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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAES E ARTES
LAS MARQUES SILVA
Escuta-ao: pistas para a criao do ator em dilogo com o sistema
dos Viewpoints
So Paulo
2013
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LAS MARQUES SILVA
Escuta-ao: pistas para a criao do ator em dilogo com o sistema
dos Viewpoints
Dissertao apresentada ao Departamento
de Artes Cnicas da Escola de
Comunicaes e Artes da Universidade de
So Paulo, como requisito parcial para a
obteno do ttulo de Mestre em Artes
Cnicas.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Helena Franco de Araujo Bastos
So Paulo
2013
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Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogao na PublicaoServio de Biblioteca e Documentao
Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So PauloDados fornecidos pelo(a) autor(a)
Silva, Las MarquesESCUTA-AO: PISTAS PARA A CRIAO DO ATOR EM
DILOGO COM O SISTEMA DOS VIEWPOINTS / LasMarques Silva. -- So Paulo: L. Silva, 2013.
1 v.: il. + -.Dissertao (Mestrado) - Programa de Ps-Graduao em Artes
Cnicas - Escola de Comunicaes e Artes / Universidade deSo Paulo.Orientadora: Maria Helena Franco de Araujo BastosCoorientador: - -Bibliografia
1. Sistema dos Viewpoints 2. atuao 3. escuta
4. processo criativo 5. teatro I. Bastos, Maria
Helena Franco de Araujo II. Ttulo.
CDD 21.ed. - 792Teatro
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SILVA, Las Marques.Escuta-ao: pistas para a criao do ator em dilogo como sistema dos Viewpoints. Dissertao apresentada Escola de Comunicaes eArtes da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Mestre em ArtesCnicas.
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr.: _______________________ Instituio: ___________________________Julgamento: ___________________ Assinatura: _____________________________
Prof. Dr.: _______________________ Instituio: ___________________________Julgamento: ___________________ Assinatura: _____________________________
Prof. Dr.: _______________________ Instituio: ___________________________
Julgamento: ___________________ Assinatura: _____________________________
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Dedico este estudo aos meus pais, Regina e Euclides,e minha irm La, por compartilharem comigo um
amor pelo conhecimento que ilumina toda a minha
existncia. Ana Laura Prates que, ao longo de
mais de uma dcada, oferece generosamente uma
escuta refinada e potencialmente criativa contra os
abismos. Ana Luiza Leo, pelo encontro das
guas. Ivone Barriga (in memorian).
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Agradecimentos
Gostaria de agradecer minha orientadora, Helena Bastos, pela confiana edisponibilidade para o dilogo sincero e sempre muito engajado. Deixo registrada
tambm a minha sincera gratido a todos aqueles diretamente envolvidos nessa
pesquisa, como Eduardo Mossri, Natalia Nolli Sasso, Vinicius Piedade, Marcos
Bulhes e os demais integrantes do Desvio Coletivo, alm dos recentes e dos mais
antigos amigos-colaboradores que, de um modo sempre afetuoso, procuraram
incentivar esta desafiadora empreitada: Fernando Rodrigues, Arthur Belloni, Leonel
Carneiro, Humberto Issao e Janana Leite. Agradeo ainda a todos os professores,
colegas, tcnicos e demais profissionais ligados ao Departamento de Artes Cnicas da
ECA-USP, que, desde a graduao, vm colaborando direta ou indiretamente para o
meu desenvolvimento artstico e pessoal. E, finalmente, lembro que o estudo s foi
possvel graas FAPESP e CAPES, que apoiaram financeiramente a pesquisa, bem
como Oficina Cultural Oswald de Andrade, que nos emprestou uma sala de ensaio
para o experimento prtico.
Sem vocs isso tudo realmente no seria possvel.
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RESUMO: O sistema dos Viewpoints o ponto de partida para uma investigao
terico-prtica que transita por entre a bibliografia desenvolvida por Anne Bogart e a
experincia prtica em sala de ensaio. O objetivo principal apontar algumas pistas
para o trabalho do ator a partir de trs recortes: o mapeamento inicial do sistema, a
descrio das prticas realizadas em sala de ensaio e, ainda, a explorao do conceito
de escuta-aoenquanto estratgia metodolgica para a criao atoral. Os Viewpoints
so compreendidos como um dispositivo a ser difundido, e a metodologia procurou
friccionar o procedimento em questo com alguns dos temas presentes na cena
contempornea, como a performatividade e o desempenho espetacular. A anlise do
papel determinante da escuta-ao, na hiptese original da pesquisa, afirma ser a
dramaturgia do ator o espao da experincia, uma atividade permanentemente
provisria, propositadamente lacunar e, em suma, ensastica, vista aqui a partir da
perspectiva de Jorge Bonda.
Palavras-chave: Atuao. Escuta. Processo criativo. Viewpoints.
ABSTRACT: The Viewpoints System is the starting point for a theoretical-practical
investigation that includes the bibliography developed by Anne Bogart and thepractical experience in rehearsals. The main objective of this study is to indicate some
signs to the actors work through three approaches: the initial mapping of the system,
the description of practices applied in rehearsals, and the exploration of the listening-
action (escuta-ao) concept as a methodological strategy for acting creation. The
Viewpoints are understood as a device yet to be disseminated, and the methodology
has sought to relate this procedure with some subjects present in the contemporary
scene, such as performativity and perfomative performance. The analysis of listen-acts determinant role, according to the original hypothesis of this research, sustains
that the dramaturgy of the actor is the experiencing space, a permanent provisional
activity, purposely empty, and essentially essayistic, viewed here from Jorge Bondas
perspective.
Keywords: Acting. Listening. Creative process. Viewpoints.
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SUMRIO
1 INTRODUO (OU AQUECIMENTO PARA O JOGO) ........................ 9
2 VIEWPOINTSEM FOCO ........................................................................... 12
2.1 A NOVA DANA E AS RAZES ORIGINRIAS DOS VIEWPOINTS..... 13
2.2 PRINCPIOS, OBJETIVOS E METODOLOGIA ......................................... 18
2.3 PRINCPIOS DA COMPOSIO ................................................................ 23
2.3.1 A composio na criao .................................................................... 25
2.3.2 A composio no ensaio ..................................................................... 27
2.4 QUANDO A CULTURA O CORPO: O MTODO SUZUKI .................. 282.5 NOTAS SOBRE A TRAJETRIA ARTSTICA DE ANNE BOGART ...... 33
2.5.1 O artista da cena segundo Anne Bogart ............................................. 40
2.6 OS VIEWPOINTSE AS NOVAS UTOPIAS ................................................ 53
3 CENA EM FOCO ......................................................................................... 55
3.1 OS VIEWPOINTSEM TERRAS TUPINIQUINS ......................................... 55
3.2 RASTROS DE UMA TRAJETRIAIN PROCESS ..................................... 583.2.1 Ponto de vista 1: a dramaturgia performativa .................................... 59
3.2.2 Ponto de vista 2: frico entre texto e improviso ............................... 69
4 ESCUTA EM FOCO .................................................................................... 85
4.1 POR UMAESCUTA-AO.......................................................................... 86
4.2 AFINANDO AS ANTENAS ......................................................................... 90
4.3 A PRESENA NOENTRE ........................................................................... 94
4.4 O DESEMPENHO ESPETACULAR ............................................................ 97
4.4.1 Algumas consideraes sobre a performatividade ............................. 99
4.5 A DRAMATURGIA DO ATOR: UMA EXPERINCIA ENSASTICA .. 101
4.6 O QUE ESCUTA AESCUTA-AO.......................................................... 106
5 (IN)CONCLUSO (OU FIM DO BREVSSIMO ATO) ....................... 109
REFERNCIAS ..................................................................................................... 114
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Esse ncleo e esse propsito tm, ao longo de toda travessia,
como um dirio de bordo, a convico de que o nico
conhecimento vlido aquele que se nutre de incerteza e que
o nico pensamento que vive aquele que se mantm na
temperatura de sua prpria destruio.Edgar Morin
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1 INTRODUO (OU AQUECIMENTO PARA O JOGO)
Desde o incio do sculo XXI, o sistema dos Viewpointsvem inspirando as
mais diversas experimentaes teatrais. Baseada na improvisao coletiva por meio
de uma estrutura orientada a partir do espao e do tempo, essa tcnica tem se tornado
cada vez mais frequente na rotina dos treinamentos desenvolvidos por grupos teatrais,
em oficinas e cursos livres, e se desenvolvido como uma importante etapa na criao
de diversos espetculos no Brasil e no exterior.
A crescente popularizao dos Viewpoints, propostos inicialmente pela
coregrafa norte-americana Mary Overlie e trazidos para o teatro pela diretora Anne
Bogart, nos anos 1980, confirma a sua natureza catalisadora de processos criativos e
exige que uma anlise menos ingnua ou levada pelos modismos dessa poca seja
feita. Ainda que seu enfoque seja dedicado sobretudo ao trabalho do ator, essa tcnica
de improvisao pode ser objeto de reflexo em um panorama mais amplo. O dilogo
pode ser feito, por exemplo, junto encenao, pedagogia ou, ainda, ao ambiente
terico no qual ela se insere. Todas essas diferentes reas poderiam ser analisadas,
tendo-se em vista as contribuies especficas que essa proposta tcnica,
acompanhada de sua respectiva filosofia de criao, oferece para o debate da cena
atual.Do ponto de vista da encenao, por exemplo, possvel destacar o fato de
que seus princpios e procedimentos no determinam um resultado esttico especfico.
Em decorrncia disso, a montagem pode valer-se de diferentes materiais
dramatrgicos e, inclusive, de estratgias no textocntricas para a estruturao da
escritura cnica. Os espetculosEnsaio.Hamlet(com a Cia. dos Atores, RJ, 2004) eA
falta que nos move (com a Cia. Vrtice de Teatro, RJ, 2005), e, em nvel
internacional, as produes realizadas pela SITI Company (fundada em 1992 porAnne Bogart, EUA), assim como pela Quarto Physical Theatre (dirigida por Leandro
Zappala, Sucia/Brasil1), so referncias exemplares, na medida em que obtiveram
sucesso de pblico e crtica ao conjugarem s suas respectivas concepes alguns dos
procedimentos advindos dos Viewpoints.
1
A pesquisadora desta dissertao pde acompanhar o processo criativo da Cia. ao realizar, com ela,uma residncia artstica para o desenvolvimento do experimento Aphorism 3 no Teater Giljotin,Estocolmo, 2009.
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No que tange pedagogia teatral, possvel notar que inmeros cursos,
oficinas e workshopsoferecidos vm aprimorando as habilidades do participante com
base em aes fsicas no necessariamente realistas, cuja relao espao-temporal
constituda por outras combinatrias e arranjos. Se at ento, por exemplo, a prtica
da improvisao proposta pela precursora dos Jogos Teatrais, a norte-americana Viola
Spolin, solicitava aos estudantes aes definidas com base no o qu?, no onde? e
no como?, as formulaes de Bogart vo alm desses princpios e radicalizam o
sentido da materialidade cnica, revestida agora de ambies ditas ps-dramticas.
J no mbito dos estudos tericos, a pesquisa com os Viewpoints pode ser
articulada a partir de conceitos seminais vistos pela perspectiva contempornea.
Noes como teatralidade, dialogismo e liminaridade poderiam estimular a frico e o
trnsito s vezes delicado entre o universo prtico e a teoria teatral que vem sendo
discutida atualmente. Alm disso, contextualizar o sistema dentro do panorama que o
estudioso norte-americano Richard Schechner elabora nos Estudos da Performance,
por exemplo, propiciaria uma reflexo no apenas sobre o seu arsenal tcnico como,
fundamentalmente, sobre a genealogia terica na qual se insere.
Valendo-se da experincia pessoal que vimos desenvolvendo em diferentes
contextos, e considerando-se os limites e desdobramentos que a prpria investigao
trouxe ao longo do percurso, apresentamos, aqui, um estudo inicial que busca
privilegiar o enfoque sobre o trabalho prtico do ator. Pretendemos ressaltar em que
medida as sugestes de Anne Bogart no trabalho com a gestualidade, com o
movimento e com o vocabulrio geral de composio podem significar um olhar
diferenciado sobre a escuta cnica. O que se almeja, nesse sentido, a possibilidade
de se estabelecerem algumas conexes entre o trabalho atoral, sobretudo a partir da
perspectiva de uma dramaturgia ensastica do ator, e o contexto contemporneo.
No segundo captulo, VIEWPOINTS EM FOCO, apresentamos ummapeamento inicial desse procedimento, com a descrio dos seus princpios e
objetivos, alm de uma breve referncia ao mtodo Suzuki e composio sob a
ptica de Anne Bogart. O percurso artstico da diretora tambm apontado, a partir
do comentrio sobre algumas das suas publicaes, ainda no traduzidas para a lngua
portuguesa.
No terceiro captulo, CENA EM FOCO, a experincia prtica em sala de
ensaio o mote para uma reflexo sobre as inmeras estratgias advindas dosViewpoints, sob diferentes ngulos e com diversas finalidades. O conjunto dessas
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experincias revela os rastros de uma trajetria in processque busca problematizar
continuamente o papel do artista da cena no processo de criao.
No quarto captulo, ESCUTA EM FOCO, o conceito de escuta-ao
discutido tendo-se em vista a dramaturgia do ator numa perspectiva singularizada do
sistema dos Viewpoints. O que pretendemos, aqui, evidenciar o modo como esse
procedimento foi sendo ampliado dentro de uma viso tanto esttica quanto tica,
servindo como fonte para novas consideraes, num panorama que complementar
aos captulos anteriores.
A perspectiva geral que este estudo lana, portanto, no a de tentar esgotar
um tema que por si s pode ser visto como fonte para inmeras abordagens, mas a de
compartilhar algumas descobertas e observaes que se mostraram relevantes e que,
acima de tudo, podem provocar novas e necessrias indagaes.
Por se tratar de um fenmeno recentemente identificado, acreditamos que
qualquer afirmao definitiva deva ser vista com cautela, pois a reflexo se encontra
invariavelmente prxima dos contedos investigados. salutar, nesse sentido, que o
modo como os Viewpointsso apresentados aqui seja compreendido dentro de uma
verso francamente in process. Entretanto, ao mesmo tempo, e justamente por resistir
a um olhar mais distanciado, esta discusso ambiciona contribuir com alguns dos
temas mais pertinentes ligados pesquisa e criao atoral.
Desmistificar e esclarecer a utilizao dos Viewpoints, possibilitando o
surgimento de novos e irreverentes pontos de vistas (como o prprio sistema
nomeado), so os principais objetivos deste estudo. Nesse sentido, a proposta aqui
delineada anseia no apenas por servir aos atores, mas tambm, de fato, por
estabelecer interlocuo com encenadores, dramaturgos, pesquisadores, tericos,
professores de teatro e demais pessoas interessadas na busca de novas estratgias
criativas no campo teatral da atualidade.
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2 VIEWPOINTSEM FOCO
No comeo no havia pois comeo. No comeo era omovimento porque o comeo era o homem de p, na
Terra. Erguera-se sobre os dois ps oscilando,visando o equilbrio. O corpo no era mais que umcampo de foras atravessado por mil correntes,tenses, movimentos. Buscava um ponto de apoio.Uma espcie de parapeito contra esse tumulto queabalava os seus ossos e a sua carne.
Jos Gil
No captulo inicial, o sistema dos Viewpoints ser apresentado a partir da
contextualizao do seu ambiente originrio, da sua metodologia, do seu cruzamentocom o mtodo Suzuki e, ainda, de uma anlise sucinta da trajetria de Anne Bogart.
Esse mapeamento apresenta uma dimenso da tcnica que est alm do mbito teatral,
quando uma polifonia de saberes e percepes so o trampolim para um treino de fato
artstico, calcado na possibilidade, sobretudo, de aprender a aprender.
Como numa sesso de jazz, a somatria dos corpos, dos materiais
envolvidos e dos diferentes estmulos que colabora para a improvisao a partir dos
Viewpoints. No h, desse modo, um programa fixo a ser cumprido fielmente pelo
ator. Ao contrrio disso, o que se percebe uma perspectiva mais estratgica, cujos
recursos do condies apropriadas para que ele seja capaz de enfrentar o imprevisto,
o risco e a diversidade. Trata-se de um sistema de aprendizagem e aprimoramento do
ator baseado nas incertezas, implicado num conhecimento itinerante, nmade e sem o
estabelecimento de princpios totalizantes. A sua metodologia, portanto, vista como
um caminho a ser percorrido, e no como um fim em si mesma.
Diante das experincias realizadas em sala de ensaio, preciso, dessa maneira,
evitar qualquer tipo de idealizao. As descobertas e verdades podem ser
consideradas biodegradveis, pois elas dependem das condies de um dado
contexto e da existncia de um estmulo determinado. Em suma, o sistema dos
Viewpoints uma importante ferramenta para o ator na medida em que:
[...] se reconhece necessria e ativamente a presena de um sujeitoque se esfora em descobrir, que conhece e pensa. Quando sereconhece que a experincia no uma fonte clara, inequvoca, do
conhecimento. Quando se sabe que o conhecimento no oacmulo de dados ou de informao, e sim sua organizao [...].
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Trata-se de uma construo que certamente sempre incerta,porque o sujeito encontra-se inserido na realidade que pretendeconhecer [...]. Existe a objetividade, embora a objetividade absolutaassim como a verdade absoluta constituam enganos. (MORIN;MOTTA; CIURANA, 2003, p. 37)
2.1 A NOVA DANA E AS RAZES ORIGINRIAS DOS VIEWPOINTS
Em termos cronolgicos, a prtica dos Viewpointssurge no incio dos anos de
1970, quando Aileen Passloff, danarino e coregrafo norte-americano diretamente
ligado Judson Church, se torna professor de Anne Bogart. Assim como o
movimento ao qual pertence, o trabalho de Passloff baseado na utilizao de
diferentes materiais para a criao teatral uso de sonhos, objetos, propagandas ,assim como de diferentes linguagens pintura, arquitetura, msica, cinema, etc.
Em 1979, Bogart conhece Mary Overlie, professora, bailarina e coregrafa
que inventou os seis Viewpoints a partir das influncias que a Judson Church
exerceu tambm sobre ela. O trabalho que Overlie desenvolveu sistematiza alguns
princpios de improvisao relacionados, especialmente, ao espao e ao tempo. Os
seis Viewpoints iniciais organizados pela bailarina so: Espao, Forma, Tempo,
Emoo, Movimento e Histria. Ela utilizava esses parmetros para o trabalho deensino de dana, embora ainda no os empregasse diretamente nas coreografias
apresentadas.
A proposta de Overlie acabou influenciando inmeros artistas da dana, at
alcanar tambm pessoas de teatro, que reconheceram e extrapolaram os Viewpoints
dentro de sua nova perspectiva. No caso de Anne Bogart, reconhece-se a capacidade
que essa tcnica embrionria tem de gerar movimento para cena e, assim, estabelecer
princpios no psicologizantes e baseados na presena dinmica do ator.
No fim da dcada de 1980, mais precisamente em 1987, Anne Bogart conhece
Tina Landau, ao trabalhar com ela no American Repertory Theater. Ao longo de dez
anos, a dupla aprimora os seis Viewpoints, transformando-os nos atuais nove
Viewpointsfsicos(Relao Espacial, Resposta Cinestsica, Forma, Gesto, Repetio,
Arquitetura, Ritmo, Durao e Topografia) e nos Viewpoints vocais (Tnus,
Dinmica, Acelerao/Desacelerao, Silncio e Timbre).
num cenrio efervescente, pois, que se localizam as razes originrias do
sistema dos Viewpoints, quando a contracultura traz novas perspectivas para as artes.
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Esse perodo foi marcado por grandes transformaes dos aspectos polticos,
culturais, sociais e artsticos no mundo todo. Fatos como a Guerra do Vietn, a luta
pelos direitos civis, o surgimento do expressionismo abstrato, do ps-modernismo e
do minimalismo exemplificam as inmeras mudanas ocorridas.
A cidade de Nova York passou a ser um plo de referncia, onde o teatro Off-
Off Broadway, os happenings, a dana, o cinema e as artes visuais estavam em plena
ebulio. Algumas dessas transformaes so sublinhadas por Sally Banes, autora
norte-americana que publicou importantes estudos sobre esse contexto:
Aqui em Greenwich Village, em 1963, numerosas redes de artistas,pequenas, sobrepostas, s vezes concorrentes, estavam formando abase multifacetada de uma cultura alternativa que floresceria nacontracultura do final da dcada de 1960, semearia os movimentosde arte da dcada de 1970 e moldaria os debates sobre o ps-modernismo na dcada de 1980 e adiante. [...] Esses artistas foramforjando novas noes de comunidade, de democracia, de trabalho ediverso, dos papis das mulheres, de natureza e tecnologia, do
profano e do absoluto. (BANES, 1999, p. 14)
Num clima otimista, toda essa gerao se organizava em torno da ideia de
liberdade, das relaes entre a cultura popular e a vanguarda e, ainda, entre estas e a
cultura burguesa. A atitude transgressiva que da emergia, entretanto, tambm era
cercada por inmeras contradies, especialmente quando todo esse movimento
buscou reinventar a tradio, a comunidade e a mitologia (Ibid., p. 22):
Se os Estados Unidos se expandiam, ento o mundo, proclamou-se,estava encolhendo. Se a vida nacional estava cada vez mais refinadae burocratizada, o mundo se tornava cada vez mais primitivo, comouma aldeia global. Se os subrbios eram uma terra inspita, ento oespao urbano, mais do que o rural, era uma utopia. (Ibid., p. 22)
A afirmao feminista de que o pessoal poltico j se fazia presente, assim
como o incio dos modos de produo coletivos, que ambicionavam a desalienao do
trabalho por meio de um sistema de cooperao. Tais exemplos reforavam a
redescoberta, naquele perodo, das questes polticas na arte, embora as estratgias,
tais como se viam na postura dita mais pragmtica ou na arte antiexpressionista,
refletissem outro modos de express-las.
Alguns outros temas abordados pela autora, como o trabalho interdisciplinar, aarte no hierarquizada e a nfase no presente, so exemplos de como os Viewpoints
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tratam de retomar, numa perspectiva contempornea, alguns dos temas-chave
discutidos desde os anos 1960.
A proposta de contaminao entre as variadas linguagens artsticas, por
exemplo, tem como marco expressivo os experimentos realizados no Black Mountain
College. Surgido na dcada de 1950, ele continua sendo uma das grandes referncias
das artes contemporneas, por ter reunido num mesmo cenrio importantes nomes da
poca, como o coregrafo Merce Cunningham, o pintor Robert Rauschenberg e o
compositor John Cage. Ainda que vindos de disciplinas especficas, esses artistas, ao
se encontrarem, propiciaram um conjunto de referncias para a criao
interdisciplinar, influenciando desde os happenings at o cinema produzido desde
ento.
No livro Composition in restrospect, John Cage retoma alguns desses
princpios norteadores:
No inteno (aceitao do silncio), levar-se pela natureza;renncia ao controle, permitir que os sons sejam ouvidos. Cadaatividade centrada em si mesma, ou seja, a composio, a
performance e a escuta so atividades diferentes. (a msica )instantnea e imprevisvel, nada concludo pela partitura, audioou pela pea de msica tocada, nossos ouvidos esto agora em
excelente condio. necessidade de poesia. joyce: "a comdia amaior das artes porque a joia da comdia mais livre que o desejoou a repugnncia". afirmao da vida. propositadamentedespropositada. arte = imitao da natureza em sua forma defuncionamento. (CAGE, 1993, p. 56, traduo nossa)2
O msico americano fazia uso de instrumentos musicais convencionais
associados a diversos materiais: brinquedos, clipes de papel, etc. E, ao invs de
discutir a qualidade tcnica das produes de seus alunos, Cage procurava refletir
sobre seus desdobramentos filosficos, evitando assim a mera reproduo dos
modelos musicais previamente estabelecidos.
Alm do uso do acaso, o mtodo permissivo de John Cage trazia luz
aspectos encontrados na cultura oriental, tais como o silncio e o vazio, assim como
2No original: Nonintention (the acceptance of silence) leading to nature; renunciation of control; letsounds be sounds. Each activity is centered in itself, i.e., composition, performance, and listening aredifferent activities. (music is) instantaneous and unpredictable; nothing is accomplished by writing,
hearing, or playing a piece of music; our ears are now in excellent condition. a need for poetry. joyce:comedy is the greatest of arts because the joy of comedy is freest from desire and loathing.affirmation of life. purposeful purposelessness. art = imitation of nature in her manner of operation.
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sonoridades percebidas na vida cotidiana. Sua proposta consistia em uma
teatralidade no dramtica de todas as artes, e num humor caracteristicamente
dadaesco (BANES, 1999, p. 47).
O entendimento do corpo para alm da tcnica clssica e a incorporao do
acaso nas coreografias de Merce Cunningham tambm representavam algumas das
significativas transformaes percebidas naquele perodo.
Em menos de uma dcada, contudo, os discpulos de Cunningham passaram a
problematizar os paradigmas lanados pela ento ainda recente dana moderna. Os
workshopsrealizados por Robert Dunn e, na sequncia, os eventos apresentados pela
gerao formada na Judson Church radicalizariam os trabalhos do mestre americano.
Surgiam criadores como Yvonne Rainer e Steve Paxton que, para alm de
libertar os corpos do treino tradicional, procuravam destruir as amarras que
normatizavam a prpria dana. Esse tipo de engajamento tambm se assemelhava ao
que vinha ocorrendo nas artes visuais:
As vanguardas das artes visuais tinham consumado no decorrer dosculo a eroso progressiva dos laos e dos quadros no artsticosque ligavam a arte ao sistema (dos poderes): a crtica do museu,do enquadramento das obras, da forma e do lugar da exposio, da
mdia utilizada, da relao autor-pblico, etc. de tudo o queconstitui a esfera que rodeia o mundo da arte e que parece no terrelao com ela. [...] E o pressuposto fundamental das vanguardasera que esse quadro aparentemente transartstico condicionava o
prprio contedo das obras. (GIL, 2004, p. 149)
Alm das questes propriamente artsticas, foram as profundas mudanas no
comportamento humano que serviram de interesse aos novos danarinos e
coregrafos. Buscando alternativas que libertassem a coreografia do seu entendimento
tradicional e revestido de psicologismos (Se uma pessoa atravessa o palco, isso podeser considerado dana?), eles provocativamente indagavam. Alm das regras da
dana, esses artistas comearam a mudar os locais onde a arte acontecia. Trisha
Brown, por exemplo, apresentou em 1971 Roof piece, um trabalho em que toda a
movimentao ocorria sobre os telhados de Nova York.
O questionamento, portanto, sobre o que podia a arte comeava a ser
ampliado, e a improvisao se tornava um procedimento frequentemente utilizado. O
texto-manifesto escrito por Yvonne Rainer anuncia alguns desses ideais:
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No ao espetculo, no ao virtuosismo, no s transformaes e magia e ao uso de truques, no ao glamoure transcendncia daimagem de star, no ao herosmo, no ao anti-herosmo, no simaginrias de pechisbeque, no ao comprometimento do bailarinoou do espectador, no ao estilo, no s maneiras afetadas, no
seduo do espectador graas aos estratagemas do bailarino, no excentricidade, no ao fato de algum se mover ou se fazer mover.(GIL, 2004, p. 151)
A busca do real, designado pela Judson Church, no almejava o fim da dana
enquanto linguagem. Ao contrrio, servia com um princpio regulador, que
radicalizava o movimento do bailarino, bem como a sua presena ativa no
acontecimento coreogrfico. Assim, o que mobilizava esses criadores no era o
encontro com a realidade dita ordinria, mas as tenses que emergiam do real nasua acepo mais explosiva, na qual vida e arte j no podiam ser vistas em simples
oposio. Com essas barreiras afrouxadas, o que se pretendia ressaltar, portanto, era o
real dos corpos, dos objetos, do espao e, consequentemente, da prpria dana.
A dana enquanto tema, estrutura e procedimentos criativos operacionalizou
novas relaes baseadas na concretude dos materiais envolvidos. Jos Gil descreve
esse processo colocando em foco a nfase na ao que reforava o momento presente.
Se at ento o ilusionismo e o virtuosismo da dana acadmica eram o que prevalecia,
agora era a literalidade de uma atividade feita (ou de uma tarefa, como o autor
prope) o que mais interessava.
Do mesmo modo, a coreografia no mais se pautava por relaes hierrquicas
nas quais o encadeamento linear da movimentao resultaria, assim, num clmax
coreogrfico. As composies se tornaram unitrias, organizadas por mdulos cujas
partes tinham igual valor. O uso da repetio ressaltava a simplicidade da
movimentao dentro de uma escala humana, e a singularidade dos corpos era,
portanto, um novo destaque.
Em ltima anlise, a natureza das realizaes que marcaram aquele perodo
estava comprometida com uma percepo aguda da poca em que foram executadas.
Como se viu, a vanguarda de 1960 no espelhava passivamente a sociedade; antes
disso, pretendia transform-la, produzindo assim uma nova cultura e, no campo da
dana, um outro entendimento do corpo:
Trata-se de abrir essa caixa, de abrir o corpo. Porque este podeencontrar-se fechado, insensvel s pequenas percepes, educado
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para as tarefas mais exigentes e rgidas da realidade. Abrir o corpo torn-lo hipersensvel, despertar nele todos os seus poderes dehiperpercepo, e transform-lo em mquina de pensar quer dizer,reativ-lo enquanto corpo paradoxal, o que todos os regimes de
poder sobre o corpo procuram apagar, esforando-se por produzir o
corpo unitrio, sensato, finalizado das prticas e das representaessociais que lhes so necessrias. (GIL, 2004, p. 169)
2.2 PRINCPIOS, OBJETIVOS E METODOLOGIA
Uma teoria no uma chegada, a possibilidade deuma partida.
Anne Bogart
Em termos prticos, os Viewpoints normalmente so utilizados para trs
principais finalidades: como um treinamento contnuo e sistemtico para o ator; para a
criao de movimento e composio da cena num processo criativo; e, ainda, quando
um estado permanente de jogo e criatividade deve ser mantido ao longo da temporada
de um espetculo.
Esse procedimento teatral foi sendo pouco a pouco formulado, num constante
dilogo entre o fazer artstico e o desejo declarado de Bogart de alterar o DNA do
teatro, por meio de uma sistematizao baseada nos elementos principais da cena: o
tempo e o espao. Para Bogart, diante de um mundo cujo funcionamento cada vez
mais digital, a condio inevitavelmente analgica da cena pode ser alterada pelo
trabalho com alguns pontos de percepo que o ator deve conhecer e saber
transformar. Esse conhecimento, contudo, j est presente na prpria natureza da
linguagem teatral. Anne Bogart se detm em
[...] elementos que pertencem aos princpios naturais do movimento,tempo e espao. Atravs dos anos, ns simplesmente articulamosum conjunto de nomes para coisas que j existem, coisas quefazemos naturalmente e sempre faremos, com maior ou menor graude conscincia. uma filosofia transformada em tcnica [...]. umconjunto de nomes relacionados a certos princpios do movimento[...]. Os Viewpointsso pontos de percepo que o ator ou criadorutiliza enquanto trabalha. (BOGART; LANDAU, 2005, p. 7)
o conceito-chave de pontos de vista, que inclusive d nome tcnica, o
ponto de partida para compreend-la no contexto da sala de ensaio. Isso porque, a
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cada sesso de improvisao, um dos seus elementos explorado como foco
principal, ainda que todos os demais continuem presentes.
Em relao aos nove Viewpoints fsicos, eles se subdividem em duas
categorias: os Viewpointsde Espao (Forma, Relao Espacial, Gesto, Topografia e
Arquitetura) e os Viewpoints de Tempo (Ritmo, Durao, Repetio e Resposta
Cinestsica). Cada um deles pode ser explorado individualmente ou em diversas
combinatrias, fazendo com que o sistema se abra para inmeras abordagens e
finalidades artsticas.
Os Viewpointsrelacionados ao Espao buscam mapear as diferentes ignies
do ambiente de trabalho, numa dinmica em que os prprios corpo e gestualidade do
ator esto diretamente relacionados a outros corpos, objetos e estruturas concretas do
espao. Ao invs de serem ignorados, como normalmente so dentro das propostas
mais tradicionais, todos os elementos exteriores so compreendidos, nesse tipo de
explorao, em sua potencialidade material, despersonalizados, portanto, colocando-
se em segundo plano dados psicolgicos, ilusionistas, etc.
A Forma est diretamente relacionada com o desenho do prprio corpo no
espao, sua silhueta se organizando a partir das extremidades dos membros
conectados coluna vertebral. A Forma adquire diferentes qualidades: sinuosa,
angular, agrupada, expandida. Assim, o corpo pode adquirir uma configurao
especfica, seja no trabalho de construo de personagens, por exemplo, seja na
experimentao das diferentes linhas da expresso corporal.
A Relao Espacial busca conectar o corpo do ator aos demais corpos
presentes no ambiente, num jogo em que as distncias e proximidades entre todos os
integrantes do experimento ganham nfase. Assim, possvel experimentar relaes
entre pequenos grupos, como a oposio entre apenas um corpo e os demais. A
Relao Espacial tambm pode ser a chave para o trabalho de coralidade cnica,quando a relao entre o coro e um corifeu estabelecida.
O Gesto se divide em duas principais categorias: gesto cotidiano e gesto
simblico. Ambos so, normalmente, realizados a partir de partes especficas do
corpo (a mo, os ombros, etc.), embora o corpo todo, naturalmente, possa estar
engajado. Os gestos cotidianos so aqueles normalmente reconhecidos dentro de uma
determinada cultura, como o aceno, o cumprimento, etc. J os gestos simblicos esto
ligados expresso de sentimentos da alma, poetizados, normalmente distintos dacomunicao mais banal. Assim como a Forma, e talvez de um modo ainda mais
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especfico quando a ao ganha comeo, meio e fim, os Gestos so uma importante
fonte para a composio de personagens ou para o estabelecimento de uma dada
atmosfera produzida pelo grupo de atores.
A Topografiapode ser compreendida como os modos de deslocamento dos
corpos no espao, sejam eles lineares ou circulares. O rastro (ou padres de cho,
termo bastante presente na dana) produzido pela Topografia cria uma movimentao
dinamizada na qual os diferentes nveis (alto, mdio e baixo) colaboram tanto para a
explorao individual quanto para o trabalho em grupo.
Quando se fala em Arquitetura, consideram-se todos os elementos materiais
presentes no espao, com exceo dos corpos dos atores. Assim, a textura das
paredes, a estrutura do local, as fontes de iluminao, o piso, as cores das roupas, etc.
so estmulos para o ator. A Arquitetura leva em conta as coincidncias e oposies, a
manuteno de um mesmo elemento ou a contraposio a ele, configurando um jogo
altamente explorado pela capacidade visual dos atores.
Os Viewpoints de Tempo procuram enfatizar o elemento cronolgico das
aes a partir do constante cruzamento entre as diferentes percepes, como a
auditiva e a sensorial, e entre essas e a materialidade do espao. Tanto a
movimentao produzida pelo ator quanto os acontecimentos do grupo so, nessa
perspectiva, elementos que podem sofrer alteraes de acordo com as pausas, as
aceleraes e o dilatamento do tempo, num jogo em que o espao evidentemente
tambm adquire outras nuances. Os Viewpoints de Tempo compreendem: Ritmo,
Durao, Repetio e Resposta Cinestsica.
O Ritmose define pela pulsao geral do grupo, podendo ser modificado de
acordo com alguma instruo externa ou interna, pelos prprios integrantes. A
conscincia rtmica adquirida com os Viewpoints promove um entendimento sutil
sobre os acontecimentos. Numa sesso de improviso, por exemplo, o trabalho sobre oRitmo pode culminar na radicalizao tanto da rapidez quanto da lentido.
A Durao, por sua vez, est ligada aos ritmos subexistentes dentro de uma
pulsao mais geral, quando o contratempo, as oposies, a pontuao de uma mesma
ao podem produzir uma polifonia de movimentos, gestos e aes. Um bom
exemplo do trabalho com esse Viewpoint a movimentao basicamente lenta, mas
que, pontualmente, promove aes de curtssima durao, produzindo um interessante
contraste entre os sentidos temporais.
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A Repetio, como o prprio nome diz, refere-se possibilidade de manter
um gesto, ao ou movimento continuamente presente, seja por parte do prprio ator,
configurando uma repetio interna, seja por parte de outra pessoa ou grupo, o que
Bogart chama de repetio externa. Esse Viewpoint um elemento muito importante
para sublinhar determinadas informaes, produzir novos sentidos a partir do mesmo
ato ou mesmo criar uma partitura coreogrfica em conjunto.
Finalmente, a Resposta Cinestsica talvez seja a contribuio mais
significativa que os Viewpointstrazem, na medida em que promove o cruzamento das
percepes, atravs de uma escuta sutil sobre todos os estmulos produzidos pelo
meio. Assim, qualquer rudo ou acontecimento que surja inesperadamente deve ser
incorporado ao jogo pela improvisao do ator. Os sentidos (visual, ttil e sonoro) e a
intuio se afinam, colaborando para uma ampliao das percepes tanto de quem
atua quanto de quem assiste.
Por meio da assimilao prtica de cada um dos seus nove elementos, o
sistema dos Viewpointscolabora para a construo de um vocabulrio cnico comum
a todos os integrantes do processo criativo. Nesse sentido, no s os atores, mas
tambm os demais criadores (iluminadores, cengrafos, figurinistas, criadores da
trilha, etc.), podem desempenhar suas funes a partir de alguns conceitos precisos,
porm abertos aos mais variados modos de exposio.
Justamente por isso, a prtica no pressupe um resultado esttico especfico,
mas provoca, a cada ncleo, uma abordagem diferente, como possvel se verificar
nos diferentes ambientes em que ela exercitada.
Podem-se citar alguns dos conceitos fundamentais que esto ligados aos
Viewpoints, aprofundando-os: a escuta extraordinria (quando o participante
improvisa, sem ideias pr-concebidas, reagindo a todos os estmulos externos e com o
corpo todo), o foco suave(a mediao entre a ateno que o ator deve ter em relaoao seu estado interior e os acontecimentos vindos da realidade externa) e os quatro
nveis de energia(horizontal, vertical, explosiva e sutil, referncia direta ao mtodo
Suzuki). Alguns desses tpicos, em especial as questes relacionadas escuta, sero
discutidos nos captulos seguintes.
No que se refere metodologia da prtica com os Viewpoints, normalmente se
inicia o trabalho com um aquecimento coletivo, em que a ateno e a conexo so o
foco de inmeros exerccios e jogos. So tambm explorados procedimentosrelacionados ampliao da percepo espacial (espao positivo/espao negativo,
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portais, figuras A, B e C) e figuras geomtricas simples (linhas, crculos e
aglomerados).3
Na sequncia, os Viewpointsem si so investigados, a partir das necessidades
de cada ambiente. Inmeras so as formas de abord-los. Durante o treino, possvel,
por exemplo, aprofundar a conscincia temporal por meio de sesses (termo usado
para cada experimento improvisacional) nas quais o incio, o desenvolvimento e a
finalizao do improviso podem ser definidos por um comando externo ou de um dos
integrantes. Ao final, h uma avaliao coletiva que permite a cada integrante refletir
e compreender criticamente os desafios e dificuldades do trabalho feito.
Finalmente, a pesquisa com os Viewpoints pode incorporar alguns outros
elementos, tais como o dilogo com diferentes estmulos sonoros, fragmentos
dramatrgicos, figurinos e objetos diversos, que podem ser manipulados e
ressignificados de acordo com o resultado pretendido. Destaca-se, ainda, a
possibilidade de os Viewpoints serem explorados quando se visa ao trabalho de
composio, no qual a improvisao o meio utilizado para a construo de uma cena
possvel de ser repetida e amplamente refinada.
Em sntese, o treinamento com os Viewpointsest ancorado na trade corpo,
espao e aes fsicas, explorados coletivamente quando no h necessidade de um
texto prvio para a criao da cena. As instrues, normalmente simples e objetivas,
servem para dar maior liberdade ao praticante, permitindo que o grupo desenvolva
parmetros objetivos para a sua prpria avaliao, assim como para a construo de
um ambiente baseado na confiana. A nfase maior do trabalho est no
aprimoramento da presena cnica por meio de um jogo dinmico no qual a
criatividade e a espontaneidade so intensamente exploradas.
Um bom ponto de partida para se compreender a prtica do sistema dos
Viewpoints retomar algumas das ideias que abrem o livro de Anne Bogart e TinaLandau (2005). Logo no prefcio, as autoras explicam que o livro fruto dos
questionamentos surgidos no trabalho prtico com os Viewpointsrealizado ao longo
dos anos. So questes que possivelmente esto presentes na rotina de muitos artistas
de teatro e que, at ento, no tinham sido sistematizadas numa publicao voltada
para esse fim. Trata-se de perguntas ligadas continuidade do processo criativo,
transmisso dessa prtica e utilizao de seus elementos, tendo em vista a possvel
3Para maiores detalhes sobre os exerccios, conferir o subitem 3.2.1, Ponto de vista 1: a dramaturgiaperformativa, p. 59.
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elaborao de um texto cnico.
Como um manual prtico, o livro serve de referncia aos atores, estudantes de
artes e interessados em geral, embora no tenha qualquer inteno de esgotar o tema.
Por se tratar de uma experincia que sugere inmeras abordagens, o sistema dos
Viewpointspressupe que as informaes, assim como o prprio trabalho, no sejam
compreendidas como uma metodologia fechada, ainda que haja um rigor e uma
profundidade especficos.
Porque os Viewpoints se apresentam como uma tcnica aberta, no h um
modelo de perfeio a ser seguido nem, tampouco, uma normatizao prvia. Isso j
sugere que tipo de trabalho pode ser realizado e que tipo de produto est sendo
gerado: uma obra aberta, um work in progress; em ltima instncia, aquilo que se
denomina uma experimentao artstica. Sua fundamentao estabelecida de acordo
com regras internas, coerentes e potencialmente interessantes.
Assim, no so as respostas em si (ou a melhor tcnica) o que resolve um
processo de criao (ou uma pesquisa acadmica), mas a capacidade de articular as
melhores perguntas, o verdadeiro trampolim para novas descobertas. Trata-se de saber
articular, problematizar, estabelecer interlocutores que potencializem o prprio
conhecimento, construir um ponto de vista pessoal, poroso, permevel, porm
singular. Nesse sentido, e como se ver adiante, essa perspectiva, a dos Viewpoints,
bastante comprometida com o teatro contemporneo, na medida em que no est em
jogo a pretenso da originalidade, mas a possibilidade de lidar com toda a herana
cultural de um jeito peculiar, especfico a cada ambiente.
2.3 PRINCPIOS DA COMPOSIO
Anne Bogart define a composio independentemente de ela ser ou no umaextenso do treino com os Viewpoints como o ato de escritura de um grupo, no
tempo e no espao, atravs da linguagem do teatro. Isso se d a partir das solues
encontradas em algumas atividades consideradas pela diretora como tarefas,
propostas ao longo de todo o processo criativo. Essas solues surgem da cooperao
entre os integrantes e pressupem uma rapidez nas respostas trazidas e um
aguamento da capacidade intuitiva.
O trabalho compositivo que Bogart prope comea por uma estrutura simplesque, aos poucos, vai se tornando mais complexa. Trata-se de um caminho que cria as
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prprias perguntas, que sugere um modo para que elas sejam respondidas e que
depende, em grande medida, da capacidade dos atores de entender as propostas como
instigantes provocaes a serem investigadas na ao.
Um elemento que pertence composio o princpio da montagem,
segundo o qual a imagem pode ser explorada em inmeros formatos: pela via da
sobreposio, da justaposio, por seus contrastes, ritmos, pela manipulao da
sequncia linear da histria. Aqui, o vocabulrio de referncia semelhante ao da
linguagem cinematogrfica, sendo utilizados diversos vocbulos transpostos para o
universo teatral, como edio, pontos de vista, close-up, entre outros.
H na formulao de Bogart uma diferenciao entre a interpretao descritiva
e a expressiva, sendo que a segunda no reproduz a vida tal como ela (acarretando
uma ilustrao enfraquecida da realidade), mas os sentidos por ela indicados. Um
exemplo citado por Bogart a situao de um casal que se separa, havendo duas
principais possibilidades de composio: quando um dos atores sai com a sua mala e
diz adeus sua amada, ou quando a dupla explora uma caminhada de costas, um indo
em direo ao outro num ritmo ralentado, procurando materializar, em linguagem
teatral, a ideia do rompimento (BOGART; LANDAU, 2005, p. 146).
O conceito oriental de jo-ha-kyu frequentemente utilizado como referncia
para a estrutura geral do roteiro, assim como para cada cena, gesto, movimento,
interao com o pblico e ao geral do espetculo. Trata-se de um padro de ritmo
vindo da tradio proclamada por Zeami e retomado no teatro contemporneo, em que
o incio, o meio e o fim de qualquer ao, em diferentes nveis de complexidade,
podem ser explorados na sequncia resistncia, ruptura e acelerao.
Nesse sentido, Anne Bogart compara a experincia vivida dentro da sala de
espetculo a uma longa viagem, em que o pblico tem a oportunidade de passar por
diferentes ambientaes, montanhas, vales escuros e trilhas iluminadas. Dentro dessaperspectiva deve haver, inclusive, o momento para que o pblico-viajante possa
respirar ou mesmo passar pela experincia plena de tenso ou dramaticidade
inesperada, aes esculpidas no tempo e no espao ficcionais.
Assim, a diretora confia na potncia das contradies e expanses internas do
espetculo, quando mesmo os objetos se tornam atores ajudando a narrar uma
determinada histria. Nesse caso, Bogart cria regras muito especficas: toda a ao
deve acontecer exclusivamente sobre uma mesa no palco, por exemplo.
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Uma das tarefas, denominada perdas/encontros, introduz aspectos da
gramtica teatral por uma via dinmica. A proposta que os atores comecem a
explorao em um site-specific, que faz o papel de um set de filmagem, cuja
disposio dos objetos e diversos materiais no espao incentiva os participantes a
sonharem com o corpo todo, incorporando os mnimos detalhes a partir dos
estmulos encontrados no prprio ambiente.
2.3.1 A composio na criao
O processo de composio especialmente empregado na realizao de
trabalhos originais, quando no h um texto prvio e quando o prprio processo
criativo busca, passo a passo, elencar as ideias no tempo e no espao. Essas ideias so
pontos iniciais para a identificao do tema, que pode ser analisado criticamente,
refinado e melhor definido de acordo com as prprias imagens e solues prticas que
vo sendo criadas pelos atores. Muitas vezes, esse repertrio inicialmente esboado
pode, inclusive, ser levado para o prprio espetculo, criando uma ponte dinmica,
processual, caracteristicamente no autocrtica ou, como se nota, de base no
textocntrica.
Nesse sentido, Bogart cita as sugestes abaixo a fim de indicar um caminho
claro e simples para a investigao de um tema. A ideia que, a partir dele, seja
possvel gerar um novo e potente material dentro dessa perspectiva colaborativa:
Passo I Definio das bases para o trabalho coletivo
A questo (ou tema): aquilo que motivou inicialmente o processo e que deve ser
potente o suficiente para atrair e contaminar toda a equipe.
A ncora: pessoa ou evento que serve como veculo para a questo.A estrutura: esqueleto onde os eventos tomam forma. o jeito de organizar os
diferentes elementos, tais como o tempo, a informao, o texto e o imaginrio geral da
obra.
Passo II Criao de pontes entre os materiais
Listagem de tudo o que j se sabe sobre o projeto: ideias, personagens, texto, situao,
histria, desenvolvimento, universo imaginrio, etc.
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Listagem de tudo o que no se sabe sobre o projeto: o que se ignora pode ser to til
quanto o que j de conhecimento geral. Essas lacunas constituem um terreno frtil,
ainda que seja num nvel mais subterrneo.
Coleta de textos, imagens, msicas, sons, objetos e de tudo o que se relaciona direta
ou indiretamente com a pesquisa. Compreende tambm a introduo dos materiais e a
troca com os colegas, visando construo do universo geral da pea. Nesse caso,
cada material pode ser uma dica ou um componente vital para o desenvolvimento
futuro do processo.
Passo III Exerccio do pensamento lateral
Trata-se de um mtodo para sonhar em grupo, segundo Bogart, uma etapa do
processo que no estabelece um julgamento mental sobre o material e o repertrio
coletados, havendo uma espcie de ruminao de toda a matria-prima, atravs de
solues que particularizam os problemas, e um compartilhamento das possveis
solues por todos os integrantes da equipe.
Passo IV Composies
O objetivo, nesta etapa, transformar as teorias e ideias em aes, eventos e imagens,
explorando-se concretamente os caminhos da ao. A proposta de Bogart comear
com as questes que esto sendo pensadas inicialmente ou com as principais (e
melhores, talvez) dvidas. Deve-se fazer uma lista com essas ideias e materiais a
serem explorados. As tarefas propostas no devem descrever os resultados, mas
propor uma espcie de quebra-cabea a ser resolvido conjuntamente pelo grupo. Cada
uma das tarefas explora uma ou mais das seguintes qualidades: pontos de vista,
arquitetura, papel do pblico, diferentes formas narrativas, variao de luzes e cores,
materializao dos personagens, etc.
Passo V Propostas e criaes
Aqui, deve-se definir alguma tarefa e propor que o grupo gaste nisso, no mximo,
60% do tempo definido. O objetivo criar intuitivamente e sem medo de falhar: as
boas composies so normalmente uma combinatria entre falhas e saltos gigantes.
Passo VI Apresentao e discusso
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A questo central a nortear esta etapa final do processo : Como criar um universo
com suas prprias leis de tempo, espao e lgica?
2.3.2 A composio no ensaio
Quando se trabalha com um texto previamente definido, pode haver, tambm,
um exerccio composicional: a explorao que empreende o ator se torna uma fonte
detonadora de outras fontes, internas ao universo especfico dado originariamente
pelo texto. O trabalho de pesquisa dessas fontes se d no incio do processo, a fim de
que a equipe se conecte intelectual e emocionalmente com a pea, e pode incluir, caso
haja a possibilidade, o treino com os Viewpoints e com as demais estratgias
compositivas. Esse tipo de processo tambm prev uma explorao mais pontual das
composies, a partir, por exemplo, de temas especficos da pea, que deve servir
para que o ator produza, passo a passo, o seu prprio material criativo.
Em suma, a composio, aqui, tambm serve para que o tempo do prprio
processo seja desvendado, aquecendo os seus motores e fazendo com que ele se torne
um convite para a obsesso, como a diretora sugere.
Algumas aes gerais so sugeridas, tais como assistir a filmes, pesquisar
msicas, estudar os temas relacionados, fazer pesquisas histricas, etc. O trabalho,
inicialmente racional, pode acordar, na sequncia, contedos vindos do inconsciente
do ator.
Ao longo do trabalho, as leis que pertencem quela pea, e a nenhuma outra,
devem ser identificas, a fim de que a equipe no corra o risco de recorrer a
generalizaes fceis e normalmente j percebidas pelo senso comum. Assim, Bogart
disponibiliza alguns temas para as composies, para que um estudo do universo da
pea seja feito:
Composio individual de trs minutos, apresentando a natureza geral da pea;
Composio a partir de temas avanados;
Composio do mundo fsico da pea;
Composio do personagem;
Composio das relaes entre os personagens;
Composio de eventos especficos.
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2.4 QUANDO A CULTURA O CORPO: O MTODO SUZUKI
No trabalho que Anne Bogart desenvolve, a explorao dos Viewpointsest
diretamente associada ao mtodo Suzuki, prtica oriental formulada por seu parceiro e
tambm diretor Tadashi Suzuki. Juntos, eles buscaram dinamizar suas respectivas
experincias artsticas com a finalidade de criarem as bases do treinamento da SITI
Company. Ainda que um mergulho profundo no assunto seja invivel, dado o recorte
deste estudo, vale apontar algumas das informaes principais sobre o mtodo Suzuki
e a sua reverberao no trabalho de Bogart. Assim, uma breve introduo ser feita,
na medida em que alguns dos seus parmetros podem colaborar sobremaneira para o
entendimento do treinamento do ator, estando ele associado ou no ao sistema dos
Viewpoints.
Segundo o prprio Tadashi Suzuki (2002), o objetivo principal do seu mtodo
trazer para o primeiro plano a inteligncia fsica que originariamente, no que diz
respeito sua expresso, o ator possui, mas da qual se distancia medida que, ao
trabalhar os variados estilos interpretativos, perde a conexo mais profunda com o seu
prprio corpo e sua percepo. O treinamento deve ser compreendido com um
vocabulrio que, assimilado pelo corpo, pode servir como um segundo instinto,
fazendo com que o ator volte a confiar verdadeiramente em suas camadas ficcionais
no palco, atravs da sensibilizao fsica.4
Suzuki acredita que uma sociedade que valoriza verdadeiramente a sua cultura
permite, quando se exploram os elementos bsicos da comunicao, que as
habilidades expressiva e perceptiva do corpo humano sejam amplamente utilizadas,
inclusive em sua energia animal. Isso, no entanto, no acontece atualmente porque
cada vez mais o ser humano depende de fontes energticas artificiais, seja para se
alimentar, com a atual emergncia dos inmeros produtos altamente processados,como enlatados ou congelados, seja para se expressar em diferentes contextos e
ambientes, fazendo com que as suas qualidades humanas naturais sejam igualmente
distorcidas.
No que diz respeito ao teatro, a opo pelo uso de fontes energticas no
animais o condenaria a uma esttica cada vez mais artificializada, contribuindo para
a fragmentao das percepes, e, num nvel mais amplo, a uma cultura e a uma
4For actors to realize the images they themselves pursue, they will have to develop at least this basicphysical sensibility (SUZUKI, 2002, p. 163).
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civilizao em completa desarmonia. Esse uso abusivo do aparato tecnolgico
provoca uma distncia cada vez maior entre o homem e as suas origens expressivas,
diferentemente de toda a tradio ligada ao teatro N, em que pouqussima ou
nenhuma energia no animal utilizada (um exemplo prtico disso so os figurinos
e mscaras que, antigamente, eram confeccionados manualmente pelos prprios
atores).
Uma ideia importante que est na base do treinamento a de que o ator pode
descobrir, no teatro, uma ponte de conexo mais profunda com a prpria humanidade,
assim como com os outros indivduos, na inter-relao que desenvolve com eles. Um
dado significativo, nesse sentido, a grande importncia dada aos ps, que so um
ponto de conexo profunda com a ancestralidade humana e com o prprio solo, a base
da vida humana na Terra.
A sntese do trabalho ligado ao solo e a sua capacidade de reverberao num
estado de concentrao do corpo podem ser conferidas nas palavras do prprio
mestre:
O ponto essencial da primeira parte do treinamento manter aexploso com uma fora constante, sem que a metade superior docorpo balance. Se o ator no tem conscincia de seus ps, pernas e
quadril, os quais devem ser bem disciplinados, impossvelcontinuar a exploso com consistncia, ainda que seja um atorenrgico. Alm do mais, sem o poder espiritual e o desejo paracontrolar sua respirao, a metade superior do corpo gradualmentecomea a balanar, e depois disso o ritmo das exploses se tornairregular []. Os atores devem realizar o movimento de explososempre tendo conscincia das relaes entre as metades superior einferior do corpo, que so conectadas pelo quadril. (SUZUKI, 2002,
p. 165, traduo nossa)
O treino consiste na explorao fsica de vetores em oposio, produzidos pelomovimento dinmico do corpo e pelas pausas, uma caracterstica tambm presente no
teatro japons, que considera a oposio entre cu e terra, peso e leveza, como
importantes ingredientes da expresso cnica. Essa amplitude energtica, exigida na
potncia tanto da sua emisso quanto da sua conteno, s ocorre quando h uma
grande concentrao por parte do ator, que passa a ter maior controle da prpria
respirao.
O treino tambm tem como um significativo foco de trabalho o aprimoramentodo centro plvico, comum a muitas outras propostas tcnicas, mas que, aqui, por sua
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conexo profunda com o cho, acaba se diferenciando das demais:
[] Acredito que a especificidade do meu treinamento que, emprimeiro lugar, os atores so preparados para se tornaremconscientes dessa exploso e dessa batida dos ps no cho. Isso sederiva da minha crena de que a sensibilidade fsica bsica dequalquer ator em cena depende dos seus ps. (SUZUKI, 2002, p.165, traduo nossa)
As sries de movimentos do Suzuki dividem-se em duas partes principais, sendo
que, na primeira, a concentrao est no quadril (o que ajuda a localizar e manter o
centro de energia) e no trabalho de movimento explosivo com base num ritmo
constante. Na segunda parte, o corpo funciona como uma marionete que responde a
um comando externo, cedendo ao cho e levantando, mas que mantm uma foracalma (calm strength throughout the body).
Todo esse trabalho intensivo visa mudana de qualidade do uso cotidiano do
corpo, que o transforma, segundo Suzuki, num corpo desconcentrado. O uso
estritamente mecnico das suas funes impede a delicadeza e as nuances
expressivas, e, ao buscar um mtodo no qual tenha a capacidade de falar com o corpo
todo, o ator descobre a possibilidade de trabalhar as diferentes qualidades de presena
cnica, da potncia vocal ao silncio.Originariamente, a memria e a sensibilidade fsica so exploradas num espao
ritualstico, oferecendo-se ao ator a oportunidade de ele criar as suas prprias
metforas pessoais ao longo do aprimoramento tcnico:
[...] Entretanto, no h nada a se fazer com o peso das pernas ou aestamina, mas sim com a descoberta de uma sensibilidade fsica oucom o reconhecimento de uma profunda e intrnseca memria inatado corpo humano. Em outras palavras, a habilidade em se
descobrir a profunda sensibilidade fsica completamente que postaem jogo [...], um espao ritualstico, no qual podemos descobriruma metfora pessoal. (Ibid., p. 166, traduo nossa)
A batida do cho descende dos antigos rituais japoneses, ligados a um ritmo
danado que acalmava os espritos, e uma importante chave de conexo para os
atores de hoje, voltados busca incessante do sucesso comercial e do enriquecimento
a qualquer preo:
A ressonncia fora o sentido fsico a responder ao esprito. Ainda
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hoje em dia, uma iluso necessria aos atores em cena: que aenergia dos espritos possa ser sentida atravs da ativao dos psem nossos prprios corpos; a iluso mais natural e til aos sereshumanos. (SUZUKI, 2002, p. 167, traduo nossa)
Na produo acadmica brasileira atual, vale citar a dissertao Quando
tcnica transborda em poesia: Tadashi Suzuki e suas disciplinas de atuao
(SANTOS, 2009). O estudo busca relacionar o procedimento tcnico de Suzuki com
seu discurso cnico, sua viso de mundo e a cultural oriental. O item Das disciplinas
de atuao apresenta detalhadamente o sentido e o funcionamento do mtodo, e o
anexo tem exemplos de como o trabalho prtico se desenvolve.
Segundo o estudo de Santos, so seis as disciplinas de atuao, que se dividem
nos seguintes estudos: bsicos, caminhadas, teneketen, esttuas, kanjich emarionetes. Cada um deles constitui uma sequncia de exerccios de alto rigor
tcnico, com alternncia de movimentos de variadas pulsaes rtmicas e uso do
corpo e da voz. A imaginao, compreendida como uma musculatura que tambm
deve ser acionada ao longo do treino, contribui para que a prtica no se restrinja ao
seu nvel fsico.
A oficina oferecida pelo norte-americano Donnie Mather um exemplo do
trabalho prtico com o mtodo Suzuki. Ocorrida em 2011, no Rio de Janeiro, na sededa Cia. dos Atores, compreendeu um trabalho intensivo de sete horas por dia, ao
longo de algumas semanas. Na primeira parte, o treino se concentrava em ativar o
centro energtico a partir de uma sequncia de aes que exigiam resistncia fsica e
mental. Uma delas, por exemplo, consistia em realizar, em diferentes contagens de
tempo (10, 5, 3 e 1), um movimento de flexo dos membros inferiores, sem que o
cho fosse tocado. Os atores deveriam, nos variados tempos, descer e subir at a
posio ereta, como num plido bal clssico, sem perder o contato com o centro
vital que, uma vez ativado, criava um tnus muscular especfico, levado em conta
tambm no trabalho com os Viewpoints. Os braos e mos deveriam ser mantidos
como que segurando um comprido basto imaginrio, o que tambm colaborava para
o alinhamento correto da coluna.
De uma maneira geral, os exerccios do mtodo Suzuki de fato produzem uma
conexo profunda do ator com o cho, seja em movimentos de deslocamento (como
numa marcha que acontece na diagonal da sala, num ritmo e numa pulsao que
exigem bastante preciso), seja nos exerccios em que todos permanecem parados
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num mesmo lugar e buscam a mudana de eixo a partir da coluna (para frente, trs e
laterais, em diferentes contagens).
A variao rtmica e a explorao do tempo dilatado ao mximo tambm so
caractersticos dessa prtica, como quando um grupo de atores organizado numa nica
fileira atravessa um outro grupo vindo da direo oposta. Nesse caso, a proposta que
os atores sejam esttuas, cuja qualidade para o mnimo movimento s existe na
ativao do centro energtico e na conexo direta do corpo com o solo. Quando o
espao atravessado, um texto pode ser pronunciado, e a voz, nesse caso, surge de
um lugar muito mais profundo, apoiado por uma musculatura que est ativada, porm
no rgida.
Por fim, Climenhaga salienta algumas questes em relao ao mtodo Suzuki
que valem ser destacadas. Segundo o estudioso, a aparente simplicidade dos
exerccios propostos no impede, antes ajuda, que o esforo fsico transforme a
qualidade da presena, alm da conscincia e da expressividade dos seus praticantes:
Quando executado com convico, se torna belo ver, simplesmentever o que surge dos atores completamente engajados num ato de
presena colaborativo. Atuar, nesse sentido, literalmente fazer[...]. (CLIMENHAGA, 2010, p. 295, traduo nossa)
O treino com o Suzuki, portanto, prope restaurar a noo de integridade e
presena do corpo humano num contexto teatral mais amplo, no apenas voltado s
formas vistas no passado (como o N e o Kabuki), mas disposto a empregar seus
princpios na criao de algo que transcenda as prticas vistas no teatro moderno,
como o caso de Anne Bogart com os Viewpoints.
Algumas caractersticas produzidas pelo cruzamento entre o Suzuki e os
Viewpoints podem ser identificadas, como a diferenciao entre o foco na prpria
qualidade energtica, vindo da tcnica oriental, e a capacidade de escuta aos estmulos
externos, que lida com a energia externa do grupo. Segundo Eelka Lampe:
Os performers treinados em Suzuki tm uma capacidadeextraordinria de expresso fsica, que baseada e originada no
baixo ventre (e no em motivaes psicolgicas), servindo comouma perfeita fundamentao tcnica para Bogart, que dirigir seusperformers justapondo suas criaes coletivamente criadas pelosmovimentos dos Viewpointscom o texto verbal e, ainda, evocando a
tenso e o futuro rompimento desses com a representao.(LAMPE, 1995, p. 158, traduo nossa)
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Nesse sentido, a tarefa de Bogart foi absorver e transformar, dentro da
perspectiva cultural qual pertence, alguns dos princpios anteriormente citados por
outras prticas. Essa dinmica entre diferentes culturas e contextos, alis, pode ser
notada ao longo dos ltimos sculos, quando o teatro ocidental e seus principais
nomes, como Brecht, Meierhold, Artaud, Grotowski, entre outros, destinaram uma
especial ateno sabedoria e aos conhecimentos produzidos no Oriente.
Assim, soma-se perspectiva tcnica dos Viewpoints, vista anteriormente, a
noo de que a linguagem teatral se faz viva, num processo inesgotvel de
experimentao e trocas tambm culturais. Cabe a cada artista ou grupo de teatro
conduzir, dentro de um amplo panorama, seu prprio percurso, num dilogo que pode
ser enriquecedor, porque disponvel a inmeras contribuies tcnicas vindas de
diferentes regies e pontos de vista.
2.5 NOTAS SOBRE A TRAJETRIA ARTSTICA DE ANNE BOGART
Uma das primeiras influncias de Anne Bogart foi a montagem de Macbeth
dirigida por Adrian Hall, vista por ela no Trinity Rep, em 1968. Ainda adolescente,
Bogart percebeu que, embora no tivesse compreendido todos os acontecimentos da
pea, a energia e o foco dos atores lhe possibilitaram uma experincia que, mais tarde,
sustentaria a sua convico pessoal de que o teatro no serve para explicar algo ao
pblico, mas, antes, que ele como uma arena, cuja ao convida o espectador a se
engajar, mais do que a simplesmente consumir um produto cultural.
A formao de Bogart passou pelo Bard College, onde, em 1972, criou uma
colagem a partir da obra de Ionesco e, na sequncia, juntou-se ao Via Theater, um
grupo interessado nos conceitos e ideais grotowskianos. Na Universidade de Nova
York, Bogart apresentou sua tese no futuro Departamento de Estudos da Performance,dirigido por Richard Schechner, onde tambm fez parte de um grupo experimental.
Um artigo escrito por Eelka Lampe (1995) faz referncia ao crculo
paradoxal, fruto da dinmica que Bogart travou junto s tradies orientais. A autora
retoma ainda algumas das principais caractersticas do seu trabalho, como a
desconstruo dos clssicos e a estrutura hbrida entre o teatro e a dana, para nomear
sua prtica como uma esttica do rompimento, feita na dissociao entre a fala e as
aes:
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[] Na ruptura em relao atuao convencional, o conceitomoderno de sujeito se separa em mltiplos eusque interagem comos outros atravs de nveis mais cinestsicos que psicolgicos.(LAMPE, 1995, p. 153, traduo nossa)
Fato que, desde os anos 1970, Bogart vem promovendo uma constante
interao com a cultura oriental, tanto do ponto de vista filosfico, quanto do esttico.
Suas influncias, por exemplo, passam pelo tai chi chuane pelo aikido. Alguns desses
princpios so, inclusive, a base para a filosofia dos Viewpoints, como a no
interferncia, a disponibilidade em estar aberto para colher do outro os estmulos da
criao e a no hierarquia entre os criadores. As ideias vindas do Taosmo tambm se
relacionam com a improvisao, pois o vazio permite que haja uma resposta mais
profunda em relao ao ambiente exterior.Toda essa influncia levou Bogart a desenvolver uma concepo do ator com
base no seu estado fsico, pautado pela conscincia do seu centro energtico, em
detrimento de uma construo psicolgica. Alm disso, a prtica tambm se alinha
com o movimento feminista, na medida em que busca promover, pela ruptura e pela
pardia, um discurso contra o padro ocidentalizado, tradicionalmente reproduzido
pela cultura ocidental do homem branco e heterossexual.
Bogart tambm buscou algumas conexes com o teatro europeu, sobretudocom o teatro alemo, embora tais experincias tenham influenciado sua deciso de
investigar cada vez mais a identidade da cultura norte-americana. Assim, por volta
dos anos 1980, Bogart se tornou conhecida por uma viso incomum ao dirigir e
adaptar uma srie de espetculos das mais variadas formas expressivas, como
musicais esite-specifics, sempre numa linha radical e inovadora.
Alm de ir, pouco a pouco, sendo reconhecida por seus trabalhos
experimentais, a diretora tambm teve algumas poucas experincias, um tanto quanto
problemticas, com o teatro mais convencional, que a levaram a definir ainda mais
radicalmente suas convices artsticas. Logo aps essa fase, Bogart estreou uma pea
que se tornou referncia em sua carreira, Another person is a foreing country, com a
colaborao do dramaturgo Charles Mee e da produtora Anne Hamburger. O
comentrio de Climenhaga indica as pistas do que Bogart iria desenvolver ao longo de
toda a sua futura carreira:
A inovao passa pela escolha do espao, do material e dos atores,muitos dos quais no tm nenhuma bagagem teatral e notavelmente
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so identificados a partir de muitas caractersitcas provenientes desuas diferenas: cegos, surdos, tranvestidos, ou mesmo um senhoraposentado de 72 anos que surgiu inesperadamente num dia deensaio e pediu para fazer parte da pea. (CLIMENHAGA, 2010, p.289, traduo nossa)
Motivada pelo desejo de oferecer uma experincia em que o pblico se
engajasse por uma via sensorial, muito mais que intelectual, a diretora foi buscar
diferentes estratgias para a sua criao, todas elas implicando num uso no
convencional do tempo e do espao. Como Climenhaga comenta, mais do que a
organizao linear de uma histria e das palavras, o que interessa a Bogart a criao
de uma atmosfera aberta, na qual o pblico seja encorajado a descobrir algo
desconhecido, que no est dado a priori.
Essa perspectiva levou Bogart a descobrir novas estratgias para o trabalho de
direo, assim como para o treinamento preparatrio dos atores. Alguns princpios
formais do seu trabalho, como a rigorosa noo rtmica e a nfase na visualidade,
apontam para uma viso coreogrfica da diretora, que aposta, assim, num ator cuja
habilidade fsica notoriamente valorizada.
Como foi dito, ainda que os Viewpoints sejam a base inicial de todo o
treinamento que aos poucos foi sendo lapidado, foi a colaborao do mestre japons
Tadashi Suzuki, iniciada em 1990, que trouxe uma ampliao dessa tcnica, tornando-
a ainda mais refinada. Os dois artistas deram incio a um projeto de intercmbio
internacional que culminou na criao da SITI Company, estabelecida desde ento no
Skidmore College, em Nova York.
Alm de atuarem nas diversas produes, os atores integrantes da SITI
Company, existente at hoje, promovem um trabalho intensivo no qual o ensino e o
treinamento so constantemente aprimorados, segundo a misso da companhia:
Criar novas produes ousadas; apresentar e viajar com essasprodues dentro e fora dos EUA; ensaiar juntos sistematicamente;treinar profissionais e estudantes de teatro numa abordagem pelaqual os artistas se tornam nicos e altamente disciplinados; criaroportunidades para o dilogo e o intercmbio cutural. (BOGART,2007, p. 290, traduo nossa)
Diante dessa perspectiva, um ambiente teatral multicultural pde ser
articulado, mantido no apenas pelos espetculos, mas tambm pelos workshops eintercmbios internacionais frequentemente oferecidos comunidade interessada.
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Fato que, na concepo de Bogart e de sua companhia, o treinamento do ator
sempre foi valorizado, como Climenhaga cita:
Os danarinos tm barras para trabalhar. Os cantores exercitam suas
escalas. Os msicos no poderiam sonhar se no praticassem. Aomesmo tempo, pensamos que, por podermos andar e falar, podemos,assim, atuar. (CLIMENHAGA, 2010, p. 290, traduo nossa)
O treino, como parte da rotina do ator, um elemento essencial, embora cada
trabalho apresente suas prprias necessidades de aprimoramento e expresso. Assim,
o autor norte-americano complementa:
Os atores da SITI Company so treinados para serem abertos ao
mundo que os cerca e para contribuir no processo criativo. [] Otrabalho de Bogart cria as condies que permitem a ao e quedepois do aos atores uma abertura necessria para que existam emcada momento, para que estejam vivos a cada instante. Essa a
pea-chave do treinamento, e ela alcanada atravs daconcentrao nos detalhes da presena. (Ibid., p. 291, traduonossa)
Assim, aos poucos a diretora foi sistematizando uma prtica artstica voltada
para a explorao das aes, mais do que para como elas se desenvolvem. Aespontaneidade e a capacidade de reao so elementos constantemente perseguidos
pela companhia, que elabora seu trabalho a partir de ingredientes especficos, como a
objetividade, a abertura, e a permanncia.
Como suas peas ainda no chegaram ao Brasil, impedindo uma anlise mais
precisa dos espetculos produzidos, vale ressaltar aqui algumas significativas
declaraes sobre o comportamento da diretora junto sua equipe de trabalho. Para o
dramaturgo Eduardo Machado,
Anne trabalha numa pea coreografando os movimentos dos atores,com os quais vai preenchendo o palco, como uma pintura emmovimento. Parece que as palavras so suprfluas. E as palavras
para um dramaturgo so muito importantes. Ento, havia ummomento de pnico. O roteiro deve depender da sua prpriacapacidade em expor a sua mensagem, eu cochicho para mimmesmo. Na verdade, o que acontece que as palavras so animadasdentro de uma realidade teatral, ao invs da realidade televisiva. Aolongo dos ensaios, eu tinha uma liberdade que jamais tive comoescritor. Eu comentava livremente com os atores sobre aquilo deque a pea precisava, e todos ns juntos trazamos vida uma
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msica do movimento, do verbo, da emoo.(MACHADO, 1995, p.74, traduo nossa)
Segundo a diretora, no h verdade a ser descoberta, mas a ser criada. 5O
dramaturgo e tambm parceiro Charles Mee complementa a descrio do seu processocriativo, dando importantes dicas sobre o modo como Bogart concebe suas criaes:
Ela pode criar uma pea cuja estrutura intelctual, ou poltica, oumusical, ou matemtica, ou que criada pelo desenvolvimento dasua prpria estrutura simplesmente respondendo ao que dado, aoque descoberto no palco, na prpria performance. Isso trabalharsem regras pr-estabelecidas ou cri-las enquanto o processoocorre; essa uma verdadeira experincia sobre como ser livre uma rara experincia , para ser sentida, apreciada e testada emtodos os lugares []. Grandes diretores fazem peas sobre o queacontece no palco, sem pr-concepes, sem nada a no ser a
performance pura: aquilo que realmente vivo no teatro. (MEE,1995, p. 80, traduo nossa)
Por fim, vale lembrar aqui a opinio de Mee em relao prpria Anne Bogart
e ao modo de ela se relacionar com as pessoas sua volta:
Anne bem conhecida por seu calor e empatia com as outras
pessoas, pela sua gratido com o ser humano, pela sua habilidadeem trabalhar com jovens atores ou pessoas que no so atores assim como com atores treinados de um modo que os permitesentirem seguros para oferecerem o que for ao teatro e ao quefloresce no palco. Tudo isso parece uma simples conversa,simplesmente uma descrio de como Anne uma pessoamaravilhosa. Mas isso tambm que a permite criar um teatronico.(Ibid., p. 79, traduo nossa)
O livroAnne Bogart: Viewpoints, organizado por Michael Dixon e Joel Smith
em 1995, , portanto, uma referncia para se conhecer o trabalho da diretora norte-
americana. Nele, so apresentados alguns artigos que vo das teorias sobre os
Viewpoints s opinies de colaboradores e crticos sobre o tema. H, tambm, um
roteiro teatral na ntegra, Small Lives/Big Dreams, da SITI Company.
Um artigo a ser destacado Anne Bogart and the new play, de Paula Vogel,
que trata da relao entre o processo de criao de Bogart e a dramaturgia e a cena
ps-moderna. Alm dele, o artigo The meat of the medium: Anne Bogart and the
5 We do not discover the truth; we create it. (BOGART apud MEE, 1995, p. 80)
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american avant-garde, de Porter Anderson, tambm vale ser apontado, pois relaciona
o pensamento de Anne Bogart e toda a tradio norte-americana, que normalmente se
baseia na tradio realista.
A pergunta que paira sobre o artigo de Anderson uma das preferidas da
prpria Anne Bogart: o que voc faz com a carne? (what do you do with the
meat?). No uma pergunta retrica, mas prtica, que, naturalmente, tem a ver com
o rigoroso trabalho fsico desenvolvido pela companhia graas ligao entre os
Viewpointse o Suzuki. Mas tem a ver tambm com as questes advindas do espao
virtual (cyberspace), quando a tecnologia transformou o papel do corpo dentro da
cultura. Essa questo no se esgota a, no entanto, pois tambm se amplia para o
campo filosfico e poltico.
Bogart definida por Anderson como uma clssica atual, capaz de
sintonizar passado e futuro numa ateno situada no exato momento presente:
O teatro, ela fala, nos d a presena da memria Umamemria presente Distanciada e prxima. Uma mise-en-scne
pode abalar e perturbar, deliciar e relembrar []. (ANDERSON,1995, p. 110, traduo nossa)
Embora seja considerada uma artista da vanguarda, todo o repertrio de
Bogart construdo sobre a tradio e a cultura norte-americanas, vistas sob um
ngulo pouco analisado at ento (h excees: nomes como Bob Wilson, Martha
Clarke, Julie Taymor). Para Bogart, a memria da cultura norte-americana curta e
desconectada das suas razes originrias, favorecendo um ambiente artstico que
normalmente reproduz os mesmos padres sociais:
Essa tendncia da vanguarda nova iorquina a um teatro auto-
referente, narcisista e autobiogrfico produto de uma sociedadeque glorifica o caubi, nesse caso um indivduo isolado no apenasdos outros mas tambm da sua prpria histria. (Ibid., p. 113,traduo nossa)
Contra um teatro autorreferente, sua alternativa proporcionar, a exemplo de
Peter Stein e Ariane Mnouchkine, um teatro ligado sociedade e cultura num
sentido mais amplo. Seu maior desafio, portanto, trabalhar a questo do contedo de
suas peas, pois a forma surge em decorrncia dele.
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Na estrutura colaborativa da qual lana mo, todos os atores compartilham
com ela a responsabilidade e o conhecimento profundo, e ao mesmo tempo sutil,
sobre o movimento que mantm o ator vivo em cena. E, como se viu, esse trabalho
vem sendo desenvolvido pelo menos desde os ltimos vinte anos, desde que a diretora
deu incio a uma pesquisa que atravessa tanto as suas produes quanto o ambiente de
formao do ator, nas universidades em que atua como professora.
O foco principal de Bogart libertar a sua prtica da referncia ao modo como
o mtodo de Stanislavski foi processado pelo teatro norte-americano, o que no
significa ir contra a fonte russa, mas fazer uma oposio via emocional to
constantemente vista nos palcos. Para tanto, ela cr numa estrutura de trabalho
concreta, como Anderson aponta:
[] A estrutura de um trabalho deve ser concretizada. Uma vez queisso tiver acontecido, os artistas tero seu comportamento fsico tointimamente ampliado que podero estar abertos a todo o tipo devulnerabilidade humana que compe uma rica vida dramtica.(ANDERSON, 1995, p. 115, traduo nossa)
O que Bogart persegue no uma cena desprovida de emoo, mas um
caminho diferente, indireto, de acordo com a filosofia oriental. Nesse sentido, sua
ttica no diferente dos princpios originrios vistos no mtodo de Stanislavski:
E isso foi Stanislavski quem primeiro entendeu, Bogart diz, paracriar um momento real no palco, voc deve pensar em noventacoisas diferentes. Sua abordagem era psicolgica. Isso permitiu aoteatro apontar algo que eu descobri ser insuportvel. Mas o
princpio correto. Voc no pode apenas andar no palco e serverdadeiro ou ser autntico. Os Viewpointsso coisas sobre as quaiso corpo e a alma podem pensar verdadeiramente, ao invs detentarem ser natural. (Ibid., p. 116, traduo nossa)
Na sequncia, o artigo de Anderson cita algumas das peas criadas pela
diretora, como a verso para O bonde chamado desejo, na qual uma dezena de atores
representava Stanley e Blanche, numa crtica direta viso mitificada impregnada
pela referncia atuao marcante de Marlon Brando.
Bogart considera as peas de teatro valiosas amostras a compor a memria da
humanidade. No caso das tragdias gregas, que ela retoma sempre com um olhar
atual, elas seriam justamente a oportunidade de se trabalhar com as questesuniversais para alm dos tempos.
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A questo, portanto, que no h contedo independente de uma forma
prpria, e a busca de uma memria do presente permite que as mais antigas
tradies e culturas sejam vistas sob uma ptica atualizada. Do mesmo modo, o
futuro, imaginado pelas teorias sobre o ciberespao, explorado devido a uma
combinao potente entre sensibilidade e apuro tcnico.
Assim, sua interrogao sobre por que precisamos ainda (ou tanto) do teatro se
conecta diretamente com suas opes estticas, tambm traduzidas a partir da
pergunta inicial sobre o que fazer com a carne, e entendida, assim, como um ato de
sobrevivncia:
O trabalho de Anne Bogart soberbamente equilibrado entre a
experimentao formal e a experincia poltica da vanguarda, entrea efervescente tradio e a fria melancolia da potncia ciberntica,entre a sobrevivncia e a extino sobrevivncia e extino do
prprio teatro. (ANDERSON, 1995, p. 130, traduo nossa)
2.5.1 O artista da cena segundo Anne Bogart
Tendo-se em vista que a prtica utpica de Bogart exige de seus praticantes
paixo e conhecimento aguados, as suas trs principais publicaes (BOGART,
2005, 2007, 2011)6apresentam um conjunto de ideais, aes e experincias que
conectam teoria e prtica com uma simplicidade admirvel, oferecendo um ponto de
partida para o sentido tico que essa tcnica possui. Com exceo de The Viewpoints
book, que serviu como base para uma das pesquisas prticas destrinchadas no segundo
captulo7, os livros sero objeto de uma apreciao mais detalhada neste item, por
indicarem valiosas pistas sobre o carter utpico que sustenta a tcnica dos
Viewpoints, segundo a qual o teatro no deve fugir da realidade que o circunda, mas,
antes, ter a capacidade de forjar existncias alternativas, como Bogart comenta.
Escritos numa linguagem gil e acessvel, que mescla sua prpria trajetria
artstica e diferentes referncias, vindas da filosofia, da cincia e da arte, os livros de
Bogart compreendem os mais variados temas de anlise. Ela justifica a escolha desses
temas pelo fato de serem problemas normalmente presentes em seus prprios
processos criativos: Voc pode estudar cada situao em que se encontra. Pode
6 importante ressaltar que, apesar de a verso original deA preparao do diretor: sete ensaios sobre
arte e teatro ser datada de 2001, consultamos, para este trabalho, a edio traduzida pela MartinsFontes em 2011.7Conferir o subi