevo ao

Manguebeat, o autor José Teles cita:

Em um depoimento sobre Capiba e Nelson Ferreira, o maestro Guerra Peixe

declarou sobre a complexidade do frevo: ´antes de mais nada o compositor de frevo

tem que ser músico, tem que entender de orquestração`. Já para o mestre Capiba, o

frevo é um dos gêneros da música popular mais criativos do mundo e, em

determinada ocasião, se baseou nele para compor uma peça para o Quinteto da

Filarmônica de Berlim. Os instrumentistas não conseguiram tocar e responderam:

´infelizamente o senhor escreveu algo muito difícil e rápido demais para nós`

(TELES, 2000, contracapa do livro).

Encontramos diversas músicas no repertório em que o frevo está presente. Podemos

começar citando a música Rancho das Sogras, do disco Só não toca quem não quer, que

começa em um andamento médio (semínima= 96) em que Márcio faz uma levada na caixa,

acompanhada de um surdo e um pandeiro de frevo. Aos 1:53´ da música, há um “breque”

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(pausa) e a música volta num andamento mais rápido (semínima= 146), porém mantendo a

mesmo padrão rítmico. Vejamos abaixo a “levada” básica de marcha e frevo feita por Márcio

na música Rancho das Sogras:

Figura 79: Legenda do pandeiro e do surdo

Figura 80: Levada básica de frevo da música Rancho das Sogras contendo pandeiro, surdo e bateria

Encontramos um padrão recorrente de performance em frevo na música Frevo em

Maceió, do disco Lagoa da Canoa- município de Arapiraca. Na introdução, encontramos um

padrão praticamente idêntico ao supra citado (figura 80), porém, na parte A, ocorre uma

pequena mudança em que os acentos do ritmo continuam sendo feitos na caixa (só com a

mão esquerda), enquanto a mão direita passa a conduzir em colcheias no prato. Nessa parte,

entra também um elemento novo que é o chimbal (com o pé) tocando no contratempo.

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Figura 81: Transcrição da bateria da parte A da música Frevo em Maceió

Um procedimento comum que também ocorre no final da música Frevo em Maceió

(e que podemos encontrar em várias outras músicas de Hermeto) é a mudança de andamento,

principalmente na parte final das músicas. Em outras músicas, como A Taça e Briguinha de

Músicos no Coreto, esse recurso também é utilizado e podemos considerá-lo um traço

característico nas composições e arranjos de Hermeto Pascoal.

Concluindo os ritmos do Nordeste, vamos ver agora a interpretação de Márcio Bahia

para com o maracatu. O maracatu é mais uma manifestação característica do Pernambuco,

mas também presente hoje em muitos estados do Brasil, como Ceará, Sergipe, Rio de Janeiro

e São Paulo. Como definiu Ari Colares, “o maracatu é uma dança dramática, que tem uma

série de significados e personagens”. Entretanto, mais uma vez, não encontramos o maracatu

em sua forma “original”. Há muitos trechos em que podemos identificar elementos rítmicos

do maracatu, como em Mestre Radamés ou na música A Taça, onde há uma maracatu

sobreposto a um compasso em ¾. A única música desse repertório na qual notamos um trecho

mais significativo em maracatu é o tema Quiabo, do disco Só não toca quem não quer. Nessa

música Márcio faz uma levada de maracatu idêntica à proposta em sua “Apostila de Ritmos

Brasileiros”. Vejamos abaixo a levada feita por Márcio na música Quiabo, contendo o “ritmo

da melodia”, o agogô e a bateria:

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Figura 82: Levada de maracatu da música Quiabo, do álbum Só não toca quem não quer

Percebemos, nesse terceiro grupo de análise, a aproximação das linhas de bateria com

os ritmos da percussão popular. Entretanto, Márcio Bahia não só reproduz esses ritmos como

também transforma e recria esses ritmos em suas ricas interpretações. Márcio sabe tocar o

ritmo em sua “primeira inversão”, respeitando a linguagem própria de cada estilo, mas

também sabe expandir essas fronteiras, tocando de forma bem livre e variada (“segunda e na

terceira inversão”). Há ainda que se observar a riqueza de estilos dentro das interpretações

de Márcio, dentre eles o baião, o xote, o xaxado, o frevo, e o maracatu. Entretanto, vale

lembrar que não podemos generalizar suas performances e muito menos enquadrá-las em

determinado estilo, já que em cada música as interações entre a bateria e os outros elementos

(melódicos, harmônicos, o baixo, a percussão, os improvisos) influenciam diretamente em

suas interpretações. Outra característica, sobre a qual vamos aprofundar um pouco mais nesse

próximo grupo de análise, são os ritmos brasileiros tocados em outras métricas não comuns

a suas formas “originais”.

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2.4. As performances de Márcio Bahia nos compassos ímpares

Como vimos em algumas músicas já citadas, como Ginga Carioca e Sempre Feliz,

uma das características das composições de Hermeto é o uso de compassos ímpares (odd

times).

Em todos os discos analisados, encontramos pelo menos um dos temas que é

construído em fórmulas de compasso que não são usuais dentro dos gêneros musicais

brasileiros. Como cita Lucia Campos em sua dissertação de mestrado:

“Uma das características que geralmente surpreende na música de Hermeto Pascoal

é a transformação dos ritmos brasileiros tradicionais (baião, maracatu, frevo etc)

através da mistura entre elementos de cada um deles, da mudança de compasso ou

da adoção deliberada de compassos de 5 ou 7 tempos, que não são comuns em

nossa tradição musical”(CAMPOS, 2005).

Um primeiro tipo de performance encontrada nas músicas analisadas são as

transformações dos ritmos brasileiros para os compassos ímpares (3, 5 e 7). Com o intuito

de estender e aprofundar os estudos de bateria, apoiados na vivência de Bahia dentro da

“Escola do Jabour”, podemos citar algumas levadas contidas na “Apostila de Ritmos

Brasileiros” escrita por Márcio, na qual ele escreve alguns padrões de ritmos brasileiros em

outras fórmulas de compasso que serviram de base para a construção das suas performances

dentro do grupo. Esses ritmos são encontrados ao longo do repertório, como nos temas Ginga

Carioca, Sempre Feliz, ou na música A Taça, na qual encontramos um maracatu em 3/4, ou

ainda em Ilha das Gaivotas em que encontramos um frevo em 3 também e por fim, na música

Mestre Radamés na qual encontramos dois compassos de um frevo em 7/8 inseridos em meio

à interpretação de Márcio.

Padrões em 3/4

Samba em 3/4

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Baião em 3/4

Frevo em 3/4

Obs: Márcio sugere colocar o chimbal com o pé conduzindo no contratempo.

Maracatu em 3/4

Padrões em 5/4

Samba em 5/4

Baião em 5/4

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Frevo em 5/4

Maracatu em 5/4

Nos tambores (caixa, surdo e toms)

Padrões em 7/4

Samba em 7/4

Mãos em 7 e bumbo em 2

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Baião em 7/4

*Pés em 7 e mãos em 2

Frevo em 7/4

Maracatu em 7/4

Figura 83: Exemplos de padrões de ritmos brasileiros em outras métricas

Entretanto, encontramos também um outro tipo de performance em compassos

ímpares que não se enquadram nos “padrões” dos ritmos brasileiros transformados. Esse é o

caso da música De bandeja e tudo do álbum Hermeto Pascoal e grupo, em que Márcio cria

uma levada baseada na linha do piano que também segue estrutura métrica do compasso de

7, enquanto a melodia toca notas mais longas (figura 85). A bateria dessa música, inicia (após

uma introdução bem livre, sem bateria) fazendo sozinha quatro vezes a “levada” em 7/8

escrita abaixo, seguida do piano (que acompanha a mesma idéia rítmico-melódica). A

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melodia, assim como na música Mestre Radamés, é formada por notas bem longas que são

tocadas pelo sax soprano.

Levada (4x)

Figura 84: Levada da música De bandeja e Tudo em 7/8

No quinto compasso entra o piano e logo em seguida entra o baixo dobrando a mesma

frase uma oitava abaixo; um compasso depois entra o tema feito pelo sax soprano.

Figura 85: Transcrição dos dez primeiros compassos da música De bandeja e Tudo

Nessa música Bahia demonstra seu domínio técnico e rítmico nos compassos ímpares,

fazendo variações rítmicas e “melódicas” (orquestrações) sobre a “levada” padrão construída

no compasso 7/8, mantendo-se assim até o final da música. Podemos também encontrar

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performances recorrentes em músicas como Fazenda Nova em 7/8, O Galo do Airan em 5/8

ou a Zurich em 5/4.

Também contribuem para a diversidade métrica encontrada no repertório analisado,

as valsas em ¾, como a primeira parte da música A Taça, assim como muitas músicas em

compassos compostos 6/8 ou 12/8 como A Rainha da Pedra Azul e Canção no Paiol em

Curitiba, as quais veremos no quinto grupo de análise.

Uma outra música muito interessante, dentro dessa mesma linha de performance, é a

música Zurich. Assim como na música De bandeja e Tudo, há uma primeira parte, de quatro

minutos e meio, antes de entrar a bateria. Nos 4:32´entra um arpejo de piano em 5/4 que se

mantém por todo o resto da música. A bateria entra logo em seguida com uma condução no

prato que se aproxima das conduções mais jazzísticas do Be bop39. Podemos citar aqui uma

declaração de Márcio sobre a influência que teve do baterista Joe Morello e que podemos

visualizar na música Zurich:

O primeiro jazz em 5/4 que eu ouvi foi o Far More Blues com Joe Morello no disco

Time Further Out, que é depois do Time Out que tem o Take Five. Mas antes de

escutar o Take Five eu escutei o Far More Blues. Isso me ajudou a ter

independência. O Morello faz um monte de coisa e o chimbal fica no 2 e no 4. Dá

uma escutada para você ver o que o Morello faz ali. Aquele super som de batera,

aquela Ludwig linda; um disco gravado em 1963 hein (BAHIA, 2013).

Na música Zurich, os acentos da linha de bateria coincidem com os acentos da

melodia (ver 3ºcompasso), enquanto o ciclo rítmico da levada, reforça o ostinato do piano,

dividindo o compasso de 5/4 em dois ciclos idênticos (deslocados) de 5/8. Podemos ver na

linha de bateria (segundo compasso da figura 86), exatamente no meio do compasso (no

tempo “3 e”), inicia-se um ciclo rítmico idêntico ao do início do compasso porém, ele fica

deslocado já que começa no contratempo do terceiro tempo. Esse ciclo segue a linha feita

pela mão esquerda do piano que se divide em duas frases de cinco colcheias cada:

39 Referência: Beyond Bop Drumming, de John Riley (1997), página 30.

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Figura 86: Transcrição do arpejo de piano, a levada básica da bateria e o primeiro motivo melódico da música

Zurich.

Há um trecho muito interessante da música Zurich em que o arpejo de piano e a

melodia continuam em 5/4 enquanto Márcio sobrepõe um padrão em 4/4 aproximando-se de

uma levada de frevo, deslocando o tempo forte da bateria até completar seu ciclo.

Uma outra música baseada em 5/4 é O Galo do Airam. Essa performance se aproxima

bastante da música Zurich, contudo sua interpretação torna-se mais complexa na medida em

que os compassos variam em sua métrica alternando entre, a base em 5/4, e suas variações

em 6/4 e 7/4. Um outro fator relevante é que a interpretação de Márcio não tem um “alicerce”

tão sólido como na música anterior, portanto é uma performance mais livre e mais densa,

baseada principalmente nos acentos da melodia. A bateria tem uma presença mais

significativa na parte inicial da música onde estão presentes essas variações de compasso. A

partir do B, prevalece a levada do zabumba e triângulo em 5/4, fazendo essa interessante

levada:

Figura 87: Levada de zabumba da música O Galo do Airam

Como vimos anteriormente, as interpretações de Bahia para os compassos ímpares,

ou se baseiam em algum padrão de ritmo brasileiro transformado em compasso ímpar, ou

têm seu alicerce sobre uma levada que segue a métrica do compasso. Todavia, vimos que a

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performance de Márcio em Galo do Airam não está tão explícitamente enquadrada em

nenhuma das suas características citadas acima. Podemos então destacar ainda um terceiro

tipo de performance na qual o músico tem uma interpretação mais “livre”, não baseada nem

nas variações dos ritmos brasileiros, nem em levadas construídas nos compassos ímpares.

Um exemplo claro desse tipo de performance é a música Ilha das Gaivotas. Nessa música,

Márcio faz uma das interpretações mais livres e belas dentre todas as músicas analisadas.

Vejamos o que Márcio nos revela em entrevista a respeito de sua interpretação da música

Ilha das Gaivotas:

“Eu nem contava, eu não sabia nem que compasso que era, eu não contava o 7, eu

ia pela melodia. Era um sete “largão” que a gente ficava livre em cima dele, então,

a melhor coisa a fazer é ir pela melodia. A não ser que tivesse uma base

estabelecida. Mas no caso do Ilha das Gaivotas era totalmente livre, era ouvir a

melodia e preencher”. (BAHIA, 2013)

Segue abaixo um trecho da transcrição dos quatro primeiros compassos da bateria e

da melodia de Ilha das Gaivotas, feita por Lucas Casacio e gentilmente cedida para esse

trabalho:

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Figura 88: transcrição dos quatro primeiros compassos da música Ilha das Gaivotas por Lucas Casacio40

Finalizamos o quarto grupo de análise, ressaltando a forte presença de compassos

ímpares (mistos ou alternados) nas músicas de Hermeto. Nessas performances,

destacamostrês tipos básicos de interpretação: 1. As transformações dos padrões básicos dos

ritmos brasileiros para os compassos ímpares; 2. Construção de levadas não baseadas nos

ritmos brasileiros, mas interligadas às linhas melódicas e às métricas das composições. Nesse

tipo de interpretação percebemos um “padrão”ou levada sobre o qual Márcio faz variações

girando em torno dessa célula básica; 3. Interpretação livre (sem levada pré determinada),

tocando baseado na melodia. Nesse terceiro tipo de interpretação Bahia demonstra sua

profunda ligação com a parte melódica das músicas, sugerindo inclusive o tipo de estudo no

qual ele canta a melodia da música construindo livremente sobre ela, sua linha de bateria.

2.6. A “Música Universal” de Hermeto Pascoal e as peculiares interpretações de Márcio

Bahia

Iremos abordar agora um grupo de músicas cujas principais características são as

misturas entre os elementos musicais (estilísticos, rítmicos, estéticos) e as performances mais

pontuais ou específicas de Márcio em determinadas composições que não foram abordadas

nos grupos anteriores de análise. Para contextualizar e definir o que chamamos aqui de

“Música Universal”, podemos iniciar citando, com certo distanciamento e olhar crítico, o

texto escrito por Aline Morena encontrado no Site oficial de Hermeto Pascoal, que definem

os “princípios” da chamada “Música Universal”. Deixando à parte as ideologias ou alguns

discursos que criam uma certa “mística” ou “religiosidade” em torno da música de Hermeto

Pascoal, o que nos interessa nesse texto são algumas frases que definem o que eles, dentro

do próprio grupo, consideram como sendo “Música Universal”.

40 Artigo publicado no XXIII Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música –

Natal – 2013. Nome do artigo: Ilha das Gaivotas – a interpretação de Marcio Bahia no grupo de Hermeto

Pascoal, (CASÀCIO, 2013).

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Segundo Aline Morena: “´Música Universal` é misturar sem preconceitos”.

(MORENA, 2008). Essa frase reflete, na prática, a complexidade e riqueza de elementos

contidos na performance de Bahia. Estão presentes em algumas músicas, características que

vão, desde trechos escritos (que aproximam a bateria da percussão erudita), mesclados com

levadas ou padrões rítmicos construídos sobre uma melodia, até ritmos brasileiros misturados

com polirritmias ou sobreposições de “camadas” rítmicas (executadas pelos quatro membros

do baterista). Segundo o pianista André Marques: “a principal característica da ´Música

Universal` são as misturas (...). As polirritmias também estão sempre presentes na maioria

dos arranjos” (MARQUES, 2014). Outra frase que tanto Aline Morena, quanto o próprio

Hermeto citam várias vezes em entrevistas para definirem a “música universal” é: “Tudo é

Som”. Podemos interpretar essa frase recorrendo ao uso de timbres inusitados ou não

convencionais inspirados nos sons da natureza tão presentes na música de Hermeto, como

exemplo os latidos de cachorros e silvos de cigarras no disco Hermeto Pascoal & Grupo de

1982, gritos de papagaios no Lagoa da Canoa, Município de Arapiraca, de 1984, cacarejar

de galos e galinhas no Brasil Universo, de 1985, zumbidos de abelhas e zurros de jumentos

no Só não toca quem não quer, de 1987, canto de pássaros diversos no CD Festa dos

Deuses, de 1993. Isso se reflete na performance de Bahia, na medida em que a exploração

timbrística do instrumento bateria e a expansão disso para o uso de recursos extras (como o

Jererê, por exemplo), são elementos muito presentes em sua performance. E uma última frase

que podemos citar retirada do manuscrito de Aline Morena é: “a teoria tem que estar a serviço

da prática” (MORENA, 2008), o que ilustra as horas de prática feitas no Jabour durante esse

período de doze anos.

Entretanto não é nossa intenção reproduzir o discurso pronto exposto pelos

integrantes do grupo, nem todavia entrar no mérito das questões relacionadas ao que seria a

“Música Universal” proposta por Hermeto. Apenas tomaremos como empréstimo o conceito

êmico “Música Universal” utilizado pelo próprio grupo para organizarmos as músicas que

contêm as misturas rítmicas e as performances mais pontuais e específicas de Bahia em

algumas composições que não estiveram presentes nas análises anteriores. O que de fato

podemos aceitar é que: Hermeto traz para sua música todo um arsenal de elementos musicais

baseado em sua própria experiência de vida (o forró, o regional de choro, o jazz, as inovações

do grupo Quarteto Novo, entre outros) e mistura tudo isso livremente, sem se preocupar com

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definições e fronteiras de estilos. Da mesma maneira, Márcio Bahia se coloca no grupo com

todas suas características e peculiaridades provindas de seu histórico de vida, como a

percussão erudita, seus estudos no jazz e na música brasileira, sua atuação no rock e seus

recursos trazidos da percussão popular. Para ilustrar, vejamos o que descreve o pesquisador

Luis Costa-Lima Neto sobre Hermeto:

Hermeto é, de fato, criador de uma linguagem bastante pessoal, no qual às

harmonias dissonantes do jazz, misturam-se ritmos e melodias populares,

freqüentemente do nordeste brasileiro, região onde o músico nasceu, em 1936. No

entanto sua linguagem é multidirecional, contendo também elementos que são

comuns à música erudita contemporânea, como poliacordes, polirritmias, uso não

convencional de instrumentos convencionais e exploração de ruídos e novas

possibilidades tímbricas através de um arsenal percussivo variado, constituído de

objetos sonoros os mais diversos (NETO, 1999, p.4)

Podemos ainda citar uma frase de Hermeto Pascoal, contida também na dissertação

de Neto:

Nem eu mesmo consigo explicar o trabalho que faço. Porque não faço um só tipo

de coisa. (...). Uma apresentação minha é a possibilidade de encontro com várias

músicas, da clássica ao coco, de todos os universos. (PASCOAL apud NETO,

1999)

Veremos abaixo alguns trechos de músicas em que encontramos as misturas citadas

acima, nas quais entrelaçam-se elementos como: ritmos brasileiros diversificados; métricas

distintas em compassos compostos, simples e mistos; interpretações livres e improvisações;

trechos escritos para os instrumentos com aproximações com a música erudita; texturas e

densidades construídas pela sobreposição de camadas rítmico melódicas; e ainda, a presença

de um arsenal timbrístico incomum, incluindo os ruídos e instrumentos inusitados. Enfim,

vejamos algumas composições de Hermeto em toda sua complexidade sonora, rítmica,

harmônica e melódica, e sobretudo, como se comporta a bateria de Márcio Bahia dentro desse

contexto. Segundo a pesquisadora Lúcia Pompeu de Freitas Campos:

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Tanto no repertório gravado quanto nas partituras editadas, compassos em cinco e

sete são freqüentes. A utilização desses compassos aliada à hibridização dos ritmos

provoca uma linguagem rítmica ao mesmo tempo complexa e assimilável, porque

transforma a tradição sem perder seus princípios. Hermeto incorporou toda uma

tradição musical brasileira e expressa-a em toda sua obra, não como mera repetição,

mas como uma tradição viva, em constante transformação (CAMPOS, 2002).

Como bem definiu o músico Mané Silveira (flautista e saxofonista da Orquestra

Popular de Câmara), ao referir-se a Hermeto Pascoal: “Por mais que sua música se

torne complexa, ele nunca perde a referência da festa de rua”. ( SILVEIRA apud

CAMPOS, 2002)

Vamos começar com a música A Taça do álbum Hermeto Pascoal e Grupo. A

primeira parte da música é uma valsa com uma interpretação de bateria que se aproxima de

um Jazz Walts (RILEY, 1994), com a condução no prato, baseando-se na cadência e nas

acentuações feitas pelo piano:

Figura 89: Melodia, bateria e harmonia da primeira parte da música A Taça

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Apenas como referência, vejamos abaixo uma levada básica de Jazz Waltz retirada do

Livro The Art of Bop Drumming de John Riley:

Figura 90: Levada de Jazz waltz retirada do livro The Art of Bop Drumming de John Riley (RILEY,

1994, p.58)

Na segunda parte da música ocorre uma interessante sobreposição, na qual a melodia

(escrita inclusive no lead sheet enviado por Jovino) continua em ¾ e a bateria entra em um

baião em 2/4, deslocando suas células entre os compassos (cross-rhythm):

Figura 91: Transcrição da parte B da música A Taça, contendo a melodia, a bateria e os acordes.

Depois dessa parte, há uma ponte em que a bateria para e o piano e a flauta fazem

linhas complemetares, enquanto um Bell (sino), toca no primeiro tempo do compasso de ¾.

Após dezesseis compassos de “ponte”, a música retoma com a bateria construindo uma linha

que se aproxima do maracatu (em 4), sobrepondo-se a melodia (em 3). Discutindo um pouco

mais sobre os reagrupamentos, podemos dizer que, enquanto a melodia está em 3, o ciclo da

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bateria se completa de 2 em 2 compassos, ou seja, seis tempos. Porém esses seis tempos não

são divididos em 3 + 3, mas sim 4+ 2. Vejamos abaixo os quatro primeiros compassos dessa

sobreposição:

Figura 92: Transcrição da segunda exposição do tema A da música A Taça, com reagrupamento rítmico

Após o trecho A em maracatu, a música volta para o tema B e segue para os Solos em

baião. Nesse trecho há um pequeno aumento no andamento da música.

Para finalizar a música, há um “Coda” em baião, em que o andamento aumenta ainda

mais e no final os instrumentos fazem um improviso coletivo sobre um Vamp em G7 #5, até

que a música acaba.

Figura 93: Levada de baião no trecho final da música A Taça

Iremos agora fazer alguns breves comentários sobre algumas músicas do repertório,

sem nos ater muito em detalhes ou transcrições, com o objetivo de construir uma visão

panorâmica desse tipo de performance de Bahia dentro do período analisado.

Uma outra música que, de modo geral, se aproxima da A Taça é a música Era para

ser e não foi. Entretanto, apesar dessa música também começar em 3/4 e depois virar um

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baião (e que também aumenta o andamento na parte dos solos), encontramos uma

interpretação bem mais livre, mais densa (com mais notas) e mais complexa do que em A

Taça. Para começar, o tema “A” dura cinco compassos de três tempos, o que completa um

ciclo de 15 tempos, os quais não necessariamente seguem a métrica do compasso de três. A

melodia segue esse ciclo de quinze tempos e é quase toda formada por colcheias, sobre a qual

a bateria desenvolve uma complexa linha que também não se completa de três em três

tempos, mas sim em quinze. Porém a parte B e C se aproximam mais do baião, mas com uma

interpretação mais solta do que na música A Taça, se aproximando da “segunda inversão”

rítmica discutida anteriormente, na qual Márcio utiliza muito o recurso do Four Way

Coordination na sua performance.

Encontramos também esses reagrupamentos na música Ilza na Feijoada, na qual o

tema principal se completa em 14 tempos e a bateria não toca 7+7, mas sim 4+4+4+2,

promovendo uma mistura de frevo com baião, num andamento extremamente rápido.

Outras duas músicas que têm essa característica, principalmente em relação à

primeira parte da música Era para ser e não foi, é a música Peixinho (do mesmo álbum

Brasil, Universo) e a música Viagem do álbum Só não não Toca quem não Quer. Nessas duas

músicas a bateria tem uma interpretação mais “livre” baseando-se na melodia, sobre a qual

Márcio cria densas linhas de bateria utilizando todo o instrumento. Podemos levantar um

tema pertinente ao tipo de interpretação encontrada nas três músicas citadas acima: a presença

da improvisação permeando toda a performance de Bahia, já que durante toda a música o

intérprete está criando “em tempo real” e sua linha de bateria não está baseada nem em ritmo

brasileiro, nem em alguma “levada” construída sobre a métrica do compasso. Nessas três

músicas (Peixinho, Viagem e Era pra ser e não foi), o tempo todo Márcio interage com a

música de forma livre, criando um “contracanto” tanto em relação aos outros instrumentos,

quanto internamente, pela “orquestração” das notas por toda a bateria. Sobre a “orquestração”

e o Four Way Coordination presente nas performances de Bahia, podemos citar a autora

Ingrid Monson, a qual considera que a interação interna entre os quatro membros do baterista

é “tão polifônico quanto aquele que se estabelece entre o baterista e os outros instrumentos

do conjunto”41 (MONSON, 1996, p. 52).

41 “That can be Just as polyphonic as the interaction among the drummer and the other instruments in the band”.

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Portanto, podemos considerar que a improvisação no grupo de Hermeto

transcende o conceito normalmente utilizado no Jazz, segundo o qual a improvisação ocorre

dentro de um chorus sobre o qual um instrumento solista executa seu improviso. Podemos

considerar que a improvisação está presente desde o processo composicional até as

interpretações das músicas que permitem maior liberdade de criação. Em entrevista cedida

para a pesquisa de Tato Taborda, Jovino Santos aponta:

A nosso ver, a improvisação em Hermeto deve ser compreendida não apenas no

contexto da interpretação, mas também no nível composicional e estético. Pois

Hermeto é um músico que tem como uma de suas principais características, a busca

sistemática e alegre do inusitado, da surpresa. E essa característica marcante vai se

refletir tanto na sua atuação como intérprete, como também, na de compositor.

Como dizia aos seus músicos: "é necessário compor e escrever como se fosse

improviso, e tocar improvisado como se fosse escrito. (SANTOS apud

TABORDA, 1997)

Um outro fator relevante que podemos comentar são as diferenças entre as gravações

feitas em estúdio e as performances “ao vivo”. Nos concertos de Hermeto Pascoal e seu

grupo, a improvisação e a liberdade nas performances é maior. Ou como descreve Márcio

Bahia:

A medida em que a gente vai tocando ao vivo, a gente vai aperfeiçoando; nunca

fica igual ao Cd, vai melhorando, vai amadurecendo. A gente gravava o arranjo

mais fechadinho, mas a hora que levava isso para o palco, a coisa ia ficando mais

solta, mais legal (BAHIA, 2013).

Assim, conforme as músicas ficavam cada vez mais internalizadas, maior a liberdade

na interpretação e maior a presença da improvisação. Podemos pensar então que a

improvisação é uma forma de apropriação e de aprofundamento das formas de interpretação,

havendo cada vez mais liberdade de criação sobre a execução de cada música. Essas

discussões sobre as improvisações presentes na música de Hermeto, são bem ilustradas na

história abaixo contada por Márcio:

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No segundo show, no Planetário da Gávea no Rio de Janeiro, a esteira da caixa

escapou e eu a levei para o camarim para arrumar. Aí, quando a gente foi entrar

para tocar, Hermeto olhou para mim e disse: -´Entra lá só com a caixa e faz o que

você quiser´. Só com a caixa, sem tripé, sem nada. Aí entrei com a caixa na mão,

botei no meio das pernas e gritei, toquei na esteira, falei com a esteira, batuquei

com a mão, toquei com a baqueta, fiz o “escambal”. E eles não entravam nunca.

Mas ele fez isso de propósito para me obrigar a pensar, isso logo no segundo show

(BAHIA, 2013)

Para resumir, podemos notar que a improvisação transpassa todo o processo criativo

de Hermeto, desde a composição, a criação dos arranjos, até a performance de todos os

músicos do grupo. Segundo Luis Costa-Lima Neto:

Mais do que a capacidade de criar novas melodias a partir de um esquema

harmônico x, y ou z, a improvisação para Hermeto é garantia de organicidade e

fluidez musical, e mais do que um recurso estilístico, tem status existencial: "quem

não improvisa neste mundo, no outro será improvisado"(H.P). Para Hermeto, a

improvisação será o alfa e o ômega de todo o seu processo de criação, antecedendo

e sucedendo a escrita musical, que ele domina e utiliza, mas que nunca é tomada

como ponto de partida (NETO, 1999).

Voltando então às análises musicais, podemos dizer mais uma vez que o que mais se

destaca nas performances de Márcio dentro desse grupo de músicas, além da liberdade de

criação, é a riqueza de elementos musicais, às vezes todos misturados em uma só música.

Não podemos generalizar seu “estilo” dizendo por exemplo que Márcio toca mais “aberto”,

ou é especialista em tocar grooves ou ritmos específicos, ou em ler partituras e executar

exatamente o que está escrito, ou ainda em tocar compassos ímpares. Márcio traz tudo isso

reunido em suas performances e essa é sua principal característica.

Ainda dentro da “música universal” discutida anteriormente, notamos também em

algumas músicas no repertório, um caráter “world music42”, que nos remete a outras culturas,

como por exemplo a música Rainha da pedra azul que traz uma atmosfera moura (árabe) ou

42 Segundo Keith Negus (1999), “a world music é um fenômeno no qual há uma ´reterritorialização` da música, que sai de um lugar específico e passa para um espaço mais ´global`, seguindo a idéia da globalização e de um mundo mais unido e ´universal` (NEGUS, 1999).

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Espanhola, ou ainda a música Irmão Latinos que lembra a música cubana. A bateria da

música Rainha da pedra azul inicia com uma linha na caixa em semicolcheias no compasso

6/8 só tocada na Introdução. Na parte A da música, a bateria para e resta somente uma linha

de percussão que nos remete às castanholas da música flamenca. A bateria só retoma aos

2:02´ com uma linha em 9/8 nos tambores. Vejamos os dois primeiros compassos da bateria

da introdução da música Rainha da Pedra Azul juntamente com o ritmo do piano:

Figura 94: Dois primeiros compassos da Introdução da música Rainha da Pedra Azul

A última música que gostaríamos de citar, nesse contexto dos compassos compostos

ou com subdivisões ternárias (6/8, 12/8) e das misturas e sobreposições rítmicas, é a Canção

no paiol em Curitiba. Essa música começa com um tema ad libtum tocado pelo saxofone

enquanto o piano faz uma série de arpejos bem livres e o baixo marca os repousos da melodia.

A bateria entra aos 2:00´ numa levada em que as mãos fazem uma condução baseada no

rudimento “Paradiddle Duplo”, formado por dois grupos de seis notas cada (DEDEDD

EDEDEE), divididos entre o chimbal e o aro, enquanto o bumbo toca de quatro em quatro

colcheias (mínimas) formando uma polimetria (3 sobre 4) em relação às quatro semínimas

pontuadas do compasso 12/8. Há ainda um caxixi que subdivide a pulsação “tripla” do

compasso de 12/8, em quatro partes, formando ainda uma outra polirritmia dada pela

sobreposição da condução da bateria (em três) e da levada do caxixi (em quatro). Vejamos

abaixo os quatro primeiros compassos da música Canção no Paiol em Curitiba:

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Figura 95: Transcrição dos quatro primeiros compassos da música Canção no Paiol em Curitiba

Voltando às músicas do primeiro álbum, Hermeto Pascoal e Grupo, podemos citar

duas músicas muito importantes no âmbito da “universalidade” da música de Hermeto: Cores

e Briguinha de Músicos Malucos no Coreto.

Na música Cores novamente encontramos uma forma e um arranjo muito complexos

e cheio de nuances, variações e misturas. Ela começa com sons de cigarras e a primeira

exposição do tema é dividida entre o saxofone soprano, o violão e a flauta baixo, enquanto o

piano faz os acordes com arpejos bem livres, sem pulsação definida (ad libtum). Antes de

entrar a bateria, há uma “ponte” onde voltam as cigarras e entra um “sino” junto com a cúpula

do prato fazendo apenas algumas notas. Só aos 2:31´que entra a bateria com uma levada que

é feita por uma baqueta na pele e outra no aro. O chimbal marca o tempo enquanto o bumbo

é tocado no segundo e quarto tempos. A melodia segue em notas longas e, a partir do sétimo

compasso, inicia um ciclo de semínimas pontuadas que dão uma intenção de três sobre quatro

(cross- rhythm).

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Figura 96: Transcrição dos oito primeiros compassos da música Cores, do álbum Hermeto Pascoal e Grupo,

de 1982

Na parte B da música entra um baião e depois um frevo muito próximos aos já

transcritos anteriormente (portanto não o faremos novamente). O que nos chama atenção são

dois trechos da bateria que aparecem logo após o frevo. O primeiro é quando a bateria faz

uma condução no prato em colcheias (sem a primeira nota) e o bumbo e a caixa tocam uma

tercina de semínima divididas entre eles, criando tanto uma polimetria em relação ao tempo

do compasso (3 contra 2), como também uma intenção de dois sobre três que gera, se

considerarmos as notas feitas pelo bumbo em relação aos quatro tempos do compasso, uma

outra polimetria de 3 contra 4:

Figura 97: Levada de bateria da música Cores contendo sobreposição de camadas, polirritmia e polimetria

A seguir, a bateria faz um ostinato durante vinte e cinco compassos:

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Figura 98: Ostinato de bateria da música Cores

Trataremos agora da performance de Bahia na música Briguinha de Músicos Malucos

no Coreto. Nessa música, há uma espécie de cânone, em que cada instrumento entra em uma

parte diferente do compasso, sobrepondo camadas da música só que deslocadas, cada um

tocando sua linha em tempos diferentes. Como explica Jovino em entrevista:

Hermeto fez um arranjo super complexo, mil acordes, com uma melodia que ele

escreveu no bombardino, com um contraponto do saxofone e quando a música

estava pronta ele pegou e começou a mexer, ou seja, eu tocava a minha parte e ao

invés de eu começar no primeiro tempo do compasso, eu começava por exemplo

1tempo e meio depois, a bateria 2 tempos depois, o baixo dois tempos e meio e o

saxofone três tempos depois. Ou seja, a gente estava fazendo a nossa parte, só que

tudo deslocado. Então as coisas não estavam mais alinhadas de forma vertical.

Então, a música Briguinha de Músicos é muito importante porque ela traz essa ideia

de um reescalonamento dos ataques da música (SANTOS, 2014).

Como vimos, Hermeto muitas vezes pensa nos arranjos fazendo sobreposições de

camadas rítmico melódicas, nas quais surgem as polirritmias, polimetrias, ilusões rítmicas,

reagrupamentos e deslocamentos. No livro Rhythmic Illusions, o autor denomina esse

processo que ocorre na música Briguinha como displacement43 (deslocamento):

É quando um “padrão” inteiro é movido para frente ou para trás por um certo

número de subdivisões. Ainda será o mesmo padrão em termos de ordem e

estrutura da nota mas estará em um lugar diferente no compasso”

(HARRISON,2013, p.7).

Na música Fazenda Nova, também encontramos uma sobreposição de camadas

rítmico-melódicas. A música inicia com um sampler de um porco em 7/8 fazendo um

43 Displacement: This is where na entire pattern is moved forward or backward by a certain amount of

subdivisions. It will still be the sama pattern in terms of note order and structure, but it will be in a different

place in the bar. (HARRISON, 1996)

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ostinato sobre o qual o piano e o baixo tocam fazendo a mesma figura rítmica. Enquanto

isso, a bateria entra em uma levada em 2/4 sobre o 7/8, criando uma polirritmia onde a

“levada” em 2 vai se deslocando a cada compasso (over bars), até que ciclo se completa

em quatro compassos de 7/8:

Figura 99: Introdução da música Fazenda Nova. Sobreposição da levada em dois sobre o compasso 7/8.

O que mais nos chama a atenção nesse último grupo de análises são os arranjos feitos

pelo grupo e mais especificamente a performance da bateria em relação à forma das músicas.

Na música Fazenda Nova por exemplo, há pelo menos dez partes diferentes e em cada uma

Márcio cria uma interpretação diferente, dobrando a condução, utilizando tercinas, fazendo

interpretações livres (“jazzísticas”) baseado nas melodias, inserindo ritmos brasileiros em

suas mais variadas formas e até levadas mais “pops” nos remetendo à fase do rock

progressivo que ele tanto citou nas entrevistas.

Encontramos essas características também em músicas como Suíte Mundo Grande,

Viagem, Arapuá, Peneirando Água e Depois do Baile que não iremos analisar para não

estendermos em demasiado as analises do quinto grupo.

O que podemos ressaltar é a capacidade de Márcio de tocar tanto de forma mais

“livre” e colaborativa, interagindo com a melodia (ou com os solistas nos improvisos), como

também de manter um ostinato por muito tempo, tocando de forma mais “fechada” e

constante. Na música Arapuá por exemplo a bateria entra aos 2:44´ fazendo uma levada (que

lembra uma batida simples de rock), sobre um ostinato de 6/4. Esse padrão se mantém até os

4:09 quando entra em um trecho mais livre, próximo às interpretações jazzísticas citadas

anteriormente. Ainda nessa música, Márcio insere um baião e um frevo dobrado em meio a

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essa interpretação mais livre. Vejamos o ostinato que Bahia faz ao longo desse grande trecho

da música:

Figura 100: Levada da bateria na música Arapuá

Para concluir, vimos nesse último grupo que, apesar de ser encontrada uma série de

performances muito particulares e pontuais, podemos perceber que em relação à forma da

música, sempre há uma construção bem consciente, com a bateria tendo um papel

fundamental na construção do arranjo. Isso interfere diretamente nas dinâmicas e na

densidade de cada parte.

Podemos aqui destacar como principais características das performances de Márcio

Bahia dentro desse último grupo de músicas:

1. Habilidade em tocar tanto ostinatos fixos ou interpretações mais “fechadas”,

quanto em tocar de forma mais “aberta” e livre.

2. Novamente, a interação da bateria com a melodia ou com os solistas (quando há

chorus de improvisação).

3. A construção “consciente” das linhas de bateria em relação à forma da música,

desenvolvendo linhas específicas para cada trecho da música.

4. A presença das polirritmias, polimetrias, ritmos cruzados (cross rhythms),

reagrupamentos e deslocamentos (displacement), tanto da bateria em relação aos

outros instrumentos, quanto intrinsecamente, onde as vozes da própria bateria

criam essas características entre si.

5. O domínio de Márcio Bahia nas interpretações nos vários tipos de compasso

(ímpares, simples e compostos) e a alternância entre eles dentro de uma mesma

composição.

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6. E por fim, a multiplicidade e versatilidade de Márcio em suas interpretações,

trazendo elementos presentes em sua trajetória de vida e seus estudos anteriores

como: os ritmos brasileiros, a influência do rock progressivo (principalmente em

relação às interpretações dos compassos ímpares), a interpretação das partituras

escritas (vivência trazida dos estudos da percussão sinfônica), as interpretações

mais livres e soltas remetendo aos grandes baterista do jazz, e principalmente a

capacidade inventiva de Bahia, com interpretações muito criativas e singulares,

que conferem a ele o status de ser um baterista ímpar na história da bateria

brasileira.

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3. Considerações finais

As principais características presentes nas performances de Márcio Bahia no período

de 1981 a 1993, levantadas segundo cada grupo de análise foram:

No primeiro grupo de análise, no qual vimos as performances de Márcio relacionadas

às interpretações do samba na bateria, encontramos basicamente duas formas de

interpretação: uma mais “fechada” ou “sólida”, a qual chamamos de “1ª inversão”, e outra

mais “aberta” ou “líquida”, que variava da “2ª inversão” até a “3ª inversão” (quando ficava

totalmente “solta”, encontrada sobretudo nos trechos de improviso). Em ambas

interpretações pudemos perceber as interações da bateria com a melodia - a qual chamamos

de “bateria melódica” - através principalmente: 1. das linhas criadas no aro da caixa, 2. das

aberturas de chimbal e 3. das variações de bumbo, ou 4. quando Bahia utiliza o Four Way

Coordination, construindo linhas mais livres baseadas na melodia. Outra percepção é o

profundo conhecimento de Márcio sobre as nuances de cada estilo dentro do samba, dentre

eles: choro, maxixe, bossa-nova, partido alto, samba funk e o samba jazz. Como última

característica levantada dentro desse grupo, percebemos também a presença do samba tocado

em métricas ímpares, como o samba em 7/8 no trecho final da música Ginga Carioca.

No segundo grupo de análise, abordamos as “peças escritas para a bateria”, podemos

ressaltar a característica de Márcio Bahia que talvez seja seu grande diferencial em relação

aos outros bateristas que o antecederam no grupo, que é o domínio da leitura e da escrita

musical. As performances de Márcio nesse segundo grupo de músicas tiveram forte

influência de sua formação musical dentro do campo da percussão erudita. Por essa razão

podemos dizer que Márcio muitas vezes aproxima a bateria de um set up de percussão

múltipla, em que a bateria não é pensada como um único instrumento (como afirma John

Riley), mas sim como um conjunto de instrumentos onde cada peça da bateria executa uma

linha diferente e independente. A escrita dessas linhas possibilitou que Márcio (com o apoio

de Hermeto) desenvolvesse um approach diferente para o instrumento, criando polirritmias,

deslocamentos (displacement), ritmos cruzados (cross-rhythm) e “contracantos” entre as

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vozes internas da bateria, que talvez não fossem possíveis de serem executados sem o recurso

da escrita e da leitura.

No terceiro grupo de análise, pudemos perceber a presença dos diversos estilos e

ritmos relacionados à cultura nordestina, como: o baião, o xaxado, o xote, o frevo e o

maracatu. Notamos também, assim como no samba, as três formas básicas de tocar esses

ritmos (“1ª, 2ª e 3ª inversões”) assim como suas variações em outras métricas. Novamente

percebemos a “bateria melódica” de Márcio Bahia, interagindo ou com a melodia principal,

ou com a linha de baixo ou de piano.

Já no quarto grupo de músicas, onde estão presentes as interpretações de Márcio nas

músicas em compassos ímpares, notamos três tipos básicos de performance: 1. Os ritmos

brasileiros transformados em outras métricas (como já havíamos visto anteriormente no

samba, no baião, no maracatu e no frevo); 2. Levadas específicas criadas em cima das

métricas ímpares de cada música e; 3. Interpretações mais livres com maior interação com a

melodia.

No quinto grupo notamos as misturas, as nuances e a riqueza de elementos encontrada

nas diversas interpretações de Márcio dentro desse grupo de músicas. Desde levadas

contínuas e ostinatos que nos remetem ao rock, até polirritmias complexas ou interpretações

muito livres que as aproximam das feitas pelos grandes nomes do jazz, podemos destacar

como principal característica o ecletismo e a multiplicidade dos tipos de interpretação dentro

de cada performance. A fusão de elementos provindos das diversas áreas de atuação presentes

na trajetória musical de Márcio (rock, jazz, música brasileira, música erudita) são a principal

característica que podemos ressaltar aqui. Além da diversidade, podemos destacar nesse

quinto grupo a construção das linhas de bateria em relação à forma musical e ao arranjo, onde

Márcio cria conscientemente diferentes “atmosferas” e densidades dentro de cada trecho

musical.

Sintetizando, podemos chegar a um denominador comum dizendo que as principais

peculiaridades encontradas nas performances de Márcio Bahia, de modo geral, levantadas

nesse trabalho são:

1. A interação da bateria com a melodia: essa característica está presente em

praticamente todas as músicas, tanto nas interpretações em que os ritmos brasileiros

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estão mais presentes (com interpretações mais fechadas ou mais abertas), como nas

interpretações escritas e sobretudo nas interpretações mais livres (bateria melódica),

nas quais Márcio se baseia na melodia para construir suas linhas de bateria.

2. A independência (ou interdependência) de membros em suas linhas de bateria ou

como o próprio Márcio chamou de Four Way Coordination. Essa característica

também está presente tanto nas interpretações dos ritmos brasileiros (destacando as

“orquestrações” desses ritmos por toda a bateria), quanto nas performances dentro

dos compassos ímpares (dentro dos três tipos de performance levantados acima) e

sobretudo nas peças escritas, nas quais podemos ressaltar as contraposições de linhas

rítmicas complexas, polirritmias, polimetrias e ritmos cruzados (cross rhythm) entre

as vozes da bateria. Destacamos aqui, o apoio do recurso da leitura e escrita musical

no desenvolvimento das linhas de bateria, permitindo algumas performances muito

peculiares desenvolvidas por Bahia.

3. A construção das linhas de bateria relacionadas com a forma musical. Apesar dessa

característica ser comum aos instrumentistas de modo geral, notamos que isso ocorre

de forma acentuada nas performances analisadas. Márcio leva esse aspecto ao

extremo, trabalhando conscientemente as dinâmicas, texturas, timbres, “cores”,

“atmosferas” e densidades dentro de cada parte da música. Encontramos essa

característica bem explícita na maioria das músicas, sobretudo no quinto grupo de

análises, em que Márcio manuseia com maestria as misturas de ritmos, estilos e tipos

de interpretação dentro da mesma música, ficando evidente que a construção das

linhas de bateria é elaborada especificamente para cada trecho musical.

4. A versatilidade de Márcio Bahia e a multiplicidade de estilos e tipos de interpretações,

que segundo suas próprias palavras, está “a serviço da música”. Podemos destacar a

diversidade musical presente nas suas performances, tendo como pressuposto seu

histórico de vida, desde sua vivência no campo do rock progressivo no início de sua

carreira, até seus estudos no campo da música brasileira e do jazz (com Sérgio

Murilo), sua formação musical dentro da percussão erudita (na Escola de Música

Villa Lobos) e sua vivência dentro do grupo de Hermeto. Márcio atua como uma

espécie de “camaleão”, se adequando a cada tipo de composição, utilizando todos os

recursos que tem em mãos “a serviço” da performance. Podemos ressaltar tanto a

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diversidade de estilos e ritmos (rock, jazz, música erudita, ritmos brasileiros como

samba, baião, frevo e maracatu), como também a forma de tocar, desde uma

interpretação totalmente livre - com a improvisação permeando toda sua performance

(como na música Ilha das Gaivotas, por exemplo) - até uma interpretação mais

“fechada” ou pré determinada (como em Mestre Radamés, em que Márcio executa o

que está escrito na partitura), ou ainda, a capacidade de manter padrões e ostinatos

rítmicos por longos períodos (como em Arapuá).

5. A sonoridade da bateria. Essa é uma das principais características de Márcio Bahia e

segundo ele, sempre foi uma “preocupação” e uma busca ao longo de sua trajetória.

O controle técnico, a afinação, o cuidado com o equipamento que ele utiliza (por

exemplo: as peles sempre novas) e o modo como toca refletem diretamente nessa

qualidade em sua performance. Outro fator que chama atenção é a postura corporal e

o relaxamento dos membros, possuindo um grande controle das baquetas, mantendo,

mesmo nas performances mais exigentes ou rápidas, uma postura de tranquilidade e

autocontrole, sem alterar (ou levantar em demasiado) a altura das baquetas, os

andamentos ou a dinâmica da música. Podemos acrescentar que sua formação no

campo da percussão erudita contribuiu em muito para uma sonoridade clara e bem

definida, uma técnica limpa e apurada, e uma performance precisa e bem estruturada.

Esse trabalho teve como objetivo principal fornecer um panorama geral sobre o

histórico de vida de Bahia e suas performances durante esse período de doze anos no grupo

de Hermeto, o qual chamamos de “A Escola do Jabour”, assim como trazer temas inerentes

ao campo de estudo da bateria e da música popular brasileira. Há muito para ser estudado,

visto que cada música ou performance discutida nesse trabalho possibilita um trabalho bem

mais aprofundado, dada a vasta gama de elementos contidos em cada uma delas. Esperamos

que esse trabalho sirva como base para a continuidade das pesquisas dentro do campo da

performance e da música popular e que possa dialogar com os futuros trabalhos a serem

desenvolvidos pela área.

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