Julgamento Moral, Incriminação e Decisão Judicial no Tribunal do Júri

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JULGAMENTO MORAL, INCRIMINAO E DECISO JUDICIAL NO TRIBUNAL DO JRI* ** MORAL JUDGMENT, INCRIMINATION AND JUDICIAL DECISION IN TRIAL BY JURY

Luiz Eduardo de Vasconcellos Figueira RESUMO O presente artigo objetiva analisar sociologicamente as formas pelas quais os valores morais so apropriados no contexto das prticas judicirias do tribunal do jri. O texto privilegiar a fase dos debates orais entre defesa e acusao e os critrios de deciso utilizados pelos membros do jri. O ritual judicirio constitui-se num campo de disputas argumentativas e de atribuio de sentidos. As prticas judiciais colocam em funcionamento um conjunto de estratgias, cujo objetivo principal convencer a autoridade responsvel pela deciso judicial. No tribunal do jri, os responsveis pela deciso de condenao ou absolvio so os jurados. Neste sentido, advogados e promotores manipulam uma srie de estratgias para convencer os membros do jri sobre a correo de uma determinada tese. O texto pretende destacar a ampla utilizao de argumentos morais por parte dos profissionais da defesa e da acusao e suas implicaes para o veredicto. PALAVRAS-CHAVES: TRIBUNAL DO JRI. ABSTRACT This article aims to analyze sociologically how the moral values are appropriate in the context of judicial practice of trial by jury. The text focuses on the use phase of the oral argument between defense and prosecution and the decision criteria used by the members of the jury. The ritual is characterized of argumentative disputes and assignment of meaning. The judicial practices put in place a set of strategies, whose main objective is to convince the responsible authority for judicial decision. In a trial by jury the responsible decision of conviction or acquittal are the jurors. In this sense lawyers and prosecutors handling a number of strategies to convince the jury of the rightness of a particular thesis. The text aims to highlight the extensive use of moral arguments by professionals of defense and prosecution and its implications for the veredict. KEYWORDS: MORAL JUDGMENT, JUDICIAL DECISION, TRIAL BY JURY JULGAMENTO MORAL, DECISO JUDICIAL,

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Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em So Paulo SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009. ** Trabalho indicado pelo Programa de Ps-Graduao em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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I) A ordem do discurso jurdico. Na fase dos debates orais entre defesa e acusao, o discurso jurdico estruturado por meio de dois eixos bsicos. O primeiro diz respeito s prescries legais de seqncia dos discursos (a defesa fala sempre depois da acusao) e de temporalidade da fala de casa sujeito processual. O segundo eixo diz respeito organizao de apresentao do discurso. No se trata de uma prescrio legal, mas de uma prtica que se incorporou como um habitus[1] do campo jurdico. Neste sentido, temos a seguinte estrutura discursiva: a) inicialmente temos o exrdio, momento em que ocorrem as saudaes e cumprimento. A acusao e a defesa devem utilizar essas consideraes iniciais exrdio para falar de problemas gerais que afligem a sociedade e para ir preparando o esprito dos jurados para os argumentos jurdicos e morais que sero desenvolvidos em seguida; b) depois temos a narrativa dos fatos com a apresentao das provas, seguida da defesa da tese jurdica; c) por fim, temos a perorao. Trata-se do desfecho que, segundo os defensores e promotores entrevistados, deve ser impactante. Essa estrutura de desenvolvimento do discurso jurdico no plenrio do tribunal do jri uma constante. Chega a ser cansativo ouvir as inmeras saudaes e elogios que so ritualisticamente dirigidos ao juiz e, depois, as partes entre si. Para mim, como um observador privilegiado, ficou muito claro que essas saudaes e elogios constituem-se em expresses obrigatrias de sentimentos (Mauss, 1979). No estou querendo dizer que se trata de mentiras ou simulacros, mas que expressar a satisfao e a honra de compartilhar o tribunal do jri com o juiz que ali est sentado, por exemplo, faz parte de uma estrutura discursiva obrigatria que pode corresponder ou no aos reais sentimentos dos atores envolvidos nessa interao discursiva. Outra questo fundamental da ordem do discurso jurdico diz respeito converso lingstica. O processo de produo judiciria da verdade que tem seu incio no inqurito policial e se prolonga at a sentena do juiz de direito encontra-se marcado por uma dupla converso lingstica. A primeira, conforme j vimos, realizada pela Polcia Judiciria ao converter os saberes policiais acerca do crime e do criminoso numa linguagem que possa ser operacionalizada na fase do inqurito policial, ou seja, na linguagem das provas e indcios. A segunda ocorre no plenrio do tribunal do jri, quando os atores profissionais do direito promotor e defensor convertem seus saberes tcnico-jurdicos sobre o processo em julgamento numa linguagem de senso comum, de forma que possam se fazer compreender pelos jurados juzes leigos. O sistema jurdico brasileiro, ao introduzir na administrao da Justia indivduos que no precisam ter conhecimentos jurdicos para atuarem como julgadores estabeleceu, consequentemente, um espao social marcado pelo senso comum. A introduo do senso comum num campo social marcado visceralmente pelo hermetismo tcnico-jurdico no se deu sem crticas e tenses; muito pelo contrrio, a cultura jurdica brasileira, caracterizada por uma forte concepo legalista da interpretao e aplicao do conjunto de normas positivadas, busca, por meios das prticas judicirias, formar e conformar a maneira de atuar dos jurados nos tribunais do jri.

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Juzes, defensores (pblicos e privados) e promotores de justia buscam ensinar direito para os jurados; ensinar o papel institucional de cada profissional que atua no tribunal; em ltima anlise: ensinar ao corpo de jurados a julgar em conformidade com uma determinada sensibilidade jurdica (Geertz, 1998). Trata-se de mecanismos de poder que so operacionalizados num contexto principalmente durante o plenrio do jri que objetivam mover os jurados adoo de critrios tcnico-jurdicos de anlise e deciso do caso. Um exemplo disso, e que recorrente no plenrio do jri, ocorre quando o promotor ou o defensor diz para os jurados: preciso julgar com base nas provas produzidas nos autos do processo. Ora, mas o prprio Cdigo de Processo Penal diz que os jurados julgam de acordo com a conscincia deles jurados e os ditames da Justia, ou seja, com base nos sentidos de Justia decorrentes da sensibilidade jurdica dos integrantes do Conselho de Sentena; de acordo com a sensibilidade jurdica do senso comum que representado no tribunal do jri pelos juzes leigos[2]. Por outro lado, os profissionais do direito sabem que as questes morais relativas ao motivo do crime e aos sujeitos morais da vtima e do acusado so fatores fundamentais deciso do jri e, neste sentido, promotores e defensores procuram produzir argumentos morais para persuadir (os jurados) vencer o embate contraditrio. Ora, os jurados, de um modo em geral, esto submetidos aos efeitos de hermetismo de um campo social em relao ao qual desconhecem as regras internas de funcionamento, j que no possuem conhecimento tcnico para compreender a complexidade das formas jurdicas de produo da verdade judicial, ficam entregues autoridade simblica daqueles que possuem o conhecimento jurdico. Advogados, juzes e promotores so detentores de um saber/poder que torna os seus discursos legtimos para produzir certos efeitos de poder. Iniciados e profanos ou no iniciados encontram-se no contexto do ritual judicirio onde os primeiros possuem o direito/poder de falar, de ensinar o direito e de persuadir, de comover os jurados. Por sua vez, os jurados esto sentados diante dos demais atores juiz, ru, promotor, defensor em silncio. E assim permanecem durante os debates orais. Nos intervalos podem falar entre si, mas no podem comentar acerca do processo criminal que est sendo julgado (embora alguns comentrios acabem ocorrendo, discretamente). O Conselho de Sentena foi submetido historicamente a uma poltica de silenciamento. De uma incomunicabilidade com pessoas estranhas ao Conselho de Sentena conforme o Cdigo de 1832 visando evitar presses e influncia externas, a uma incomunicabilidade que interditou o debate do caso entre os jurados[3]. Com isso o jurado o foi remetido, exclusivamente, sua prpria conscincia. O jurado encontra-se isolado, solitrio e silente. Como os jurados no acompanham a produo das provas exceto o interrogatrio e a inquirio de alguma testemunha em plenrio o contato que eles tm com os denominados fatos (do acontecimento interpretado como crime) decorre das narrativas produzidas durante os debates orais entre defesa e acusao. As provas so apresentadas aos jurados pelos debatedores que, obviamente, possuem interesses estratgicos num contexto de disputas argumentativas.

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Nesse contexto, em que o Conselho de Sentena, habitualmente, no tm acesso aos autos do processo, a formao de seu convencimento vai depender em grande parte da performance de cada orador. A competncia cnica fundamental deciso que sair dos votos dos jurados na sala secreta. A competncia cnica caracteriza-se pela aptido para utilizar e adequar as mltiplas estratgias discursivas e no-discursivas ao contexto do embate contraditrio, objetivando conquistar os jurados para a tese que est sendo defendida. to relevante a questo da competncia cnica que o prprio Cdigo de Processo Penal prev a possibilidade de o juiz de direito parar o julgamento, dissolver o Conselho de Sentena, por entender que o acusado est indefeso, em razo do mau desempenho de seu defensor tcnico. Nos processos criminais julgados pelo tribunal do jri a deciso condenatria ou absolutria depende mais dos debates travados durantes algumas horas no plenrio do que daquilo que se processa, ao longo de anos, desde o primeiro registro policial do crime at a contrariedade ao libelo acusatrio (Schritzmeyer, 2001, p.150). Defesa e acusao defendem as suas respectivas teses jurdicas. Sustentar uma tese, como dizem os profissionais do direito, significa defender uma posio. Trata-se da construo de um discurso que possui como objetivo vencer num campo de disputas argumentativas. Neste sentido, tese a expresso discursivo-jurdica da posio enunciativa[4] assumida pelo ator judicirio. Alm da categoria tese jurdica, gostaria de introduzir, para pensar as prticas sociais no tribunal do jri, a categoria analtica de tese moral. Trata-se da expresso discursivo-moral da posio enunciativa assumida pelos atores sociais no mbito do ritual judicirio. No estou querendo com isso separar as dimenses jurdica e moral no contexto do ritual do jri, at porque elas so indissociveis na medida em que todo o processo social de produo da verdade encontra-se mergulhado na moralidade, e a norma jurdico-penal uma positivao de determinados valores. O que estou querendo com esse conceito tese moral enfatizar todo um conjunto de discursos que objetiva legitimar ou deslegitimar moralmente a prtica do homicdio. E, com isso, obter uma deciso dos jurados que pode at ser completamente contrria a todas as provas produzidas. Um exemplo claro disso, o julgamento criminal do pai que matou o homem que estuprou a sua filha. Neste tipo de caso o argumento moral tese moral o que vai decidir o julgamento. E isso tudo porque, no jri, alm das discusses em torno das provas produzidas, discute-se, fundamentalmente, um conjunto de valores morais relacionados ao caso[5]. Os atores judicirios discutem se aquela morte da forma como se deu, pelos motivos alegados e em razo dos sujeitos morais representados pela vtima e pelo acusado moralmente justificada ou no e se socialmente legtima ou no. O que se elabora a cada sesso de julgamento pelo tribunal do jri, so motivaes para legitimar socialmente ou no a prtica de homicdios (Schritzmeyer, 2001).

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O jri o locus privilegiado do senso comum na estrutura do Poder Judicirio Brasileiro. Ocorre, porm, que esse senso comum que est presente nos julgamentos dos crimes dolosos contra a vida mediado pelo direito. Em outras palavras, o senso comum dos jurados juzes leigos inserido nas formas jurdicas de construo da verdade e, obviamente, encontra-se sujeito aos diversos mecanismos de coero constitutivos do sistema jurdico. Percebi acompanhando os julgamentos no plenrio que boa parte dos esforos encetados por promotores e defensores visava a ensinar direito aos jurados. Por exemplo, no caso da defesa alegar que o acusado matou para salvar a prpria vida, a tese jurdica defendida a da legtima defesa. Ento, o defensor passa a ensinar aos jurados quais so os requisitos legais da legtima defesa previstos no Cdigo Penal. E esse raciocnio vlido para outras teses jurdicas. Ora, o desempenho do papel social de jurado como dos demais papis sociais pressupe uma aprendizagem (explcita ou implcita). Inseridos no campo jurdico, os jurados so socializados em sua lgica interna: procedimentos legais, linguagem jurdica, funes institucionais dos profissionais do direito. Da a compreenso de alguns juzes e promotores da importncia de o tribunal do jri contar com jurados experientes familiarizados com a lgica jurdica de forma que possam antes e depois dos julgamentos nos comentrios informais sobre processos criminais orientar aos novos jurados a como julgar. Durante o trabalho de campo, pude perceber que a apresentao da tese jurdica em plenrio, muitas vezes, era uma verdadeira aula de direito para os jurados. Aps um julgamento, um dos jurados que no foi sorteado para atuar naquele dia, mas que acompanhou os debates orais como espectador, me disse: Veja. Esse promotor um verdadeiro professor.

II) Acusao/defesa moral e construo biogrfica. Promotores e defensores tm conscincia do que est em jogo no tribunal do jri. Alm de fatos e provas os jurados avaliam as justificativas morais que se encontram na base dos pedidos de condenao e absolvio. Concomitantemente ao julgamento dos fatos (interpretados como crime) h um julgamento moral que realizado em cada sesso plenria. Julgamento moral das pessoas da vtima e dos rus. Julgamento do tipo de sujeito moral que cada um representa. Neste sentido, este item expe duas estratgias fundamentais utilizadas pelas partes: a construo biogrfica da vtima e dos acusados e a defesa/acusao moral. Vamos exemplificar com trechos do julgamento do caso nibus 174[6]. (A Acusao com a palavra) O promotor disse com base no discurso policial que o Sandro no chegou a anunciar o assalto: (...) e isso, quando Sandro v que o motorista est parando ele comea a gritar: est parando por qu?! Ento, nesse momento ele nem chega na verdade a anunciar o assalto. De todas as testemunhas s uma disse que ele anunciou o assalto. Todas as outras disseram que ele nem chegou a anunciar. 1793

(Depois o promotor continua): Ento, conforme eu disse, ele apresenta vrias leses em seu corpo, que foram mostradas nesse Auto de Exame Cadavrico, e que se demonstra que ele acabou morrendo da forma que ele mais temia, porque, a meu ver, aquele seqestro, ele tinha a ver... era a luta dele pela liberdade. Era o medo dele e o pavor de cair nas garras da polcia. Porque ele, sobrevivente que foi da Chacina da Candelria, onde menores que, ao mundo estarreceu, dormia sob o risco de algum chegar e jogar um paraleleppedo na sua cabea. Ento, as coisas que ele fez at expressam, assim, o contexto cruel da vida dele.

(Quase no fim de seu discurso o promotor ainda acrescenta): Ento, continuando, para corroborar tudo aquilo que eu tenho falado, eu ressalto o depoimento da testemunha Elvira s folhas dezessete, em que ela diz que o Sandro fala: Ah, parou por que? Por que que t parando? O desespero dele, quando ele percebe que o motorista vai parar o nibus, a que ele se levanta, ento, e vai pegar a outra pessoa como refm. Ento, essa testemunha fala que Sandro disse que no mataria ningum, mas era para que eles fingissem que seriam mortos. Lus Cludio Aviano, que estava l na cena do crime, que tambm um policial do BOPE, ele que estava passando as informaes de movimentao e ele diz que, naquele momento, logo depois, o capito j havia dominado o Sandro com um golpe. Ele foi ao solo e j o tinha imobilizado. Ora, se ele j tinha imobilizado o Sandro ali, na rua, antes de entrar no camburo, imagina se, l dentro, naquele espao diminuto, eles tambm no teriam controle, se eram trs em cima de um homem, desarmado, faminto, enfim...

(A Defesa com a palavra) Advogado: Ns no estamos hoje aqui julgando marginais! Estamos julgando a nica esperana que ns temos! Alm do que os sonhos da socializao; da religio; da educao (...). os nicos que sobem os morros; os nicos que enfrentam os bandidos; os nicos que se expem; que trocam tiroteios.... Ns no vamos julgar, aqui hoje, Sandros, no! Pelo amor de Deus! No faam essa confuso. No podemos comparar Sandro com esses homens. H uma diferena to brutal! Meu Deus do cu! Que inaceitvel sequer pensar. Sandro aquele homem endiabrado, enlouquecido! Muito mais do que isso: um homem mau! Que segundo o Ministrio Pblico, no queria matar ningum. Mas, matou Gesa! Esqueceram da Gesa. Esqueceram de tudo rapidamente! Como se nada tivesse acontecido naquele nibus da morte! Quem tem a coragem de entrar no nibus da morte?! nibus 174, sinnimo de nibus da morte. entrar para morrer de vrias formas. Perguntem a Luana se ela est viva. Perguntem a Janana se ela est viva. Jurados! Damiana teve outro derrame dentro do nibus e no fala. J tinha um aleijamento de pernas e, agora, os senhores viram no filme realidade, no filme que no montagem, num filme que ningum pode deturpar(...) Porque, como eu disse, testemunhas podem se enganar, podem at mentir propositadamente ou no, mas o 1794

filme mostra Damiana na sua casa, com a sua filha, sem poder falar, apenas escrevendo. pior do que a morte. o derrame cerebral que torna o ser humano impossibilitado para qualquer coisa na vida, vegetando; uma moribunda. a morta meio viva; a morta-viva. E, de repente, ns esquecemos tudo que assistimos aqui hoje os filmes esto, inclusive, com o Ministrio Pblico, com a defesa. Esquecemos de tudo, para encontrar uma soluo sem sabermos que isso pode ofender mais do que uma condenao. Se so culpados: onze anos. isso, onze anos, que fiquem onze anos, que coloquem nas penitencirias, para que morram amanh de manh, nas mos dos traficantes que eles prenderam. Prenderam muitos! Prenderam tantos sequestradores, estupradores. Limpem as mos, lavem as conscincias e deixem que a priso venha atravs da penitenciria, numa pena absurda (...) Por meio do discurso do promotor, Sandro construdo no espao simblico de vtima da violncia policial. Sandro, nesse sentido, torna-se uma pessoa igual a ns, pois, estamos, todos, sujeitos arbitrariedade e truculncia policiais. Temos, ento, um Sandro humanizado; objeto de compaixo; que precisa ser respeitado. Nas palavras do promotor, pessoas como o Sandro merecem tolerncia mil e no tolerncia zero. Sandro apresentado como: um ser humano que precisa ser respeitado; um homem que no mataria ningum; um homem desarmado e faminto. O promotor apresenta uma verdadeira defesa moral de Sandro, ou melhor, do tipo social que ele representa. Segundo o promotor, Sandro foi um ex-menino de rua pois agora homem de rua e sobrevivente da Chacina da Candelria. Ento, disse o promotor as coisas que ele fez at expressam, assim, o contexto cruel da vida dele. E o promotor continua: (...) o depoimento da testemunha Elvira s folhas dezessete. (...) essa testemunha fala que Sandro disse que no mataria ningum, mas era para que eles fingissem que seriam mortos; (...) aquele seqestro, ele tinha a ver... era a luta dele pela liberdade. Era o medo dele e o pavor de cair nas garras da polcia. Ora, no plano da tese moral, a estratgia da promotoria produzir uma defesa moral da vtima e uma acusao moral dos policiais. Pois, afinal, do ponto de vista do Ministrio Pblico, os policiais no tm o direito de matar: os senhores no podem reconhecer a eles o direito de matar. O discurso do promotor foi marcado por um tom sbrio e tcnico. No caso do nibus 174, como as provas tcnicas particularmente o Auto de Exame Cadavrico que atribui a causa da morte como sendo em decorrncia de uma asfixia por estrangulamento eram desfavorveis defesa, o advogado utilizou praticamente a totalidade do tempo que dispunha para se valer de argumentos morais. Defendeu (os rus/policiais) e acusou (a vtima/Sandro) moralmente. Construiu biograficamente essas personagens. Se por um lado as provas lhes eram desfavorveis, por outro, ele o advogado tinha um grande terreno para trabalhar os aspectos morais e emocionais presentes nesse caso. E foi o que ele fez, visando, sempre, produo de um discurso eficaz cujo objetivo vencer um campo de disputas argumentativas e de produo de sentidos.

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Num contexto social, marcado por uma acumulao social de violncia, onde esta se configura como uma referncia quotidiana de toda convivencialidade (Misse, 1999), o advogado procurou produzir um sentido de polarizao entre sociedade e criminosos de forma a excluir os bandidos do espao simblico da sociedade. A sociedade, nesse sentido, representada pelos jurados, composta de homens de bem. Disse o advogado: o carioca um homem de bem. E mais adiante quando as pessoas que estavam assistindo ao evento na Rua Jardim Botnico comearam a gritar lincha! Lincha! disse o advogado: E no era a PM (que estava gritando); era a populao. ramos ns, jurados!. E aqui temos um outro aspecto do confronto das teses morais defendidas no plenrio do jri: os argumentos apresentados enfocam a questo da legitimidade ou a ilegitimidade de a polcia matar criminosos perigosos. O promotor disse: Eu gostaria que o Sandro estivesse sentado ali, no banco dos rus, porque eu estaria aqui, acusando o Sandro. Mas eu s poderia pedir para o Sandro uma pena de doze a trinta anos. Eu no poderia pedir a pena de morte para o Sandro. Os senhores no poderiam dar a pena de morte para o Sandro. A juzapresidente no poderia dar. O Tribunal de Justia no poderia dar. O Supremo Tribunal Federal no poderia dar a pena de morte para ele. Ento, como que ns vamos autorizar que agentes do Estado, fardados, tenham esse direito?! (...) Enfim, os senhores no podem reconhecer a eles o direito de matar. Como o Conselho de Sentena decide tendo por base a idia de soberania dos veredictos e com fulcro na ntima convico logo, no fundamentando sua deciso ele pode reconhecer (por meio de seu veredicto) um direito que no est previsto no ordenamento jurdico brasileiro: o direito de policiais matarem criminosos perigosos. E aqui a palavra direito no est no sentido de direito positivo, mas sim, de legitimidade, de sensibilidade jurdico-social. H uma disputa clara pelos sentidos de Justia. Para a acusao, fazer justia, nesse caso criminal, significa punir os policiais militares pela morte de Sandro. Nesse contexto, as categorias ilegal, imoral, injusto e ilegtimo compartilham de um mesmo campo semntico para afirmar que a ao dos policiais no possui uma justificativa que possa estar na base de um reconhecimento da ao como socialmente legtima. Lembrando que o direito positivo tem como uma de suas funes retirar o carter de arbitrariedade do exerccio do poder. No caso da defesa, fazer Justia significa absolver os acusados, pois, afinal, eles mataram um marginal perigoso e irrecupervel. A pena de morte proibida pela Constituio Federal de 1988. O advogado sabe disso e no poderia defender uma tese jurdica para afirmar que a ao de matar dos policiais foi uma ao lcita conforme o direito positivo. Mas, se por um lado, o homicdio que vitimou Sandro no tem base legal, por outro, o advogado, manipulando emoes e categorias morais, demanda dos jurados um julgamento de conscincia. A pergunta que ficou mais ou menos explcita a seguinte: Devem ser condenados aqueles que ousaram matar um seqestrador, um terrorista urbano, um marginal da pior qualidade, irrecupervel? Por um lado, o discurso do advogado constri os policiais como heris urbanos, por outro, apresenta o Sandro como terrorista urbano. 1796

O confronto entre o bem e o mal evocado pelo discurso da defesa. E nesse jogo semntico de construo de pares opostos e complementares bem e mal, honesto e desonesto, mocinho e bandido etc o advogado procurou vincular simbolicamente os policiais (os rus) ao bem pois, afinal, so os protetores da sociedade e a vtima (Sandro) ao mal. Um mal de deve ser eliminado, que deve ser extirpado. Sandro ritualisticamente institudo no espao simblico do mal, ou melhor, num campo semntico onde uma srie de atributos negativos e estigmatizantes so atribudos ao tipo de sujeito moral que Sandro representa: bandido, marginal. Sandro a personificao de um tipo social estigmatizado. Nas palavras do advogado, Sandro tem o esteretipo do criminoso; disse ele: (...) aquele homem, com aquele tipo fsico, dentro daquele nibus. Ento, Sandro apresentado como: mau, endiabrado, enlouquecido, seqestrador, terrorista urbano, marginal irrecupervel, demnio personificado. A polarizao simblica chega ao seu pice quando se nega Sandro a condio de ser humano: um homem que no um ser humano. Ao manipular representaes e esteretipos que so produzidos e reproduzidos na sociedade acerca do tipo social que Sandro representa marginal, ex-menino de rua o advogado evoca, em plenrio, os mecanismos de sujeio criminal (Missi, 1999). H uma verdade que construda no sujeito; uma verdade do sujeito. E o papel de bandido contamina todos os demais. Sandro foi e continua sendo, mesmo aps sua morte fsica, objeto de um processo de sujeio. E sujeito, nesse contexto, significa estar preso prpria identidade (estigmatizada). A operacionalizao da sujeio criminal (este mecanismo extraordinrio de poder) torna-se explcita em discursos como o do jurado A[7]. Disse ele: Tem ru que tem cara de bandido matador. Voc sente que bandido. Normalmente, quando um ru tem cara de mau, ele tem um histrico de processos criminais. Geralmente, esses rus so condenados. Por sua vez, o jurado B[8] disse o seguinte: Nos crimes de homicdio vinculados ao trfico de drogas e nos homicdios praticados em atividade tpica de grupos de extermnio, aqui na Comarca da Capital, os rus envolvidos com essas prticas so condenados pelos jurados antes do julgamento. Buscando operar um deslocamento simblico, disse o advogado: quem est sendo julgado, hoje, Sandro. E, de fato, o ritual judicirio do tribunal do jri coloca em funcionamento um julgamento moral: a) do sujeito moral da vtima; dos sujeitos morais dos acusados; c) das justificativas alegadas para as aes cometidas. No estou querendo com isso afirmar que as provas produzidas, que os argumentos tcnicocientficos no tenham sua importncia nesse ritual judicirio, mas, sim, que se trata de um processo social muito complexo de produo da verdade onde mltiplos fatores entram em jogo. Uma estratgia amplamente utilizada nos rituais do tribunal do jri, objetivando sensibilizar emocionalmente os jurados so os mecanismos de identificao. Por meio deles, advogado e defensor procuraram estabelecer uma empatia entre a vtima ou ru e os jurados. E a expresso de magia social que presentifica esse processo de identificao quase que invariavelmente a seguinte: jurados! Coloquem-se (ou imaginem-se) no lugar de fulano (ru ou vtima). E esse mecanismo foi utilizado pelo advogado, por exemplo, na seguinte passagem: Eu tenho o direito e achar que Sandro... 1797

Esse homem, que faz aquilo.... Imaginem os jurados uma filha dos senhores. Imaginem as senhoras; imaginem a irm das senhoras; a me das senhoras; a filha dos senhores; a esposa dos senhores dentro daquele nibus. (...) O revolver dentro da boca. Os senhores viram. Eu no estou criando fantasia. (...) Revlver sujo, imundo, dentro da boca. Com o dedo no gatilho e gritando: vou matar, vou matar. Acerca dos mecanismos de identificao, muito ilustrativo o seguinte trecho de entrevista com o advogado C[9]: Ganhar um jri questo de talento puro. Se voc conseguir botar lgica com emoo ou emoo com lgica, fazendo com que os jurados se transfiram do banco dos rus para a pessoa do acusado, como eu fiz no caso da Renata[10]. Neste caso eu disse: jurados, levantem. Caminhem comigo de mos dadas; vamos subir at o quarto de Renata; naquela casa, naquela noite do crime. Vamos juntos. Ns entramos no quarto; ela passa perto do banheiro (...) e v o homem que ela ama nu; homem que a excita, nu. Ela sabe que a nudez dele significa ter sexo. Cada casal sabe quando o homem quer ter sexo, e quando a mulher quer ter sexo; para ela, era ele ficar nu. Ela, ento, faz aquilo que o francs diz baixinho (...) fale-me de amor outra vez, meu amor. (...) E ela vai para a cama; e na hora repelida... Ento, vamos ao quarto juntos... Se voc conseguir transportar os jurados para o local do crime; para o momento do crime e para a personalidade do acusado, voc tem chance de conseguir uma vitria, uma reduo de pena ou alguma outra coisa qualquer. Porque o ser humano to fraco, e to difcil julgar. Transfira para os jurados a responsabilidade de julgar um erro humano; a possibilidade de errarmos, e se errarmos no tem mais conserto. A voc diz assim: vamos analisar como se fosse um filho, um pai, um marido, um irmo. Condenem! Mas, recebam primeiro, pelo menos, a imagem da verdade.

Diante de toda essa reflexo, uma questo torna-se relevante: como colocar em funcionamento os mecanismos de identificao tendo, por um lado, jurados recrutados em sua maioria nos segmentos mdios da sociedade carioca (funcionrios pblicos, profissionais liberais, estudantes universitrios) e, por outro, acusados que personificam um tipo social completamente estigmatizado marginal, bandido? Qual a identificao possvel dos jurados com a vtima (Sandro)? Sandro, ex-menino de rua; Sandro, assaltante com vrias passagens pelo sistema penitencirio; Sandro, que seqestrou um nibus e matou uma refm. Penso que para determinados tipos de sujeito moral, por exemplo: bandido, traficante de drogas, esse processo de identificao seja muito difcil, levando o profissional do direito a adotar outras estratgias. Durante uma entrevista, o Juiz Presidente do IV tribunal do Jri disse: quando o ru da classe mdia, coisa que no freqente, a os jurados sentem o peso da responsabilidade de julgar uma pessoa igual a eles. Isto ntido.

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Ora, o senso comum jurdico diz que a instituio do tribunal do jri existe para assegurar o direito de o cidado ser julgado pelos seus pares. A idia de marginal irrecupervel (Sandro) de certa forma reforada pelo filmedocumentrio nibus 174 que foi projetado integralmente no plenrio do jri (atendendo aos interesses da defesa e da acusao). Esse documentrio mostra um Sandro com diversas passagens pelo Instituto Padre Severino[11] e pelo sistema prisional. Um Sandro que cometia assaltos desde menino. Esse filme faz parte, tambm, do processo de construo biogrfica que estou analisando. Vamos ver alguns aspectos relevantes do filme para a presente pesquisa. O filme nibus 174 dirigido por Jos Padilha conta duas histrias paralelas. A primeira, a do evento que ocorreu na Rua Jardim Botnico e que parou a cidade do Rio de Janeiro. Nessa histria, o filme recupera imagens que foram realizadas pelas emissoras de televiso e articula com uma srie de depoimentos de pessoas que participaram, de alguma forma, do evento (jornalista, policiais militares, pessoas mantidas como refns). A segunda histria procura reconstituir a trajetria de vida de Sandro, desde menino, por meio de depoimentos de colegas (de rua e de carceragem) de familiares (uma tia materna). A linha de partida da produo biogrfica de Sandro marcada por um trauma. Segundo os depoimentos, Sandro ainda menino presenciou o brutal assassinato de sua me: O Sandro tinha seis anos. A me assassinada; degolada na frente dele; no barraco l na favela do Rato Molhado... Ento, esse menino ficou sozinho... Ele foi pra rua. Em outra passagem do filme temos o seguinte depoimento de um colega: O Mancha (apelido de Sandro) veio pra rua criana. Ento ele no teve tempo de ter amor de ningum, E a nica coisa que ele aprendeu na rua foi sobreviver. O enredo do filme articula a trajetria de prticas ilcitas de Sandro furtos, roubos a um completo desamparo. De um lado, um menino que aps uma experincia traumtica se encontra sem referncias familiares pai desconhecido, sem avs maternos, e me morta , por outro, um menino sem nenhum tipo de assistncia do Estado, vivendo nas ruas. Ao construir essa narrativa acerca da histria de vida de Sandro, o filme chega ao seu pice com o seguinte trecho do depoimento de uma das refns (falando para o Sandro, dentro do nibus, durante o seqestro): voc sabe quem a grande vtima disso tudo? Voc. O filme constri a imagem de um Sandro duplamente vitimado: primeiro pela sociedade no olhar estigmatizador; na invisibilidade social , e segundo pelo Estado pela falta de assistncia e amparo. Por outro lado, ao descrever as inmeras passagens de Sandro pela polcia em decorrncia de crimes praticados e, ao veicular as cenas da violncia praticada por Sandro no interior do nibus, o filme possibilita a leitura (feita habilmente pelo advogado Rafael) de um Sandro violento e perigoso. Nas palavras do advogado: Sandro um marginal irrecupervel. Ao propor essa dupla leitura da histria de vida de Sandro, o filme produz uma iluso biogrfica (Bourdieu, 2002). Produzir uma histria de vida de Sandro , tratar a vida como uma histria, isto , como um relato coerente de uma seqncia de 1799

acontecimentos com significado e direo, talvez seja conformar-se com uma iluso retrica, uma representao comum da existncia que toda uma tradio literria no deixou e no deixa de reforar (Bourdieu, 2002). Esse filme nibus 174 foi assistido pelos jurados em plenrio. E as possibilidades de leituras da construo biogrfica de Sandro presentes nas narrativas e nas imagens foram estrategicamente exploradas pela acusao e pela defesa durante os debates orais. O documentrio foi apropriado pelas partes no contexto das disputas argumentativas. Trata-se de mais um fator para reforar os efeitos de sentido que os atores judicirios buscam alcanar no embate contraditrio. No ritual judicirio de produo da verdade jurdica, fato, prova e tese jurdica possuem uma materialidade lingstica e esto indissociavelmente entrelaados na trama discursiva: a) o fato, enquanto narrativa de uma ao que possui duas dimenses bsicas (segundo o discurso do campo): 1 uma dimenso objetiva, por exemplo, a descrio de uma ao (matar algum) que se enquadra no tipo penal (artigo 121 do CP); 2 uma dimenso subjetiva, de natureza psquica (a inteno do agente), que s pode ser conhecida pela da confisso ou por meio de inferncias; b) a prova, enquanto uma enunciao que comprova a veracidade da narrativa do fato. Essa enunciao busca produzir um efeito de verdade no contexto do ritual judicirio. E aqui, entra uma outra questo, pois nem sempre a prova um elemento que se materializa sob a forma de uma enunciao. Podemos pensar, por exemplo, nas imagens (fotografias, filmagens) que, no processo penal, podem ser consideradas provas e que colocam em operao uma outra linguagem; c) a tese jurdica. Enunciar uma tese jurdica defender uma interpretao (jurdica e moral) especfica da articulao de fatos, provas e direito positivo, objetivando ganhar o embate contraditrio; ou seja, tornar oficial, por meio do veredicto, a produo de determinados efeitos de poder. Vamos ver um outro exemplo das articulaes entre fatos, provas e teses jurdicas. Trata-se de um processo criminal[12] (crime de homicdio doloso) envolvendo dois paraibanos, operrios da construo civil na cidade do Rio de Janeiro, um deles pedreiro (ru), o outro servente de obras (vtima). Durante as quatro horas de debates, duas horas e meia, aproximadamente, foram utilizadas para a apresentao e discusso do laudo de exame cadavrico. Segue o discurso do promotor:

Vamos parar com essa histria de que o ru est falando a verdade, de que ele deu um s golpe na vtima (...). O ru diz no interrogatrio que a vtima tinha bebido e que ele presenciou uma discusso da vtima com outra pessoa. A, ele foi l para apartear essa briga, S que a vtima partiu para cima dele, apertando o seu pescoo, deixando as marcas da unha. A, a vtima se afastou, e os outros colegas de obra disseram que ela foi pegar uma faca (...). A vtima ao voltar (...) O ru pegou um pedao de cano e deu uma pancada na cabea da vtima que caiu; a o ru saiu correndo, deixando a vtima no cho e que no sabia que ela tinha morrido (fala do promotor em relao ao interrogatrio do ru perante o juiz).

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(...) Em nenhum momento ele (ru) diz que a vtima vem com uma faca na mo na direo dele (...) Os senhores jurados sabiam que o laudo de exame cadavrico descreve muito mais do que apenas uma leso?! O laudo tem pelo menos sete leses. O ru disse que o crime no teve testemunha e que ele deu um s golpe. Cada um acredita no que quiser (em tom irnico). Ento vejamos as leses descritas no laudo de exame cadavrico. Primeira leso (nesse momento o promotor pega os autos do processo criminal e abre na pgina do laudo e comea a ler para os jurados). Primeira leso: na poro mediana e superior da regio occipital tem uma ferida de formato estrelar, disposta obliquamente, cujas bordas so irregulares, escoriadas e infiltradas por sangue, mostrando paredes, vertentes e fluxos sanguneos irregulares e que mede 39 por 27 milmetros. Tem caractersticas de ter sido produzida por ao contundente. Representada na figura pela letra A (trmino da leitura). (...) Cano de pvc de 66 centmetros. Ora, o cano de pvc se utilizado em repetidas agresses pode realmente causar a morte de uma pessoa. Repetidas agresses! Mas um cano de pvc uma pea leve. Seriam necessrios muitos golpes. Mas esse cano de pvc utilizado pelo ru se apresentava com outras peas a ele unidas; peas de ferro. (...) Um redutor e uma vlvula de prospeco, pesando o conjunto todo, quatro quilos. Quando o perito faz a apalpao do segmento craniano, percebe zonas de crepitao ssea. Ento, vejamos jurados: ele passou o dedo na cabea da vtima e sentiu crepitao ssea. Imaginem os senhores que pancada!!! Segunda leso (novamente o promotor l o laudo para os jurados): na metade direita do osso occipital tem um trao de fratura linear horizontalizado por nove centmetros e meio de extenso, e que continua atravs de uma rea de formato circular onde a tbua externa sofreu afundamento de fora para dentro, conforme indica o esquema em anexo, abrangendo os ossos temporal e parietal esquerdos. Olhem aqui senhores! (exclamou o promotor mostrando o desenho descrito no laudo). Algum tem dvida da gravidade dessas duas leses?! Duas leses! E no uma como disse o ru no interrogatrio. (...) O saco pericrdio expe folhetos lisos e brilhantes (...), o endocrdio mural liso, brilhante e transparente. (...) O que os senhores jurados pensam que o mdico est dizendo com tudo isso? que a vtima antes de morrer sofreu! E sofreu muito!!! (neste momento, o defensor faz um aparte para dizer que foi apenas um golpe) Promotor (aps essa pequena interveno do defensor): Senhores jurados, o defensor est tentando desviar a ateno da questo que estou expondo (...) O promotor chega aqui no para mentir para os senhores. H mais de uma leso. Eu no posso, como promotor, enganar os senhores. So vrias leses. (...)

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Essa a diferena do Ministrio Pblico para a defesa (...). Eu estou comprometido com a verdade e o defensor com a defesa do ru. Eu venho com as provas dos autos e digo: aconteceu isso. A defesa conta a histria que quiser e os jurados acreditam no que quiserem.

Tanto nesse caso, como no caso do nibus 174, h divergncias quanto aos fatos, s provas e, consequentemente, quanto s teses jurdicas. Ento vejamos. No caso dos dois operrios da construo civil temos as seguintes divergncias: a) fatos - para a acusao foram desferidos vrios golpes; para a defesa, apenas um golpe foi desferido; b) o laudo de exame cadavrico (prova tcnica) foi interpretado de forma diferente pelas partes; c) a tese da defesa: legtima defesa, pois nas palavras do defensor o ru utilizou dos meios necessrios para repelir injusta provocao; a tese da acusao: utilizou imoderadamente, excessivamente, dos meios necessrios para repelir a agresso. A idia de trama discursiva uma metfora oportuna para pensarmos esse processo social. Ao narrar os fatos (um golpe ou vrios golpes na cabea da vtima), cada parte nesse embate contraditrio afirmou a existncia de fatos diferentes. E o interessante que ambas as partes se utilizaram de uma mesma prova tcnica, atribuindo-lhe, porm, sentidos diferentes. Ento, essas narrativas fticas e esses enunciados-prova so trabalhados pelos atores ao longo dos procedimentos legais (e no apenas no plenrio do jri), objetivando a produo de determinados efeitos de poder. A narrativa dos fatos produzida tendo por base: a) a interpretao feita pelos atores acerca do discurso policial; b) a dialogicidade (Bakhtin). Os discursos so construdos de forma dialgica, na busca de um efeito de verdade e de um efeito de Justia. Cada prtica discursiva leva em conta outros discursos j produzidos no mbito do processo penal (para confirm-los, para contest-los) e os possveis discursos que esto por vir, operacionalizando, assim, os mecanismos de antecipao; c) os tipos de objetivos perseguidos (uma condenao, uma absolvio, uma condenao com ou sem qualificadora etc). Ao formar as suas convices acerca da melhor estratgia (para vencer) as partes interpretam e narram os fatos de forma que os mesmo possam ser encaixados nas hipteses abstratas descritas na lei penal (tipo penal). Assim, fatos, provas e teses jurdicas so interpretados e apresentados s autoridades enunciativas tendo por base as respectivas posies enunciativas dos atores no campo jurdico. No caso do nibus 174, temos as seguintes divergncias: a) quanto aos fatos e as provas. Para a acusao o ru (capito Soares) constringiu o pescoo da vtima (Sandro) com a inteno de mat-lo; para a defesa, o ru no constringiu o pescoo. E aqui temos uma questo interessante. A definio da morte da vtima por asfixia no foi contestada pela defesa. Ento, temos um fato (morte por asfixia) que denominado de fato incontroverso. O que a defesa alegou foi que a asfixia foi provocada pela prpria vtima: Se os senhores negarem o primeiro quesito: no constringiu; o que no quer dizer... que no tenha segurado Sandro, dado um golpe em Sandro; apenas que Sandro provocou a prpria morte[13] (...). Narrar determinados fatos e contestar, ou no, outros, se insere num conjunto de estratgias operacionalizado no contexto do ritual judicirio. No mbito desse caso, negar o fato (asfixia) afirmado pelo laudo de exame cadavrico, seria produzir um 1802

argumento pouco plausvel. Ento, a produo discursiva estratgica deve estar cuidadosamente articulada com os demais discursos para produzir os seus efeitos de sentido e de verdade; b) quanto s teses jurdicas. A acusao defendeu a tese do homicdio privilegiado (em razo da violenta emoo), e a defesa, por sua vez, defendeu a tese da negativa de autoria (se o ru Soares no constringiu o pescoo da vtima, ento, sequer houve crime, pois, provocar a prpria morte no constitui infrao penal). A trama dos fatos e das teses constitui-se numa disputa por um resultado. A vitria significa a correspondncia entre a tese defendida e o sentido oficial (estatal) determinado pela deciso soberana dos jurados, que se apresenta como verdade jurdica. Optar por um sentido (entre tantos possveis) um ato de poder (por parte dos membros do Conselho de Sentena). Segundo a doutrina jurdica, o processo penal, por meio de seus procedimentos legais, busca reconstruir o fato histrico (Badar, 2003). Os profissionais do direito falam dos fatos como entidades objetivas (concretas), quando, na realidade, so artefatos altamente editados pela complexa malha discursiva e procedimental que constitui um processo criminal. Assim como os inscritores de que nos fala Bruno Latour, sem os quais a substncia obtida em laboratrio no poderia existir, tambm o fato jurdico no existe fora do mundo jurdico, do olhar jurdico. O fato jurdico constitudo pela linguagem e pelas formas jurdicas prprias do campo jurdico. Refletindo acerca da produo dos fatos cientficos, argumenta Latour que o laboratrio se singulariza pela configurao especfica dos seus inscritores. E o que os torna to relevantes o fato de que nenhum dos fenmenos aos quais eles se referem poderia existir sem eles. Sem o bioteste, por exemplo, no h como dizer que uma substncia existe. O bioteste no simples meio de obter uma substncia dada de maneira independente. Ele constitui o processo de construo da substncia. (...) Na verdade, os fenmenos dependem do material, eles so totalmente constitudos pelos instrumentos utilizados no laboratrio. Construiu-se, com a ajuda dos inscritores, uma realidade artificial, da qual os atores falam como se fosse uma entidade objetiva (Latour, 1997, p.61).

O olhar jurdico transforma os fatos do quotidiano em fatos jurdicos. E a linguagem jurdica a metfora de um inscritor, que, neste processo de leitura do real, por meio de categorias especficas, produz inscries nos autos do processo penal (Figueira, 2005, p.94). Fato, prova e tese jurdica so categorias centrais de estruturao simblica do campo jurdico e no existem fora da rede discursiva, muito pelo contrrio, constituem-se nos produtos mais acabados do processo de dialogicidade desse campo social.

III) A construo da deciso dos jurados. 1803

O juzo moral da transgresso de uma regra socialmente estabelecida (ex: no matar algum) e compartilhada est na base dos processos de criminalizao e incriminao das condutas desviantes (Misse, 1999). Neste sentido, o fato interpretado como crime pelo olhar jurdico tambm um fato moral. No plano do ilcito penal, o fato jurdico intrinsecamente um fato moral. E o promotor, ao agir como representante do Estado (soberano) na aplicao da lei penal queles que infringiram regras socialmente estabelecidas (e positivadas no ordenamento jurdico), busca restabelecer a ordem simblica violada pela transgresso. Analisando o funcionamento do ritual do tribunal do jri, Valda de O. Fagundes argumenta: Os discursos proferidos no tribunal do jri so discursos que visam ao restabelecimento da ordem social. E o tribunal do jri tem, ritualisticamente, o seu papel bem definido na preservao da ordem social (Fagundes, 2001, p.34-35). No caso do nibus 174, entretanto, a ordem simblica que se busca restabelecer com o veredicto dos jurados possui um sinal ambguo. A dramaticidade do julgamento desse caso coloca em evidncia alguns dilemas morais que permeiam os dia-a-dia da populao dos grandes centros urbanos. Por um lado, temos os argumentos dos promotores desse caso no sentido da imoralidade, ilegitimidade e ilegalidade da ao de matar um homem que j estava imobilizado e sob a tutela do Estado; afinal, como disse o promotor Carlos: a ningum dado o direito de matar; por outro lado, temos os populares que acompanharam pessoalmente os eventos na cena do crime e que gritavam: Lincha! Lincha! E, posso dizer tambm que, desde o evento que produziu a morte de Sandro, venho questionando meus alunos do curso de Direito acerca do caso e, por esmagadora maioria, tenho obtido depoimentos no sentido de que Sandro deveria realmente ser morto pelos policiais. Ento, o que deve ser simbolicamente reafirmado por meio do veredicto dos jurados: o respeito ao princpio constitucional da inviolabilidade da vida humana; da proibio da pena de morte e, num sentido mais amplo, o respeito ordem constitucional enquanto instncia de positivao de valores sociais ou as situaes em que o ato de matar (mesmo que absolutamente ilegal) moralmente justificado e aceito? Para essa questo no h uma resposta geral. Talvez no haja, tambm, uma resposta especfica. No caso do nibus 174, o grupo de jurados (Conselho de Sentena) ficou dividido em seus votos singulares: quatro pela absolvio e trs pela condenao (4 x 3). muito difcil delimitar em cada processo judicial quais foram os fatores que determinaram as decises dos jurados. E isso decorre dos seguintes aspectos (que pude constatar durante o trabalho de campo): a) em razo de a votao ser secreta e de os jurados no justificarem os fundamentos de suas decises; b) em razo da pouca disponibilidade dos jurados para comentar acerca do julgamento que acabaram de participar ou que participaram recentemente. Durante o meu contato com esses jurados, percebi certa resistncia e mesmo certa desconfiana. Posteriormente, conversando com outras pessoas que exerceram a funo de jurado no tribunal do jri, cheguei a concluso de que aquela resistncia decorria de uma desconfiana de que eu estava interessado em saber qual era a tendncia de voto de determinado jurado (se o jurado tinha uma tendncia para condenar ou absolver); e que essa informao pudesse ser repassada ou para o defensor, ou para o promotor de justia (o que possibilitaria a 1804

identificao desse jurado e sua conseqente excluso por ocasio do sorteio para compor o Conselho de Sentena). H uma percepo muito clara entre os profissionais do direito de que os jurados, por no decidirem tecnicamente, pautam seus julgamentos, particularmente, num juzo moral acerca das pessoas morais da vtima e do ru e na motivao do crime (justificativa moral para matar). Segundo o advogado E[14]: Os jurados se preocupam muito mais com o aspecto moral do que com o aspecto jurdico. O que mais pesa na deciso dos jurados so as personalidades do ru e da vtima e a motivao do crime. Cabe lembrar, mais uma vez, que os jurados no apresentam os motivos de suas decises, medida que decidem por ntima convico[15]. Por outro lado, como a Constituio Federal assegura a soberania dos veredictos, os jurados no esto vinculados aos pedidos das partes (promotor e defensor), ou seja, os jurados podem decidir de forma contrria aos pedidos realizados com base nas teses jurdicas defendidas em plenrio. E, eventualmente, isso acontece. Por exemplo: o promotor pode pedir uma condenao por homicdio doloso; o defensor pode pedir a caracterizao de uma legtima defesa e os jurados podem decidir pela negativa de autoria. E isso, coloca em questo o fato de os jurados terem o poder de desconsiderar tudo o que foi dito e pedido em plenrio, embora no seja freqente. Recentemente, foi publicada no site do Tribunal de Justia do Estado do Rio de Janeiro uma deciso, do 1 Tribunal do Jri, na qual os jurados seguiram um outro caminho decisrio diverso das teses jurdicas defendidas em plenrio. A matria publicada[16] foi a seguinte:

Jri exerce soberania constitucional e condena acusado de homicdio. No julgamento realizado ontem (dia 3 de novembro) no 1 Tribunal do Jri da Capital, ocorreu um fato incomum. Os jurados, mesmo aps o Ministrio Pblico (MP) ter pedido a absolvio do ru, por ausncia de provas, e o mesmo ter sido reiterado pela defesa, condenaram Paulo Srgio Pereira de Oliveira, por quatro votos a trs, a 12 anos de recluso em regime totalmente fechado. Para o juiz Fbio Uchoa, titular do 1 Tribunal do Jri da Capital, a deciso indita e representa uma demonstrao da prpria soberania constitucional conferida aos jurados, que no esto obrigados a seguir o pedido do MP e nem da defesa para condenar ou no uma pessoa.

Segundo Roberto Lyra[17] (antigo e consagrado promotor de justia): o jri no est adstrito ao alegado e provado nos autos, nem estreiteza dos textos, e no seria jri se deixasse de sentir o conjunto das realidades individuais e sociais.

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De acordo com as representaes que circulam no campo jurdico, apresento as seguintes distines entre os juzes togados e os jurados juzes leigos , acerca dos critrios de decidibilidade:

Juiz togado: - decide tecnicamente; - julga de acordo com o princpio da persuaso racional; - a deciso condenatria tem por base um juzo de certeza (que formado por meio das provas produzidas nos autos do processo criminal); Neste contexto, a funo primordial do juiz de direito a aplicao da lei ao caso concreto.

Juiz leigo (jurado): - decide com a emoo; - decide com a conscincia e os ditames da Justia; - julga de acordo com o princpio da ntima convico; - em sua deciso, no est preso aos formalismos da lei;

Como podemos perceber, o campo jurdico produziu e colocou em circulao uma srie de representaes acerca dessas duas figuras emblemticas que atuam no universo do ritual judicirio. Ao confrontar simbolicamente as identidades sociais de juzes togados e de juzes leigos, esse campo social constituiu espaos simblicos marcados por atributos socialmente reconhecidos como pertencentes a esses espaos. Neste sentido, ocupar o espao simblico de juiz leigo significa estar institudo na posio simblica daquele que julga com base no senso comum; que facilmente conduzido pelos aspectos emocionais e, consequentemente, est sujeito s manipulaes retricas de advogados e promotores. Por outro lado, ocupar o espao simblico de juiz togado significa estar institudo na posio simblica daquele que conhece as leis e suas tcnicas de aplicao; daquele que julga com base na tcnica jurdica, aplicando a lei ao caso concreto. Enfim, o juiz de direito julga por meio de uma razo jurdicoinstrumental. Ora, capturar e construir a realidade por meio dessas malhas semnticas produtoras de efeitos de distino simblica (juiz leigo x juiz profissional; razo x emoo; tcnica x senso comum) implica na constituio de um mecanismo redutor da

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complexidade das prticas sociais quotidianas. Juiz leigo e juiz togado so figuras estereotipadas. Durante o trabalho de campo pude constatar que os jurados no decidem simplesmente com a emoo. O que est em jogo no julgamento dos jurados a operacionalizao, muitas vezes, de uma outra racionalidade para alcanar o veredicto. Os jurados, em suas decises, levam em conta: a) as provas produzidas e apresentadas pelas partes; b) a credibilidade da pessoa que est produzindo o discurso; c) a credibilidade interna do discurso, ou seja, sua capacidade de produzir efeitos de verdade; d) as biografias do ru e da vtima, para um julgamento moral dos tipos sociais que eles representam (homem honesto, trabalhador, pai de famlia x bandido, vagabundo, traficante); e) os motivos (justificativa moral) que levaram prtica do crime; f) a performance ou desempenho cnico dos atores sociais. E, neste aspecto, s vezes uma palavra dita na hora certa ou a utilizao de um jogo de cena, pode ser um fator decisivo para a vitria no tribunal do jri. Eu poderia dizer que, correndo o risco de simplificar as coisas, se no Judicirio vige (como disse um promotor) o imprio da lei (lei no sentido de direito positivo), no tribunal do jri (essa estrutura estranha tradio da civil law) vige o imprio dos argumentos morais. No jri, a moral submete o direito (positivo). Por outro lado, dizer, simplesmente, que o juiz togado decide tecnicamente, no dizer tudo. Os elementos morais de um processo penal (biografias do ru e da vtima e as justificativas morais da ao interpretada como crime) so partes constitutivas do juzo de valor realizado pelos juzes de direito. O prprio tipo penal definidor de condutas ilcitas pode ser objeto de apreciao moral do juiz de direito. Podemos ter, por exemplo, um juiz de direito que no concorde com a criminalizao de determinado comportamento social, e essa concepo pode influenciar em sua apreciao e julgamento de certos processos criminais. A idia do juiz como escravo da lei deve ser inserida num contexto que confere aos juzes de direito ampla margem de interpretao dos textos normativos. Um juiz pode, por exemplo, deixar de aplicar determinada pena prevista no Cdigo Penal por entender que a aplicao da pena prevista, num dado caso especfico, viola um princpio constitucional que se encontra na base do ordenamento jurdico (ex: princpio da dignidade da pessoa humana). J um outro juiz, pode ter um outro entendimento acerca do mesmo caso, e aplicar a pena prevista na lei penal. Ento, nesse processo de tomada de deciso, o juiz de direito no realiza simplesmente uma operao lgica de aplicar a lei (que est ali, escrita nos cdigos) ao caso concreto. A construo de sua deciso judicial, muitas vezes, encontra-se permeada de avaliaes subjetivas e pessoais acerca de qual seria a deciso mais justa para o caso em julgamento. O que estou querendo afirmar que o julgamento dos fatos (seja l o que isso signifique) no prescinde dos aspectos morais presentes em um processo penal.

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Obviamente que h uma grande diferena entre as decises dos juzes de direito (socializados em determinado habitus de pensamento, percepo e ao) e os juzes leigos que decidem por meio do senso comum. Ocorre que essa deciso do senso comum dos jurados encontra-se mediada pelos seguintes fatores: a) a linguagem jurdica que apreende e constri a realidade por meio de suas categorias; b) o ritual judicirio: que impe aos jurados, por um lado, uma poltica de silenciamento (a incomunicabilidade), e por outro, um conhecimento dos fatos por meio dos discursos estratgicos das partes. Os jurados conhecem o caso que lhes apresentado pelas narrativas dos atores que possuem o direito de falar durante a sesso de julgamento do tribunal do jri. Os membros do Conselho de Sentena esto submetidos a uma rede de relaes de poder que busca delimitar o campo de interpretaes possveis dos jurados. Busca-se um efeito de domesticao dos sentidos. Os jurados devem decidir acerca daquilo que lhes ofertado e segundo os critrios que lhe so ensinados durante as sesses de julgamento por aqueles que detm o saber jurdico. Mas nada disso impede que os jurados desconsiderem completamente os fatos e as provas dos autos (apresentados pelas partes) e decidam de acordo com o sentido de Justia deles, conforme j demonstrei.

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[1] Habitus o sistema de disposies inconscientes que constitui o produto da interiorizao das estruturas objetivas e que, enquanto lugar geomtrico dos determinismos objetivos (...) tende a produzir prticas e, por estas vias, carreiras objetivas ajustadas s estruturas objetivas (Bourdieu, 1992, p.201/2). [2] Decreto-Lei 3.689/1941 (CPP), artigo 472: Formado o Conselho de Sentena, o presidente, levantando-se e, com ele, todos os presentes, far aos jurados a seguinte exortao: Em nome da lei, concito-vos a examinar esta causa com imparcialidade e a proferir a vossa deciso de acordo com a vossa conscincia e os ditames da justia. Os jurados, nominalmente chamados pelo presidente, respondero: Assim o prometo. [3] Incomunicabilidade introduzida pelo Decreto-Lei, 167 de 1938. [4] Posio enunciativa o locus a partir do qual o ator social produz o seu discurso. Esse locus previamente estruturado e delimitado pelos espaos simblicos constitutivos de determinado campo social. Neste sentido, os papis sociais de advogado, promotor e juiz encontram-se, de antemo, delimitados pelas estruturas simblicas do campo jurdico. E as respectivas produes discursivas desses atores so determinadas pelas posies enunciativas que cada qual ocupa nesse campo. [5] Neste mesmo sentido, de que os valores morais esto no centro dos debates que ocorrem no plenrio do jri, ver: Corra, 1983; Lorea, 2003; Schritzmeyer, 2001; Adorno, 1994. [6] Este caso teve uma ampla divulgao pela mdia; h, inclusive, um documentrio intitulado nibus 174. Trata-se de um episdio no qual o assaltante de nome Sandro, tomou como refm um grupo de passageiros de um nibus da linha 174, aps esse nibus ter parado em frete de uma cabine da polcia militar no bairro do Humait, cidade do Rio de Janeiro. O nibus foi cercado por policiais militares; o Batalho de Operaes Especiais da PM foi chamado e, uma multido se aglomerou para ver o desfecho do drama. Aps vrias horas de muita tenso e negociaes frustradas no sentido de Sandro se entregar este ameaava os passageiros com uma arma de fogo -, o seqestrador pega uma refm e desce do nibus. Neste momento com o Sandro j fora do nibus um policial militar se aproxima e efetua um disparo com arma de fogo com a inteno de alvejar mortalmente Sandro, mas o policial erra o disparo e, acidentalmente, atinge a refm Geisa no rosto. Neste contexto, Sandro efetua trs disparos com sua arma nas costas de Geisa, matando-a. Alguns policias imobilizam Sandro e o levam para a viatura da PM. Sandro colocado na parte traseira da viatura policial, imobilizado por trs policiais militares dentre eles o capito Soares e levado para um hospital. Quando Sandro chegou ao hospital, o mdico plantonista constatou que Sandro estava morto. Foi aberto um inqurito policial para apurar a morte de Sandro e, segundo o laudo do Instituto Mdico Legal, Sandro morreu de asfixia provocada por estrangulamento. Com base nas informaes desse inqurito, o representante do Ministrio Pblico denunciou os policiais militares que conduziram Sandro at o hospital, pela prtica de homicdio doloso motivado pelo sentimento de vingana. Os rus os policiais militares foram julgados pelo IV Tribunal do Jri da comarca central do Rio de Janeiro e absolvidos pelos jurados que adotaram a tese da defesa no sentido da inocorrncia de constrio do pescoo de Sandro por parte do

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capito da PM, mas, sim, que Sandro, por estar muito agitado, enforcou-se na chave de brao dada pelo policial com a nica inteno de cont-lo.

[7] Entrevista concedida em 20/02/03. [8] Conversa informal nos corredores do Frum, em maro de 2004. [9] Entrevista concedida em 27/05/2005. [10] Alterei o nome para no identificar o advogado. [11] Instituto de internao de menores infratores. [12] Processo nmero 1988.001.055595-6. Ru: Geraldo Ferreira da Silva. [13] Discurso do advogado em plenrio. [14] Entrevista concedida em 23/06/2005. [15] Segundo Rangel (2007), a incomunicabilidade e a ausncia de fundamentao das decises dos jurados (previstas no Cdigo de Processo Penal) deveriam ser extirpadas do direito positivo brasileiro medida que violam importantes princpios da Constituio Federal de 1988. Para uma melhor compreenso dessa temtica, remeto o leitor para o captulo 5 (A Constituio Dirigente) da obra desse autor intitulada Tribunal do Jri: vises lingstica, histrica, social e dogmtica, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. [16] Site: www.tj.rj.gov.br. Acesso em 04/11/2005. [17] Roberto Lyra. Introduo ao livro o jri sobre todos os aspectos, de autoria de Rui Barbosa, p.15-16.

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