Leonardo Bruni - Classicos Do Renascimento

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Série Grandes Clássicos

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47CLÁSSICOS DA TEORIA DA TRADUÇÃO - ANTOLOGIA BILÍNGÜE/RENASCIMENTO

LEONARDO BRUNI ARETINO

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LEONARDO BRUNI ARETINO (1374-1444), escritor, político, filólogo, filósofo,historiador, professor de retórica, tradutor, é considerado o mais talentoso eversátil dentre os jovens que pertenciam ao círculo de Coluccio Salutati (1331-1406), por volta do ano de 1400, e, sendo um dos primeiros seguidores dePetrarca (1303-1374) a possuir um verdadeiro conhecimento da língua grega,ajudou a direcionar o movimento humanista para o interesse do helenismo, oque teve importantes conseqüências na evolução do pensamento europeu. Otexto De recta interpretatione, datado entre os anos de 1420 a 1426, foi anexadoa sua tradução da Ethica Nicomachea (1414-18), de Aristóteles (384-322),como conseqüência dos problemas suscitados por sua tradução em confrontocom uma antiga tradução existente. Este famoso texto é considerado o primeirotratado moderno em apresentar de forma independente reflexões sobre a tarefade traduzir, em especial sobre a tradução literária. Folena (1991) situa o tratadode Bruni, “il più meditato e penetrante di tutto l’umanesimo europeo”, noponto de inflexão entre a história medieval e moderna da tradução e de suateorização. Com ele se inicia a história dos manuais de tradução. Não em vão,em seu ensaio se documenta por primeira vez a palavra traduco. O pensamentode Bruni é a concreção de um desenvolvimento na concepção do modo detraduzir que começara ao menos um século antes e que de alguma maneiratem sua origem ainda entre os romanos. É possível reconhecer no texto brunianoas opiniões de Cícero (106-43) sobre tradução, ou certos aspectos da estéticahoraciana, ou mesmo a retomada de alguns pensamentos de São Jerônimo (ca.348-420), além de insistir nos três requisitos para uma boa tradução expostosanteriormente por Roger Bacon (ca. 1220-1292): o conhecimento da língua departida, da língua de chegada e da matéria envolvidas na tradução. Porém,mais do que um simples retomar de alguma concepção antiga, as idéias deBruni a respeito da tradução – pode-se de certa forma generalizar – são asidéias que o Humanismo vai desenvolvendo e exercitando neste campo. Alémdos elementos lingüísticos, o tratado bruniano insiste sobre os aspectos retóricosde uma tradução. E é aqui onde se encontra certamente o maior valor dateorização bruniana e a base da fundação da moderna tradução literária. Háno tratado uma exigência da reprodução da arte literária para a corretatradução, o que é possível via o uso dos recursos que oferecem a retórica e aoratória, além do conhecimento lingüístico e filológico de ambas as línguas.

RAFAEL CAMORLINGA ALCARAZ ( ( ( ( ([email protected]) é mexicano, residente noBrasil desde 1985. Cursou bacharelado em Filosofia e Línguas Clássicas, noMéxico; licenciatura e mestrado em Teologia, em Roma; mestrado em Lingüísticae doutorado em Literatura, no Brasil. É atualmente professor de espanhol eliteratura hispano-americana no curso de graduação em Letras-Espanhol, e de

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literatura e de lexicografia nos programas de pós-graduação em Literatura eem Estudos da Tradução, na UFSC. Membro da Associação Brasileira deLiteratura Comparada (ABRALIC) e da Associação Brasileira de Hispanistas(ABH), publica trabalhos sobre sua especialidade em periódicos da UFSC, eeventualmente de outras instituições, brasileiras e estrangeiras.

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DE INTERPRETDE INTERPRETDE INTERPRETDE INTERPRETDE INTERPRETAAAAATIONE RECTTIONE RECTTIONE RECTTIONE RECTTIONE RECTAAAAA (1420-26) (1420-26) (1420-26) (1420-26) (1420-26)(EXCERPT(EXCERPT(EXCERPT(EXCERPT(EXCERPTA)A)A)A)A)

Hans Baron (Hg.), Leonardo Bruni Aretino, Humanistisch-PhilosophischeSchriften, Leipzig-Berlin, B. G. Teubner, 1928.

Cum Aristotelis libros ad Nicomachum scriptos e Graeca linguain Latinum uertissem, praefationem apposui, in qua per multos erroresinterpretis antiqui disserendo redargui. Has redargutiones measnonnulli, ut audio, carpunt quasi nimium inclementes. Aiunt enim:etsi errores inerant, tamen illum, quantum intellexit, bona fide inmedium protulisse, nec pro eo reprehensionem mereri, sed laudem.Consueuisse moderatos disputatores etiam manifesta errata non usqueadeo aperire, sed factis potius redarguere quam uerbis insectari. Egoautem fateor me paulo uehementiorem in reprehendendo fuisse, sedaccidit indignatione animi, quod, cum uiderem eos libros in Graecoplenos elegantiae, plenos suauitatis, plenos inaestimabiblis cuiusdamdecoris, dolebam profecto mecum ipse atque angebar tantatraductionis faece coinquinatos ac deturpatos eosdem libros in Latinouidere. Vt enim, si pictura quadam ornatissima et amoenissimadelectarer, ceu Protogenis aut Apellis aut Aglaophontis, deturpariillam grauiter ferrem ac pati non possem et in deturpatorem ipsumuoce manuque insurgerem, ita hos Aristotelis libros, qui omni picturanitidiores ornatioresque sunt, coinquinari cernens cruciabar animoac uehementius commouebar. Si cui ergo uehementiores uisi sumus,hanc nos causam nouerit permouisse, quae profecto talis est, ut, etsimodum transgressi fuissemus, tamen uenia foret nobis haud immeritoconcedenda. Sed non sumus transgressi modum iudicio nostro, sedquamuis indignantes modestiam tamen humanitatemque seruauimus.Sic enim cogita! An ego quicquam in mores illius dixi? An in uitam?An ut perfidum, ut improbum, ut libidinosum illum reprehendi?Nihil profecto horum. Quid igitur in illo reprehendi? Imperitiamsolummodo litterarum. Haec autem, per deum immortalem, quae

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LLLLLEONARDOEONARDOEONARDOEONARDOEONARDO B B B B BRUNIRUNIRUNIRUNIRUNI A A A A ARETINORETINORETINORETINORETINO

DADADADADA TRADUÇÃO CORRET TRADUÇÃO CORRET TRADUÇÃO CORRET TRADUÇÃO CORRET TRADUÇÃO CORRETAAAAA(EXCERTOS)(EXCERTOS)(EXCERTOS)(EXCERTOS)(EXCERTOS)

Quando traduzi os livros de Aritóteles a Nicômaco do grego parao latim, incluí um prefácio no qual critiquei os numerosos erros co-metidos pelo tradutor precedente. Na opinião de alguns, as minhascríticas foram demasiadamente impiedosas. Reconhecem que real-mente havia erros, mas, tendo sido cometidos de boa fé, quem errou édigno de louvor antes que de censura. Os críticos moderados, dizemeles, costumam não denunciar abertamente os erros, mesmo os maisevidentes, e sim rebater com fatos.

Admito que exagerei na minha repreensão, mas ao ver aqueleslivros em grego cheios de elegância, de suavidade, de uma belezainexprimível, lastimei profundamente ao vê-los conspurcados comtantos erros na tradução latina; assim, não consegui controlar a minhaindignação. Da mesma forma como, enquanto me deliciasse na con-templação de alguma pintura belíssima, como as de Protógenes, Ape-les ou Aglaofonte1, eu sofreria se alguém a maculasse, e antes quepermitir tamanho crime, me insurgiria de palavra e obra contra ovândalo, assim também, ao ver que eram destruídos aqueles livros deAristóteles, mais belos e formosos que qualquer pintura, sentia-meinteriormente torturado ao ponto de revoltar-me.

Portanto, se alguém achar que exageramos, saiba que a causa é talque, mesmo se tivéssemos faltado em algo, ser-nos-ia certamente con-cedida a vênia. Mas acredito que em nada faltamos; apesar da indig-nação, conseguimos manter a moderação e a humanidade. Reparabem. Falei porventura algo contra os costumes de alguém? Contra avida? Acaso o censurei como pérfido, devasso ou libidinoso? Nadadisso. O que então denunciei? Simplesmente a sua imperícia nas le-tras. Que tipo de vituperação é esta, deuses imortais? Não pode al-

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tandem uituperatio est? An non potest quis esse uir bonus, litterastamen aut nescire penitus aut non magnam illam, quam in isto requiro,peritiam habere? Ego hunc non malum hominem, sed maluminterpretem esse dixi. Quod idem fortasse de Platone dicerem, sigubernator nauis esse uellet, gubernandi uero peritiam non haberet.Nihil enim de philosophia ei detraherem, sed id solummodo carperem,quod imperitus et ineptus gubernator esset.

Atque ut tota res ista latius intelligatur, explanabo tibi primo, quidde hac interpretandi ratione sentio. Deinde merito reprehensiones ame factas docebo. Tertio me in reprehendendo illius erratadoctissimorum hominum morem obseruasse ostendam.

I

Dico igitur omnem interpretationis uim in eo consistere, ut, quodin altera lingua scriptum sit, id in alteram recte traducatur. Recteautem id facere nemo potest, qui non multam ac magnam habeatutriusque linguae peritiam. Nec id quidem satis. Multi enim adintelligendum idonei, ad explicandum tamen non idonei sunt.Quemadmodum de pictura multi recte iudicant, qui ipsi pingerenon ualent, et musicam artem multi intelligunt, qui ipsi sunt adcanendum inepti.

Magna res igitur ac difficilis est interpretatio recta. Primum enimnotitia habenda est illius linguae, de qua transfers, nec ea parua nequeuulgaris, sed magna et trita et accurata et multa ac diuturnaphilosophorum et oratorum et poetarum et ceterorum scriptorumomnium lectione quaesita. Nemo enim, qui hos omnes non legerit,euoluerit, uersarit undique atque tenuerit, uim significataqueuerborum intelligere potest, praesertim cum Aristoteles ipse et Platosummi, ut ita dixerim, magistri litterarum fuerint ac usi sintelegantissimo scribendi genere ueterum poetarum et oratorum ethistoricorum dictis sententiisque referto, et incidant frequenter tropifiguraeque loquendi, quae aliud ex uerbis, aliud ex consuetudinepraeiudicata significent. Qualia sunt apud nos: “gero tibi morem” et“desiderati milites” et “boni consule” et “operae pretium fuerit” et“negotium facesso” et milia huiuscemodi. Quid enim sit “gerere” etquid “mos”, etiam rudis lector intelligit; quod uero totum significat,aliud est. Desiderati milites centum, si uerba attendas, aliud, siconsuetudinem, perierunt. Idem est de ceteris, quae supra posuimus,

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guém, por acaso, ser um varão probo e, no entanto, ignorar as letras ounão possuir aquele grau de perícia exigido neste caso? Eu não disseque era um homem mau, e sim um mau tradutor. O mesmo poderiaser dito de Platão se quisesse pilotar uma nave sem ter destreza. Nadaseria dito contra a sua filosofia; somente seria tachado de pilotoinexperiente e inepto.

Para que tudo fique mais claro explicar-te-ei, em primeiro lugar,qual é a minha opinião quanto à tradução. Mostrarei depois quaisforam as repreensões que eu fiz. Afinal, provarei que, agindo dessamaneira, me ative à prática de homens sumamente eruditos.

I

Afirmo, pois, que toda a graça da tradução consiste em traduzircorretamente o que foi escrito em uma língua para outra. Mas nin-guém conseguirá fazer isso com eficiência se não possuir um amplo eprofundo domínio de ambas as línguas em questão. Não só isso. Narealidade há muitos que são idôneos para compreender, mas não paraexplicar. Analogamente, há muitos capazes de julgar corretamenteuma pintura mesmo sendo incapazes de pintar, e muitos entendem demúsica, sendo ineptos para o canto.

Traduzir corretamente é uma tarefa importante e difícil. Em pri-meiro lugar, deve-se ter conhecimento da língua da qual se traslada;não basta um conhecimento superficial e comum; tem que ser profun-do e abrangente, adquirido mediante o ensinamento dos filósofos,oradores, poetas e outros escritores. Ninguém, sem tê-los lido e relidoà exaustão, conseguiria compreender a força e o significado das pala-vras. Isso se aplica principalmente a Aristóteles e Platão que, como foidito, foram mestres da língua e utilizaram nos seus escritos o estilopolidíssimo dos antigos poetas, oradores e historiadores, efreqüentemente lançaram mão de tropos e figuras de linguagem cujosignificado literal é diferente do atribuído pelo uso do dia-a-dia. As-sim, por exemplo, nós temos gero tibi morem (tenho determinadocomportamento contigo; agrado-te), desiderati milites (soldados re-clamados; soldados mortos), boni consule (preocupa-te com o bem;considera-te satisfeito), operae pretium fuerit (terá sido o preço daobra; valerá a pena), negotium facesso (faço o trabalho com entusias-mo; ponho em dificuldade), dentre tantas. O significado de gerere(levar, gerir, etc.) e o de mos (costume) qualquer um conhece; mas não

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cum aliud uerba, aliud sententia uerborum significet. “Deprecor hoc”negationem dicit. Rudis autem lector et inexercitatus perinde capiet,quasi illud uelit, quod deprecatur, etsi interpretandum sit: contrariummihi dicet, quam littera habeat, de qua transfert. “Iuuentus” et “iuuenta”duo sunt, quorum alterum “multitudinem”, alterum “aetatem”significat. “Si mihi foret illa iuuenta”, inquit Virgilius; et alibi:“primaeuo flore iuuentus exercebat equos”1; et Liuius: “armataiuuentute excursionem in agrum Romanum fecit.”2 – “Deest” et“abest”: Alterum uituperationem, alterum laudem importat. “Deesse”namque dicimus, quae bona sunt, ut oratori uocem, histrioni gestum;“abesse” autem uitia, ut medico imperitiam, causidicopraeuaricationem. “Poena” et “malum” affinia uidentur; sunt autemlonge diuersa. Nam “dare poenas”: “subire” est ac “perpeti”; “dare”autem “malum” est: “alteri inferre.” Contra uero: Quid alienius uideripotest quam “recipio” et “promitto.” Sunt tamen interdum eadem.Cum enim dicimus “recipio tibi hoc”, nihil aliud significamus quam“promitto”. Possem innumerabilia paene huius generis commemorare,in quibus, qui non plane doctus sit, perfacile aberret. Qui ergo istanon intuitus fuerit, aliud pro alio capiet.

Saepe etiam ex uno aut altero uerbo totas sententias significamus;ut “actoris Aurunci spolium”, quod ridicule de speculo poeta3 dixit;et illud “utinam ne in nemore Pelio”4, quod originem causamquemali primaeuam ostendit. Haec apud Graecos frequentissima sunt.Nam et Plato multis in locis talia interserit –, et Aristoteles crebro hisutitur. Vt: “duo simul euntes”, quod ab Homero sumptum ad uim acrobur amicitiae transfert5. Et de surreptitio repulso, quod ab Achillein oratione ad legatos dictum in Politicorum libris expressit. Et “deHelenae pulchritudine et gratia”, quod a senioribus Troianorumsapienter dictum transfert ad naturam uoluptatis6. Latus est hic addicendum campus. Nam et Graeca lingua diffusissima est, acinnumerabilia sunt huiusmodi apud Aristotelem et Platonem deHomero, de Hesiodo, de Pindaro, de Euripide ac de ceteris ueteribuspoetis scriptoribusque assumpta, et alioquin crebrae interserunturfigurae, ut, nisi quis in multa ac uaria lectione omnis generisscriptorum uersatus fuerit, perfacile decipiatur ac male capiat, quodest transferendum.

Sit igitur prima interpretis cura linguam illam, de qua sumit,peritissime scire, quod sine multiplici et uaria ac accurata lectione

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o do conjunto (que neste caso significa obedecer). Desiderati militescentum, se te atens às palavras, é uma coisa, se ao uso, ‘sucumbiram’.O mesmo acontece nos casos acima referidos, em que o sentido daspalavras avulsas é diferente das mesmas formando conjuntos frasais.Deprecor hoc indica negação (peço, suplico que não; trato de evitaristo). Mas o leitor inexperiente imediatamente interpretará como sequisesse que aconteça o que na realidade se quer afastar. Iuuentus eiuuenta são duas unidades lexicais diferentes, uma das quais signifi-ca um número de jovens, a outra, um momento da vida. Virgílio diz:si mihi foret illa iuuenta (se eu tivesse aquela juventude). E noutrolugar: primaeuo flore iuuentus exercebat equos (no desabrochar dajuventude se exercitava nos cavalos). E Tito Lívio escreve: armataiuuentute excursionem in agrum Romanum fecit (com os jovens ar-mados, fez uma incursão em território romano). Deest e abest: umimplica reprovação, o outro, elogio. Dizemos que falta (deesse) o queé bom, como a voz ao orador, o gesto ao ator; porém que estão ausen-tes (abesse) os defeitos, como a inexperiência no médico, e a prevari-cação no advogado. Poena (pena, castigo) e malum (desgraça, dano)parecem sinônimos, mas não são. Com efeito, dare poenas quer dizerpadecer, suportar; dare malum, porém, significa causar sofrimento aalguém. Pelo contrário, itens aparentemente tão diferentes comorecipio (recupero) e promitto (prometo), às vezes, têm o mesmo signi-ficado. Assim, quando dizemos recipio tibi hoc (me encarrego distoem teu benefício) não queremos dizer outra coisa que promitto tibihoc (te prometo isto). Poderia aduzir inúmeros exemplos desse tipo,em que é muito fácil errar quando falta o conhecimento adequado.Neste caso, entender-se-á uma coisa em vez de outra.

Freqüentemente, também, com uma ou duas palavras nos referimosa todas as frases. Como actoris Aurunci spolium (o espólio do atorAuruncio), que o poeta disse, por gozação, referindo-se ao espelho. Eoutro: utinam ne in nemore Pelio (tomara que não (seja) no bosque domonte Pelião), o qual indica a origem e a causa primordial do mal.Entre os gregos isso acontece com muita freqüência. Platão utilizou-sedesses recursos em muitas ocasiões, o mesmo fazendo Aritóteles. Como:duo simul euntes (dois caminhando juntos), retirado de Homero e refe-rido à força e vigor da amizade. E sobre surreptitio repulso (como umfugitivo rechaçado), que, usado por Aquiles no discurso aos delega-dos, foi impresso nos livros de política. E de Helenae pulchritudine et

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omnis generis scriptorum numquam assequetur. Deinde linguam eam,ad quam traducere uult, sic teneat, ut quodammodo in ea domineturet in sua totam habeat potestate; ut, cum uerbum uerbo reddendumfuerit, non mendicet illud aut mutuo sumat aut in Graeco relinquatob ignorantiam Latini sermonis; uim ac naturam uerborum subtiliternorit, ne “modicum” pro “paruo”, ne “iuuentutem” pro “iuuenta”,ne “fortitudinem” pro “robore”, ne “bellum” pro “proelio”, ne“urbem” pro “ciuitate” dicat. Praeterea inter “diligere” et “amare”,inter “eligere” et “expetere”, inter “cupere” et “optare”, inter“persuadere” et “perorare”, inter “recipere” et “promittere”, inter“expostulare” et “conqueri” et huiusmodi paene infinita quid intersit,discernat. Consuetudinis uero figurarumque loquendi, quibus optimiscriptores utuntur, nequaquam sit ignarus; quos imitetur et ipsescribens, fugiatque et uerborum et orationis nouitatem, praesertimineptam et barbaram.

Haec omnia, quae supra diximus, necessaria sunt. Et insuper uthabeat auris earumque iudicium, ne illa, quae rotunde ac numerosedicta sunt, dissipet ipse quidem atque perturbet. Cum enim in optimoquoque scriptore et praesertim in Platonis Aristotelisque libris etdoctrina rerum sit et scribendi ornatus, ille demum probatus eritinterpres, qui utrumque seruabit.

Denique interpretis uitia sunt: si aut male capit, quod transferendumest, aut male reddit aut si id, quod apte concinneque dictum sit a primoauctore, ipse ita <conuertit>, ut ineptum et inconcinnum et dissipatumefficiatur. Quicumque uero non ita structus est disciplina et litteris, uthaec uitia effugere cuncta possit, is, si interpretari aggreditur, meritocarpendus et improbandus est, uel quia homines in uarios erroresimpellit aliud pro alio afferens, uel quia maiestatem primi auctorisimminuit ridiculum absurdumque uideri faciens. Dicere autem: nonuituperationem, sed laudem mereri eum, qui, quod habuit, in mediumprotulit, nequaquam rectum est in his artibus, quae peritiam flagitant.Neque enim poeta, si malos facit uersus, laudem meretur, etsi bonosfacere conatus est, sed eum reprehendemus atque carpemus, quod eafacere aggressus fuerit, quae nesciat. Et statuarium uituperabimus, quistatuam deformarit, quamuis non per dolum, sed per ignorantiam idfecerit. Vt enim ii, qui ad exemplum picturae picturam aliam pingunt,figuram et statum et ingressum et totius corporis formam inde assumuntnec, quid ipsi facerent, sed, quid alter ille fecerit, meditantur: sic in

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gratia (sobre a beleza e a graça de Helena), o que fora dito sabiamentepelos anciões de Tróia, é transferido à natureza da voluptuosidade. Émuito o que se poderia dizer a este respeito. Além disso, a língua gregaé muito vasta; exemplos como os referidos são inúmeros em Aristótelese Platão, retirados de Homero, Hesíodo, Píndaro, Eurípides e dos ou-tros poetas e escritores antigos. Além disso, introduziram variadas figu-ras que mal poderá captar e menos traduzir quem não estiver imbuídodo amplo conhecimento dos escritos de todo tipo.

Portanto, a primeira preocupação do tradutor deverá ser o conheci-mento aprimorado da língua da qual traduz, o que não conseguirá semmúltipla, variada e aprofundada leitura de todo tipo de escritos. Ade-mais, deve possuir a língua à qual traduz de tal maneira que exerçadomínio e pleno poder sobre ela; deste modo, quando for necessárioverter uma palavra por outra, não tenha que mendigar pelo item corre-to ou, por ignorância do latim, deixar lacunas no grego. Deverá conhe-cer a natureza e as nuanças das palavras para não confundir modicus(pouco) com paruus (pequeno), iuuentus (juventude) com iuuenta (ju-venil), fortitudo (fortaleza de ânimo) com robus (força física), bellum(guerra) com proelium (combate), urbs (cidade) com ciuitas (cidada-nia). Há de saber também distinguir entre diligere (apreciar) e amare(amar), eligere (eleger) e expetere (revindicar), cupere (desejar) e optare(esperar), persuadere (persuadir) e perorare (concluir), recipere (assu-mir) e promittere (prometer), expostulare (reclamar) e conqueri (apre-sentar queixas) e muitos mais. De maneira alguma poderá ignorar asfiguras e os costumes de linguagem utilizados pelos melhores escrito-res, os quais há de imitar, fugindo, nas palavras e principalmente nasfrases, das novidades inapropriadas e bárbaras.

Tudo quanto foi dito acima é necessário. É também indispensávelpossuir um agudo senso crítico baseado no ouvido para que, aquiloque foi expresso elegante e ritmicamente, não fique disperso e detur-pado. Uma vez que os bons escritores, principalmente Platão eAristóteles, combinam o conteúdo com a ornamentação da escrita, otradutor experiente será aquele que preserva um e outra.

Enfim, os vícios do tradutor são: compreender mal o que deve servertido, ou vertê-lo mal, ou transformar o que disse o autor primeirode forma apropriada e harmônica de maneira que apareça inadequa-do, desarmônico e sem graça. Quem não tenha instrução técnica econhecimento das letras indispensáveis para contornar os múltiplos

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traductionibus interpres quidem optimus sese in primum scribendiauctorem tota mente et animo et uoluntate conuertet et quodammodotransformabit eiusque orationis figuram, statum, ingressum coloremqueet liniamenta cuncta exprimere meditabitur. Ex quo mirabilis quidamresultat effectus.

Nam cum singulis fere scriptoribus sua quaedam ac propria sitdicendi figura, ut Ciceroni amplitudo et copia, Sallustio exilitas etbreuitas, Liuio granditas quaedam subaspera: bonus quidem interpresin singulis traducendis ita se conformabit, ut singulorum figuramassequatur. Itaque, siue de Cicerone traducet, facere non poterit, quincomprehensiones illius magnas quidem et uberes et redundantessimili uarietate et copia ad supremum usque ambitum deducat acmodo properet, modo se colligat. Siue de Sallustio transferet, necessehabebit de singulis paene uerbis iudicium facere proprietatemque etreligionem plurimam sequi atque ob hoc restringi quodammodo atqueconcidi. Siue de Liuio traducet, facere non poterit, quin illius dicendifiguram imitetur. Rapitur enim interpres ui ipsa in genus dicendiillius, de quo transfert, nec aliter seruare sensum commode poterit,nisi sese insinuet ac inflectat per illius comprehensiones et ambituscum uerborum proprietate orationisque effigie. Haec est enim optimainterpretandi ratio, si figura primae orationis quam optimeconseruetur, ut neque sensibus uerba neque uerbis ipsis nitorornatusque deficiat.

Sed cum sit difficilis omnis interpretatio recta propter multa etuaria, quae in ea (ut supra diximus) requiruntur, difficillimum tamenest illa recte transferre, quae a primo auctore scripta sunt numeroseatque ornate. In oratione quippe numerosa necesse est per cola etcommata et periodos incedere ac, ut apte quadrateque finiatcomprehensio, diligentissime obseruare. In exornationibus quoqueceteris conseruandis summa diligentia erit adhibenda. Haec enimomnia nisi seruet interpres, prima orationis maiestas omnino deperitet fatiscit. Seruari autem sine magno labore magnaque peritia litterarumnon possunt. Intelligendae sunt enim ab interprete huiuscemodi, utita dixerim, orationis uirtutes ac in ea lingua, ad quam traducit, pariterrepresentandae. Cumque duo sint exornationum genera – unum, quouerba, alterum, quo sententiae colorantur –, utrumque certedifficultatem traductori affert, maiorem tamen uerborum quamsententiarum colores, propterea quod saepe huiusmodi exornationes

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vícios assinalados, caso se dedicar a traduzir, certamente será malsucedido, ou porque induz os homens a vários tipos de erros, apre-sentando uma coisa em vez de outra, ou porque diminui a grandezado autor fazendo com que pareça ridículo e absurdo.

Afirmar, porém, que não merece ser censurado, e sim louvado aque-le que oferece o que tem, em modo algum é correto nestas artes queexigem perícia. Nem mesmo o poeta, se escreve maus versos, merecelouvor, ainda que tenha tentado fazê-los bons; repreendemo-lo e censu-ramos por ter empreendido algo que desconhece. Vituperamos o escul-tor que deforme uma estátua, embora o faça sem dolo, por causa de suaignorância. Como aqueles que pintam um quadro segundo um modeloe reproduzem a figura, a postura, o modo de caminhar e a forma detodo o corpo, e não refletem sobre o que eles mesmos fariam, mas sobreo que o outro fez; do mesmo modo, na tradução, o bom tradutor setransformará com toda a mente, alma e determinação no autor primeirodo escrito e de algum modo o transformará tratando de expressar aforma, a postura e a textura do discurso, a cor e os diversos matizes.Disto se produz certamente um efeito admirável.

Uma vez que cada escritor tem uma maneira peculiar de escrever,Cícero a magnificência e a abundância, Salústio a austeridade e a brevi-dade, Tito Lívio a grandeza semi-agreste, o bom tradutor deverá seadaptar ao estilo de cada um. Assim, ao traduzir Cícero, terá que acom-panhar os longos períodos, redundantes e exuberantes, umas vezesagilizando o discurso, outras sintetizando. Tratando-se de Salústio, seránecessário sopesar cada palavra, respeitando a peculiaridade e atendo-se às exigências daquela. Ao traduzir Tito Lívio, deverá acompanhar oseu estilo. O tradutor mergulhará no gênio do autor, arrastado pelamesma força que aquele; nem poderá de outro modo manter o sentido,a não ser acompanhando o percurso das palavras e do discurso. Umaótima maneira de traduzir é a seguinte: manter a forma do discursoprimeiro da melhor maneira possível, de modo que as palavras não seafastem do sentido, nem a elas faltem o brilho e ornato.

Mas, sendo difícil traduzir corretamente pelos motivos antes assi-nalados, mais difícil ainda é traduzir corretamente os escritos ritmadose exuberantes do autor primeiro. Na tradução do discurso rítmico,deve-se proceder através de seus membros, incisos e períodos, e coma máxima diligência para conseguir um conjunto adequado e bemproporcionado. O mesmo cuidado deverá ser despendido no

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numeris constant, ut cum paria paribus redduntur aut contrariacontrariis uel opposita inter se, quae Graeci “antitheta” uocant.Frequenter enim uerba Latina uel plus uel minus syllabarum habentquam Graeca, neque par sonus auribus faciliter correspondet. Iaculaquoque, quae interdum iacit orator, ita demum fortiter feriunt, si numeriscontorquentur. Nam fluxa et decurtata uel inepte cadentia minusconfodiunt. Haec igitur omnia diligentissime cognoscenda sunt abinterprete et seruatis ad ungem numeris effingenda. Quid dicam desententiarum exornationibus, quae orationem illustrant plurimum etadmirabilem reddunt? Et tam hae quam superiores frequenter aboptimis scriptoribus adhibentur. An poterit interpres eas sine flagitiouel ignorare uel praeterire uel non seruata illarum maiestate transferre?

De quibus omnibus, quo melius ea, quae dixi, intelligantur,exempla quaedam adscribere libuit, ut conspicuum sit non aborationibus modo, uerum etiam a philosophis huiusmodiexornationes frequentari et maiestatem orationis totam perire, nisiseruata earum figura transferantur. Plato philosophus in eo libro,qui dicitur Phaedrus7, ornate sane ac numerose locum quemdampertractat. Verba illius hic adscripsi paulo altius repetita. Suntautem haec:

O puer, unicum bene consulere uolentibus principium est: intelligere,de quo sit consilium, uel omnino aberrare necesse. Plerosque uero idfallit, quia nesciunt rei substantiam. Tamquam igitur scientes nondeclarant in principio disceptationis, procedentes uero, quod par est,consequitur, ut nec sibi ipsis neque aliis consentanea loquantur. Tibiigitur et mihi non id accidat, quod in aliis damnamus. Sed cum tibiatque mihi disceptatio sit, utrum amanti potius uel non amanti sit inamicitiam eundum, de amore ipso, quale quid sit et quam habeat uim,diffinitione ex consensu posita, ad hoc respicientes referentesqueconsiderationem faciamus, emolumentumne an detrimentum afferat?Quod igitur cupiditas quaedam sit amor, manifestum est. Quod ueroetiam qui non amant cupiunt, scimus. Rursus autem, quo amantem anon amante discernamus, intelligere oportet, quia in uno quoquenostrum duae sunt ideae dominantes atque ducentes, quas sequimur,quacumque ducunt: Una innata nobis uoluptatum cupiditas, alteraacquisita opinio, affectatrix optimi. Hae autem in nobis quandoqueconsentiunt, quandoque in seditione atque discordia sunt; et modohaec, modo altera peruincit. Opinione igitur ad id, quod sit optimum,ratione ducente ac suo robore peruincente temperantia exsistit;

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mantenimento dos outros aspectos ornamentários. Se o tradutor nãoobservar tudo isso, a majestade inicial do discurso se deteriorará porcompleto. Porém, ater-se aos princípios expostos, não será possívelsem muito esforço e sem bom conhecimento das letras. O tradutordeve captar as características da composição, por assim dizer, e repro-duzi-las igualmente na língua na qual traduz. Sendo dois os tipos deornamentação, um que matiza as palavras, outro, os pensamentos,ambos apresentam dificuldade ao tradutor, embora maior cause o daspalavras que o dos pensamentos, pelo fato de esses recursos ornamen-tais constarem muitas vezes de efeitos rítmicos, como quando termosparecidos correspondem a outros semelhantes, ou termos contrárioscorrespondem a seus contrários, ou termos opostos correspondementre si, o que os gregos chamam antitheta (antitéticos). Muitas vezesas palavras latinas têm mais ou menos sílabas que as gregas, soandodiferentemente aos ouvidos. Os dardos, que o orador, vez por outra,lança, acabarão ferindo mais profundamente quando cadenciosamentearremessados. Aqueles, porém, frouxos, truncados ou ineptamentelançados causarão menor impacto. Tudo isso há de ser conhecidopelo tradutor com máximo rigor, observando à risca o que deve serrepresentado ritmicamente. Que direi dos adornos dos pensamentosque ilustram a composição e a tornam atrativa? Tanto estes quanto osanteriormente mencionados são usados com freqüência pelos melho-res escritores. Poderá o tradutor, sem faltar gravemente, ignorá-los,descuidá-los ou traduzir sem conservar a majestade daqueles?

Para melhor compreender quanto foi exposto tive por bem aduzir al-guns exemplos, para mostrar que os recursos ornamentais não são utiliza-dos apenas por oradores, mas também por filósofos, e que a inteira estruturado discurso rui caso aqueles não sejam traduzidos na sua forma. O filósofoPlatão, no livro Fedro, expõe certo trecho com muitas figuras e ritmo. Suaspalavras, transcritas acima, repetir-se-ão aqui. São as seguintes:

Jovem, há um único princípio para os que desejam tomar uma boadeterminação: compreender aquilo sobre o que se refere a deliberaçãoou equivocar-se totalmente. Isso a muitos escapa porque ignoram ocerne da questão. Assim, no começo da discussão não o admitem, agin-do como se soubessem; mas ao continuar, como convém, acabam falan-do coisas que não fazem sentido, nem para eles nem para outros. Quenão aconteça conosco o que censuramos em outros. Se o debate é entremim e ti, e diz respeito ao amor e à amizade, tendo chegado a um

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cupiditate uero absque ratione ad uoluptates trahente nobisqueimperante libido uocatur. Libido autem, cum multiforme sitmultarumque partium, multas utique appellationes habet. Et harumformarum quae maxime in aliquo exsuperat, sua illum nuncupationenominatum reddit nec ulli ad decus uel ad dignitatem acquiritur. Circacibus enim superatrix rationis et aliarum cupiditatum cupiditasingluuies appellatur et eum, qui hanc habet, hac ipsa appellationenuncupatum reddit. Rursus quae circa ebrietates tyrannidem exercetac eum, quem possidet, hac ducens patet, quod habebit cognomen? Etalias harum germanas et germanarum cupiditatum nomina, semperquae maxime dominatur, quemadmodum appellare deceat,manifestum est. Cuius autem gratia superiora diximus, fere iam patet.Dictum tamen, quam non dictum, magis patebit. Quae enim sineratione cupiditas superat opinionem ad recta tendentem rapitque aduoluptatem formae et a germanis, quae sub illa sunt circa corporisformam, cupiditatibus roborata peruincit et ducit –: ab ipsa insolentia,quod absque more fiat, amor uocatur.

Totus hic locus insigniter admodum luculenterque tractatus est aPlatone. Insunt enim et uerborum, ut ita dixerim, deliciae etsententiarum mirabilis splendor. Et est alioquin tota ad numerumfacta oratio.

[…]Pleni sunt Platonis Aristotelisque libri exornationum huiusmodi

ac uenustatum, quas longum nimis foret per singula consectari. Lectorcerte, si modo eruditus disciplina sit, faciliter ea deprehendet. Hisuero exemplis abunde patet neminem posse primi auctoris maiestatemseruare, nisi ornatum illius numerositatemque conseruet. Dissipatanamque et inconcinna traductio omnem protinus laudem et gratiamprimi auctoris exterminat. Ex quo scelus quodammodo inexpiabilecensendum est hominem non plane doctum et elegantem adtransferendum accedere.

II

Quoniam illa, quae habere oportet interpretem, ostendimus acreprehensiones artificum ex opere ipso, si non recte fecerint, meritonasci docuimus, uideamus nunc tandem unum aliquem locum illiusinterpretationis. Ex eo namque totum genus translationis eius poterimusintelligere et, utrum reprehensionem aut laudem mereatur, iudicare.

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consenso sobre a definição de amor, o que é, qual sua força, tendo issopresente consideramos: será vantajoso ou prejudicial? Que o desejo sejauma espécie de amor, é evidente. Sabemos que mesmo quem não ama,deseja. É importante discernir o amante do não-amante, pois em cadaum de nós há duas idéias dominantes, que seguimos para onde quer quenos levem: uma referente ao desejo de prazer, inata; outra referente aomelhor, adquirida. As duas, umas vezes, agem de comum acordo, ou-tras conflitam dentro de nós, prevalecendo ora uma, ora outra. Quandoa idéia do melhor, conduzida pela razão e pelo seu impulso, prevalece,resulta a temperança; o desejo, sem o controle da razão e arrastando aosprazeres, chama-se paixão. A paixão, por sua vez, sendo multiforme eenvolvendo vários aspectos, recebe muitas denominações. Quando, emalguém, uma dessas formas prevalece sobre as outras, ganha um nomeque não tem nada a ver com o decoro e a dignidade. A desenfreadainclinação pela comida, quando supera as outras tendências, recebe onome de gulodice, e dela deriva o nome de quem a pratica. Qual o nome,então, da inclinação pela bebida e de quem é dominado por ela? É, pois,claro que todos estes desejos e seus semelhantes, sempre que adquiremespecial relevância, devem ter um nome específico. Foi já indicado dealguma maneira o objetivo de tudo isso. O dito sempre supera o nãodito. O desejo desenfreado prevalece sobre a sensatez e arrasta à volúpia,a qual, estimulada por desejos afins, domina e arrasa – : a própriainexperiência chama amor o que se faz sem retidão (237b-238c).

Toda essa passagem é desenvolvida por Platão de maneira insigne emuito aprimorada. Há, como já disse, um admirável esplendor de pala-vras e sentenças. Além disso, o discurso todo foi elaborado ritmicamente.

[…]Os livros de Platão e Aristóteles estão tão cheios de beleza e encan-

to que seria demorado enumerar em detalhe. O leitor, se versado namatéria, facilmente se aperceberá. Pelos exemplos aduzidos é eviden-te que ninguém poderia conservar a majestade do autor primeiro,sem reproduzir o seu ornato e ritmo. A tradução descuidada e incon-gruente destrói imediatamente o prestígio e a graça do autor primei-ro. Isto configura em certa maneira um crime imperdoável o dedicar-se a traduzir carecendo do conhecimento e bom gosto.

II

Foi assinalado tudo aquilo que o tradutor precisa ter e que ascríticas se depreendem da própria obra dos tradutores se não atuam

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Aristoteles in libro Politicorum quarto (utriusque enim operisidem fuit traductor, nec refert, ex illo uel ex hoc exempla sumantur),Aristoteles ergo in libro Politicorum quarto docet8:

Solere potentes et magnos in ciuitate homines simulare interdumquaedam ac dolose praetexere ad multitudinem populi excludendama rerum publicarum gubernatione. Esse uero illa, in quius istasimulatione utuntur, quinque numero: contiones, magistratus, iudicia,armaturam, exercitationem. Poena enim magna constituta aduersusdiuites, nisi contioni intersint, nisi magistratus gerant, nisi in iudiciocognoscant, nisi arma possideant, nisi ad bellicos usus exerceantur;per huiusmodi poenam ad ista facienda diuites compellunt; atpauperibus nullam in his rebus poenam constituunt, quase parcenteseorum tenuitati. Haec enim praetexitur causa; sed re uera hoc agunt,quo illi impunitate permissa a gubernatione rei publicae se disiungant.Poena siquidem remota, nec exercere se ad bellicos usus multitudocurabit nec arma possidere uolet, cum liceat per legem impune illiscarere, nec magistratum geret pauper, si id putabit damnosum, cumsit in eius arbitrio gerere uel non gerere. Onus quoque iudicandi saepeuitabit, si nequeat compelli, ac tempus rebus suis libentius impendetquam publicis consiliis. Atque ita fit, ut tenuiores quidem hominessub praetextu ac uelamento remissionis poenarum sensim ac latentera re publica excludantur, apud diuites autem et opulentos remaneantadministratio et arma et peritia proeliandi. Ex quibus potentiores factiquodammodo tenuioribus dominentur.

Haec est Aristotelis sententia, quam prolixius explicare uolui, quoclarius intelligeretur illius mens. Nunc autem eius uerba praeclare eteleganter in Graeco scripta quemadmodum hic interpres in Latinumconuerterit, animaduerte! Ex hoc enim modus et forma traductionis,qua ubique usus in transferendo est, manifestissime deprehendetur.Inquit enim interpres noster hoc modo: “Adhuc autem, quaecumqueprolocutionis gratia in politiis sapienter loquuntur ad populum, suntquinque numero: circa congregationes, circa principatus, circapraetoria, circa armationem, circa exercitia.” – Deus immortalis, quishaec intelliget? quis hanc interpretationem ac non potius delirationemac barbariem uocitabit? Veniant quaeso defensores huius interpretiset istos, si possunt, defendant errores uel desinant mihi irasci, si illumreprehendi. Primum enim, quod inquit “prolocutionis gratia sapienterloquuntur ad populum”: quis est quaeso “prolocutionis gratia loqui”?

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corretamente. Vejamos agora uma passagem daquela tradução paraem seguida julgar se ela é merecedora de elogio ou de censura.

Aristóteles, no livro 4º da Política (sendo o mesmo o tradutor dasduas obras, os exemplos podem ser retirados de uma ou de outra2)estabelece:

Os homens poderosos e influentes na cidade costumam, às vezes,simular algumas coisas e, com engano, apresentá-las para excluir opovo do governo da coisa pública. Os casos em que aqueles usamditas artimanhas são cinco: assembléias, magistrados, julgamentos,armas, exercícios. Há grandes penas contra os ricos caso não partici-pem nas assembléias, não exerçam a magistratura, não atuem nojulgamento, não possuam armas, não se exercitem para a guerra. Aisso são obrigados os ricos sob ameaça de punição. Para os pobres nãose estabelece nenhuma pena, aparentemente por consideração ao esta-do deles. Essa é a razão alegada; mas na realidade é um pretexto paraalijá-los do governo. Excluída a punição, o povo não pensará em seexercitar para a guerra, nem em possuir armas, podendo fazê-lo im-punemente. Tampouco precisa o pobre exercer cargo público algum seachar inconveniente, uma vez que pode fazê-lo ou não fazê-lo. Ao mes-mo tempo, evitará sempre intervir nos julgamentos, não sendo pressio-nado para isso, e preferirá usar o tempo nos seus afazeres antes que nasassembléias públicas. Advirá assim que os homens mais fracos, sob opretexto e a justificativa de reduzir o trabalho deles, são excluídos dacoisa pública aos poucos e sutilmente, ficando em mãos dos opulentosa administração, as armas e o exercício da guerra. Assim fazendo, tor-nam-se mais poderosos para dominar os fracos (13, 1297

a).

São essas as idéias de Aristóteles que explanei para melhor com-preender seu pensamento. Repare-se agora como o tradutor verteu aolatim um discurso bela e elegantemente escrito em grego. Daídepreenderá o tipo de tradução que ele usou para trasladar. Nossotradutor inicia desta maneira: Adhuc autem, quaecumqueprolocutionis gratia in politiis sapienter loquuntur ad populum, suntquinque numero: circa congregationes, circa principatus, circapraetoria, circa armationem, circa exercitia (Ainda, porém, todas ascoisas que, por motivo da prolocução, são sabiamente faladas para opovo na política, são cinco: sobre agrupamentos, sobre o principado,sobre pretores, sobre armação e sobre exercícios). Santo Deus! Quempoderá compreender isso? Isso não é uma tradução, e sim um delírio.

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Si enim loquuntur homines ad populum sapienter gratiaprolocutionis, magnum profecto aliquid debet esse prolocutio. Doceme ergo, quid tandem sit! Nam ego id uerbum numquam audiuihactenus neque legi nec, quid importet, intelligo. Si in extrema barbarieid uerbum in usu est, doce me, quid apud barbaros significet“prolocutionis gratia loqui”? Nam ego Latinus istam barbariem tuamnon intelligo. Si prolocutio est ut “prologus” et “prooemium”,congruere non potest. Non enim loquuntur homines ad populumgratia prooemii uel prologi, sed prooemium et prologus adhibeturgratia locutionis. Quodsi forsan dicere uis: “prolocutionis gratia” idestgratia “deceptionis” et “simulationis”, quodnam tandem malum esthaec tan dura inusitataque locutio tua! ut “simulationem” appelles“prolocutionem” et “dolose confingere” interpreteris “sapienterloqui”. Haec enim omnia sunt absurdissima. Atqui quod inquit“sapienter loquuntur”, in Graeco non est “loquuntur”, sed id uerbumex se ipso interpres adiunxit. Deinde quod inquit “sapienter”, malecapit. “Sophisma” enim non “sapientiam”, sed “deceptionem etcauillationem” significat. Itaque partim adiungit ipse de suo, partimmale capit ex Graeco, partim male reddit in Latino, cum “prolocutionisgratia” dixerit, quod dicendum fuit “sub praetextu aliquo etsimulatione”. Praetexitur enim causa et dolose confingitur, cum aliudagitur, aliud simulatur. Agitur enim re uera, ut tenuiores excludantura rei publicae gubernatione; simulatur uero pro eorum commodisilla fieri, propter quae excluduntur.

Quod autem postea subicit “circa congregationem”, absurdissimumest. Verbum enim Graecum “contionem” significat, non “congregationem”.Differunt autem plurimum inter se. Nam congregatio est etiambestiarum; unde “gregem” dicimus. “Contio” autem proprie estmultitudo populi ad decernendum de re publica conuocata; et itauerbum in Graeco significat. Itaque non recte transtulit, cum aliudpro alio posuerit nec uim seruauerit Graeci uerbi. – Sed hoc uenialepeccatum est. Ast illud nequaquam uenia dignum, quod subicit circa“praetoria.” Quod enim “praetoria” inquit, “iudicia” debuit dicere.“Iudicium enim furti” dicimus, non “praetorium furti”, et “resiudicata”, non “praetoriata” et “probationes in iudicio factas” et“iudicium de dolo malo.” Denique “dicastis” Graece, Latine “iudex”;“dicastirion” Graece, Latine “iudicium”: Hoc est uerbum e uerbo.Iste uero delirat et ea nescit, quae pueri etiam sciunt.

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Venham os advogados deste tradutor e defendam, se têm coragem,estes erros e façam com que eu não me indigne ao criticá-lo. Em pri-meiro lugar o que é prolocutionis gratia loqui? (falar para fazer umaprolocutio) Se, pois, os homens falam ‘sabiamente’ ao povo ‘por mo-tivo da prolocução’, isso deve ser algo grande. Mas diga-me o que éisso? Eu nunca ouvi nem li essa expressão, e o que é pior, não a com-preendo. Se ela é usada entre os bárbaros, qual o significado dela paraeles? Eu, latino, não compreendo a tua barbárie. Se prolocutio é umaespécie de prólogo ou prefácio, não confere. Com efeito, ninguémfala ao povo ‘por motivo do prólogo’; é o prólogo e o prefácio que seutilizam por causa da locução. Se talvez queres dizer prolocutionisgratia com o significado de ‘decepção’ ou ‘simulação’, locução durae inusitada a tua! É esquisito também chamar a ‘prolocução’ de simu-lação e interpretar dolose confingere (tramar dolosamente) comosapienter loqui (falar sabiamente). Tudo isto é absurdo! Na realidade,no texto grego não se encontra sapienter loquuntur (“falam sabiamen-te”); foi o tradutor quem o acrescentou. Além disso, o sapienter (sabi-amente) foi mal compreendido, pois sofisma (o termo grego) não sig-nifica ‘sabedoria’, mas ‘decepção e cavilação’. Em suma, uma partefoi acréscimo do tradutor; outra, um mal-entendido do grego; umaterceira, má versão ao latim, quando diz prolocutionis gratia em vezde dizer sub praetextu aliquo et simulatione (sob algum pretexto esimulação). Alega-se um motivo e se trama dolosamente, finge-se umacoisa e se executa outra. Trata-se na verdade de excluir os mais fracos dogoverno da coisa pública, enquanto se quer passar a impressão de queé pelo bem deles que isso se faz.

E que depois acrescente circa congregationem (sobre agrupamen-to) é mais um absurdo. A palavra grega significa contio (assembléia),e não congregatio (congregação). A diferença está em que o termousado em latim (congregatio) refere-se também ao conjunto de ani-mais, de onde vem grex ; enquanto a palavra em grego (contio) significareunião de pessoas convocada para debater os problemas comuns. Por-tanto, não é boa tradução a que confunde um termo com outro.

Mas esse é um pecado venial, comparado com o de circa praetoria(sobre pretores), pois praetoria está no lugar de iudicia (julgamento). Diz-se iudicium furti (julgamento de um furto), não praetorium furti (pretóriode um furto), res iudicata (coisa julgada) e não praetoriata (coisapretoriada); bem como probationes in iudicio factas (provas apresentadas

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Circa “principatus” inquit: Haec est alia absurditas. Debuit enim“magistratus” dicere. Nam principatus est imperatoris uel regis; praetoresuero et consules et tribunos plebis et aediles curules et praefectos annonaeet alios huiusmodi numquam diceremus “principatum habere”,“magistratum gerere”. Est enim magistratus potestas uni uel pluribushominibus a populo uel a principe commissa, principatus autem estmaior quaedam supereminentia, cui ceterae omnes potestates parent. SicOctauianum et Claudium et Vespasianum principes fuisse dicimus,Senecam uero, qui consul fui temporibus Neronis, nemo principemappellasset. Erat enim tunc Nero “princeps”, non Seneca; neque consulatusSenecae “principatus” erat, sed “magistratus”; neque imperium Neronis“magistratus” diceretur, sed “principatus”. Haec sunt luce clariora. Necquisquam Latinorum, qui litteras nouerit, huiusmodi officia et potestatesciuibus commissa “principatus” uocauit. Dicimus etiam “principem”per translationem: ut “princeps senatus”, idest primarius homo in senatu“princeps iuuentutis”, qui inter adolescentes fama et honore primariushabetur. Haec est consuetudo Latini sermonis. Hic autem interpres nosterin aliis forsan non indoctus erat; litterarum certe penitus fuit ignarus. –

Deinde subicit “circa armationem”, “circa exercitia”. Haec etiam duopuerilia sunt: “Armationem” enim non satis usitate dicimus; “exercitia”uero cuncta penitus opera sine ulla distinctione important. Aristotelesautem hoc ita ponit, ut exercitationes corporum ad bellicos usus designet.

Post haec resumens, quae prius enumerauerat, in hunc modumuerba subicit:

Circa congregationem quidem: licere omnibus congregationi interesse,damnum autem imponi diuitibus, si non intersint congregationi, uelsolis uel multo maius; circa principatus autem: habentibus quidemhonorabilitatem non licere abiurare, egenis autem licere; circa praetoriauero: diuitibus quidem esse damnum, his autem paruum. Eodemmodo et de possidendo arma et de exercitari leges ferunt: Egenis quidemlicet non possidere, diuitibus autem damnosum non possidentibus. Etsi non exerceantur, his quidem nullum damnum, diuitibus autemdamnosum, ut hi quidem propter damnum participent, hi autempropter non timere non participent. Haec quidem igitur sunt oligarchicasophistica legislationis.

O Aristotelis elegantiam! qui tanto studio de arte rhetorica scripsit,qui tanto splendore tantoque ornatu libros suos refersit. Istane tambalbutientia, tam absurda, tam muta in Latino illi redduntur, ut

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no julgamento) e iudicium de dolo malo (julgamento de um dolo mau).Finalmente, dikastes, em grego, é iudex (juiz), em latim; e dikasterion(processo) se diz iudicium (julgamento), em latim: isto é traduzir ao pé daletra. Ele realmente delira, e ignora o que até as crianças sabem.

Colocar circa principatus (sobre principado) em vez de magistratus(cargo público) é mais um absurdo. O principado é próprio do impe-rador ou do rei; nunca se dirá que os pretores, cônsules, tribunos daplebe e os supervisores do abastecimento e outros semelhantes habereprincipatum (detêm um principado), e sim que magistratum gerere(exercem um cargo). A magistratura é um poder outorgado a um oumais homens pelo povo ou pelo governante; o principado é umasupremacia à qual se subordinam os outros poderes. Assim, diz-seque são príncipes Otávio, Cláudio e Vespasiano, mas não Sêneca quefoi cônsul no tempo de Nero. Nessa época era Nero o princeps, nãoSêneca. E o consulado de Sêneca não era principatus e sim magistratus;contrariamente à autoridade de Nero que era principatus e nãomagistratus. Tudo isto é mais claro que a água. Ninguém dentre oslatinos, que conheça as letras, chamou principatus os cargos ou fun-ções conferidos aos cidadãos. Usa-se também o termo princeps (chefe,presidente, príncipe) por analogia; como por exemplo, princepssenatus (presidente do senado), que preside no senado; princepsiuuentutis (o príncipe da juventude), o que entre os jovens detém aprimazia na fama ou na honra. É esta uma característica da língualatina. O nosso tradutor talvez não ignorasse outros assuntos, mas nocampo das letras era completamente ignorante.

Acrescenta ainda circa armationem (sobre armação) e circa exercitia(sobre exercícios). Ambos são pueris: armatio está fora de uso, exercitiaé genérico demais. Aritóteles refere-se aos exercícios corporais comvistas ao combate.

Resumindo depois de quanto fora exposto, acrescenta o seguinte:

Sobre a congregação: a todos é permitido assistir a uma congregação,porém penalizam-se os ricos que não assistirem, sozinhos ou em gru-po. Sobre o principado: quem tem honorabilidade não é permitidorenunciar com falso juramento, mas aos pobres é permitido. Sobre ospretores: há punição para os ricos se não resolverem, os pobres, porém,são dispensados, ou para aqueles há um grande castigo, para estes,um pequeno. Da mesma maneira agem as leis no que tange à posse dearmas e aos exercícios: aos pobres é permitido não possuí-las, porém

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“prolocutiones”, ut “honorabilitates”, ut “propter non discuti” et“propter non scribi”, ut “oligarchica sophistica legislationis” ethuiusmodi portenta uerborum dicantur, quae uix in pueris primasdiscentibus litteras tolerabilia forent?

Sed missas faciamus querelas et in illa ineptitudine loquendierrores insuper uideamus. Quo inquit “damnum imponi diuitibus, sinon intersint congregationi”, non “damnum”, sed “poena” dicendumfuit. Licet enim damnatio poenam importet, tamen aliud est“damnum”, aliud “poena”. Nam damnum et fures afferunt et aues etquadrupedes, poena uero a lege imponitur, si contra quis faciat, quamiussit. Nec etiam “congregationi” dicendum fuit, sed “contioni”.

Quod uero postea subicit “habentibus honorabilitatem non licereabiurare principatus”: tria hic sunt – “honorabilitas” et “principatus”et “abiurare” –, quorum singula uitiose sunt posita. De “principatu”ostensum est supra euidentissimis probationibus: non “principatus”,sed “magistratus” esse dicendum. Nunc autem de “honorabilitate” et“abiuratione” uideamus. Quaero igitur, quid uelit dicere“honorabilitatem habentibus non licere abiurare”? Vtrum, si sintpersonae honorabiles ceu equites et nobiles, abiurare non possunt,mercatores autem et populares possunt, licet ditiores sint equitibus etnobilibus? Vel quomodo se haec habent? Nam si ad honorem lexrespicit, non ad diuitias, nobiles etiam, si sint egeni, magistratus gererecompellentur, ignobiles uero, quamuis sint ditissimi, renuntiarepoterunt. Nam licet diuites sint, non habent honorabilitatem. Veldicemus: pauperem quidem habere honorabilitatem, si bonus sit,diuitem autem, si sit improbus, non habere? Atqui honorabilem esseconstat bonum uirum, quamuis sit pauper, uituperabilem autemmalum, quamuis sit diues. Qui uero honorabilis est, eumhonorabilitatem habere negari non potest. Quod si haec ita sunt, curinquit “habentibus honorabilitatem non licere, egenis autem licere”,quasi contrarii sint honorabiles et egeni?

Quid ad haec respondebit interpres noster? Nihil profecto, quodrectum sit. Nam dato uno incoueniente plura sequuntur. Interpresenim noster propter ignorantiam linguae “honorabilitatem” dixit, quod“censum” dicere debebat. Est autem census ualor patrimonii, quemiste stulto et imperito et inusitato uocabulo “honorabilitatem”nuncupauit. Ex hoc autem uerbo, quod inconuenienter ab “honore”traxit, mille, ut ita dixerim, inconuenientia sequerentur. Sed non

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aos ricos que não as possuem é prejudicial; e se não se exercitam, paraaqueles não há nenhum castigo, para estes há penalização. De formaque estes participam por temor do castigo, aqueles, porém, não parti-cipam porque não temem. Todos estes casos são, portanto, capciosasquestões oligárquicas da legislação.

Oh, elegância de Aristóteles que com tanto afinco escreveu sobre aarte da retórica, que com tanto brilho e ornamento compôs seus li-vros! Não são, por acaso, coisas de um balbuciante, tão absurdas, tãosem sentido as que se colocam em latim, como prolocutiones,honorabilitates, propter non discuti, propter non scribi, oligarchicasophistica legislationis, e semelhantes portentos verbais que mal seri-am tolerados às crianças que engatinham nas primeiras letras?

Mas deixemos de lado a repreensão e vejamos mais uma vez oserros de semelhante maneira de falar. Quando diz damnum imponidiuitibus, si non intersint congregationi, (o dano supostamente causa-do aos ricos se não participam nas reuniões), não deveria dizerdamnum (dano), e sim poena (punição). O dano é causado tambémpelos ladrões, aves e animais, a punição é imposta pela lei. Tampoucodeveria dizer congregatio, mas contio.

Enquanto a habentibus honorabilitatem non licere abiurareprincipatus (aos possuidores de honorabilidade não ser permitidoabjurar o principado), devem ser observadas três palavras, cada umadas quais colocada erroneamente: honorabilitas, principatus e abiurare.Sobre o principatus, que deveria ser dito magistratus, já se falou. Veja-mos os outros dois. Pergunto, pois, que significa “aos que têmhonorabilidade não é permitido abjurar”? Quer dizer que abjurar éproibido só aos nobres e cavalheiros, mas não aos mercadores e cida-dãos comuns que podem ser até mais ricos que os anteriores? Como háde se entender? Se a lei mira a honra e não as riquezas, os nobres tam-bém, se necessitados, podem ser obrigados a exercer a magistratura, e osignóbeis, mesmo se riquíssimos, podem renunciar. Mesmo sendo ricos,não têm honorabilidade. Ou devemos dizer que o pobre temhonorabilidade se é bom, o rico, se mau, não tem? Contudo, é sabidoque o varão bom é honrável ainda que pobre; o mau, desprezível, aindaque rico. Ninguém tira a honorabilidade de quem é honorável. Por que,então, foi dito: habentibus honorabilitatem non licere, egenis autemlicere (aos que têm honorabilidade não é permitido, mas aos pobres épermitido), como se honorabilidade e pobreza fossem incompatíveis?

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“honorabilitas” dicendum fuit, sed “census”; hoc est enim conueniensnomen et Graeco proprie correspondens, “honorabilitas” auteminconueniens ac penitus alienum. Ciuitates enim Graecorum fermeomnes censu moderabantur. Romae quoque census fuit a Seruio Tulliorege constitutus. Diuisit enim ciuitatem non secundum regiones, sedsecundum censum, faciens unum corpus eorum ciuium, qui habebantcensum supra centum milia aeris, aliud corpus habentium censum acentum milibus ad septuaginta quinque, tertium eorum, qui habebantcensum a septuaginta quinque milibus ad quinquaginta; et itadescendens usque ad quinque milia peruenit. Infra eum numerumsine censu reliquit, quasi tenues et impotentes. Ex censu autem, quaedomi et militiae subeunda forent onera, constituit. Quia ueropatrimonia uel minuuntur uel augentur, de quinquennio inquinquennium recenseri constituit. Id quinquennium “lustrum”appellarunt; magistratus uero, qui censui praeessent “censores” dictisunt. Apud Graecos uero censores dicuntur “timitae” et census“timima” uocatur. Sed bonus ille interpres ista non legerat. Verumpro censu “honorabilitatem” somniauit, nouum faciens uerbum a seipso, quod nemo ante posuerat.

Quod autem inquit “licere abiurare magistratum”: dubito, neuerbum “abiurare” non recte sit positum; praepositio enim ad uerbum“iuro” addita “falsum iuramentum” significare uidetur, ut periurare,deierare, abiurare. Sallustius de Sempronia creditum “abiurauerat”;caedis conscia fuerat9. “Abiurare creditum” est: falso iuramento se apecunia credita defendere. Itaque “abiurare magistratum” esset: falsoiuramento magistratum negare, quod non cadit in praesenti sententia.

Illud autem, quod subdit circa praetoria, “diuitibus esse damnum,si non discutiant, egenis uero licentiam”, satis ostendimus supra: non“praetoria”, sed “iudicia”, neque “damnum”, sed “poenam” essedicendum. In quibus adeo turpis est error, ut pueros etiam, qui primasdiscunt litteras, pudere deberet tantae ignorantiae ac ruditatis. Deinde,quod inquit “si non discutiant”, imperitissimum est. Nam et iudicesparum diligentes interdum non “discutiunt” ea, de quibus “iudicant”.Hoc autem pauperi non permittitur, ut “iudex” sit et non “discutiat”,sed excusare se potest ab onore “iudicandi”.

Sequitur deinde cetera barbaries usque ad praeclaram illamconclusionem, cum inquit “haec quidem igitur sunt oligarchicasophistica legislationis”. Quae dum lego, partim ingemisco, partim

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Que responderá a isso nosso tradutor? Na verdade, nada que sejacorreto. Cometido o primeiro deslize, muitos outros seguem. Nossotradutor, por desconhecimento da língua, traduziu comohonorabilitas quando deveria dizer census. Com efeito, ocadastramento se refere ao valor do patrimônio, que aquele chamoucom o estulto, impróprio e inusitado vocábulo de honorabilitas. Des-ta palavra, traduzida erradamente como honos seguiram-se mil in-convenientes, como já disse. Mas não deveria usar a palavrahonorabilitas, e sim census. Esse é o nome que traduz o termo grego,enquanto o outro é totalmente estranho. Quase todas as cidades gre-gas se regiam pelo censo. Também em Roma foi instituído o recense-amento no tempo do rei Sérvio Túlio. A cidade foi dividida, não porbairros, mas de acordo com os dados do recenseamento: uma seçãofoi formada pelos cidadãos que possuíam mais de 100 mil asses, outrapor aqueles com 175 mil, um terceiro corpo pelos que tinham entre 75e 50 mil; e assim até chegar aos que tinham 5 mil. Os que estavamabaixo dessa faixa foram excluídos do registro, ficando como fracos eimprestáveis. De acordo com esse levantamento se estabeleceram osimpostos domésticos e militares. E, uma vez que o patrimônio au-menta ou diminui, o cadastramento era feito a cada cinco anos. Aoqüinqüênio chamaram lustro; e os funcionários que organizavam ocenso foram chamados censores. Entre os gregos, no entanto, os censo-res são chamados “timetai” e os censos “timema”. Mas aquele bomtradutor não se informou disso. E para a tradução de census inventouhonorabilitas, item novo, desconhecido até então.

Sobre a expressão licere abiurare magistratum (é permitido abjurara magistratura), duvido sobre o uso correto de ‘abjurar’. A preposi-ção anteposta ao verbo juro parece significar falsum iuramentum (fal-so juramento), como em periurare, deierare, abiurare. Com respeito aSemprônia, Salústio creditum abiurauerat (negara uma dívida), poisela havia sabido de alguns crimes. Abiurare creditum é livrar-se deuma dívida contraída com falso juramento. Assim, abiuraremagistratum (abjurar a magistratura) seria negar a magistratura comfalso juramento, o que não faz sentido.

Sobre o referente a praetoria (chefes, líderes) (diuitibus essedamnum, si non discutiant, egenis uero licentiam; há punição para osricos se não resolverem, os pobres porém são dispensados), já foi dito:não se trata de praetoria (chefias) e sim de iudicia (julgamentos), não de

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rideo. Ingemisco enim elegantiam illorum librorum in tantambarbariem fuisse conuersam; rideo uero, quod uerba illius conclusionistamquam medicinalia quaedam mihi uidentur. Perinde est enim dicere“oligarchica sophistica legislationis”, ac si quis dicat “aromaticastyptica primae decoctionis”. O me simplicem! qui cola et commataet periodos et dicendi figuras ac uerborum sententiarumqueornamenta seruari postulem ab huiusmodi hominibus, qui, nedumista non sentiunt, sed ne primas quidem litteras tenere uideantur;tanta sunt ignorantia ruditateque loquendi.

Quid de uerbis in Graeco relictis dicam, quae tam multa sunt, utsemigraeca quaedam eius interpretatio uideatur? Atqui nihil Graecedictum est, quod Latine dici non possit! Et tamen dabo ueniam inquibusdam paucis admodum peregrinis er reconditis, si nequeantcommode in Latinum traduci. Enim uero, quorum optima habemusuocabula, ea in Graeco relinquere ignorantissimum est. Quid enim tumihi “politiam” relinquis in Graeco, cum possis et debeas Latinouerbo “rem publicam” dicere? Cur tu mihi “oligarchiam” et“democratiam” et “aristocratiam” mille locis inculcas et aureslegentium insuasissimis ignotissimisque nominibus offendis, cumillorum omnium optima et usitatissima uocabula in Latino habeamus?Latini enim nostri “paucorum potentiam” et “popularem statum” et“optimorum gubernationem” dixerunt. Vtrum igitur hoc modo Latinepraestat dicere, an uerba illa, ut iacent, in Graeco relinquere?“Epiichia” est iustitiae pars, quam nostri iurisconsulti “ex bono etaequo” appellant. “Ius scriptum sic habet – inquit iurisconsultus –,debet tamen ex bono et aequo sic intelligi, et aliud ex rigore iuris,aliud ex aequitate.” Et alibi inquit: “Ius est ars boni et aequi.” Cur tuergo mihi “epiichiam” relinquis in Graeco, uerbum mihi ignotum,cum possis dicere “ex bono et aequo”, ut dicunt iurisconsulti nostri?Hoc non est interpretari, sed confundere, nec lucem rebus, sedcaliginem adhibere.

Quid dicam de suauitate ac rotunditate orationis, qua quidem inre plurimum laborasse Aristoteles in Graeco uidetur. Hic auteminterpres ita dissipatus delumbatusque est, ut miserandum uideatur,tantam confusionem intueri. Taedet me plura referre. Est enim plenainterpretatio eius talium ac maiorum absurditatum et delirationum,per quas omnis intellectus et claritas illorum librorum miserabilitertransformatur fiuntque ii libri ex suauibus asperi, ex formosis

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damnum (dano), mas de poena (punição). Todos esses são erros tãocrassos que fariam corar até mesmo um principiante no estudo dasletras. A frase si non discutiant (se não resolverem) está totalmente equi-vocada. Também os juízes pouco diligentes às vezes não ‘resolvem’aquilo que julgam. Ao pobre o que se permite não é que seja ‘juiz’ e ‘nãoresolva’, mas que possa eximir-se do ônus de julgar.

Segue a isso outra barbárie até aquela famosa conclusão, quandodiz haec quidem igitur sunt oligarchica sophistica legislationis.Quando leio isso, às vezes, dá vontade de chorar, às vezes, de rir; dechorar ao ver a elegância daqueles livros reduzida a tanta barbárie;de rir porque as palavras daquela conclusão afiguram receita medi-cinal. Ao dizer oligarchica sophistica legislationis soa comoaromatica styptica decoctionis (adstringentes aromáticos de primeiracocção). Oh, ingenuidade a minha, que peço que se conservem osmembros, incisos, períodos, figuras de dicção e outros ornamentosde palavras e de pensamentos a homens deste tipo, que sequer pare-cem ter aprendido o bê-á-bá das letras, a tal ponto chega a ignorân-cia e a rudez no falar.

O que dizer das palavras deixadas em grego? São tantas que atradução deveria ser chamada semigrega. No entanto, não há nadadito em grego que não possa ser dito em latim! Admito essa liberdadeem alguns raríssimos casos em que a tradução ao latim não possa serfeita convenientemente. Mas deixar de lado aquelas palavras em gre-go para as quais temos excelentes equivalentes é o supra-sumo daignorância. Por que usar a palavra grega politeia, podendo dizer respublica? Por que tentas me impor e ofender os ouvidos dos leitorescom os inusitados vocábulos oligarchia, democratia e aristocratia,tendo excelentes e conhecidíssimos equivalentes latinos? Nossos au-tores latinos disseram paucorum potentia (poder de uns poucos),popularis status (estado popular) e optimorum gubernatio (governodos melhores). É preferível falar assim em latim, ou deixar essas pala-vras em grego como estão? Epieikeia é parte da justiça, que nossosjurisconsultos chamam “do bom e justo”. “O direito escrito estabelecedessa forma” – diz o jurisconsulto –, “mas deve-se entender segundoo bom e o justo”; um de acordo com o rigor da lei, e o outro de acordocom a eqüidade. E alhures diz: “o direito é a arte do bom e do justo”.Por que, então, deixas epieikeia em grego, palavra desconhecida paramim, podendo dizer “segundo o bom e o justo”, como fazem nossos

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deformes, ex elegantibus intricati, ex sonoris absoni et pro palaestra etoleo lacrimabilem suscipiunt rusticitatem: ut, si quis apud inferossensus sit rerum nostrarum, indignetur et doleat Aristoteles librossuos ab imperitis hominibus ita lacerari, ac suos esse neget, quos istitranstulerunt, ac suum illis nomen inscribi molestissime ferat. Haecigitur ego tunc reprehendi et nunc etiam reprehendo.

III

Quod autem non alienae sint reprehensiones meae a consuetudinedoctissimorum hominum, et Hieronymus et M. Cicero probant;quorum reprehensiones si in similibus legantur, uidebuntur meaetanto clementiores esse, quanto aures nostrae ad huiusmodicorruptiones propter saeculi ignorantiam quodammodo iamoccalluerunt. Illis uero tamquam monstra et inaudita prodigiauiderentur.10

Notae

1. Virgílio, Eneida, V, 397-398: Si mihi quae quondam fuerat quaque improbus iste / exultatfidens, si nunc foret illa iuuentas; e Eneida, VII, 162-163: Ante urbem pueri et primaeuoflore iuuentus / exercentur equis domitantque in puluere currus. (N. do E.)

2. Tito Lívio, História de Roma, III, 8,7: Q. Fabius praeerat urbi; is armata iuuentutedispositisque praesidis tuta omnia ac tranquila fecit. É evidente que Bruni cita de memó-ria, como era comum na Idade Média e no Renascimento, e a citação não correspondeexatamente ao texto de Tito Lívio. (N. do E.)

3. Juvenal, Sátiras, II, 100, a partir de Virgílio, Eneida, XII, 94. (N. do E.)

4. Início do prólogo da Medéia de Ênio, citado pelo autor da Rhetorica ad Herennium, II, 22,34. (N. do E.)

5. Aristóteles, Ética a Nicômaco, VIII, 1, a partir de Homero, Ilíada, X, 224. (N. do E.)

6. Aristóteles, Ética a Nicômaco, II, 9, 1109b10, a partir de Homero, Ilíada, III, 156-160. (N. doE.)

7. Platão, Fedro, 237b-238c. (N. do E.)

8. Aristóteles, Política, IV, 13, 1297a (N. do E.)

9. Salústio, A conjuração de Catilina, XXV, 4: Sed ea saepe antehac fidem prodiderat, creditumabiurauerat, caedis conscia fuerat, luxuria atque inopia praeceps abierat. (N. do E.)

10 Em todos os manuscritos conservados, o texto de Bruni é interrompido aqui. A julgarpelo que Bruni diz no prefácio, a obra ficou incompleta em sua terceira e última parte.(N. do E.)

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jurisconsultos? Isso não é traduzir, mas confundir; não é esclarecer,mas obscurecer as coisas.

O que direi sobre a suavidade e atilamento do discurso, usadospor Aristóteles em grego? Nisto o tradutor é tão descuidado e inepto,que dá pena ver tanta confusão. Sinto repugnância ao referir tantascoisas. A tradução está cheia de tantos e enormes absurdos e delírios,que a compreensão e a clareza de ditos livros é miseravelmente detur-pada; assim, em vez de suaves, tornam-se ásperos, de formosos, defor-mes; de elegantes, confusos; de sonoros, dissonantes; em vez de bele-za, exibem áspera rudeza. Discorrendo como costumeiro entre nós, écomo se, no outro mundo, Aristóteles lastimasse e se indignasse ao verseus livros tão lacerados por homens ineptos, ao ponto de desconhecê-los e não tolerar que sejam assinados com seu nome. Assim, pois, isso éo que eu critiquei então e critico também agora.

III

Que as minhas repreensões não são alheias ao costume dos ho-mens muito instruídos, provam tanto Jerônimo como Cícero. Ao ler-mos suas diatribes em situações análogas, as minhas parecerão tantomais benignas quanto os nossos ouvidos, devido à ignorância secular,se acostumaram a semelhantes corrupções. Àqueles, porém, afigura-riam aberrações monstruosas e inauditas.

Tradução de Rafael CamorlingaNotas

1. Protógenes, Apeles e Aglaofonte, célebres pintores gregos, sendo Apeles (séc. IV a.C.) o maisconhecido por ter retratado Filipe II e Alexandre Magno. Nenhuma de suas pinturas che-gou até nós. (N. do E.)

2. Bruni possivelmente se equivoca, pois uma das hipóteses contemporâneas de maior pesosobre as traduções de Aristóteles aponta o nome de Roberto Grosseteste (1168-1253) comotradutor ao latim da Ética a Nicômaco (a tradução mais criticada por Bruni), e o de Gui-lherme de Moerbeke (1215-1286) como o tradutor da Política, em 1260. Mas tal equívocotambém pode ser explicado pelo fato de que a tradução realizada por Roberto Grossetestefoi revisada por Guilherme de Moerbeke. (N. do E.)