José do Rio, Religioes do Rio

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As Religiões no Rio João do Rio As Religiões no Rio - João do Rio - Editora Nova Aguilar - Coleção Biblioteca Manancial n.º 47 - 1976 ÍNDICE No Mundo dos Feitiços A Igreja Positivista Os Maronistas Os Fisiólatras O Movimento Evangélico O Satanismo As Sacerdotisas do Futuro A Nova Jerusalém O Culto do Mar O Espiritismo entre os Sinceros Os Exploradores As Sinagogas AS RELIGIÕES NO RIO Cecy est un livre de bonne foy. MONTAIGNE A MANUEL JORGE DE OLIVEIRA ROCHA meu amigo. A religião? Um misterioso sentimento, misto de terror e de esperança, a simbolização lúgubre ou alegre de um poder que não temos e almejamos ter, o desconhecido avassalador, o equívoco, o medo, a perversidade. O Rio, como todas as cidades nestes tempos de irreverência, tem em cada rua um templo e em cada homem uma crença diversa. Ao ler os grandes diários, imagina a gente que está num pais essencialmente católico, onde alguns matemáticos são positivistas. Entretanto, a cidade pulula de religiões. Basta parar em qualquer esquina, interrogar. A diversidade dos cultos espantar-vos-á. São swendeborgeanos, pagãos literários, fisiólatras, defensores de dogmas exóticos, autores de reformas da Vida, reveladores do Futuro, amantes do Diabo, bebedores de sangue, descendentes da rainha de Sabá, judeus, cismáticos, espíritas, babalaôs de Lagos, mulheres que respeitam o oceano, todos os cultos, todas as crenças, todas as forças do Susto. Quem através da calma do semblante lhes adivinhará as tragédias da alma? Quem no seu andar tranqüilo de homens sem paixões irá descobrir os reveladores de ritos novos, os mágicos, os nevrópatas, os delirantes, os possuídos de Satanás, os mistagogos da Morte, do Mar e do Arco-Íris? Quem poderá perceber, ao conversar com estas criaturas, a luta fratricida por causa da interpretação da Bíblia, a luta que faz mil religiões à espera de Jesus, cuja reaparição está marcada para qualquer destes dias, e à espera do Anti-Cristo, que talvez ande por aí? Quem imaginará cavalheiros distintos em intimidade com as almas desencarnadas, quem desvendará a conversa com os anjos nas chombergas fétidas? Eles vão por aí, papas, profetas, crentes e reveladores, orgulhosos cada um do seu culto, o único que é a Verdade. Falai-lhes boamente, sem a tenção de agredi-los, e eles se confessarão - por que só uma coisa é impossível ao homem: enganar o seu semelhante, na fé. Foi o que fiz na reportagem a que a Gazeta de Notícias emprestou uma tão larga

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José do Rio, Religioes do Rio

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  • As Religies no Rio

    Joo do Rio

    As Religies no Rio - Joo do Rio - Editora Nova Aguilar - Coleo Biblioteca Manancial n. 47 -1976

    NDICE

    No Mundo dos FeitiosA Igreja PositivistaOs MaronistasOs FisilatrasO Movimento EvanglicoO SatanismoAs Sacerdotisas do FuturoA Nova JerusalmO Culto do MarO Espiritismo entre os SincerosOs ExploradoresAs Sinagogas

    AS RELIGIES NO RIO

    Cecy est un livre de bonne foy.

    MONTAIGNE

    A

    MANUEL JORGE DE OLIVEIRA ROCHA

    meu amigo.

    A religio? Um misterioso sentimento, misto de terror e de esperana, a simbolizaolgubre ou alegre de um poder que no temos e almejamos ter, o desconhecido avassalador, oequvoco, o medo, a perversidade.

    O Rio, como todas as cidades nestes tempos de irreverncia, tem em cada rua um templo eem cada homem uma crena diversa.

    Ao ler os grandes dirios, imagina a gente que est num pais essencialmente catlico, ondealguns matemticos so positivistas. Entretanto, a cidade pulula de religies. Basta parar emqualquer esquina, interrogar. A diversidade dos cultos espantar-vos-. So swendeborgeanos,pagos literrios, fisilatras, defensores de dogmas exticos, autores de reformas da Vida,reveladores do Futuro, amantes do Diabo, bebedores de sangue, descendentes da rainha deSab, judeus, cismticos, espritas, babalas de Lagos, mulheres que respeitam o oceano,todos os cultos, todas as crenas, todas as foras do Susto. Quem atravs da calma dosemblante lhes adivinhar as tragdias da alma? Quem no seu andar tranqilo de homens sempaixes ir descobrir os reveladores de ritos novos, os mgicos, os nevrpatas, os delirantes, ospossudos de Satans, os mistagogos da Morte, do Mar e do Arco-ris? Quem poder perceber,ao conversar com estas criaturas, a luta fratricida por causa da interpretao da Bblia, a lutaque faz mil religies espera de Jesus, cuja reapario est marcada para qualquer destesdias, e espera do Anti-Cristo, que talvez ande por a? Quem imaginar cavalheiros distintosem intimidade com as almas desencarnadas, quem desvendar a conversa com os anjos naschombergas ftidas?

    Eles vo por a, papas, profetas, crentes e reveladores, orgulhosos cada um do seu culto, onico que a Verdade. Falai-lhes boamente, sem a teno de agredi-los, e eles se confessaro- por que s uma coisa impossvel ao homem: enganar o seu semelhante, na f.

    Foi o que fiz na reportagem a que a Gazeta de Notcias emprestou uma to larga

  • hospitalidade e um to grande rudo; foi este o meu esforo: levantar um pouco o mistrio dascrenas nesta cidade

    No um trabalho completo. Longe disso. Cada uma dessas religies daria farta messepara um volume de revelaes. Eu apenas entrevi a bondade, o mal e o bizarro dos cultos, masto convencido e com tal desejo de ser exato que bem pode servir de epgrafe a este livro afrase de Montaigne:

    Cecy est un livre de bonne foy.

    Joo do Rio

    NO MUNDO DOS FEITIOS

    OS FEITICEIROS

    Antnio como aqueles adolescentes africanos de que fala o escritor ingls. Osadolescentes sabiam dos deuses catlicos e dos seus prprios deuses, mas s veneravam ousque e o schilling. Antnio conhece muito bem N. S. das Dores, est familiarizado com osorixlas da frica, mas s respeita o papel-moeda e o vinho do Porto. Graas a esses doispoderosos agentes, gozei da intimidade de Antnio, negro inteligente e vivaz; graas a Antnio,conheci as casas das ruas de So Diogo, Baro de S. Felix, Hospcio, Nncio e da Amrica,onde se realizam os candombls e vivem os pais-de-santo. E rendi graas a Deus, porque noh decerto, em toda a cidade, meio to interessante.

    Vai V.S. admirar muita coisa! - dizia Antnio a sorrir; e dizia a verdade.

    Da grande quantidade de escravos africanos vindos para o Rio no tempo do Brasil colnia edo Brasil monarquia, restam uns mil negros. So todos das pequenas naes do interior dafrica, pertencem ao iges, oi, eb, aboum, hauss, itaqua, ou se consideram filhos dosibouam, ixu dos gge e dos cambindas. Alguns ricos mandam a descendncia brasileira frica para estudar a religio, outros deixam como dote aos filhos cruzados daqui os mistrios eas feitiarias. Todos, porm, falam entre si um idioma comum: - o eub.

    Antnio, que estudou em Lagos, dizia:

    - O eub para os africanos como o ingls para os povos civilizados. Quem fala o eubpode atravessar a frica e viver entre os pretos do Rio. S os cambindas ignoram o eub, masesses ignoram at a prpria lngua, que muito difcil. Quando os cambindas falam, misturamtodas as lnguas... Agora os orixs e os alufs s falam o eub.

    - Orixs, alufs? - fiz eu, admirado.

    - So duas religies inteiramente diversas. Vai ver.

    Com efeito. Os negros africanos dividem-se em duas grandes crenas: os orixs e osalufs.

    Os orixs, em maior nmero, so os mais complicados e os mais animistas. Litlatras efitlatras, tm um enorme arsenal de santos, confundem os santos catlicos com os seussantos, e vivem a vida dupla, encontrando em cada pedra, em cada casco de tartaruga, em cadaerva, uma alma e um esprito. Essa espcie de politesmo brbaro tem divindades que semanifestam e divindades invisveis. Os negros guardam a idia de um Deus absoluto como oDeus catlico: Orixa-alm. A lista dos santos infindvel. H o orixal, que o mais velho,Axum, a me dgua doce, Ie-man- j, a sereia, Exu, o diabo, que anda sempre detrs da porta,Sapanam, o Santssimo Sacramento dos catlicos, o Iroc, cuja apario se faz na rvoresagrada da gameleira, o Gunoc, tremendo e grande, o Ogum, S. Jorge ou o Deus da guerra, aDad, a Orainha, que so invisveis, e muitos outros, como o santo do trovo e o santo daservas. A juntar a essa coleo complicada, tm os negros ainda os espritos maus e os heledsou anjos da guarda.

    natural que para corresponder hierarquia celeste seja necessria uma hierarquiaeclesistica. As criaturas vivem em poder do invisvel e s quem tem estudos e preparo podesaber o que os santos querem. H por isso grande quantidade de autoridades religiosas. svezes encontramos nas ruas negros retintos que mastigam sem cessar. So babalas,matemticos geniais, sabedores dos segredos santos e do futuro da gente; so babs queatiram o endilogum; so babaloxs, pais-de-santos venerveis. Nos lanhos da cara puseram op da salvao e na boca tm sempre o obi, noz de cola, boa para o estmago e asseguradoradas pragas.

  • Antnio, que conversava dos progressos da magia na frica, disse-me um dia que eracomo Renan e Shakespeare: vivia na dvida. Isso no o impedia de acreditar nas pragas e notrabalho que os santos africanos do.

    - V. s. no imagina! Santo tem a festa anual, aparece de repente pessoa em que se quermeter e esta obrigada logo a fazer festa; santo comparece ao juramento das Iau e passafora, do Carnaval Semana Santa; e logo quer mais festa... S descansa mesmo de fevereiro aabril.

    - Esto veraneando.

    - No carnaval os negros fazem eb.

    - Que vem a ser eb?

    - Eb despacho. Os santos vo todos para o campo e ficam l descansando.

    - Talvez estejam em Petrpolis.

    - No. Santo deixa a cidade pelo mato, est mesmo entre as ervas.

    - Mas quais so os cargos religiosos?

    - H os babalas, os aoba, os abor, grau mximo, as mes-pequenas, os ogan, asagibonam...

    A lista como a dos santos, muito comprida, e cada um desses personagens representapapel distinto nos sacrifcios, nos candombls e nas feitiarias. Antnio mostra-me os maisnotveis, os pais-de-santo: Oluou, Eruosaim, Alamijo, Ad-Oi, os babalas Emdio, Olo-tet,que significa treme-treme, e um bando de feiticeiros: Torquato requip ou fogo pra-chuva,Obitai, Vag, Apotij, Veridiana, Crioula Capito, Rosenda, Nosuanan, a clebre Chica deVav, que um poltico economista protege...

    - A Chica tem proteo poltica?

    - Ora se tem! Mas que pensa o senhor? H homens importantes que devem quantiasavultadas aos alufs e babalas que so grau 32 da Maonaria.

    Dessa gente, poucos lem. Outrora ainda havia sbios que destrinavam o livro sagrado esabiam porque Exu mau - tudo direitinho e claro como gua. Hoje a aprendizagem feita deouvido. O africano egosta pai-de-santo, ensina ao abor, as iau quando lhes entrega anavalha, de modo que no s a arte perde muitas das suas fases curiosas como as histrias soadulteradas e esquecidas.

    - Tambm agora no preciso saber o Sa Hauin. Negro s olhando e sabendo o nome dapessoa pode fazer mal, diz Antnio.

    Os orixs so em geral polgamos. Nessas casas das ruas centrais de uma grande cidade,h homens que vivem rodeados de mulheres, e cada noite, como nos sertes da frica, o leitodo babaloxs ocupado por uma das esposas. No h cimes, a mais velha anuncia quem adeve substituir, e todas trabalham para a tranqilidade do pai. Olo-Tet, um velho que temnoventa anos no mnimo, ainda conserva a companheira nas delcias do himeneu, e os maissacudidos transformam as filhas-de-santo em huris de serralhos.

    Os aluls tm um rito diverso. So maometanos com um fundo de misticismo. Quase todosdo para estudar a religio, e os prprios malandros que lhes usurpam o ttulo sabem mais queos orixs.

    Logo depois do suma ou batismo e da circunciso ou kola, os alufs habilitam-se leiturado Alcoro. A sua obrigao o kissium, a prece. Rezam ao tomar banho, lavando a ponta dosdedos, os ps e o nariz, rezam de manh, rezam ao pr-do-sol. Eu os vi, retintos, com a carareluzente entre as barbas brancas, fazendo o aluma gariba, quando o crescente lunar apareciano cu. Para essas preces, vestem o abad, uma tnica branca de mangas perdidas, enterramna cabea um fil vermelho, donde pende uma faixa branca, e, noite, o kissium continua,sentados eles em pele de carneiro ou de tigre.

    - S os alufs ricos sentam-se em peles de tigre, diz-nos Antnio.

    Essas criaturas contam noite o rosrio ou tessub, tm o preceito de no comer carne deporco, escrevem as oraes numas taboas, as at, com tinta feita de arroz queimado, e jejuamcomo os judeus quarenta dias a fio, s tomando refeies de madrugada e ao pr-do-sol.

    Gente de cerimonial, depois do assumy, no h festa mais importante como a do ramadan,em que trocam o sak ou presentes mtuos. Tanto a sua administrao religiosa como ajudiciria esto por inteiro independentes da terra em que vivem.

  • H em vrias tribos vigrios gerais ou ladamos, obedecendo ao lemano, o bispo, e a partejudiciria est a cargo dos alikaly, Juizes, sagabamo, imediatos de juizes, e assivaji, mestre decerimnias.

    Para ser aluf preciso grande estudo, e esses pretos que se fingem srios, que se casamcom gravidade, no deixam tambm de fazer amur com trs e quatro mulheres.

    - Quando o jovem aluf termina o seu exame, os outros danam o opasuma e conduzem oiniciado a cavalo pelas ruas, para significar o triunfo.

    - Mas essas passeatas so impossveis aqui, brado eu.

    - No so. As cerimnias realizam-se sempre nas estaes dos subrbios, em lugaresafastados, e os alufs, vestem as suas roupas brancas e o seu gorro vermelho.

    Naturalmente Antnio fez-me conhecer os alufs:

    Alikali; o lemano atual, um preto de pernas tortas, morador rua Baro de S. Flix, queincute respeito e terror; o Chico Mina, cuja filha estuda violino, Alufapo, Oj, Abacajeb, Ginj,Man, brasileiro de nascimento, e outros muitos.

    Os alufs no gostam da gente de santo a que chamam auauad-chum; a gente de santodespreza os bichos que no comem porco, tratando-os de mals. Mas acham-se todosrelacionados pela lngua, com costumes exteriores mais ou menos idnticos e vivendo dafeitiaria. Os orixs fazem sacrifcios, afogam os santos em sangue, do-lhes comidas, enfeitese azeite-de-dend.

    Os alufs, superiores, apesar da proibio da crena, usam dos aligenum, espritosdiablicos chamados para o bem e o mal, num livro de sortes marcado com tinta vermelha ealguns, os maiores, como Alikali, fazem at idams ou as grandes mgicas, em que a umapalavra cabalstica a chuva deixa de cair e obis aparecem em pratos vazios.

    Antes de estudar os feitios, as prticas por que passam as iau nas camarinhas e amaneira dos cultos, quis ter uma impresso vaga das casas e dos homens.

    Antnio levou-me primeiro residncia de um feiticeiro aluf. Pelas mesas, livros comescrituras complicadas, ervas, coelhos, esteiras, um calamo de bambu finssimo.

    Da porta o guia gritou:

    - Salamaleco.

    Ningum respondeu.

    - Salamaleco!

    - Maneco Lassalama!

    No canto da sala, sentado numa pele de carneiro, um preto desfiava o rosrio, com os olhosfixos no alto.

    - No possvel falar agora. Ele est rezando e no quer conversar. Samos, e logo na ruaencontramos o Xico Mina. Este veste, como qualquer de ns, ternos claros e usa suascortadas rentes. J o conhecia de o ver nos cafs concorridos, conversando com algunsdeputados. Quando nos viu, passou rpido.

    - Est com medo de perguntas. Chico gosta de fingir.

    Entretanto, no trajeto que fizemos do Largo da Carioca praa da Aclamao,encontramos, a fora um esverdeado discpulo de Alikali, Omancheo, como eles dizem, duasmes-de-santo, um velho babala e dois babaloxs.

    Ns amos casa do velho matemtico Olo-Tet.

    As casas dos minas conservam a sua aparncia de outrora, mas esto cheias de negrosbaianos e de mulatos. So quase sempre rtulas lobregas, onde vivem com o personagemprincipal cinco, seis e mais pessoas. Nas salas, mveis quebrados e sujos, esteirinhas, bancos;por cima das mesas, terrinas, pucarinhos de gua, chapus de palha, ervas, pastas de oleadoonde se guarda o opel; nas paredes, atabaques, vesturios esquisitos, vidros; e no quintal,quase sempre jabotis, galinhas pretas, galos e cabritos.

    H na atmosfera um cheiro carregado de azeite-de-dend, pimenta-da-costa e catinga. Ospretos falam da falta de trabalho, fumando grossos cigarros de palha. No fosse a credulidade,a vida ser-lhes-ia difcil, porque em cada um dos seus gestos revela-se uma lombeira secular.

    Alguns velhos passam a vida sentados, a dormitar.

    - Est pensando! - dizem os outros.

  • De repente, os pobres velhos ingnuos acordam, com um sonho mais forte nessa confusaexistncia de pedras animadas e ervas com esprito.

    - Xang diz que eu tenho de fazer sacrifcio!

    Xang, o deus do trovo, ordenou no sono, e o opel, feito de cascas de tartaruga ebatizado com sangue, cai na mesa enodoada para dizer com que sacrifcio se contenta Xang.

    Outros, os mais malandros, passam a existncia deitados no sof. As filhas-de-santo,prostitutas algumas, concorrem para lhes descansar a existncia, a gente que as vai procurard-lhes o suprfluo. A preocupao destes saber mais coisas, os feitios desconhecidos, equando entra o que sabe todos os mistrios, ajoelham assustados e beijam-lhe a mo,soluando:

    - Diz como se faz a cantiga e eu te dou todo o meu dinheiro!

    tarde, chegam as mulheres, e os que por acaso trabalham em alguma pedreira. Osfeiticeiros conversam de casos, criticam-se uns aos outros, falam com intimidade das figurasmais salientes, do pas, do imperador, de que quase todos tm o retrato, de Cotegipe, do barode Mamanguape, dos presidentes da Repblica.

    As mulheres ouvem mastigando obi e cantando melopas sinistramente doces. Essasmelopas so quase sempre as preces, as evocaes, e repetem sem modalidade, por tempoindeterminado, a mesma frase.

    S pelos candombls ou sesses de grande feitiaria, em que os babalas esto atentos eos pais-de-santo trabalham dia e noite nas camarinhas ou fazendo evocaes diante dosfogareiros com o tessub na mo, que a vida dessa gente deixa a sua calma amolecida deacass com azeite-de-dend.

    Quando entramos na casa de Olo-Tet, o matemtico macrbio e sensual, uma velhamina, que cantava sonambulicamente, parou de repente.

    - Pode continuar.

    Ela disse qualquer coisa de incompreensvel.

    - Est perguntando se o senhor lhe d dois tostes, ensina-nos Antnio.

    - No h dvida.

    A preta escancara a boca, e, batendo as mos, pe-se a cantar:

    Baba ounl, xocotm, o ill.

    - Que vem a ser isso?

    - o final das festas, quando o santo vai embora. Quer dizer: papai j foi, j fez, j acabou;vai embora!

    Eu olhava a rstia estreita do quintal onde dormiam jabotis.

    - O jaboti um animal sagrado?

    - No, diz-nos o sbio Antnio. Cada santo gosta do seu animal. Xang, por exemplo, comejaboti, galo e carneiro. Abaluai, pai de varola, s gosta de cabrito. Os pais-de-santo soobrigados pela sua qualidade a fazer criao de bichos para vender e t-los sempre disposio quando precisam de sacrifcio. O jaboti apenas um bicho que d felicidade. Osacrifcio simples. Lava-se bem, s vezes at com champanha, a pedra que tem o santo epe-se dentro da terrina. O sangue do animal escorre; algumas das partes so levadas paraonde o santo diz e o resto a roda come.

    - Mas h sacrifcios maiores para fazer mal s pessoas?

    - H! para esses at se matam bois.

    - Feitio pega sempre, sentencia o ilustre Olo-Tet, com a sua prtica venervel. No hcorpo-fechado. S o que tem que uns custam mais. Feitio para pegar em preto um instante,para mulato j custa, e ento para cair em cima de branco a gente sua at no poder mais. Maspega sempre. Por isso preto usa sempre o assiqui, a cobertura, o breve, e no deixa de mastigarobi, noz de cola preservativa.

    Para mim, homem amvel, presentes alguns companheiros seus, Olo-Tet tirou o opelque h muitos anos foi batizado e prognosticou o meu futuro.

    Este futuro vai ser interessante. Segundo as cascas de tartaruga que se voltavam sempreaos pares, serei felicssimo, ascendendo com a rapidez dos automveis a escada de Jac dasposies felizes. verdade que um inimigozinho malandro pretende perder-me. Eu, porm, oesmagarei, viajando sempre com cargos elevados e sendo admirado.

    Lucas de Lima

  • Abracei respeitoso o matemtico que resolvera o quadrado da hipotenusa do desconhecido.

    - Pe dinheiro aqui - fez ele.

    Dei-lhe as notas. Com as mos trmulas, o sbio a apalpou longamente.

    - Pega agora nesta pedra e nesta concha. Pede o que tiveres vontade concha, dizendosim, e pedra dizendo no.

    Assim fiz. O opel caiu de novo no encerado. A concha estava na mo direita de Antnio, apedra na esquerda, e Olo tremia falando ao santo, com os negros dedos trmulos no ar.

    - Abra a mo direita! ordenou.

    Era a concha.

    - Se acontecer, ossumc d presente a Olo?

    - Mas decerto.

    Ele correu a consultar o opel. Depois sorriu.

    - D, sim, santo diz que d. - E receitou-me os preservativos com que eu serei invulnervel.

    Tambm eu sorria. Pobre velho malandro e ingnuo! Eu perguntara apenas,modestamente, concha do futuro se seria imperador da China... Enquanto isso, a negra dacantiga entoava outra mais alegre, com grande gestos e risos.

    O lo-r, xa-la-rCamur-ridO lo-r, xa-la-rCamur-rid

    - E esta, o que quer dizer?

    - uma cantiga de Orixal. Significa: O homem do dinheiro est a. Vamos ergu-lo...

    Apertei-lhe a mo jubiloso e reconhecido. Na aluso da ode selvagem a lisonja vivia oencanto da sua vida eterna...

    AS IAU

    A recordao de um fato triste - a morte de uma rapariga que fora Bahia fazer-santo -deu-me nimo e curiosidade para estudar um dos mais brbaros e inexplicveis costumes dosfetiches do Rio.

    Fazer-santo a renda direta dos babaloxs, mas ser filha-de-santo sacrificar a liberdade,escravizar-se, sofrer, delirar.

    Os transeuntes honestos, que passeiam na rua com indiferena, no imaginam sequer ascenas de Salpetrire africana passadas por trs das rtulas sujas.

    As iau abundam nesta Babel da crena, cruzam-se com a gente diariamente, sorriem aossoldados brios nos prostbulos baratos, mercadejam doces nas praas, s portas dosestabelecimentos comerciais, fornecem ao Hospcio a sua quota de loucura, propagam ahisteria entre as senhoras honestas e as cocottes, exploram e so exploradas, vivem dacrendice e alimentam o caftismo inconsciente. As iau, so as demonacas e as grandesfarsistas da raa preta, as obsedadas e as delirantes. A histria de cada uma delas, quando no uma sinistra pantomima de lcool e mancebia, um tecido de fatos cruis, anormais, inditos,feitos de invisvel, de sangue e de morte. Nas iau est a base do culto africano. Todas elasusam sinais exteriores do santo, as vestimentas simblicas, os rosrios e os colares de contascom as cores preferidas da divindade a que pertencem; todas elas esto ligadas ao ritoselvagem por mistrios que as obrigam a gastar a vida em festejos, a sentir o santo e a respeitaro pai-de-santo.

    Fazer-santo colocar-se sobre o patrocnio de um fetiche qualquer, ser batizado por ele,e por espontnea vontade dele. As negras, insensveis a quase todas as delicadezas queproduzem ataques na haute-gomme, so, entretanto, de uma impressionabilidade mrbida portudo quanto abuso. Da convivncia com os maiores nesse horizonte de chumbo, deatmosfera de feitiarias e pavores, nasce-lhes a necessidade iniludvel de fazer tambm o santo;e no possvel demov-las, umas porque a miragem da felicidade as cega, outras porque j

  • esto votadas loucura e ao alcoolismo. Entre as tribos do interior da frica, h o sacrifcio doagamum, em que se esmagam vivas as crianas de seis meses. Ao Moloch das vesnias a raapreta sacrifica aqui uma quantidade assustadora de homens e de mulheres.

    Antnio, que me mostrara a maior parte das casas-de-santo, disse-me um dia:

    - Vou lev-lo hoje a ver o 16. dia de uma iau.

    Para que uma mulher saiba a vinda do santo, basta encontrar na rua um fetiche qualquer,pedra, pedao de ferro ou concha do mar. De tal maneira esto sugestionadas, que vo logoaos babalas indagar do futuro. Os babalas, a troco de dinheiro, jogam o edilogum, os bzios,e servem-se tambm por aproximao dos signos do zodaco.

    - O ms do Capricrnio - diz Antnio - compreende todos os animais parecidos, a cabra, ocarneiro, o cabrito, e segundo o clculo do dia e o animal preferido pelo santo, os matemticosdescobrem quem .

    Quando j sabe o santo, babala atira a sorte no obel para perguntar se de dever faz-lo. A natureza mesmo do culto, a necessidade de conservar as cerimnias e a avidez de ganhoda prpria indolncia fazem o sbio obter uma resposta afirmativa.

    Algumas criaturas pauprrimas batem ento nas faces e pedem:

    - Eu quero ter o santo assentado!

    mais fcil. Os pais-de-santo do-lhe ervas, uma pedra bem lavada, em que est o santo,um rosrio de contas que se usa no pescoo depois de purificado o corpo por um banho.Nessas ocasies o vadio invisvel contenta-se com o eb, despacho, algumas comedorias comazeite-de-dend, ervas e sangue, deixadas na encruzilhada dos caminhos.

    Quase sempre, porm, as vitimas sujeitam-se, e no raro, mesmo quando so pobres ospais, a aceitarem o trabalho com a condio de as vender em leilo ou serem servidos por elasdurante longo tempo. Como as despesas so grandes, as futuras iau levam meses fazendoeconomias, poupando, sacrificando-se. E de obrigao levar comidas, presentes, dinheiro aopai-de-santo para a sua estada no yl ache--yl-orix, estada que regula de 12 a 30 dias.

    - Isto acontece s para as iau dos orixs, - diz Antnio.

    - H outras?

    - H as dos negros cambindas. Tambm essa gente ordinria, copia os processos dosoutros e est de tal forma ignorante que at as cantigas das suas festas tm pedaos emportugus.

    - Mas entre os cambindas tudo diferente?

    - Mais ou menos. Olhe por exemplo os santos.

    Orixal Ganga-Zumba, Obaluaci, Cangira-Mungongo, Exu, Cubango, Orix-oco,Pombagira, Oxum, a me d'gua, Sinh Renga, Sapanam, Cargamela. E no s aos santosdos orixs que os cambindas mudam o nome, tambm aos santos das igrejas. Assim S.Benedito chamado Lingongo, S. Antnio, Verequete, N. Senhora das Dores, Sinh Samba.

    Para os cambindas serve para santo qualquer pedra, os paraleleppedos, as lascas daspedreiras e esses pretos sem-vergonha adoram a flor do girassol que simboliza a lua...

    Eu estava atnito. Positivamente Antnio achava muito inferiores os cambindas.

    - As iau?

    - As filhas-de-santo macumbas ou cambindas chegam a ter uma poro de santos de cadavez, manifestando-se na sua cabea. Sabe V.S. o que cantam eles quando a yau est com acrise?

    Maria MucanguLava roupa de sinh,Lava camisa de chita,No dela, de yay.

    - Quer ouvir outra?

  • Bumba, bumba, calunga, Tanto quebra cadeira como quebra sof Bumba, bumba, calunga.

    Houve uma pausa e Antnio concluiu:

    - Por negro cambinda que se compreende que africano foi escravo de branco.

    Cambinda burro e sem-vergonha!

    Disse e voltou narrativa da iniciao das iau.

    Antes de entrar para camarinha, a mulher, predisposta pela fixidez da ateno a todas assugestes, presta juramento de guardar o segredo do que viu, toma um banho purificador e meia-noite comea a cerimnia. A iau senta-se numa cadeira vestida de branco com o ojapertando a cintura. Todos em derredor entoam a primeira cantiga a Exu.

    Echu tiriri, l-nam bar beb.Tiriri lo-nam Echu tiriri.

    O babalox pergunta ao santo para, onde deve ir o cabelo que vai cortar futura filha, e,depois de ardente meditao, indica com aparato a ordem divina. Essas descobertas sofatalmente as mesmas no centro de uma cidade populosa como a nossa. Se o santo a med'agua doce, Oxum, o cabelo vai para a Tijuca, a Fbrica das Chitas; se I-man-ja fica na praiado Russel, em Santa Luzia; se outro santo qualquer, basta um trecho de praa em que as ruasse cruzem.

    As rezas comeam ento; o pai-de-santo molha a cabea da iau com uma composio deervas e com afiadssima navalha faz-lhe uma coroa, enquanto a roda canta triste.

    Orixal ot yau!

    Essa parte do cabelo guardada eternamente e a iau no deve saber nunca onde aguardam, porque lhe acontece desgraa. Em seguida, o lgubre barbeiro raspa-lhecircularmente o crnio, e quando a carapinha cai no alguidar, a operada j perdeu a razo.

    Babalox, lava-lhe ainda a cabea com o sangue dos animais esfaqueados pelos ogans, eas iau antigas levam-na a mudar a roupa, enquanto se preparam com ervas os cabelos doalguidar.

    Da a momentos a iniciada aparece com outros fatos, pega no alguidar e sai acompanhadadas outras, que a amparam e cantam baixo o ofertrio ao santo. Em chegando ao lugarindicado, a hipnotizada deixa a vaso, volta e recebida pelo pai, que entorna em frente portaum copo d'gua.

    A nova iau vai ento descansar, enquanto os outros rezam na camarinha em frente aoestado-maior.

    - O estado-maior? - indago eu, assustado com o exrcito misterioso. O estado-maior acoleo de terrinas e sopeiras colocadas numa espcie de prateleiras de bazar. Nas sopeirasesto todos os santos pequenos e grandes. H desde as terrinas de granito s de porcelanascom frisos de ouro, rodeando armaes de ferro, onde se guarda o Ogum, o So Jorge dafrica.

    No dia seguinte cerimnia, a iau lava-se e vai presena do pai para ver se temespritos contrrios.

    Se os espritos existem, o pai poderoso afasta a influncia nefasta por meio de ebs eogunguns. A iau obrigada a no falar a ningum: quando deseja alguma coisa, bate palmas es a ajuda nesses dias a me-pequena ou Iaque-que-r. As danas para preparo de santorealizam-se nos 1., 3., 7., 12., e no 16. dia o santo revela-se.

    - Mas que adianta isso s iau?

    - Nada. O pai-de-santo domina-as. O er ou segredo que lhe d, pode retir-lo quando lheapraz; o poder de as transformar e fazer-lhes mal est em virar o santo sempre que temvontade.

    - E quando essas criaturas morrem?

  • - Faz-se a obrigao raspando um pouco de cabelo para saber se o santo tambm vai, e obabalox procura um colega para lhe tirar a mo do finado.

    As cerimnias das iau renovam-se de resto de seis em seis meses, de ano em ano, at morte. So elas que em grande parte sustentam o culto.

    Quando a iau no tem dinheiro, ou o pai vende-a em leilo ou a guarda como serva. Destaconvivncia que algumas chegam a ser mes-de-santo, para o que basta dar-lhe o babaloxuma navalha.

    - E h muita me-de-santo?

    - Umas cinqenta, contando com as falsas. S agora lembro-me de vrias: a Josefa, a CaluBoneca, a Henriqueta da Praia, a Maria Marota, que vende porta do Glacier, a Maria doBonfim, a Martinha da rua do Regente, a Zebinda, a Chica de Vav, a Aminam p-de-boi, aMaria Luiza, que tambm sedutora de senhoras honestas, a Flora Coco Podre, a Dudu doSacramento, a Bitai, que est agora guiando seis ou oito filhas, a Assiata.

    Esta de fora. No tem navalha, finge de me-de-santo e trabalha com trs ogans falsos- Joo Rato, um moleque chamado Macrio e certo cabra pernstico, o Germano. A Assiatamora na rua da Alfndega, 304. Ainda outro dia houve l um escndalo dos diabos, porque aAssiata meteu na festa de Iemanj algumas iau feitas por ela. Os pais-de-santo protestaram, anegra danou, e teve que pagar a multa marcada pelo santo. Essa uma das feiticeiras deembromao.

    Nesse mesmo dia Antnio veio buscar-me tarde.

    - A casa a que vai V.S. de um grande feiticeiro; ver se no h fatos verdadeiros.

    Quando chegamos, a sala estava enfeitada. Em derredor sentavam-se muitos negros enegras mastigando olob, ou cola amargosa, com as roupas lavadas e as faces reluzentes. Aum canto, os msicos, fisionomias estranhas, faziam soar, com sacolejos compassados, oxequere, os atabaques e ubats, com movimentos de braos desvairadamente regulares. Nose respirava bem.

    A cachaa, circulando sem cessar, ensangentava os olhos amarelos dos assistentes.

    - As vezes tudo mentira, custa de cachaa e fingimento - diz Antnio. Quando o santono vem, o pai fica desmoralizado. Mas aqui de verdade...

    Olhei o clebre pai-de-santo, cujas filhas so sem conta. Estava sentado porta dacamarinha, mas levantou-se logo, e a negra iniciada entrou, de camisola branca, com um lequede metal chocalhante. Fula, com uma extraordinria fadiga nos membros lassos, os seus olhosbrilhavam satnicos sob o capacete de pinturas bizarras com que lhe tinham brochado o crnio.Diante do pai estirou-se a fio comprido, bateu com as faces no assoalho, ajoelhou e beijou-lhe amo. Babalox fez um gesto de bno, e ela foi, rojou-se de novo diante de outras pessoas. Osom do agog arrastou no ar os primeiros batuques e os arranhados do xequer. A negraergueu-se e, estendendo as mos para um e para outro lado, comeou a traar passos, sorrindoidiotamente. S ento notei que tinha na cabea uma esquisita espcie de cone.

    - o ado-ch, que faz vir o santo - explica Antnio. - feito com sangue e ervas. Se o ado-ch cai, santo no vem.

    A negra, parecia aos poucos animar-se, sacudindo o leque de metal chocalhante.

    Em derredor, a msica acompanhava as cantigas, que repetiam indefinidamente a mesmafrase.

    As dana dessas cerimnias mais ou menos precipitada, mas sem os pulos satnicos dosCafres e a vertigem diablica dos negros da Luisiania. simples, contnua e insistente,horrendamente insistente. Os passos constantes so o aluj, em roda da casa, dando com asmos para a direita e para a esquerda, e o jqued, em que ao compasso dos atabaques, comos ps juntos, os corpos se quebram aos poucos em remexidos sinistros. No sei se oenervante som da msica destilando aos poucos desespero, se a cachaa, se o exerccio, o fato que, em pouco, a iau parecia reanimar-se, perder a fadiga numa raiva de louca. De cadaxequex-xequex que a mo de um negro sacudia no ar, vinha um espicaamento de urtiga,das bocas cusparinhentas dos assistentes escorria a alucinao. Aos poucos, outros negros,no podendo mais, saltaram tambm na dana, e foi ento entre as vozes, as palmas e osinstrumentos que repetiam no mesmo compasso o mesmo som, uma teoria de cara bbedascabriolando precedidas de uma cabea colorida que esgareiava lugubremente. A loucurapropagou-se. No meio do pandemnio vejo surgir o babalox com um desses vasos furados emque se assam castanhas, cheio de brasas.

  • - Que vai ele fazer?

    - Cala, cala... o pai, o pai grande - balbucia Antnio.

    As cantigas redobram com um furor que no se apressa. So como uma nsia dedesesperado essas cantigas, como a agonia de um mesmo gesto arrancando dos olhos amesma lmina de faca, so atrozes! O babalox coloca o cangiro ardente na cabea da iau,que no cessa de danar delirante, insensvel, e, alteando o brao com um gesto dominador eum sorriso que lhe prende o beio aos ouvidos, entorna nas brasas fumegantes um alguidarcheio de azeite-de-dend.

    Ouve-se o chiar do azeite nas chamas, a negra, bem no meio da sala, sacoleja-se numjequed lancinante, e pela sua cara suada, do cangiro ardente, e que no lhe queima a pele,escorrem fios amarelos de azeite...

    Ie-man-j at cua.

    continuava a turba.

    - No queimou, no queimou, ele grande - fez Antnio.

    Eu abrira os olhos para ver, para sentir bem o mistrio da inaudita selvageria. Havia umahora, a negra danava sem parar; pela face o dend quente escorria benfico aos santos. Derepente, porm ela estacou, caiu de joelhos, deu um grande grito.

    - Emim oi bonmim'. - Bradou.

    - o nome dela, o santo disse pela sua boca o nome que vai ter.

    A sala rebentou num delrio infernal. O babalox gritava, com os olhos arregalados,palavras guturais.

    - Que diz ele?

    - Que grande, que vejam como grande!

    Criaturas rojavam-se aos ps do pai, beijando-lhes os dedos, negras uivavam, com asmos empoladas de bater palmas; dois ou trs pretos aos sons dos xequers sacudiam-se emdanas com o santo, e a iau revirava os olhos, idiota, como se acordasse de uma grande eestranha molstia.

    - Que vai ela fazer agora, Deus de misericrdia! - murmurei saindo.

    - Vai trabalhar, pagar no fim de trs meses a sua obrigao, ochu meta, dar dinheiro a pai-de-santo, ganhar dinheiro...

    - Sempre o dinheiro! - fiz eu olhando a velha casaria.

    Antnio parou e disse:

    - No se engana V.S.

    E limpando o suor do rosto, o negro concluiu com esta reflexo profunda:

    - Neste mundo, nem os espritos fazem qualquer coisa sem dinheiro e sem sacrifcio!

    Fomos pela rua estreita com a viso sinistra da pobre mrtir aos pulos, dessa cabeapintada, entre os chocalhos e os atabaques, que danava e gritava horrendamente...

    O FEITIO

    Ns dependemos do Feitio.

    No um paradoxo, a verdade de uma observao longa e dolorosa. H no Rio magosestranhos que conhecem a alquimia e os filtros encantados, como nas mgicas de teatro, hespritos que incomodam as almas para fazer os maridos incorrigveis voltarem ao tlamoconjugal, h bruxas que abalam o invisvel s pelo prazer de ligar dois corpos apaixonados, masnenhum desses homens, nenhuma dessas horrendas mulheres tem para este povo oindiscutvel valor do Feitio, do misterioso preparado dos negros.

    provvel que muita gente no acredite nem nas bruxas, nem nos magos, mas no hningum cuja vida tivesse decorrido no Rio sem uma entrada nas casas sujas onde se enroscaa indolncia malandra dos negros e das negras. todo um problema de hereditariedade epsicologia essa atrao mrbida. Os nossos ascendentes acreditaram no arsenal complicado da

  • magia da idade mdia, na pompa de uma cincia que levava forca e s fogueiras sbiosestranhos, derramando a loucura pelos campos; os nossos avs, portugueses de boa fibra,tremeram diante dos encantamentos e amuletos com que se presenteavam os reis entrediamantes e esmeraldas. Ns continuamos fetiches no fundo, como dizia o filsofo, masrojando de medo diante do Feitio africano, do Feitio importado com os escravos, e indo buscartrmulos a sorte nos antros, onde gorilas manhosos e uma scia de pretas cnicas ou histricasdesencavam o futuro entre cgados estrangulados e penas de papagaio!

    Vivi trs meses no meio dos feiticeiros, cuja vida se finge desconhecer, mas que seconhece na alucinao de uma dor ou da ambio, e julgo que seria mais interessante comopatologia social estudar, de preferncia, aos mercadores da paspalhice, os que l vo em buscade consolo.

    Vivemos na dependncia do Feitio, dessa caterva de negros e negras, de babaloxs eiau, somos ns que lhe asseguramos a existncia, com o carinho de um negociante por umaamante atriz. O Feitio o nosso vcio, o nosso gozo, a degenerao. Exige, damos-lhes;explora, deixamo-nos explorar, e, seja ele maitre-chanteur, assassino, larpio, fica sempreimpune e forte pela vida que lhe empresta o nosso dinheiro.

    Os feiticeiros formigam no Rio, espalhados por toda a cidade, do cais Estrada de SantaCruz.

    Os pretos, alufs ou orixs, degeneram o maometismo e o catolicismo no pavor dosaligenum, espritos maus, e do exu, o diabo, e a lista dos que praticam para o pblico no acabamais. Conheci s num dia a Isabel, a Leonor, a Maria do Castro, o Tintino, da rua Frei Caneca; oMiguel Pequeno, um negro que parece os anes de D. Juan de Byron; o Antnio, mulatoconhecedor do idioma africano; Obitai, da rua Bom Jardim; o Juca Abor, o Alamijo, o Abede,um certo Maurcio, ogan de outro feiticeiro - o Brilhante, pai-macumba dos santos cabindas; oRodolfo, o Virglio, a Dudu do Sacramento, que mora tambm na rua do Bom Jardim; o Higino eo Breves, dois famosos tipos de Niteri, cuja crnica sinistra; o Oto Ali, Ogan-Didi, jogador darua da Conceio; Armando Ginja, Abubaca Caolho, Egidio Abor, Horcio, Oiabumin, filha eme-de-santo atual da casa de Abed; Ieusimin, Torquato Arequip, Cipriano, Rosendo, a Justade Obaluaei, Apotij, mina famoso pelas suas malandragens, que mora na rua do Hospcio, 322e finge de feiticeiro falando mal do Brasil; a Assiata, outra exploradora, a Maria Luiza, sedutorareconhecida, e at um empregado dos Telgrafos, o famoso pai Deolindo...

    Toda essa gente vive bem, farta, joga no bicho como Olo-Tet, deixa dinheiro quandomorre, s vezes fortunas superiores a cem contos, e achincalha o nome de pessoas eminentesda nossa sociedade, entre conselhos s meretrizes e goles de parati. As pessoas eminentesno deixam, entretanto, de ir ouvi-los s baiucas infectas, porque os feiticeiros que podem darriqueza, palcios e eternidade, que mudam a distncia, com uma simples mistura de sangue ede ervas, a existncia humana, moram em casinholas srdidas, de onde emana umnauseabundo cheiro.

    Para obter o segredo do feitio, fui a essas casas, estive nas salas sujas, vendo pelasparedes os elefantes, as flechas, os arcos pintados, tropeando em montes de ervas e lagartossecos, pegando nas terrinas sagradas e nos obls, cheios de suor.

    - V. S., se deseja saber quais so os principais feitios, preciso acostumar-se antes comos santos, dizia-me o africano.

    Acostumei-me. So inumerveis. As velhas que lhes discutem o preo em conversa, atconfundem as histrias. Em pouco tempo estava relacionado com Exu, o diabo, a que sesacrifica no comeo das funanatas, Obaluai, o santo da varola, Ogum, o deus da guerra,Oxoc, Eul, Oloro-qu, Obalufan, Orix-ag, Exu-mar, Orix-ogrinha Ara, Orominha, Ogod,Oganju, Baru, Orixal, Bainha, Dad, Percu, Coricot, Do, Alab, Ari e as divindadesbeiudas, esposas dos santos - Aquar, Oxum-gimoun, A-c, a me da noite, Inhansam, Obi-am, esposa de Orix-l; Orainha, Ogango, Jen, mulher de Elqu; Io-mo-j, a dona deOrixoc; Oxum de Xang e at Ob, que, prncipe neste mundo, no ter hetairia doformidvel santo Ogod.

    Os fetiches contaram-me a histria de Orix-alum, o maior dos santos que aparece rarasvezes s para mostrar que no de brincadeiras, e eu assisti s cerimnias do culto, em quequase sempre predomina a farsa pueril e sinistra. Diante dos meus olhos de civilizado,passaram negros vestidos de Xang, com cala de cor, saiote encarnado enfeitado de bzios elantejoulas, avental, babadouro e gorro; e esses negros danavam com Oxum, vrias negrasfantasiadas, de ventarolas de metal na mo esquerda e espadinha de pau na direita. Concorri

  • para o sacrifcio de Obaluai, o santo da varola, um negro de bigode preto com a roupa dePolichinelo e uma touca branca orlada de urtigas. O santo agitava uma vassourinha, o seuxaxar, e ns todos em derredor do babalox vamos morrer sem auxlio de faca, apenas porestrangulamento, uma bicharada que faria inveja ao Jardim Zoolgico.

    Os africanos porm continuavam a guardar o mistrio da preparao.

    - Vamos l, dizia eu, camarrio, como que faz para matar uni cidado qualquer?

    Eles riam, voltavam o rosto com uns gestos quase femininos.

    - Sei l!

    Outros porm tagarelavam:

    - V. S. no acredita? que ainda no viu nada. Aqui est quem fez um deputado! O...

    Os nomes conhecidos surgiam, tumultuavam, empregos na polcia, na Cmara, relaes noSenado, interferncias em desaguisados de famlias notveis.

    - Mas como se faz isso?

    - Ento o senhor pensa que a gente diz assim o seu meio de vida?

    E imediatamente aquele com quem eu falava, descompunha o vizinho mais prximo -porque, membros de uma maonaria de defesa geral, de que chefe o Oj da rua dosAndradas, os pretos odeiam-se intimamente, formam partidos de feiticeiros africanos contrafeiticeiros brasileiros, e empregam todos os meios imaginveis para afundar os maisconhecidos.

    Acabei julgando os babaloxs sbios na cincia da feitiaria como o Papa Joo XXII e novia negra mina na rua sem recordar logo o bizarro saber das feiticeiras de d'Annunzio e do Sr.Sardou. A lisonja, porm, e o dinheiro, a moeda real de todas as maquinaes dessa perapregada aos incautos, fizeram-me sabedor dos mais complicados feitios.

    H feitios de todos os matizes, feitios lgubres, poticos, risonhos, sinistros. O feiticeirojoga com o Amor, a Vida, o Dinheiro e a Morte, como os malabaristas dos circos com objetos depesos diversos. Todos entretanto so de uma ignorncia absoluta e afetam intimidadessuperiores, colocando-se logo na alta poltica, no clero e na magistratura. Eu fui saber, aterrado,de uma conspirao poltica com os feiticeiros, nada mais nada menos que a morte de umpassado presidente da Repblica. A principio achei impossvel, mas os meus informantescitavam com simplicidade nomes que estiveram publicamente implicados em conspiraes,homens a quem tiro o meu chapu e aperto a mo. Era impossvel a dvida.

    - O presidente est bem com os santos, disse-me o feiticeiro, mas bastava v-lo janela dopalcio para que dois meses depois ele morresse.

    - Como?!

    - E difcil dizer. Os trabalhos dessa espcie fazem-se na roa, com oraes e grandesmatanas. Precisa a gente passar noites e noites a fio diante do fogareiro, com o tessub namo, a rezar. Depois matam-se os animais, s vezes um boi que representa a pessoa e logoenterrado. Garanto-lhe que dias depois o esprito vem dizer ao feiticeiro a doena da pessoa.

    - Mas por que no matou?

    - Porque os caiporas no me quiseram dar sessenta contos.

    - Mas se voc tivesse recebido esse dinheiro e um amigo do governo desse mais?

    - O feitio virava. A balana pesa tudo e pesa tambm dinheiro. Se Deus tivesse permitido aessa hora, os somticos estariam mortos.

    Esse o feitio maior, o envoutement solene e caro. H outros, porm, mais em conta.

    Para matar um cavalheiro qualquer, basta torrar-lhe o nome, d-lo com algum milho aospombos e solt-los numa encruzilhada. Os pombos levam a morte... potico. Para ulcerar aspernas do inimigo um punhado de terra do cemitrio suficiente. Esse misterioso serviochama-se etu, e os babaloxs resolvem todo o seu mtodo depois de conversar com os iff,uma coleo de 12 pedras. Quando os iff esto teimosos, sacrifica-se um cabrito metendo aspedras na boca do bicho com alfavaca de cobra.

    Os homens so em geral volveis. H o meio de os reter per eternum sujeitos mesmapaixo, o effif, uma forquilha de pau preparada com besouros, algodo, linhas e ervas, sendoque durante a operao no se deve deixar de dizer o oj, orao. Se eu amanh desejar adesunio de um casal, enrolo o nome da pessoa com pimenta-da-costa, malagueta e linhapreta, deito isso ao fogo com sangue, e o casal dissolve-se; se resolver transformar Cato, o

  • honesto, no mais desbriado gatuno, arranjo todo esse negcio apenas com um bom tira, um ratoe algumas ervas! E maravilhoso.

    H tambm feitios porcos, o mantuc, por exemplo, preparado com excremento de vriosanimais e coisas que a decncia ns salva de dizer; e feitios cmicos como o terrvelxuxuguruxu... Esse faz-se com um espinho de Santo Antnio besuntado de ovo e enterra-se porta do inimigo, batendo trs vezes e dizendo:

    - Xuxuguruxu io le bar....

    Para homem ser absolutamente fatal, D. Juan, Rotschild, Nicolau II e Morny, recolhi comcarinho uma receita infalvel; mastigar orob quando pragueja, trazer alguns tiras ou brevesescritos em rabe na cinta, usar do ori para o feitio no pegar, ter alni do xor, defesa prpria,o essiqui, cobertura e o iroc, defumao das roupas, num fogareiro cm que se queima azeite-de-dend, cabeas de bichos e ervas, visitar os babaloxs e jogar de vez em quando o at ou apraga. Se apesar de tudo isso a amante desse homem fugir, h um supremo recurso: espera-sea hora do meio-dia e crava-se um punhal detrs da porta.

    Mas o que no sabem os que sustentam os feiticeiros, que a base, o fundo de toda a suacincia o Livro de S. Cipriano. Os maiores alufs, os mais complicados pais-de-santo, tmescondida entre os tiras e a bicharada uma edio nada fantstica do S. Cipriano. Enquantocriaturas chorosas esperam os quebrantos e as misturadas fatais os negros soletram o S.Cipriano, luz dos candeeiros...

    O feitio compe-se apenas de ervas arrancadas ao campo depois de l deixar dinheiropara o saci, de sangue, de oraes, de galos, cabritos, cgados, azeite-de-dend e do livroidiota. o desmoronamento de um sonho!

    Os feiticeiros, porm, pedem retratos, exigem dos clientes coisas de uma depravao semnome para agir depois fazendo o egum, ou evocao dos espritos, o maior mistrio e a maiorpndega dos pretos; e quase todos roubam com descaro, dando em troco de dinheiro sardinhascom p-de-mico, cebolas com quatro pregos espetados, cabeas de pombo em salmoura parafortalecer o amor, uma infinita srie de extravagncias. Os trabalhos so tratados como nosconsultrios mdicos: a simples consulta de seis a dez mil ris, a morte de homem segundo asua importncia social e o recebimento da importncia por partes. Quando doena, paga-seno ato - porque os babaloxs so mdicos, e curam com cachaa, urubus, penas de papagaio,sangue e ervas.

    A policia visita essas casas como consultante. Soube nesses antros que um antigodelegado estava amarrado a uma paixo, graas aos prodgios de um galo preto. A polcia nosabe pois que alguns desses covis ficam defronte de casas suspeitas, que h um tecido depatifarias inconscientes ligando-as. Mas no possvel a uma segurana transitria acabar comum grande vcio como o Feitio. Se um inspetor vasculhar amanh os jabotis e as figas de umadas baicas, tarde, na delegacia os pedidos chovero...

    Eu vi senhoras de alta posio saltando, s escondidas, de carros de praa, como nosfolhetins de romances, para correr, tapando a cara com vus espessos, a essas casas; eu visesses em que mos enluvadas tiravam das carteiras ricas notas e notas aos gritos dos negrosmalcriados que bradavam.

    - Bota dinheiro aqui!

    Tive em mos, com susto e pesar, fios longos de cabelos de senhoras que eu respeitava econtinuarei a respeitar nas festas e nos bailes, como as deusas do Conforto e da Honestidade.Um babalox da costa da Guin guardou-me dois dias s suas ordens para acompanh-lo aoslugares onde havia servio, e eu o vi entrar misteriosamente em casas de Botafogo e da Tijuca,onde, durante o inverno, h recepes e conversationes s 5 da tarde como em Paris e nospalcios da Itlia. Alguns pretos, bebendo comigo, informavam-me que tudo era embromaopara viver, e, noutro dia, tlburis paravam porta, cavalheiros saltavam, pelo corredor estreitodesfilava um resumo da nossa sociedade, desde os homens de posio s prostitutasderrancadas, com escala pelas criadas particulares. De uma vez mostraram-me o retrato deuma menina que eu julgo honesta.

    - Mas para que isso?

    - Ela quer casar com este.

    Era a fotografia de um advogado.

    - E vocs?

    - Como no quer dar mais dinheiro, o servicinho est parado. A pequena j deu trezentos e

  • cinqenta.

    Tremi romanticamente por aquela ingenuidade que se perdia nos poos do crime procurado Amor...

    Mas esse caso comum. Encontrei papelinhos escritos em cursivo ingls, puro Corao-de-Jesus, cartes-bilhetes, pedaos de seda para misteres que a moralidade no podedesvendar. Eles diziam os nomes com reticncias, sorrindo, e eu acabei humilhado,envergonhado, como se me tivessem insultado.

    - A curiosidade tem limites, disse a Antnio que desaparecera havia dias para levar aossubrbios umas negras. Se eu dissesse metade do que vi, com as provas que tenho!...Continuar descer o mesmo abismo vendo a mesma cidade misteriosamente rojar-se diante doFeitio... Basta!

    - V. S. no passou dos primeiros quadros da revista. preciso ver as loucuras que o Feitiofaz, as beberagens que matam, os homicdios nas camarinhas que nunca a polcia soube; preciso chegar apoteose. Venha...

    E Antnio arrastou-me pela rua, do General Gomes Carneiro.

    A CASA DAS ALMAS

    Os negros "cambindas" do Rio guardam com terror a histria de um branco que lhesapareceu certa vez em pleno serto africano. Quando o rei deu por ele, que por ali vinha calmo,com as suas barbas de sol, precipitou-se mais a tribo em atitude feroz. O branco tirou da cintaum pequeno feitio de metal e prostrou morto, golfando sangue, o babalo.

    - Exu! Exu! ganiu a tribo, recuando de chofre.

    - Quem s tu, santo que eu no conheo? perguntou trmulo o poderoso rei.

    - Sou o que pode tudo, bradou o branco. V.

    Estendeu a mo de novo e matou outros negros.

    - S te deixarei em paz se me mostrares todos os teus feitios.

    Sua Majestade, apavorada, levou-o tenda real e durante o dia e durante a noite, semparar, lhe deu tudo quanto sabia.

    - Perdo-te, disse o branco. Adeus! Levo para o mistrio a rainha.

    Aconchegou o feitio, que parecia egum, o deus da guerra, no seio da preferida, deixou-acair, e partiu devagar pela estrada a fora...

    No precisei dos meios violentos do Caramuru da frica, para saber do mais terrvelmistrio da religio dos minas: - o egum ou evocao das almas. Naquela mesma noite em queencontrara Antnio, o negro servial levou-me a uma casa nas imediaes da praia de SantaLuzia.

    - Em tudo preciso mistrio, dizia ele. V. S. vai casa do babalox, finge acreditar e depois convidado para uma cerimnia na casa das almas. Poder ento ver o segredo da pantomima.Quem descobre o segredo do egum, morre. Eu me arrisco a morrer.

    A sua voz era trmula.

    - Tens medo?

    - No, mas se morrer amanh, todos os feiticeiros diro que foi o feitio. Do egum dependetoda a traficncia. O negro parou. No imagina! Abubca Caolho, que mora na rua do Resende, um dos tais. Quando h uma morte, vai logo dizer que foi quem a fez. Se fssemos acreditarnas suas mentiras, Abubca tinha mais mortes no costado que cabelos na cabea. V. S. j o viu. um negro que usa gravata do lado e pontas - as roupas velhas dos outros... Apotij outro.

    - Mas h desse gnero de morte, Antnio? indaguei eu acendendo o cigarro com um gestoshakespereano.

    - Ora se h! Vou provar quando quiser. De morte misteriosa lembro a Maria Rosa Duarte,sogra do mama Po Baltazar, aluf muito amigo de um poltico conhecido; o Salvador Tapa, aEsperana Laninia, Lar-qu, Fantuch, o Jorge da rua do Estcio, Ougu-olusaim... Todosmorreram por ter descoberto o egum. Na Bahia, ento, esses assassinatos so comuns. Hei delembrar sempre o velho feiticeiro Aguidi, coitado! Era dos que sabem. Um dia, farto de viver,descobriu a traficncia e logo depois morria no incndio do Tabo, com os braos cruzados,impassvel e a sorrir. Aguidi na minha lngua significa: - o que quer morrer... Ele quis.

  • Pela praia de Santa Luzia o luar escorria silenciosamente, e de leve o vento, sacudindo asfolhas das rvores em melanclico sussurro, entristecia Antnio.

    - Ah! meu senhor. No s por causa do egum que negro mata. Quando as iau noandam direito, quando no fingem bem, quase nunca escapam de morrer. H vrios processosde morte, a morte lenta, com beberagens e feitios diretos, a morte na camarinha porsufocao... Muitos negros apertam uma veia que a gente tem no pescoo e dentro de umminuto qualquer pessoa est morta. Outros dependuram as criaturas e elas ficam bracejando noar com os olhos arregalados.

    A Morte e a Loucura nem sempre se limitam ao estreito meio dos negros. As beberagens eo pavor atuam suficientemente nas pessoas que os freqentam. A Assiata, uma negra baixa,fula e presunosa, moradora rua da Alfndega, dizem os da sua roda que ps doida na Tijucauma senhora distinta, dando-lhe misturadas para certa molstia do tero. Apotij, o malandro darua do Hospcio, que aproveita os momentos de cio para descompor o Brasil, tem tambm umavastssima coleo de casos sinistros.

    A Morte e todas as vesnias no so apenas os sustentculos dos seus ritos e das suastransaes religiosas, so tambm o meio de vida extra-cultual, o processo de apanharheranas. Alikali, lemamo atual dos alufs, e Amando Ginja, cujo nome real FortunatoMachado, quando morre negro rico vo logo polcia participar que no deixou herdeiros. Alikali testamenteiro de quase todos e bicho capaz de fazer amur com as negras velhas, s paralhes ficar com as casas. A certido de bito dada sem muitas observaes.

    - Mas, voc conhece mais feiticeiros, Antnio?

    - Pois no! O Joo Muss, aluf feiticeiro tremendo, que mora na rua Senhor dos Passos,222 e respeitado por todos; Obalei-i, Obio Jamin, Ochu-Toqui, Ochu-Bumin, Emin-Ochun,Oumigi, Obitai-homem, Obitai-mulher, Ochu Taiod, a Ochu-bohei, da rua do Catete, Si,Xang-Logreti, Ajagum-baru, Eu-hemin, Angelina, o ogan Conrado... Mais de cem feiticeiros,mais cem.

    - Quase todos com os nomes dos santos...

    - Os negros usam sempre o nome do santo que tm no corpo...

    Mas de repente Antnio parou entre as rvores.

    - Temos eb de i-man-j. A negralhada vem ..... Se quer ver, esconda-se detrs de algumtronco.

    Com efeito, sentiam-se vozes surdas ao longe, cantando.

    O despacho, ou eb, da me-d'gua salgada, um alguidar com pentes, alfinetes, agulhas,pedaos de seda, dedais, perfumes, linhas, tudo o que feminino.

    Detrs da rvore, pouco depois eu vi aparecer no plenilnio a teoria dos pretos. frentevinha uma com o alguidar na cabea, e cantavam baixo.

    Ba de r se equi je-man-jPel b Apot auo yo t toro fym la choEre...

    Era o ofertrio. Ao chegar praia, na parte em que h uns rochedos, a negra desceu,depositou o alguidar. Uma onda mais forte veio, bateu, virou o vaso de barro, quebrou-o, levouas linhas e todos balbuciaram, rojando:

    - I-man- j!

    A santa aparecera na fosforescncia lunar, agradecendo...

    Depois os sacerdotes ergueram-se, reuniram e ns ficamos de novo ss, enquanto ooceano rugia e, ao longe, tristemente a canzoada ladrava.

    - Ainda apanhamos o candombl, disse Antnio. preciso que o babalox convide V. S.para o egum...

    Noutro dia, pouco mais ou menos meia-noite, estvamos no il-saim ou casa das almas.

    O egum uma cerimnia quase pblica, a que os feiticeiros convidam certos brancos parapresenciar a pantomima do seu extraordinrio poder. Esses curiosos fetiches, que para fazer oguincho de santo Ossaim amarram nas pernas bonecas de borracha, com assobio; cujos santosso uni produto de bebedeiras e de hipnose, tm na evocao dos espritos a mxima

  • encenao da sua fora sobre o invisvel. Quando morre algum, quando todos esto diante docorpo, um dos pretos esconde-se e d um grito. No meio da confuso geral, ento, mudando avoz, esse negro grita:

    - Emim, toculoni mop, c-um-p, emim! Eu que morri hoje, quero que chamem por mim.

    Os donos do defunto arranjam o dinheiro para a evocao, pessoas estranhas ajudamtambm com a sua quota para aproveitar e saber do futuro. O babalox no faz o egumenquanto no tem pelo menos trezentos mil ris. Arranjada a quantia, comea a cerimnia.

    Quando entramos na sala das almas, luz fumarenta dos candeeiros a cena era estranha.Havia brancas, meretrizes de grandes rodelas de carmim nas faces, mulatas em camisa,mostrando os braos com desenhos e iniciais em azul dos proprietrios do seu amor, e negros,muitos negros. Estes ltimos, sentados em roda do assoalho, estavam quase nus, e algumasnegras mesmo inteiramente nuas com os seios pendentes e a carapinha cheia de banha.

    - Por que esto eles assim?

    - Para mais facilmente receber o esprito.

    Junto porta do fundo, trs negros de vara em punho quedavam-se estticos. Eram osannichans, que faziam guarda ao saluin ou quarto-dos-espritos. Ouvi dentro do saluin umbarulho de pratos, de copos tocados, de garrafas desarrolhadas; um momento pareceu-me ouvirat o estouro forte do champanha barato.

    - H gente l dentro?

    - As almas. Est-se banqueteando. O banquete foi pago pelos presentes. Mas, psiu! Daquia pouco comearo as cantigas, que ningum compreende. Os africanos inventam nomes paraa cena parecer mais fantstica.

    Com efeito, minutos depois, aos primeiros sons dos atabaques, as negras bradaram:

    - Alu! o esprito! e romperam uma cantiga assustadora e trpega.

    Anu-ha, a o ry au od San-n-el-o ou babaLoc-al

    A porta continuava fechada, mas eu vi surgir de repente um negro vestido de domin comos ps amarrados em panos. Os trs annichans ergueram as varas, o domin macabrocomeou a bater a sua no cho, os xegueds sacudiram-se, e outra cantiga estalou medrosa:

    Lou- gge ou-rou uX la-ry la-ry laryQue qu oura uchLa-ry la mamau r nam bab

    Quando o santo aos pulos aproximava-se de alguma mulher, ela recuava bradando comdesespero:

    - Afapo!

    - Vo aparecer as almas, avisou Antnio, a cantiga diz: Procuramos a alma de Fulano e deSicrano e no a encontramos dormindo. Cansamos sem saber o mistrio que a envolvia. A almaest aqui e entrou pela porta do quintal.

    - Mas quem este domin?

    - Baba-Egum. As almas tm vrios cargos. O que traz uma gamela chama-se Ala-t-orum, o 2. Opoc-echi, o 3. Eguninhansan, e no meio de sete espritos aparece o invocado.

    Entretanto o domin Baba-Egum batia furiosamente no cho com a sua vara de marmelo, eno alarido aumentado apareceu aos pulos outro domin, o Alab, que por sua vez tambm seps a bater. Era o ritual da entrega das almas. Por fim apareceu Ousaim, enfiado numa fantasiade beb, de xadrez variado, com duas mscaras: uma nas costas, outra tapando o rosto.

    - Quem esse?

    - O Bonifcio da Piedade, um malandro de cavaignac, que faz sempre de Eruosaim.

    Eruosaim tambm danava. Entre as cantigas, os annichans ergueram de novo as varas, a

  • porta abriu-se, dois negros ficaram um de cada lado, o atafim, ou confidente, e o anuxam,secreta. De dentro saram mais trs domins cheios de figas e espelhinhos, com os psembrulhados nos trapos. As negras aterrorizadas uivavam, com o amarelo dos olhos virados eos espritos, naquela algazarra, pareciam cambalear. Havia gente porm que os reconhecia.

    - Eles fingem os gestos dos mortos, segredou-me Antnio. Palmas ressoavam estridentessaudando a chegada do invisvel, as varas de marmelo lanhavam o ar e as almas, e naquelecrculo silvante, ao som dos xegueds e dos atabaques batiam surdamente no cho aos pulosda dana demonaca.

    Um dos espritos, porm, sentiu-se numa espcie de trono de mgica. Como por encanto adana cessou e naquela pvida atmosfera, em que o medo gemia, as mulheres de borco, oshomens contorsionados, o negro fantasiado guinchou do alto.

    - Guilhermina oc percisa gost de Antnio... Jos tem que faz eb para esprito mau.

    Chica, um home h de vi a, oc vai com ele...

    - Veja V. S. a chantage, murmurou Antnio. Os negros recebem dinheiro antes dos homense obrigam as criaturas pelo terror a tudo quanto quiserem. Por isso quem descobre o egum,morre.

    A Chica, uma mulatinha, coitada! tremia convulsivamente, mas j outras, nuas, em camisa,sacudindo os membros lassos, ganiam de longe, batendo as varas num terror exaustivo.

    - E eu? e eu?

    - E eu? e eu?

    - Oc t dereita, sua vida vai pr'a frente.

    - E eu? e eu? gargolejaram outras bocas em estertores.

    - Oc est pra traz, percisa eb.

    Aproximei-me de um dos espritos; cheirava a esprito de vinho; estava literalmente bbedo.

    Quando a cerimnia atingia ao desvario e j os espritos tinham pastosidade na voz, caiu nasala, como um bedeng, Inhansam, um negro fingindo de santo materializado e, em meio dopavor geral, ao som das cantigas, esticou a mo sinistra, foi pedindo a cada criatura 16 obis, 16orobs, 16 galos, 16 galinhas, 16 pimentas-de-costa, 16 mil ris, um cabrito, um carneiro. Aochegar s meretrizes brancas, Inhansam ferozmente exigia peas de chita, fazendas e objetoscaros. A turba gritava toda: Inhansam! Inhansam! gente nova entrava na sala, e de repente,como todos se voltassem a um grito da porta, os espritos desapareceram... Tinham fugidotranqilamente pelo corredor.

    - Est acabado, fez Antnio. Os espritos vo se despir, e voltam da a pouco para ver se opessoal acreditou mesmo...

    A cena mudara entretanto. Dissipado o sudrio apavorado, todas aquelas carneshiperestizadas erguiam-se ainda vibrantes para a bacanal.

    O lcool e a queda na realidade estabeleciam o desejo. Negros arrastavam-se para quintal,para os cantos, longos sorrisos lbricos abriam em bocejos as bocas espumantes, risinhosrebentavam e negros fortes, estendidos no cho, rolavam as cabeas numa sede de gozo.

    H entre as negras uma propenso sinistra para o tribadismo. Em pouco, naquela casinholasuja e mal-cheirosa, eu via como uma caricatura horrenda as cenas de deboche dos romanceshistricos em moda. Mais dois negros entraram.

    - Ento egum esteve bom?

    - E eu que no cheguei em tempo...

    - Veja, mostrou Antnio, l est o Bonifcio Eruosaim, vendo se causou efeito fantasiado debeb. Venha at o quarto do banquete.

    Fomos. Antnio empurrou uma porta e logo nos achamos numa sala com garrafas pelocho, pratos servidos, copos entornados, rolhas, os destroos de uma fome voraz. Num canto aChica dizia baixinho para um lindo rapaz de calas bombachas:

    - voc que o esprito disse?...

    Quando reaparecemos o babalox murmurava:

    - A festa est acabada, companheiros... no deixar de trazer o que Inhansam pediu.

    Samos ento. Vinha pelo cu raiando a manh. Palidamente, na calote cor de prola, asestrelas tremiam e desmaiavam. Antnio cambaleava. Chamei um carro que passava, meti-o

  • dentro. Em torno tudo dizia o mistrio e a incompreenso humana, o ter puro, os vagalhes domar, as rvores calmas. Tinha a cabea oca, e, apesar dos assassinatos, dos roubos, daloucura, das evocaes sinistras, vinha da casa das almas julgando babalas, babaloxs, mes-de-santo e feiticeiros os arquitetos de uma religio completa. Que fazem esses negros mais doque fizeram todas as religies conhecidas?

    O culto precisa de mentiras e de dinheiro. Todos os cultos mentem e absorvem dinheiro. Osque nos desvendaram os segredos e a maquinao morreram. Os africanos tambm matam.

    E eu, perdoando o crime desse sacerdcio mina, que se impe e vive regaladamente, tivevontade de ir entregar Antnio negro e a dormir casa de Oj, para que nunca maisdesvendasse a ningum o sinistro segredo da casa das almas.

    OS NOVOS FEITIOS DE SANIN

    Pois seja! disse Antnio, tomando coragem. V. S. pode ir, mas no cuspa, no fume e nocoma nessa casa. Eu no vou.

    - Acompanhas-me at a porta?

    - At esquina. Ficarei de alcatia. Sanin e Oj so capazes de me acabar com a vida.

    A vida de Antnio uma vida, sob todos os ttulos, preciosa, e naquele momento ainda oera mais, porque a sustentava eu. Refleti e concordei.

    - Est direito, ficas esquina.

    Chovia a cntaros. Antnio, sem guarda-chuvas, metido num capote que lhe ia at aos ps,acendia constantemente um charuto, que apagava.

    - Mas, que esse Sanin, afinal?

    - Um feiticeiro danado!

    - Mas babalox, babala, traficante?.

    - Babala, no senhor. Para ser babala preciso muita coisa. S de noviciado, leva-semuito tempo, anos a fio, e a cerimnia dificlima. Quando um iniciado quer ser babala, temque levar ao babala que o sagra, dois cabritos pretos, duas galinhas d'Angola, duas galinhasda terra, dois patos, dois pombos, dois bagres, duas pres, um quilo de limo, um ori, um pedaode ossum, um pedao de giz, dois gansos, dois galos, uma esteira, dois caramujos e umaporo de penas de papagaio encarnadas.

    - difcil.

    - E no tudo. Tem que levar tambm um quilo de sabo-da-costa, que se chama och-i-luai, e no entra para o ibodoiff ou quarto dos santos sem estar de roupa nova e levar naalgibeira pelo menos 200$OOO. O futuro babala fica sete dias no ibod, onde no entraningum para no ver o segredo.

    - O segredo?

    - O segredo um ovo de papagaio. V. S. j viu um ovo de papagaio? Nunca! difcil. Equem v um ovo desses, arrisca-se a ficar cego. O ovo em africano chama-se iu, o papagaioodid. o ovo que guardam dentro de uma cuia ou ybadu. O iniciado fica inteiramente nu,senta-se na esteira, e o velho babala indaga se de seu gosto fazer o iffa. Se a resposta forafirmativa, lavam-se quarenta e dois caroos de dend com diversas ervas, e nessa gua obabala novo toma banho.

    Depois raspa-se-lhe a carapinha, guardando-a para o grande despacho, pinta-se-lhe ocrnio com giz e faz-se a matana.

    - Todos os animais?

    - Todos caem ao golpe das navalhas afiadas, o sangue enche os alguidares, escorre pelacasa, mas ningum sabe, porque l dentro, de vivos, s h os dois babalas e o aclito. Oprimeiro sacrifcio para exu. Mistura-se o sangue do galo com tabatinga, forma-se um bonecorecheado com os ps, o fgado, o corao e a cabea dos bichos; metem-se em forma de olhos,nariz e boca, quatro bzios e est feito o exu. Em seguida esfaqueiam-se os outros bichos,sacrificando aos iff. O novo babala recebe na cabea um pouco desse sangue, o aclito ouogibanam amarra-lhe na testa uma pena de papagaio com linha preta e, assim pronto, o novomatemtico fica seis dias aprendendo a prtica de alguns feitios temveis e rezando aos odujil.

  • Os iff so dezesseis: - eidi-ob, ojcu-meigi, jori-meigi, uri-meigi, ros-meigi, nani-meigi,obar-meigi, ocair-meigi, egund-meigi, os-meigi, otur-meigi, oret-meigi, ic-meigi, eturfan-meigi, achemeigi e ogio-ofum. No fim dos sete dias juntam-se os ossos, as cabeas, os ps dosanimais com os restos de comida, a pena de papagaio do jovem professo, as ervas dos serviosanteriores, coloca-se tudo num alguidar para jogar onde o opel disser, no mar, num lago, emqualquer rio. O iniciado quem leva o alguidar, sem perder a razo, e canta no trajeto trscantigas...

    Estvamos no largo do Capim. A chuva era tanta que nos obrigara a recolher a umbotequim qualquer, e Antnio, j sentado, bebendo vinho do Porto e acendendo pela trigsimavez a horrenda ponta do seu charuto, preparava-se para entoar as maviosas cantigas. Chegoumesmo a perpetrar uma, a segunda, a mais curta.

    O-ch-ytur a nar praquAb gun-nem-gum geboOury c ou-myn-nanEss ouxy-c g-x-nan l nan.

    Esta apavorada orao significa: sabo-da-Costa serve para resguardar-se a gente do reique come urubu e limo-da-costa. Ns, se comermos limo ou urubu pelo p, hoje mesmomorreremos. Ele no defende filho como filho.

    - Mas, o Sanin?

    - V. S. no quer aprender mesmo? Deixe o Sanin. Est chovendo tanto!

    - O Sanin ou no um sbio?

    - malandro.

    - Ainda melhor.

    Quando sa, de dentro do botequim, Antnio esticou a mo.

    - Orum-my-l bor yb, ye, yb, yb, xix!

    Negro amvel!! Com aquele seu gesto sacerdotal dizia-me:

    - Satisfaa ao Deus que faz tudo e tudo entorta, amm!

    Abri o guarda-chuva e respondi j de longe.

    - Yb-xix!

    Sanin mora agora na casa do famoso Oj, o diretor social da feitiaria. A casa de Oj ficana rua dos Andradas, quase no comeo, com um aspecto pobre e um cheiro desagradvel.Quando batemos, a chuva rufava em torno um barulho ensurdecedor. No nos responderam.Batemos de novo. Algum decerto nos espiava. Afinal abriu-se a rtula e uma mulher apareceu.

    - Baba Sanin?

    - No est.

    - Venho mandado por um conhecido. Sem receio.

    - A casa de Emanuel...

    - Oj, sei bem. Foi o Miguel Pequeno que me mandou. Abre.

    De novo a rtula fechou. A mulher ia consultar, mas no demorou muito que voltasseabrindo de esguelha e dizendo misteriosamente.

    - Entre.

    A sala tinha areia no assoalho, os mveis consertados indicavam que Oj vive bem. Numacadeira um fato branco engomado, e mais longe o chapu de palha atestava a presena dofeiticeiro.

    - Ento Sanin?

    - Vem j.

    Pouco tempo depois apareceu Sanin, de blusa azul e gorro vermelho, o tipo clssico domina desaparecido, andando meio de lado, com o olhar desconfiado. O pobre-diabo viveassustado com a polcia, com os jornais, com os agentes. Para o seu crebro restrito deafricano, desde que chegou, o Rio passa por transformaes fantsticas. um malandro,orgulhoso do feitio e com um medo danado da cadeia. Fora decerto quase fora queaparecera, e s muito lentamente o pavor o deixou falar.

  • - Baba Sanin, o Miguel Pequeno mandou-me aqui para um negcio muito grave. Baba temuns feitios novos.

    - No tem...

    - Eu sei que tem. Abri a carteira, uma carteira de efeito, como usam os homens da praa,enorme, com fechos de prata. No tenha medo. Se o Baba no me faz o trabalho, estouperdido. a minha ltima esperana.

    - Que trabalho?

    Revolvi as notas da carteira, devagar, para mostr-las, tirei um papelzinho emisteriosamente murmurei:

    - Aqui tem o nome dela...

    Na cara do feiticeiro deslizou um sorriso diablico:

    - Aha! Aha... Est bom.

    - Sanin, eu tenho f nos santos, mas os outros feiticeiros no do volta ao negcio.

    - Voc vai acabar. Olhe, pode contar...

    Tudo neste mundo esperana de dinheiro, de felicidade, de paz, e tanto vive deesperana o feiticeiro que a d como as pobres criaturas que com ele a vo procurar.

    Sanin comeou a falar dos feitios dos outros, lembrou-se dos seus aos bocados, e empouco, com a esperana de ganhar mais, fazia-me revelaes.

    Cada feiticeiro tem feitios prprios. Abubaca Caolho, o alcolico da rua do Resende, tem oib, cuia com pimenta-da-costa e ervas para fazer mal. Quando se fala do ib, diz-sesimplesmente: o feitio do Abubaca. Gia, cabea de pato com lesmas e o cabelo da pessoa, uma descoberta de Oj e serve para enlouquecer. Quem quer enlouquecer o prximo, arranjaou falsifica a obra de Oj.

    - Mas Baba Sanin, como que sabe tudo isso?...

    - Ento, no aprendi? Eu sei tudo.

    E como sabe tudo, d-me receitas. Fico sabendo, sem pasmo, sentado numa cadeira, quegiba de camelo com corpo de macaco e um cabrito preto em ervas matam a gente e que estadescoberta do celebrado Joo Alab, negro rico e sabicho da rua Baro de S. Flix, 76. No tudo. Sanin faz-me vagarosamente dar a volta ao armazm do feitio. Eu tomo notas curiosasdessa medicina moral e fsica.

    Para matar, ainda h outros processos. O malandro Bonifcio da Piedade acaba umcidado pacato apenas com cuspo, sobejos e treze oraes; Joo Alab conseguir matar acidade com um porco, um carneiro, um bode, um galo preto, um jaboti e a roupa das criaturas,auxiliado apenas por dois negros nus com o tessub, rosrio, na mo, hora da meia-noite;pipocas, brao de menino, pimenta-malagueta e p-de-anjo arrancados ao cemitrio matam emtrs dias; dois jabotis e dois caramujos, dois abis, dois orobs e terra de defunto sob seteoraes que demorem sete minutos chamando sete vezes a pessoa, a receita do Emdio paraexpedir desta vida os inimigos..

    H feitios para tudo. Sobejo de cavalo com ervas e duas oraes, segundo Aluf Ginja,produz ataques histricos; um par de meias com o rastro da pessoa, ervas e duas oraes, tudodentro de uma garrafa, f-la perder a tramontana; cabelo de defunto, unhas, pimenta-da-costa eervas obrigam o indivduo a suicidar-se; cabeas de cobras e de cgado, terra do cemitrio ecaramujos atrasam a vida tal qual como os pombos com ervas daninhas, e no h comopombas para fazer um homem andar para trs...

    - Mas para dar sorte, caro tio?

    - H mo de anjo roubada ao cemitrio em dia de sexta-feira.

    - E para tornar um homem ladro, por exemplo?

    - Um rato, cabea de gato, ervas, o nome da pessoa e oraes.

    - E para fazer um casal brigar?

    - Cabea de macaco, aranha e uma faca nova.

    - E para amarr-los por toda a vida?

    O negro pensou, olhando-me fixamente:

    - Um obi, um orob, unhas dos ps e das mos, pestanas e lesmas...

    - Tudo isso?

  • - Preparado por mim.

    Ento Sanin fala-me dos seus feitios. Sanin poeta e fantasista.

    Sob a dependncia de Oj, quase seu escravo, esse negro forte, de quarenta anos, trouxedo centro da frica a capacidade potica daquela gente de miolos torrados, as ltimasnovidades da fantasia feiticeira. Para conquistar, Sanin tem um breve, que se pe ao pescoo.O breve contm dois tiras, uma cabea de pavo e um colibri tudo colorido e brilhante; paraamar eternamente, cabeas de rola em saquinhos de veludo; para apagar a saudade, pedrasroxas do mar.

    Quando lhe pagam para que torne um homem judeu errante, o preto prepara cabeas decoelho, a presteza assustada; pombos pretos, a dor; ervas do campo, e enterra em frente porta do novo Ashaverus; quando pretende prender para sempre uma mulher, faz um breve deessncias que o apaixonado sacode ao avist-la. Sanin tambm mau - mas de maneirainteressante.

    Os seus trabalhos de morte so os mais difceis. Sanin ao meio-dia levanta no terreiro umavara e reza. Pouco tempo depois sai da vara um maribondo e o maribondo parte, vai procurar avtima, e no pra enquanto no lhe inocula a morte.

    O maribondo vulgar vista do boto vivo metido dentro de uma caveira humana; empresena do feitio do morcego, a asa que roa e mata, a raposa e o leno, e eu o fui encontrarpondo em execuo o maior feitio: baiacu de espinho com ovo de jacar - que o babala dagua, baiacu que faz secar e inchar vontade das rezas e domina as almas para todo o sempre.

    Mas por que voc, um homem to poderoso, no me queria receber?

    - Por que andam a falar de ns, porque a polcia vem a. Fizemos outro dia at umdespacho no campo de Santana com os dentes, os olhos de um carneiro, jabotis, ervas e duasoraes para quem fala de ns deixar de falar.

    - Mas por que um carneiro?

    - Porque o carneiro morre calado. Foi o Antnio Mina quem fez o despacho e todos nsrezamos de bruos e todos ns demos para o despacho, que custou cento e oitenta e trs milreis.

    Ento eu apanhei o meu chapu, apertei a mo do fantasista Sanin.

    - Pois fez mal, Baba, fez muito mal em dar o seu dinheiro, porque quem fala de vocs soueu.

    E como o negro aterrado abrisse a boca enorme, eu abri a carteira e o convenci de quetodas as suas fantasias, arrancadas ao serto da frica, no valem o prazer de as vender bem.

    Dinheiro, mortes, e infmia as bases desse templo formidvel do feitio!

    A IGREJA POSITIVISTA

    O amor por principioE a ordem por base.O progresso por fim.

    Era domingo, porta do templo da Humanidade, na rua Benjamim Constant.

    Com o cu luminosamente azul e o sol tpido, havia muita concorrncia nessa rua, deordinrio deserta: - senhoras, cavalheiros de sobrecasaca, militares, crianas. Uns subiam logoas escadas do templo, cuja fachada recorda um templo grego; outros mais ntimos, seguiampara o fundo, pelo lado direito. Teixeira Mendes fazia a sua prdica dominical.

    Tnhamos ido a conversar com um velho positivista. A princpio ele anunciara um profundodesprezo pela frivolidade jornalstica e a imprensa. Mas depois, como eu risse sem rancor,permitiu-se levar-me at a Igreja e foi to bondoso que ali estvamos, tagarelando de coisassuperiores, enquanto ao templo continuava a afluir a onda de fardas, de senhoras e decavalheiros solenes.

    - No possvel negar a influncia positivista na nossa poltica, sobre os brasileiros cultos,ia eu dizendo, mas o pblico..

    - Os jornais...

    - ... o grande pblico no compreende e irrita-se. O meu amigo pode falar de Spencer, de

  • Kant, de outros filsofos. Passa por erudito e respeitado. Basta, porm, falar de Comte paraque o tomem por um esquisito e perguntem injuriosamente se essa a religio de Clotilde deVaux.

    - natural. a gentinha que no conhece o culto, adulterado por espritos anrquicos. Masvoc v que os honestos j comeam a compreender a doce religio que submeteu ainteligncia ao sentimento.

    - Tem-lhes custado.

    - O positivismo tem quarenta anos de propaganda no Brasil. Em 1864, o Dr. Barreto deArago publicava urna aritmtica dando a hierarquia cientfica de Comte e o Dr. Brandoescrevia a Escravido no Brasil. Foram esses os primeiros livros positivistas, hoje quasedesconhecidos. Depois que o positivismo comeou a ser falado entre matemticos e que osprofessores da Central e da Escola Militar deram em citar a Astronomia e o primeiro volume daFilosofia.

    - Era o tempo em que se considerava a Poltica um livro mpio...

    - Ainda no se fizera sentir a necessidade de dispensar os servios provisrios de Deus. Ocarter religioso do positivismo no era conhecido. Isso no impediu que Benjamim Constant,fazendo concurso na Escola Militar, declarasse ser positivista ortodoxo e republicano, e que oprprio Benjamim, com os Drs. Oliveira Guimares e Abreu Lima, constitusse o ncleo dosortodoxos em 1872.

    - A influncia foi nula... - interrompi eu, olhando uma senhora loura que entrava com ocatecismo encadernado em veludo verde.

    - Nada se perde. Oliveira Guimares deixou um discpulo, Oscar de Arajo; Benjamim levous escolas a palavra religiosa do mestre, regenerou o ensino da matemtica e foi o primeirobrasileiro que teve no seu quarto o retrato de Clotilde de Vaux. Os trabalhos adotados na EscolaMilitar so quase todos de discpulos seus. No meio inteligente desses ltimos surgiramRaimundo e Miguel Lemos; era um momento de agitao. Pereira Barreto publicava o 1.volume da obra As trs filosofias, e tanto Miguel como Teixeira Mendes eram litristas,considerando a parte religiosa de Comte como obra de louco.

    Foi com eles que Oliveira Guimares fez aliana para fundar a biblioteca positivista e abrircursos cientficos.

    - Era a filosofia da Academia...

    - Sem jardins. O comeo do positivismo no Brasil absolutamente acadmico. Em 1876 aEscola de Medicina manifestou-se com a tese Da Nutrio, de Ribeiro de Mendona, e aprimeira sociedade positivista foi feita de professores ortodoxos e de estudantes litristas.

    - Seria curioso saber como estes mudaram.

    - As pequenas causas tm s vezes grandes efeitos. Uma censura ao diretor da escolamotivou serem suspensos, por dois anos, Teixeira Mendes e Miguel Lemos, que foram para aEuropa; e enquanto s, Benjamim propagava aqui, os dois em Paris litrizavam. Mendes veio omesmo, achando o Comte da Poltica maluco. Miguel ficou, e l, sponte sua, abandonou Littr erelacionou-se com Laffite.

    - E converteu-se?

    - A 4 de julho de 1879.

    Solenemente, o meu amigo positivista apanhava sol. Levei-o com carinho para o jardim,onde devia florir o bosque sagrado com as sepulturas dos homens dignos. No havia bosques,nem sepulturas. Apenas algumas rvores. O positivista acendeu o cigarro, depois de o fazercom um forte fumo Rio Novo. Eu perguntei pasmado:

    - Toma caf?

    Ele riu.

    - Como toda a gente! Essa histria de no tomar caf e no fumar apenas uma lria.Ento voc pensa que Augusto Comte imaginasse, de mau, fazer o mundo deixar o caf e ofumo, s para arruinar o Brasil? O fato outro. O grande filsofo no fumava nem bebiaexcitantes, porque lhe faziam mal; Miguel Lemos, doente como , no se atira a essesexcessos; Teixeira Mendes, um homem que reflete dezesseis horas a fio, no se pode dar aosdevaneios da fumaa... No h proibies formais para o horrendo vcio; h apenas medo...

    Puxei com vigor uma baforada.

    - A propaganda desapareceu com a estada de Miguel Lemos em Paris?

  • - No. A sociedade passou a chamar-se Sociedade Positivista do Rio de Janeiro, sendoaclamado presidente o Dr. Ribeiro de Mendona, que se filiou a Laffite:

    - Comeou a era do lafitismo...

    - E com excesso. Concorramos at pecuniariamente para o subsdio sacerdotal da igrejaem Paris. Lemos influiu de tal modo sobre Teixeira Mendes, que pouco tempo depois estetambm se convertia. Foi, ligada a Laffite, que a nossa igreja iniciou as comemoraes decarter religioso com a festa de Cames em 1886; que se comemorou o 22. passamento deComte e a festa da Humanidade; e dessa poca que data a primeira procisso cvica no Riode Janeiro, com andores e o busto de Cames esculpido por Almeida Reis.

    - Quando Miguel voltou, aspirante ao Apostolado, as reunies tornaram-se regulares aosdomingos, na rua do Carmo, n.0 14, e Ferreira de Arajo abriu uma seo na Gazeta com o ttuloCentro Positivista, cujo primeiro artigo dava a teoria cientfica do calendrio. Em 1881, jpresidente Miguel Lemos, o Centro passou para a rua Nova do Ouvidor, as exposies dareligio tornaram-se regulares, e Raimundo fez no Liceu um curso do catecismo, interrompidopelas suas clebres conferncias de antigo litrista contra o sofisma de Littr.

    - Era a prosperidade.

    - Nesse ano, em que se comemorou a Tomada da Bastilha, Lemos foi a So Paulo, feznove conferncias, fundou uma filial com Ferreira Souto, Carvalho de Mendona, OliveiraMarcondes, Godofredo Martins e Silva Jardim, e as intervenes do Centro na nossa vidapoltica acentuaram-se contra a imoralidade da colonizao chinesa, traando o programa docandidato positivista, protestando contra as loterias, exigindo o registro civil, a abolio, opondo-se s universidades...

    - J nesse tempo?

    - Os artigos foram publicados na Gazeta de Notcias e fizeram que o imperador seopusesse idia, aconselhando ao ministro que reformasse o ensino por outro qualquer meioque no fosse as universidades.

    O meu velho amigo andou alguns passos pelo futuro bosque sagrado. Acompanhei-o.

    Ouvia-se l dentro o som mltiplo de uma orquestra. Raros retardatrios entravam.

    - Neste ano tambm, continuou com calma, uma circular instituiu o subsdio sacerdotal, oque deu lugar retirada de Benjamim Constant, e foram conferidos os primeiros sacramentosaos filhos de Miguel Lemos, Teixeira Mendes e do Dr. Coelho Barreto.

    - Hoje esses sacramentos so comuns?

    - Como os do matrimnio, em grande nmero.

    - A ruptura com Laffite deu-se logo depois?

    - Em 1883. Lemos ficou o nico responsvel do positivismo no Brasil, continuando a ingerir-se na vida pblica da sua ptria.

    - Mas este templo como foi feito?

    - O Apostolado deixou a sede da rua Nova do Ouvidor para a rua do Lavradio. A mudanadeterminou o lanamento de um emprstimo em 1891 para a construo do templo, no quemuito concorreram Pereira Reis, Otero, Rufino de Almeida, Dcio Vilares. A inaugurao foi em1894, e a igreja custou 250 contos.

    - mais uma prova da importncia do Centro no regime republicano.

    - A nossa interveno no incio da Repblica foi de primeira ordem. Basta citar a BandeiraNacional, a separao da Igreja do Estado, a liberdade dos professores, a reforma do cdigo nocaso da tutela de filhos menores.

    - O Centro tambm tem uma casa em Paris?

    O semblante do positivista anuviou-se.

    - Sim, a casa em que morreu Clotilde. Foi comprada por 70 mil francos. triste. Em Parisno estavam preparados para compreender Teixeira Mendes. Era tarde para a campanha... Masvenha ver a nossa tipografia.

    Caminhamos com intimidade pela avenida estreita. De vez em quando ouvia-se o som deuma voz acre. Era a prdica.

    A tipografia fica embaixo, correspondendo a toda a extenso da nave em cima. completa.Pergunto respeitoso o nmero de publicaes dessa oficina.

    - As obras de maior valor so o Ano sem Par, a Biografia de Benjamim Constant, a Visita

  • aos Lugares Santos do Positivismo, a Qumica Positiva, as ltimas Concepes de A. Comte(onde se acha a teoria dos nmeros sagrados), todas obras de Raimundo Mendes. A publicaode folhetos talvez superior a 600.

    - Mas os subescritores so muitos?

    - So suficientes. A Igreja do Brasil tem recebido tambm auxlios de Londres.

    O pavimento embaixo no s ocupado pela tipografia. H tambm o gabinete luxuoso deMiguel Lemos e a sala Daniel Encontre, onde Teixeira Mendes expe aos jovens discpulos dahumanidade, e a quem quiser ouvi-lo, as sete cincias. Ouvem-no lentes de academias eprofessores notveis.

    - grande o nmero de positivistas?

    - No Brasil os ortodoxos devem ser uns 700. Os simpticos no se podem mais contar. Asgeraes que saem da nossa Escola Militar so quase que compostas de simpticos.

    - E a influncia moral aumenta?

    O positivista confessou com tristeza.

    - Vai-se tornando fraca. No se admire. Ser por fraqueza dos apstolos? Ser porque opblico se afasta da realidade, corrompido moralmente? O fato patente. Ainda h pouco oprivilgio funerrio foi uma campanha perdida... Mas entremos.

    Com o chapu na mo, ns entramos. Havia luxo e conforto. De um lado a secretria, ondese vendem as obras editadas pela igreja, de outro, a sala onde est a escada para o coro, comorquestra e uma rica biblioteca de carvalho lavrada. Degraus atapetados do acesso nave.

    O templo da humanidade lindo. Ao alto, junto ao teto correm janelas que arejam oambiente. Todo pintado de verde-mar, est-se dentro como num suave banho de esperana.Sentam-se os homens na nave, que tem catorze capelas; - colunas de pau negro sustentandoem portais abertos bustos esculturados por Dcio Vilares. Os bustos representam os meses docalendrio: Moiss ou Teocracia inicial, Homero, Aristteles, Arquimedes ou a poesia, filosofiae a cincia antiga; Csar ou a civilizao militar; So Paulo, ou o catolicismo; Carlos Magno ou acivilizao feudal: Dante, Gutenberg, Shakespeare, Descartes, Frederico Bichat, ou a epopia, aindstria, o drama, a filosofia, a poltica, a cincia moderna, e Heloisa, a santa entre as santas,que fica na ltima capela, voltando o seu semblante magoado para a porta.

    Na capela-mor, rica de tapetes e de madeiras esculpidas, h uma ctedra, onde se sentaTeixeira Mendes com as vestes sacerdotais negras debruadas de verde. Por trs fica um bustode bronze de A. Comte, e, dominando toda a sala, o quadro de carvalho lavrado com letras deouro, de onde surge a figura delicada de Clotilde, a humanidade simbolizada por Dcio numadas suas mirficas atmosferas sonhadoras.

    A voz de Raimundo corre com a continuidade de uma queda de guas; na nave cheiacintilam gales e lunetas graves; na capela-mor, senhoras ouvem com ateno essa palavra,que no deixa de ser demolidora.

    - Que positivismo? sussurro eu, sentando-me.

    - uma religio que respeita as religies passadas e substitui a revelao pelademonstrao. Nasceu da ruptura do catolicismo e da evoluo cientfica do sculo XVII parac. De Maistre dizia que o catolicismo ia passar por muitas transformaes para ligar a cinciaa religio. Comte descobriu a lei dos trs estados, a chave da sociologia, e quando era o grande

    filsofo, Clotilde apareceu e ensinou que a inteligncia apenas o ministro do corao.

    Agir por afeio, Pensar para agir.

    Comte proclamou que o homem e a mulher se completam sob o trplice aspecto:sentimento, inteligncia e atividade. A religio divide-se em Culto, Dogma e Regime, o que vema ser bem amar, bem conhecer e bem servir a humanidade, o Grande Ser, o conjunto dasgeraes passadas e futuras pela gerao presente. A existncia do Grande Ser est ligada terra, o Grande-Fetiche, e ao espao, o Grande Meio...

    - Mas quantas senhoras!

    - As mulheres devem amar o positivismo. Comte dignifi