Lord Kelvin

download Lord Kelvin

of 10

description

dissertação sobre Kelvin

Transcript of Lord Kelvin

  • Revista Brasileira de Ensino de Fsica, v. 29, n. 4, p. 499-508, (2007)www.sbfisica.org.br

    Lorde Kelvin demonstrado(Lord Kelvin demonstrated)

    J.T. Lloyd

    Departamento de Filosofia Natural, Universidade de Glasgow, Glasgow, Escocia

    Traducao do artigo Lord Kelvin demonstrated, The Physics Teacher 18, 16-24 (1980)

    Translation of the paper Lord Kelvin demonstrated, The Physics Teacher 18, 16-24 (1980)

    Se considerarmos os 660 artigos escritos por LordeKelvin durante sua vida (ver o histograma, Fig. 1),e a enorme quantidade de trabalho representada porestes artigos, e se considerarmos seus grandes interes-ses comerciais, suas consultorias, suas palestras destina-das a` coletividade, seu envolvimento nas investigacoespublicas, ate mesmo o recebimento de uma quantidadeexcepcionalmente numerosa de honrarias, poderamosperguntar - como ele ainda podia ser um professor?

    O aspecto notavel e que ele, um dos homens maisocupados que ja viveu, era principalmente e antes demais nada um professor. Sendo lho de um professor,educado por professores desde a infancia, e vivendo nosrecintos da universidade durante a maior parte de suavida - incluindo seus 53 anos como professor de losoanatural - estava bem entranhado nele que sua priori-dade principal era a de ensinar os jovens. Ele e umexemplo proeminente do sistema universitario, pois en-quanto podemos apontar facilmente seus varios feitosmateriais no ramo da ciencia, tambem podemos apon-tar os milhares de estudantes que foram por ele educa-dos e o valor subsequente para o mundo causado peladifusao de seus elevados ideais de integridade e de ati-tude cientca.

    Como uma base para uma compreensao bem funda-mentada da fsica, Kelvin sempre disse que deve haveruencia em matematica, um conhecimento da mecanicae da dinamica, e uma consciencia sobre a importanciada medida. Mas tambem havia um outro pre-requisito- o conhecimento da linguagem necessaria para assi-milar os textos de outras pessoas e para se expressaradequadamente. No ano de sua morte, 1907, Kelvin

    mencionou que - Um jovem deve ter aprendido porvolta dos doze anos a escrever em sua propria lnguacom precisao e alguma elegancia; deve ter um conheci-mento de leitura em frances, deve ser capaz de traduzirautores que escrevem em latim e em grego simples, eter alguma familiaridade com alemao. Tendo estudadoassim o signicado das palavras, um jovem deve estudarlogica.

    Sua propria infancia foi excepcionalmente interes-sante. Nascido em Belfast em 26 de junho de 1824como William Thomson a verbosidade irlandesa adqui-rida em sua infancia foi fortemente amenizada pela cau-tela herdada de seus ancestrais predominantemente es-coceses. Exceto por um curto perodo em uma escolade alfabetizacao, William foi educado totalmente emcasa, principalmente por seu pai e por sua irma maisvelha. Podemos fazer uma imagem sua a partir de umadescricao no livro de Agnes King - Kelvin, the Man -como uma crianca de quatro anos, vestida com suas rou-pas infantis, sentada em uma mesa com globos celestese terrestres, ouvindo seu pai descrever as maravilhasda astronomia (seu pai tendo se levantado a`s 4 horasda manha para trabalhar em um dos livros que estavaescrevendo). Em 1830 faleceu a mae de William, dei-xando uma famlia de sete pessoas, e em 1832 James,o pai, levou sua jovem famlia para Glasgow, ao sernomeado professor de matematica na Universidade deGlasgow. Quase que imediatamente William comecou aassistir aulas na universidade, embora nao ocialmente.Temos uma descricao deste jovem loiro frequentandoaulas de logica, grego, losoa moral, etc., cercado porestudantes com o dobro de sua idade. Com a idade de

    Traducao por A.K.T. Assis, Instituto de Fsica Gleb Wataghin, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil.E-mail: [email protected]. Homepage: http://www.ifi.unicamp.br/assis. O tradutor agradece a M.N. Tamashiro pelas sugestoes.Publicacao autorizada pela American Association of Physics Teachers, detentora dos direitos.

    Copyright by the Sociedade Brasileira de Fsica. Printed in Brazil.

  • 500 Lloyd

    dez anos William matriculou-se como um estudante for-mal, e ganhou varios premios durante seus cinco anosem Glasgow. Tornou-se entao um estudante na Univer-sidade de Cambridge durante os proximos cinco anos.

    Em 1846, com a idade de 22 anos, William Thomson foinomeado professor de losoa natural na Universidadede Glasgow.

    Figura 1 - A vida de Lorde Kelvin. A) Matrcula na Universidade. B) Torna-se professor universitario. C) Primeiro casamento. D)Acidente serio. E) Ttulo de cavaleiro. F) Segundo casamento. G) Pariato. H) Aposenta-se como professor. I) Morte.

    Gostaria agora de dar uma descricao de seus pre-decessores nesta antiga funcao. O ensino de fsicacomecou na universidade em sua fundacao, em 1451,sendo realizado por regentes ate que fosse nomeado oprimeiro professor catedratico, em 1727. Um des-tes regentes, sobre quem muito conhecemos, foi Ge-orge Sinclair, Regente a partir de 1654. Sinclair eraum especialista em hidrostatica, e em um de seus li-vros sobre astronomia escreveu: Deus nao esta presoa numeros; apesar disto, realiza seus Trabalhos atravesdo Numero, do Peso e da Medida. Isto representa demaneira apropriada a atitude do proprio Kelvin. JohnAnderson, professor de 1757 ate 1796, ministrou aulasdurante muitos anos para os artesaos da cidade. Ele econsiderado um pioneiro da educacao para os trabalha-dores. Quando Anderson tornou-se professor, havia um

    fabricante de instrumentos ligado a` universidade queiria tornar-se um dos maiores engenheiros que ja exis-tiu - James Watt. Enquanto Watt estava reparando omodelo de maquina de Newcomen que pertencia ao de-partamento, inventou o condensador separado. Istomelhorou de tal forma a eciencia das maquinas a vaporque se acredita que esta invencao marcou o incio daRevolucao Industrial. Com estes predecessores pode-se entender melhor a atitude intensamente pratica deKelvin no que diz respeito ao ensino de ciencia. Pode-se tambem apreciar sua expressao favorita - Se possoconstruir um modelo mecanico de uma coisa, entaoposso compreende-la.

    Certamente o seculo XIX foi um perodo extrema-mente fecundo na fsica. As novas ciencias da correnteeletrica e da termodinamica, em particular, estavam

  • Lorde Kelvin demonstrado 501

    penduradas como frutas maduras e foi Kelvin quem fezboa parte da colheita. A corrente eletrica havia surgidorepentinamente e de maneira inesperada em 1790. Aoredor de 1830 havia sido descoberta a maioria dos efei-tos praticos (e recomenda-se ler o texto Natural Philo-sophy, publicado pela Society for the Diusion of UsefulKnowledge (Sociedade para a Difusao do ConhecimentoUtil), para uma descricao fascinante do estado da artena epoca). Michael Faraday, trabalhando com uma in-tuicao maravilhosa, era talvez o principal responsavelpor estas descobertas, mas foi Kelvin, seguindo Weber eGauss, quem insistiu em que o ramo da corrente eletricanao se tornaria uma ciencia ate que medicoes fossempossveis. Foi Kelvin quem fez mais do que qualquer ou-tro para a institucionalizacao do volt, amp, ohm, etc.,como padroes de medida. Pode-se dizer o mesmo noque diz respeito a` termodinamica, na qual Kelvin e seuamigo, J.P. Joule, produziram conjuntamente uma novaciencia.

    Varias descobertas estavam acontecendo. As aulasde Kelvin eram notoriamente afetadas pelo fato de queele, enquanto falava aos estudantes, era frequentementeabsorvido por novos pensamentos que tinham acabadode lhe ocorrer! A situacao era particularmente insa-tisfatoria no que diz respeito aos livros didaticos. Em1867 Kelvin e P.G. Tait, de Edimburgo, produziram olivro Treatise of Natural Philosophy (chamado de T eT , cognomes de Thomson e Tait) que tornou-se ummarco na jornada subsequente visando a melhoria doslivros didaticos.

    Depois de ter mencionado a formacao e a motivacaode Kelvin no que diz respeito ao ensino, gostaria agorade descrever algumas de suas demonstracoes mais efe-tivas.1 Deixarei para o eplogo uma descricao de seumetodo e performance como conferencista.

    A primeira paixao de Kelvin foi por coisas mecanicase, em particular, a acao de corpos em rotacao. Uma desuas demonstracoes mais estimulantes era de naturezamais simples possvel: empregava apenas alguns ovos.Ela comeca com Colombo vangloriando-se de que to-das as coisas sao possveis, ate mesmo equilibrar umovo em pe. Mas, ah, diz Kelvin, ele teria feito me-lhor se tivesse girado o ovo... mas apenas se o ovo es-tivesse bem cozido. Ele entao apresentaria um ovoassim, girando-o deitado, mostrando que ele se levan-tava e cava de pe na posicao dormente. Mostra-ria entao um ovo cru, tentaria gira-lo, de fato fazendoisto com o ovo deitado, parava o ovo momentaneamentecom seu dedo e mostrava, pela rotacao subsequente doovo, que a gema continuava a girar. Ha muita fsica

    de boa qualidade nestas operacoes simples e tambemmuita diversao, especialmente se algum estudante es-perto tivesse trocado o ovo cozido pelo cru antes dapalestra comecar. E havia ovos para o almoco na casade Kelvin neste dia!

    A habilidade de Kelvin de extrair bastante a partirde coisas muito simples contribuiu em alto grau para oseu sucesso. Ele podia demonstrar a inercia golpeandoa moeda mais baixa para fora de uma pilha de moe-das que havia tirado do bolso; ele mostrava a quase-rigidez de corpos exveis girantes ao rodar uma folhade papel em alta velocidade, golpeando-a em seguidacom sua bengala (ele havia quebrado o femur ao jo-gar curling no gelo (jogo no qual os participantes des-lizam discos lisos contra um alvo) em 1861 e da pordiante mancava bastante, necessitando do uso de umabengala). Sua experiencia com a corrente giratoria erabem agradavel. A corrente mostrada na Fig. 2 e giradana borda de um disco de madeira com um diametrode aproximadamente 8 polegadas (20 cm) - eu utilizouma velocidade de aproximadamente 1800 rpm, masprovavelmente uma velocidade ainda maior seria me-lhor. A corrente e deslocada da borda utilizando umalamina de metal, e isto tem de ser feito cuidadosa-mente e lentamente, pois algumas vezes a corrente vairepentinamente para tras. Cobre-se de pano o bancoabaixo da roda: quando a corrente toca a superfcie,ela comeca a se deslocar em alta velocidade e se elaatinge um obstaculo baixo ela voa no ar e pula ao re-tornar a` terra. Kelvin tambem gostava de mostrar seumodelo da Terra em precessao (Fig. 3). Ele mostraria aTerra fazendo uma precessao completa em um crculo -E agora, senhores, passaram-se 26.000 anos! Era co-mum ser entregue a um estudante sua roda de reacao(girostato2), Fig. 4, apoiada em uma suspensao Car-dan. Mantida horizontalmente, e girando nas maos es-tendidas na mesma direcao em que o girostato estava gi-rando, nada acontecia - mas, ao girar na direcao oposta,o girostato ergue-se perfazendo uma volta de 180 con-vulsivamente, dando ao portador uma torcao bem desa-gradavel! A piada de Kelvin era - Gostaria de adaptaruma destas rodas escondida por baixo da bandeja deum garcom e de observa-lo enquanto tenta servir asbebidas. Uma das mais belas demonstracoes de Kel-vin era a piramide de giroscopios. Aparentemente eleconseguia apoiar em seu dedo tres giroscopios, um so-bre o outro. Certamente ele deve ter sido muito habilpara fazer isto - e com certeza ele nao teria feito istocom os giroscopios da Fig. 5. Estes ultimos giroscopiossao produtos de seus sucessores, Andrew e James Gray,

    1Muitas das demonstracoes de Kelvin tornaram-se padroes em aulas de fsica e estao descritas em livros tais como R.M. Sutton,Demonstration Experiments in Physics (McGraw-Hill, New York, 1938) e H.F. Meiners, Physics Demonstration Experiments (RonaldPress, New York, 1970).

    2Solido animado de um movimento de rotacao rapida em torno de seu eixo, permitindo a estabilizacao em direcao a este eixo (N.T).

  • 502 Lloyd

    que se especializaram no assunto, e eles giram ao redorde 15.000 rpm acompanhados por muito barulho e umcerto perigo.

    Figura 2 - A rigidez de uma corrente girando.

    Figura 3 - Modelo de Kelvin da Terra com precessao. Oglobo, apoiado no centro de gravidade, mostra a precessao dosequinocios pela haste rolando e pressionando contra o anel limi-tador.

    Figura 4 - Roda de reacao (girostato) no suporte.

    Figura 5 - A piramide de giroscopios. Variante de Gray. Se o eixode suporte girar na mesma direcao que os giroscopios, a piramideadormece verticalmente. Uma demonstracao muito tensa.

  • Lorde Kelvin demonstrado 503

    Sobre o mesmo tema de comportamento dos cor-pos em rotacao, existem varias experiencias de aneis defumaca que sao tanto divertidas quanto inspiradoras. Acaixa dos aneis de fumaca de Kelvin e muito grande -Fig. 6 (tenho de dizer que todas as experiencias deKelvin preenchiam o primeiro requisito de uma boademonstracao - elas tinham de ser facilmente vistas).As aberturas, que tem um diametro de 7 polegadas(18 cm), sao feitas em ranhuras na parte frontal dacaixa. A caixa e preenchida com fumaca que penetraatraves de buracos laterais, sendo a abertura tampada,temporariamente, com uma folha de papelao. Comofumaca Kelvin aparentemente utilizava ar atravessandoborbulhadores de acido ntrico e amonia, mas nunca zisto, achando ser um pouco anti-social espalhar estesvapores. Pessoalmente, gosto de usar fumaca de ta-baco. Tenho um cachimbo de argila com um grandetampao no cabo e o acendo, mostrando uma grande sa-tisfacao, antes de comecar a demonstracao dos aneis defumaca. O cachimbo e entao inserido, primeiro o for-nilho, em um grande tubo e a outra extremidade destetubo e soprada de tal forma que saia fumaca do cabo.3

    Figura 6 - A caixa de aneis de fumaca de Kelvin (incluindo reguade seis polegadas).

    Preciso dizer neste ponto que introduzo a demons-tracao utilizando inicialmente aneis sem fumaca. Aabertura e direcionada para uma vela acesa que estaa uns 15 pes (5 m) e, se a pontaria e boa, a vela e apa-gada. Depois a caixa e direcionada para uma parte daaudiencia e isto e bem ecaz, pois nada acontece ime-diatamente quando se bate na membrana - mas depoisde aproximadamente um segundo, o cabelo ou a roupasao afetados, de uma maneira fantasmagorica, quando o

    redemoinho colide. A demonstracao real e muito boa:os aneis circulares de fumaca, iluminados por tras dacaixa atraves de um feixe projetor, estando a sala pelocontrario escura, avanca majestosamente atraves do au-ditorio. Pode-se interpor uma superfcie rgida para re-etir os aneis. Pode-se produzir um efeito ainda maisagradavel utilizando uma abertura elptica. O anel os-cila, de eixo para eixo, na medida em que avanca. Acre-dito que Kelvin fazia uma outra coisa que nunca ten-tei, e que e lancar metade de um anel de fumaca. Elefazia isto colocando uma particao atraves da caixa, di-vidindo a abertura em duas partes iguais, produzindoassim um anel no qual a fumaca circulava apenas nametade da circunferencia. Produzir aneis de fumacaera muito popular nas decadas de 1860 e 1870, sendopor esta epoca que Kelvin desenvolveu sua teoria doatomo de vortice - ou seja, de que as partculas po-deriam ser vortices de energia e apresentariam rigideze elasticidade. O amigo de Kelvin, P.G. Tait, de quemtemos parte da correspondencia na Biblioteca da Uni-versidade de Glasgow, tambem tinha um repertorio in-teressante. Em uma carta ele sugere usar uma caixaem miniatura preenchida de agua colorida com tinta,submersa em um recipiente de agua transparente. Osaneis de tinta assim produzidos sao muito interessantes,mas a experiencia pode ser melhorada se for adicionadoum alvejante ao volume de agua transparente. Obvia-mente, a televisao e essencial para mostrar isto parauma grande audiencia.

    Existem duas outras experiencias grandiosas asso-ciadas com Kelvin. A primeira simplesmente demons-tra o momento linear, a determinacao da velocidadede uma bala de rie em sala de aula. Ainda temos opendulo balstico de Robin utilizado por Kelvin, Fig. 7;e uma estrutura alta na qual esta apoiado, em bor-das aadas, um grande tubo de metal, preenchido comchumbo e com um tampao de madeira na entrada. Eainda temos a espingarda de elefante, carregada pelaboca e completa com molde manual para fazer as balasde chumbo. Antes de atirar com a espingarda, Kelvincostumava colocar algodao em seus ouvidos e aconse-lhava seus estudantes a fazerem o mesmo. O estrondodeve ter sido gigantesco em sala de aula, mas ninguemainda vivo o escutou. Nao temos permissao para dis-parar a espingarda. Uma das experiencias mais me-moraveis que ja presenciei foi esta, realizada por P.I.Dee, professor de losoa natural de 1943 ate 1973, naConferencia do Quinto Centenario em 1953. Ele uti-lizou uma espingarda de servico, ajoelhou-se e atiroucuidadosamente no pendulo. Houve um rudo estron-doso da espingarda, e o pendulo oscilou regularmente.Tambem houve um grande barulho de tras de uma cor-tina onde alguem havia solto um grande peso em umrecipiente metalico cheio de vidro, para aumentar o rea-lismo da cena. Mas ouviram-se tambem duas pancadas

    3Existe uma certa aura de misticismo na maneira com a qual o lado oposto, de lona, e golpeado; isto so pode ser aprendido com apratica.

  • 504 Lloyd

    no banco ao lado; sendo devidas a dois pombos mor-tos que haviam sido escondidos, sem que o ProfessorDee soubesse, no teto de 50 pes (15 m) de altura doauditorio, sendo soltos magneticamente. Muito elabo-rado, pode-se dizer, mas ainda encontro pessoas que selembram da ocasiao com grande prazer.

    Figura 7 - A espingarda de elefante e o pendulo balstico de Ro-bin, vista de tras.

    A outra experiencia espetacular era uma que Kelvinsempre realizava no ultimo dia letivo. Ela e chamadade gota de orvalho tremulante, e como sua gota de or-valho continha ate 200 libras (91 kg) de agua, e o augeda experiencia e que a gota explode, compreende-se fa-cilmente o motivo de ser a ultima demonstracao! O in-strumento consiste em um funil invertido de metal apo-iado por um tipo de portico, com 7 pes de altura (2 m).Amarra-se fortemente uma membrana esticada de bor-racha atraves da face do funil, que tem um diametro de10 polegadas (25 cm), e no bico solda-se um tubo demetal com 4 pes de altura (1,2 m). Embaixo ca umgrande recipiente, ao redor de 4 pes cubicos (0,1 m3).

    Kelvin costumava ter um funil adicional acima do bicoe uma escada que um homem cava sempre subindo,carregando baldes de agua. Tudo muito agitado! Hojeem dia simplesmente ligamos uma mangueira a umatorneira (Fig. 8).

    Figura 8 - A gota de orvalho tremulante. Uma gota pesando200 libras (91 kg). (Fotografada aqui durante uma exposicao deum dia para comemorar o 250 aniversario da catedra. A bor-racha utilizada tinha uma espessura de 1/16 polegadas (0,16 cm).Uma borracha mais fina melhoraria o formato.)

    A membrana inicialmente assume um formato he-misferico; ela logo se dilata cando esferica; ela crescee torna-se mais pendular; ela torna-se pesada. Kelvincostumava empurra-la com sua bengala para faze-la os-cilar. Quando atinge 20 polegadas (51 cm) de diametroela pode ser empurrada para cima: ela entao levanta-see abaixa-se alternadamente com toda a majestade deum alegre elefante. Aparentemente Kelvin era muitohabil em apontar abaixo dela as distorcoes em umamalha retangular que ele havia marcado de antemaona borracha - e em mover-se para tras logo antes daborracha estourar. Eu mesmo ja me ensopei em variasocasioes. A experiencia sempre termina com gargalha-das e aplausos incredulos. Nao a realizo muito frequen-temente.

    Kelvin gostava muito de demonstrar as proprieda-des da cera de sapateiro, ou piche. Ele o comparavacom o eter, sendo que ele tinha um grande interesseem sua possvel presenca e constituicao. Ele indicavaque o piche, como o eter, tinha uma certa propriedadedual; moldado como um sino ele podia tocar (podiatransmitir altas frequencias), mas tambem permitia omovimento lento, atraves dele, de materia solida. Na

  • Lorde Kelvin demonstrado 505

    sala de aula havia sempre uma tigela de piche, comcorpos de madeira utuando nele e corpos metalicosafundando. No Museu Kelvin temos a veneravel ge-leira de piche que ele comecou em 1887. Ela consisteem degraus de madeira no topo da qual colocou umalamina de piche. Hoje em dia a geleira esta totalmentedesenvolvida (Fig. 9).

    Figura 9 - A geleira de piche de Kelvin, iniciada em 1887.

    As aulas de Kelvin sobre corrente eletrica nao dei-xaram recordacoes - alem de um museu cheio dos ins-trumentos que inventou! Suas aulas de optica sempreforam, parece, um curso muito corrido, na verdade foiapenas quando ministrou uma famosa serie de palestrassobre a teoria ondulatoria da luz, em Baltimore em1884, que ele parece ter percebido pela primeira vez averdadeira beleza do assunto. Penso que suas palestrassobre acustica eram provavelmente bem memoraveis.Ele era um musico bem entusiasmado e temos muitosde seus instrumentos, incluindo sua trompa francesa,com a qual costumava ilustrar suas palestras.

    Um assunto que recebeu atencao especial foi a ele-trostatica. Os armarios do auditorio tem uma boacolecao de instrumentos, muitos do seculo XVIII, in-

    cluindo varios tipos de maquinas, uma balanca de Cou-lomb feita por Pixii de Paris, antigas garrafas de Lei-den, um canhao eletrico4 e um ovo eletrico.5 Kel-vin tinha sempre a` mostra na sala de aula um de seuseletrometros conectado a uma esfera de cobre ligadaa` parede externa. Os estudantes eram encorajados acar de olho no estado da eletricidade atmosferica; oeletrometro tambem era ocasionalmente ligado a um ge-rador eletrostatico de gotas dependurado no teto. Istome traz a uma descricao de uma maquina que Kelvinmostrava em ocasioes especiais mas provavelmente naoem sala de aula: sua maquina eletrica gotejante.

    Obviamente sempre soube do gerador eletrostaticogotejante, mas o modelo do proprio Kelvin nao sobrevi-veu e pensei que o instrumento era de pouco interesse.Contudo, ao redor de dois anos atras, recebemos a vi-sita de um professor americano, Thomas B. Greenslade,Jr., do Kenyon College, em Gambier, Ohio. Me lembrodisto com um prazer especial. Discutimos, entre outrascoisas, o gerador gotejante de Kelvin. Eu nao tinhanada a mostrar e quei determinado privadamente areticar esta situacao! Olhei novamente nos projetosde Kelvin e percebi que, transformado com materiaismodernos, o instrumento poderia ser feito de formamuito eciente e poderia ate mesmo ser bonito este-ticamente, devido a` sua simetria e simplicidade. Assimconstru um instrumento pequeno; entao um maior, eassim sucessivamente. Na ultima vez em que contei ha-via construdo seis deles, jurando depois de cada umque seria o ultimo que faria, mas a cada vez me ocorriauma ideia nova. Ultimamente tive um pressentimentobem claro, pois algumas vezes me encontro pensandona possibilidade de fazer uma fonte eletrostatica para ojardim!

    Em sua maquina original Kelvin utilizava garrafasde Leiden que continham acido sulfurico concentrado eeram provavelmente muito boas (Fig. 10a). O projetomodicado utiliza lucite como sendo o dieletrico para ocapacitor e toda parte da maquina e apoiada por estecapacitor, Fig. 10b. Esta caracterstica, alem da adicaode uma blindagem pulverizada, garante tanto quantopossvel que o imprescindvel isolamento eletrico nao eafetado pela agua. Os principais materiais para cons-truir as maquinas incluem os seguintes. O isolamentoeletrico por lucite tem uma espessura de 1,5 mm. Osjatos de agua sao feitos a partir de alguns milmetrosde agulha hipodermica, com furo de 0,6 mm. Para aspartes metalicas utilizo bastante tubos de cobre, tantona forma cilndrica quanto achatados; estes tubos temum furo de 6 mm e uma espessura de parede de 1 mm.Tambem utilizo folhas de cobre ou de outro metal, coma borda curvada para dentro. E importante nao ter bor-das pontiagudas em qualquer parte metalica. A plata-forma de gaze, utilizada nos coletores, tem 20 os para1 cm. Todas as maquinas parecem faiscar na mesma

    4Um grande canhao de latao que disparava uma carga de polvora.5Um recipiente de vidro com o formato de um ovo contendo eletrodos, sendo que podia ser produzido vacuo em seu interior.

  • 506 Lloyd

    taxa, de 3 a 5 s. Raramente elas foram afetadas pelaumidade, de fato apenas uma vez fui obrigado a utili-zar um secador de cabelo nas maquinas para faze-lascomecar a funcionar. Obviamente a potencia da fascadepende da capacidade e tambem da taxa com que caemas gotas de agua. Praticamente todas as maquinas pos-suem cada uma varios jatos que podem estar agrupadosou espacados tendo uma distancia mnima de apenas 2mm entre eles. Um ponto interessante e que os jatos seseparam na medida em que as cargas eletricas se acumu-lam. Na maior maquina, a maquina de relampagos,

    (Fig. 12), existem ao todo 46 jatos: o capacitor tem aoredor de 500 pF, a fasca alcanca ate 2 cm de compri-mento e e viciosa. A maquina de relampagos e de fatomuito surpreendente; existe tanta agua envolvida quenao se esperaria que funcionasse. Para ser bem honesto,co perplexo; ver todos os jatos caindo em dois coletoresque estao separados por 20 kV parece bem impossvel;talvez seja de fato verdade que a gaze dentro do coletoresteja em um potencial bem baixo - pois a carga vaiimediatamente para o lado de fora do recipiente!

    Figura 10 - a: O gerador eletrostatico gotejante original de Kelvin, de 1867. b: Gerador eletrostatico gotejante, variante basica praticade Lloyd. Se o indutor da esquerda IE for carregado positivamente, +, ele induzira uma carga negativa, , nas gotas caindo no recipientecoletor da esquerda RE . O indutor da direita ID, ligado a RE , tambem e carregado negativamente, , induzindo uma carga positiva,+, nas gotas caindo no recipiente coletor da direita RD. O capacitor C e carregado por este processo 100% retroalimentado.

    O proprio Kelvin descreve a acao de uma forma bemmais sucinta do que eu sou capaz. Ele diz (Proc. Roy.Soc., junho de 1867) ... arranjo recproco, no qual ocorpo carregado pelas gotas de agua torna-se o indutorpara um outro feixe, sendo que as gotas deste feixe, porsua vez, mantem a carga do indutor do primeiro feixe.Talvez a unica diculdade se relacione a` pequena cargainicial que tem de ser suposta como estando presenteem um dos indutores. Kelvin resolveu este problema demaneira bem elegante promovendo a ideia de que umindutor pudesse ser feito de zinco e o [indutor do] jatoadjacente de cobre, produzindo assim uma pequena di-

    ferenca de potencial. Na pratica as maquinas descritassao arranjos simetricos, e embora possa haver algumadiculdade em comecar quando sao novas - e com istoquero dizer que elas podem nao comecar a funcionarpor um ou dois minutos - quase sempre nao existemproblemas subsequentes, devido a` carga residual.

    Penso que as maquinas sao mais instrutivas do queos geradores Van de Graa; elas certamente sao muitosurpreendentes e possuem a simplicidade que e tao de-sejavel em uma boa maquina. Incidentalmente o ge-rador eletrostatico gotejante e considerado como o pri-meiro ancestral do Van de Graa.

  • Lorde Kelvin demonstrado 507

    Figura 11 - Modelos simples do gerador eletrostatico gotejante,gerando fascas de aproximadamente 1 cm.

    Figura 12 - A maquina de relampagos, gerando fascas de ate2 cm. Sao essenciais bordas plasticas e drenagem adequada.

    Mencionei anteriormente que Kelvin, ao dar au-las, era inclinado a falar acima da capacidade de com-preensao de seus estudantes. Isto era exacerbado poruma peculiaridade no sistema de ensino de Glasgow,a saber, que os estudantes de teologia tinham de teraulas de Filosoa Natural - e, obviamente, a maioriadeles nao estava muito interessada neste assunto. Em-bora estes estudantes formassem a maior parte da classedo primeiro ano, nao havia duvida de que Kelvin tinhaa tendencia de dar aulas para o nvel daqueles que fos-sem continuar em fsica. Ele tinha um instrumento queera muito eciente em induzir um interesse naquilo quetinha para dizer; que era chamado de a Caixa do Pur-gatorio (Fig. 13). A caixa era preparada todo diae possui tres compartimentos - Purgatorio, Ceu e In-ferno. Ele costumava escolher nomes em pedacinhos depapel do Purgatorio, fazer perguntas a cada uma daspessoas nomeadas e, nalmente, depositar os pedaci-nhos de papel no Ceu ou no Inferno, dependendodo merito das respostas.

    Figura 13 - A Caixa Purgatoria de Kelvin. Utilizada para ava-liacoes diarias.

    Apesar destas historias, acredito que para o estu-dante serio de fsica Kelvin era um professor altamenteeciente. Varias pessoas muito inteligentes nao deixamduvida em relacao a isto. David Murray, que foi umestudante de Filosoa Natural no nal da decada de1850, tem o seguinte a dizer sobre ele (em seu livro Me-mories of the Old College of Glasgow) - Lorde Kelvinpossua o dom da exposicao clara em linguagem co-mum notavelmente livre dos termos tecnicos. Ocasio-nalmente ia alem do alcance da maioria da classe, masnao havia obscuridade nas suas armacoes, o assuntoestava simplesmente alem do alcance dos alunos, Ele...nao usava anotacoes ao ministrar aulas. Estavasempre serio, e ao lidar com problemas importantes,falava com o fervor de um missionario sobrecarregadocom uma mensagem signicativa. Era uma visao es-tranha observa-lo enquanto tornava-se cada vez mais

  • 508 Lloyd

    ansioso na sua exposicao; parecia brilhar uma luz acimade sua testa como uma emanacao. Possua uma per-sonalidade unica; um genio da maior magnitude asso-ciado com um julgamento bem embasado e com ha-bilidade pratica; uma seriedade veemente e reverenciaprofunda; com uma modestia e simplicidade de caraterraramente encontradas. De fato, um elogio completo!

    Obviamente, tambem deve ser considerado o ladocomplementar do ensino - trabalho pratico de labo-ratorio. Atribui-se a Kelvin a introducao das primei-ras aulas praticas que ja houve em fsica, em 1848.Contudo, parece que Kelvin utilizava os Assistentes deLaboratorio para ajuda-lo em suas proprias pesquisas- um arranjo bem satisfatorio para o professor e cla-ramente uma oportunidade muito privilegiada para osalunos. Algumas pessoas muito famosas passaram peloslaboratorios de Kelvin. Recentemente tivemos o pra-zer de descobrir que um de seus alunos de laboratorioem 1887 foi Gerard Philips, pesquisando sobre instru-mentacao e a calibracao das lampadas incandescen-tes. Foi ele, juntamente com seu irmao, quem fundou arma Philips Gloielampenfabrieken de Eindhoven, quee, aparentemente, a maior empresa do mundo fora dosEstados Unidos da America.

    Finalmente, tenho de relatar que uma coisa notavelaconteceu recentemente: uma gravacao em gramofonefeita por Lorde Kelvin e mantida, sem que soubessemos,nos fundos do Museu Britanico foi descoberta pelos es-forcos de um estudante - acredite ou nao - na Tasmania.O Museu Britanico deu permissao ao Museu Kelvin depossuir uma copia. Kelvin, neste antigo disco, e noultimo ano de sua vida, esta fazendo uma leitura deum artigo seu publicado na Philosophical Magazine,descrevendo uma possvel explicacao para a radioativi-dade dos elementos pesados (baseada, novamente, emprincpios mecanicos).

    Portanto, posso dizer com seguranca o seguinte.Lorde Kelvin falava com um sotaque escoces bem mar-cante - embora algumas pessoas concordem comigo queha um pouco de irlandes na sua fala. Ele possua umaboa articulacao, especialmente considerando sua idadeavancada e a natureza primitiva da gravacao. Obvia-mente ele tinha um grande estilo de exposicao, havendoautoridade e conviccao plena em toda slaba que pro-nuncia. E lamentavel que sua teoria do atomo - oatomo de pudim de ameixas - nao seja a teoria cor-reta, mas ao menos podemos dizer com certeza hojeem dia, que Lorde Kelvin foi um grande orador - e umgrande professor.

    Leia mais

    [1] S.P. Thompson, Life of Lord Kelvin (Macmillan,Londres, 1910), 2 volumes (Esta e a biografia oficial,que comecou em 1906).

    [2] A. Gray, Lord Kelvin (J.M. Dent, Londres, 1908).(Gray foi um aluno de Kelvin e mais tarde seu assis-tente. Tambem foi seu sucessor).

    [3] D. Murray, Memories of the Old College (Jackson, Wy-lie, 1927).

    [4] G. Green e J.T. Lloyd, Kelvins Instruments andthe Kelvin Museum (Glasgow University Publications,Glasgow, 1970). (O Dr. Green foi secretario cientficode Kelvin).

    [5] Sir William Thomson, Popular Lectures and Addresses(Macmillan, Londres, 1891). (Estas fazem parte de suaspalestras publicas e institucionais e constituem uma ex-celente leitura).

    [6] Lord Kelvin, Baltimore Lectures on Molecular Dyna-mics and the Wave Theory of Light (C.J. Clay andSons, London, 1904). (Reunidas a partir de notas feitaspor um estenografo e, portanto, uma descricao literalde suas palestras).

    Figura 14 - J.T. Lloyd, autor deste artigo, recebeu um ttulohonoris causa pela Universidade de Glasgow em 1961 por seutrabalho sobre os aceleradores e detectores de partculas, assimcomo por seus servicos ao Museu Kelvin. Ele e bem conhecidopor suas palestras sobre Lorde Kelvin. Ele tambem exibiu suasproprias invencoes incluindo o velocmetro falante que pode seradaptado para ler todas as unidades e que pode ser usado nofuturo por estudantes de ciencia cegos (Department of NaturalPhilosophy, The University of Glasgow, Glasgow, G12 8QQ, Scot-land).