João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo...

32
Setembro2017 Revista Mensal • 2 Euros Parceiro do Plano Nacional de Saúde 2014 “I´m impressed by the range and high-quality of the submitted abstracts, addressing new challenges and developing fiels.” Manuel Cardoso, SICAD – Deputy General-Director “The conference will bring together the most renewed experts on addictive behaviours and dependencies, promoting a unique networking opportunity.” João Goulão, SICAD – General-Director

Transcript of João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo...

Page 1: João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo de drogas em Portugal ... psicoativas lícitas, ilícitas e sobre as ... de ouvir

Setembro2017Re

vista

Men

sal •

2 Eur

os

Parceiro do Plano Nacional de Saúde 2014

“I´m impressed by the range and high-quality of the submitted abstracts, addressing new challenges and developing fiels.”

Manuel Cardoso, SICAD – Deputy General-Director

“The conference will bring together the most renewed experts on addictive behaviours and dependencies, promoting a unique networking opportunity.”

João Goulão, SICAD – General-Director

Page 2: João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo de drogas em Portugal ... psicoativas lícitas, ilícitas e sobre as ... de ouvir

3

Editorial

FICHA TÉCNICA Propriedade, Redacção,Direcção e morada do Editor: News-Coop - Informação e Comunicação, CRL; Rua António Ramalho, 600E; 4460-240 Senhora da Hora Matosinhos; Publicação periódica mensal registada no ICS

com o nº 124 854. Tiragem: 12000 exemplares. Contactos: 220 966 727 / 916 899 539; [email protected];www.dependencias.pt Director: Sérgio Oliveira Editor: António Sérgio Administrativo: António Alexandre

Colaboração: Mireia Pascual Produção Gráfica: Ana Oliveira Impressão: Multitema, Rua Cerco do Porto, 4300-119, tel. 225192600 Estatuto Editorial pode ser consultado na página www.dependencias.pt

Nicholas Kristof, colunista do “New York Times” num artigo publicado há dias, defende e elogia o “Modelo Português” de combate às drogas, e afirma que embora não sendo uma solução perfeita, ela representa o que de melhor se fez no mundo sobre esta matéria.

Nesse artigo, o jornalista norte-americano refere que o consumo de drogas em Portugal foi encarado como uma doença e um desafio médico e não como uma mera questão crimi-nal e que os resultados são por demais evidentes. Portugal transformou-se no país da Eu-ropa Ocidental com a menor taxa de mortalidade por consumo de drogas e, por essa ra-zão, é um exemplo para várias nações que enviam jornalistas, profissionais e políticos para conhecerem “o milagre português”, que assenta numa estratégia estudada, desenvol-vida e trabalhada por um consistente corpo técnico e profissional, que desenvolve uma ac-ção centrada no cidadão, numa intervenção pensada e articulada, integrando as respostas ajustadas às necessidades de cada território.

É assim que Nicholas Kristof vê o “Modelo Português” e o contributo que Portugal deu ao mundo ao “tratar os toxicodependentes como pessoas doentes e não como crimino-sos”. Mas não é assim que alguma classe política vê o problema e isso, confesso, incomo-da os doentes, as suas famílias e a sociedade… Se o anterior governo decidiu extinguir o IDT, o organismo que tutelava aquele modelo que produzia ganhos em saúde, que rompia estigmas e orgulhava o país, o actual limita-se a fazer nomeações de grupos de trabalho para avaliar as consequências daquela extinção e decidir em conformidade…

Não entendo e ninguém compreende o timing do estudo e das propostas com vista a melhorar a organização que todos reclamam mas que tarda a chegar. O tempo já mostrou que a decisão do governo anterior de extinguir o IDT foi uma medida impensada, inade-quada e que quase destruiu o excelente trabalho de bons e qualificados profissionais, de-senvolvido ao longo dos anos. Mas, mais do que isso, quase destruiu uma rede operacio-nal de respostas integradas que apoiavam pessoas dependentes de álcool, tabaco, jogo e de outras substâncias.

Nesta edição vimos como a esmagadora maioria destes profissionais começa a perder a esperança e a confiança depositada num governo que foi mandatado pela Assembleia da República para repor os níveis de qualidade e excelência que sempre caracterizaram as intervenções em comportamentos aditivos que só um serviço nacional, vertical e espe-cializado pode garantir para responder às necessidades das pessoas em matéria de pre-venção, redução de riscos, reinserção e tratamentos… Acho que está na hora da deci-são…

Sérgio Oliveira, director

Page 3: João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo de drogas em Portugal ... psicoativas lícitas, ilícitas e sobre as ... de ouvir

4SICAD apresenta IV Inquérito Nacional ao Consumo de Substâncias Psicoativas na População Geral:

Mulheres portuguesas

estão a consumir maisForam apresentados, no dia 19 de setembro, no auditório do

Hospital Pulido Valente, em Lisboa, os primeiros resultados do IV Inquérito Nacional ao Consumo de Substâncias Psicoativas na População Geral, Portugal 2016/2017.

Trata-se de um estudo promovido pelo SICAD e executado tecnicamente pelo CICS.Nova (Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa).

A apresentação coube ao investigador principal, Casimiro Bal-sa, que fez uma síntese dos resultados do estudo, que incide so-bre as substâncias psicoativas lícitas, ilícitas e sobre as práticas de jogo a dinheiro.

Este estudo, o 4º realizado em Portugal, permite identificar as principais prevalências de consumo e práticas de jogo para que, posteriormente, sejam definidas as políticas nacionais de interven-ção no combate aos comportamentos aditivos e dependências.

Focando a leitura na população 15-64 anos – para efeitos de comparação com os estudos anteriores - recorde-se que a ten-dência da evolução dos consumos no decorrer dos últimos dezas-seis anos é marcada, num primeiro momento por um aumento en-tre 2001 e 2007, num segundo momento, os resultados apontam para uma ligeira redução ou uma estabilização dos consumos en-tre 2007 e 2012, não obstante poderem ser observadas algumas subidas pontuais no caso de alguns indicadores ou de algumas populações específicas. Entre 2012 e 2016/17, verificamos uma subida dos consumos experimentais de álcool e tabaco, assim como da cannabis, enquanto todas as outras substâncias estuda-das apresentam prevalências mais baixas ou uma estabilidade, no caso da cocaína.

Numa primeira análise dos dados na população compreen-dida entre os 15 e os 64 anos, é possível concluir que o consu-mo de heroína (não colocaríamos a heroína dado que o valor de aumento é residual de 0,0% para 0,1%), de canábis canna-bis e de tabaco nos 12 meses anteriores ao inquérito subiram face aos resultados obtidos no último estudo, elaborado em 2012, especialmente entre as mulheres. As conclusões apon-tam também para um aumento do consumo do álcool - quer seja nos últimos 12 meses, ao longo da vida ou nos últimos 30 dias. Ao longo dos últimos cinco anos, verifica-se ainda um au-mento dos consumos experimentais de álcool, do tabaco e da canábis cannabis, constatando-se uma diminuição da prevalên-cia do consumo entre os homens e uma subida entre as mulhe-res. No caso da canábis cannabis e das substâncias psicoati-vas em geral, homens e mulheres passaram a consumir mais, mas no grupo dos jovens adultos registou-se uma descida entre os homens e uma subida entre as mulheres, tendência igual-mente observada quando a substância consumida são as anfe-taminas.

Considerando agora a análise dos dados o grupo etário da po-pulação entre os 15 e os 74 anos, verifica-se que a idade média do primeiro cigarro e da primeira bebida alcoólica é aos 17 anos, sendo que o consumo regular de canábis cannabis e de tabaco ocorre, em média, aos 18 anos.

A prevalência de jogos de fortuna ou azar (jogos a dinheiro) é de 48,0% na população residente em Portugal. A prevalência é mais elevada entre os homens (51,0%) do que entre as mulheres (45,2%). Comparativamente a 2012 há uma descida de quase 20

Page 4: João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo de drogas em Portugal ... psicoativas lícitas, ilícitas e sobre as ... de ouvir

5pontos percentuais para o total da população. Encontramos entre a população mais jovem (15-34 anos) uma prevalência de jogado-res um pouco inferior (42,8%) à encontrada na população total, sendo que a prevalência de jogadores em risco de se tornarem patológicos subiu de 0,3% para 0,6%.

Já os medicamentos, terceira substância mais consumida na população total, as prevalências descem entre os dois períodos de aplicação considerados, independentemente do género consi-derado.

As prevalências do consumo de qualquer substância psi-coativa ilícita sobem dos 8,3% registados em 2012 para os 10,2% em 2016/17. Registaram-se subidas em ambos os gé-neros quando consideramos a população total, uma descida entre os homens e uma subida entre as mulheres quando consideramos a população jovem adulta. Estas são as ten-dências que se verificam na cannabis, substância que tem o maior peso na prevalência de qualquer substância psicoativa ilícita.

A heroína apresenta uma prevalência de consumo igual à verificada em 2012, quer entre a população total, quer entre a população jovem adulta. Em ambas as populações houve uma diminuição da prevalência do consumo entre os homens e uma subida entre as mulheres.

Em todas as outras substâncias consideradas há uma des-cida das prevalências de consumo ao longo da vida, quer entre a população total quer entre a população jovem adulta, inde-pendentemente do género.

As taxas de continuidade, ou seja, a proporção de indiví-duos que tendo consumido uma dada substância ao longo da vida, declaram ter consumido essa mesma substância nos últimos 12 meses, variam de acordo com a substância. São mais elevadas nas substâncias psicoativas lícitas, principal-mente no álcool (a rondar os 70%), e mais baixas nas subs-tâncias psicoativas ilícitas, principalmente, nos casos das anfetaminas e dos cogumelos alucinogénios (entre 0 e 1%). São mais elevadas entre os homens, exceto no que diz res-peito ao consumo de cocaína e heroína, e entre a população jovem adulta, exceção feita no caso do álcool e medicamen-tos. Comparativamente a 2012, subiram as taxas de continui-dade do consumo de tabaco, medicamentos, cannabis, he-roína e das novas substâncias psicoativas.

A grande maioria da população geral em Portugal é abstinente do consumo de substâncias psicoativas ilícitas (90% no que diz respeito a qualquer substância ilícita; chegando aos 99,8% no que diz respeito aos cogumelos alucinogénios e novas substâncias psicoativas). No caso dos medicamentos, a percentagem de abs-tinentes cai para os 87,5%. Quando consideramos o tabaco, a abstinência ocorre em cerca de metade da população, descendo para 13% da população quando consideramos o consumo de ál-cool. É nesta última substância onde encontramos a maior per-centagem de consumidores correntes – 48% e de consumidores recentes – 10%. De frisar, no entanto, que entre 2012 e a atual aplicação os desistentes subiram de 13% para 27%.

Por fim, refira-se que o atual estudo foi definido para uma amostra teórica de 12.000 inquiridos e que a população de refe-rência, à semelhança do estudo de 2012, tem entre 15 e 74 anos. Para efeitos de comparação do estudo com os anos 2001 e 2007, tomou-se em consideração uma amostra de indivíduos, com ida-des entre os 15 e 64 anos.

JOÃO GOULÃO“Sinto alguma frustração pela forma como estes impactos estão a ser sentidos”

Este estudo revela aumentos de consumos em algumas substâncias… São dados preocupantes, na sua opinião?

João Goulão (JG) – São dados que, para além de terem que ser analisados com mais detalhe, exigem uma atenção es-pecial na redefinição ou na afinação das políticas para a segun-da parte do ciclo estratégico em que estamos. Desenhámos o atual plano estratégico e o plano de ação para os primeiros anos em determinadas condições, houve algumas intercorrên-cias durante o desenvolvimento do mesmo, cujo peso relativo é difícil de avaliar. Refiro-me em concreto à crise económica e social que afetou o país, às flutuações do poder de compra dos cidadãos, com um esmagamento muito sensível e, agora, com alguma retoma que poderá eventualmente já ter algum reflexo nestes resultados… Enfim, há uma série de variáveis que é preciso analisar em maior detalhe, com a participação de sta-keholders de várias áreas da redução da oferta e da procura, tentando perceber como podemos enfrentar isto. Agora, os re-sultados não são bons, claramente.

Em 2012, último ano em que se fez este estudo, vivia-se uma profunda crise e os resultados apontavam várias desci-das ou estabilizações dos consumos. Em que medida poderá ser associada esta subida à retoma económica?

JG – Neste momento, estou apenas a levantar hipóteses… Pretendendo ser intelectualmente honesto, não consigo ter con-clusões acerca daquilo que acabei de ouvir nesta apresentação. Mais uma vez, friso que são dados preliminares, que é possível explorar em determinado sentido e tentar perceber melhor alguns impactos nestas variáveis.

Page 5: João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo de drogas em Portugal ... psicoativas lícitas, ilícitas e sobre as ... de ouvir

6

Relativamente à orgânica dos serviços que intervêm em CAD, tem-se verificado ao longo dos últimos uma grande in-definição quanto ao futuro, o que resultou em perdas de re-cursos e em insatisfação dos profissionais face à transição para as ARS e ao desmantelamento ou enfraquecimento de algumas equipas. Em que medida poderemos associar esta realidade ao recrudescimento de alguns consumos?

JG – Existem claramente dificuldades, seja no atendimento a pessoas com problemas já declarados, seja no desenvolvimento de intervenção preventiva, seja nas políticas de reinserção social, que são uma componente fundamental para o reequilíbrio das pessoas que alguma vez tiveram problemas de dependência… Tudo isto pesa, seguramente. Insistindo na ideia de pretender ser intelectual-mente sério, não quero diabolizar nada disto… Se calhar, juntamente com um grupo alargado de intervenientes nesta área, temos que ten-tar perceber quais são os fatores que mais pesam neste recrudesci-mento. Importa também dizer que nem tudo é negativo. Temos aqui boas notícias, por exemplo relativamente ao abuso de medicamen-tos… E perguntar-me-ão: será que as pessoas tiveram de cortar o acesso aos medicamentos no período mais aceso da crise? Há aqui várias coisas relativamente às quais não é possível, neste momento, dar explicações cabais. Tentaremos trabalhar nelas e, sobretudo, afi-nar a “pontaria” para esta evolução dos problemas. Não há aqui nada de muito novo, continuamos a situar-nos na metade inferior da tabela dos consumos ao nível europeu, o que são boas notícias; de forma geral, as políticas públicas nesta área têm dado bom resultado em Portugal e estamos exatamente para enfrentarmos os problemas à medida que eles aparecem.

Existe algum indicador que o preocupe particularmente?JG – As questões relacionadas com o álcool e as questões de

género, que foram enfatizadas pelo investigador, com um aumen-to muito significativo do consumo abusivo de álcool no género fe-minino; as questões relacionadas com a cannabis, uma substân-cia longe de ser inócua e que faz um caminho e goza de uma acei-tação na nossa sociedade que urge tentar contrariar. Complacên-cia essa que decorre, em grande parte, de movimentos no sentido da legalização ou aceitação do uso terapêutico, relativamente ao qual não tenho nenhuma reserva mas que é, de alguma forma, uti-lizado como um “cavalo de Tróia”, para fazer passar a ideia da ino-cuidade ou mesmo benefícios do uso recreativo, relativamente ao qual temos cada vez mais problemas, com a dependência que daí decorre e a coexistência de patologia mental decorrente desse uso. É preciso que, na sociedade portuguesa, consigamos tam-bém passar a ideia de que este uso não é realmente passível de ser desvalorizado.

Esperava melhores resultados?JG – Francamente, nós sentimos as dificuldades que decorrem

da nossa atividade, das tais alterações estruturais, de uma nova for-ma de trabalhar e de uma maior dificuldade na articulação entre os parceiros. Uma coisa é ter um instituto público de organização verti-cal, que constrói e desenha as políticas e as faz executar directamen-te sem mediação e outra coisa é envolver parceiros de uma forma mais morosa e mais dependente de vontades de terceiros; a diminui-ção dos recursos humanos e financeiros disponíveis para esta área é também uma realidade… Realidades como as que conhecemos nos Casais Ventosos deste país, há 15 anos atrás, pareciam ter desapa-recido completamente mas, na verdade, não despareceram. Houve repercussões significativas nos últimos anos, sobretudo entre a po-pulação mais idosa, centenas de antigos utilizadores que recaíram e que aparecem novamente, agora com menos esperança e menor ca-pacidade de investirem na recuperação total. Portanto, há aqui uma série de condicionantes…

Sente alguma frustração?JG – Honestamente, sim. Não quero pessoalizar a questão mas

dediquei toda a minha vida profissional a esta área e sinto alguma frustração pela forma como estes impactos estão a ser sentidos.

Recentemente, foi criado um grupo de trabalho, precisa-mente para analisar essa questão da estrutura orgânica para esta área em termos de concepção de políticas e de execu-ção… A verdade é que esse grupo foi inconclusivo quanto a uma proposta final e o Governo continua com esta indefini-ção em torno de uma possível solução… Poderão estar em perigo algumas respostas aos CAD?

JG – Quero crer que não… Quero crer que será encontrada uma solução mas isso terá que acontecer a curto prazo. Não po-demos continuar a empurrar as coisas para uma solução que nun-ca mais vem. Devo dizer que os trabalhos no seio desse grupo de trabalho foram inconclusivos, não tendo sido possível consensua-lizar uma proposta única e apoiável por todos, pelo que o que re-metemos ao Governo foram as posições defendida por uns e por outros. E o Governo não assumiu politicamente essa escolha, re-metendo para ulteriores trabalhos e novas consultas… Receio que isto se eternize e as respostas continuem a deteriorar-se.

Recordo que o SICAD já tinha produzido um relatório com recomendações ao Governo há cerca de um ano…

JG – Sim, é um facto… e nunca nos abstivemos de manifes-tarmos a nossa opinião sempre que solicitados para tal.

Relativamente a um indicador particular, que revela um aumento significativo do consumo de álcool na população entre os 15 e os 19 anos, estaremos uma vez mais perante o falhanço das políticas proibicionistas?

JG – A aplicação desta medida da idade passa necessariamente por uma fiscalização, pela intervenção de forças de segurança, etc. Mas, se calhar, a intervenção mais importante é o que, em termos de reforço da autoridade parental, essa fixação pode resolver. Não vou pedir às for-ças de segurança que entrem nos estabelecimentos e abordem os jo-vens que, legalmente, não estão habilitados a consumir bebidas alcoóli-cas se os pais se demitem completamente desse papel. Penso que é fundamental que haja, em casa, essa intervenção, que é seguramente muito mais eficaz do que poderá alguma vez ser a fiscalização.

Page 6: João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo de drogas em Portugal ... psicoativas lícitas, ilícitas e sobre as ... de ouvir

7Ministras da Saúde e da Justiça do Canadá visitam SICAD:

Modelo português continua

inspirar o mundo

Com o objetivo de conhecer as politicas portuguesas em matéria de comportamentos aditivos e dependências, uma delegação de dirigentes e peritos dos Ministérios da Saúde e da Justiça, liderada pelas respetivas Ministras, visitou Lisboa nos dias 27 e 28 de julho.

A Ministra da Saúde, Jane Philpott , a Ministra da Justiça Jody Wilson-Raybould, acompanhadas pelo Embaixador do Canadá em

Lisboa, Jeffrey Marder e vários responsáveis dos respetivos Gabinetes foram recebidos pelo Diretor Geral do SICAD, João Goulão, por Domingos Duran, Chefe da Divisão de Intervenção Terapêutica e por Nádia Simões, Vogal da CDT de Lisboa, que apresentaram aos participantes uma visão geral das politicas portuguesas (com especial enfoque na implementação da lei da descriminalização e no fun-cionamento das CDT), bem como os dados epidemiológicos mais recentes e atividades nas áreas da prevenção, tratamento, redução de riscos e minimização de danos e dissuasão.

A delegação Canadiana aproveitou ainda a ocasião para visitar uma estrutura de RRMD (programa de substituição opiácea de baixo limiar de exigência, a cargo da Associação Ares do Pinhal e financiado pelo SICAD e pela Câmara Municipal de Lisboa), a Unidade de Desabituação-Centro das Taipas, da DICAD/ARS LVT e para um encontro de trabalho com o Ministro da Saúde, Adalberto Campos Fer-nandes. Decorreram igualmente encontros com autoridades portuguesas da área da Justiça, nomeadamente com a Senhora Ministra, Francisca Van Dunem, e uma visita ao Estabelecimento Prisional de Lisboa.

Page 7: João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo de drogas em Portugal ... psicoativas lícitas, ilícitas e sobre as ... de ouvir

82ª Conferência Europeia sobre Comportamentos Aditivos e Dependências:

Manuel Cardoso antecipa

Lisbon Addictions 2017

Começaria por lhe pedir uma ante-visão acerca deste que se espera um grande encontro de saberes, que de-correrá em Portugal…

Manuel Cardoso (MC) – Em pri-meiro lugar, em termos de dimensão, temos neste momento mais de 1100 inscritos, mais de 500 comunicações e mais de 200 posters que serão exibi-dos na conferência… E tivemos cerca de 800 abstracts, o que significa que, em termos de dimensão e de procura, tem sido fantástico. Ainda não temos o programa absolutamente definitivo mas, em princípio, teremos dez salas a funcionarem em simultâneo e três pe-ríodos de sessões paralelas, incluindo a hora de almoço. Tal como fizemos em 2015, teremos sessões plenárias no início e no final do dia e sessões paralelas no restante tempo. Face à dimensão, optámos por oferecer uma lunch box ou algo pa-recido à hora do almoço, que as pessoas poderão levar para as salas e, assim, acompanharem os trabalhos, que serão em contínuo. Entre as nove e as 18h, as sessões serão pra-ticamente ininterruptas.

Quantos países estarão representados na conferência?MC – É engraçado… da última vez que vi esse indicador, já

tínhamos creio que 67 países. Temos representantes de todos os continentes, de todas as regiões da OMS, que são sete, e de todos os países da UE.

Vão estar em foco as dependências com e sem substância psicoactivas, as lícitas e as ilícitas ou apenas estas últimas?

MC – Não… A conferência é sobre comportamentos aditi-vos e dependências, portanto, tudo pode ser discutido, quer as emergentes, quer pensar o futuro, as políticas que podem ser levadas a cabo… tudo está em discussão e absolutamente em aberto.

Que principais diferenças encontraremos entre a pri-meira edição da Lisbon Addictions e esta segunda?

MC – Quanto à primeira, tenho que evidenciar que se tratou de um sucesso. Para mim, foi uma participação muito mais in-tensa e stressante porque entre a dimensão do espaço (que se veio a revelar pequeno), a procura e a relação com custos era complicada. Neste momento, temos uma equipa contratualiza-da, o que nos liberta muito mais em relação à primeira edição, em que a gestão foi muito mais direta. Por outro lado, nesta se-gunda edição é tudo mais intenso face à quantidade de abs-

tracts, de investigadores e das pessoas que vêem mas tudo está a decorrer com muito mais tranquilidade. A dimensão do espaço é completamente diferente, é verdade que os custos também dispa-ram e aí existe preocupação… Mas tam-bém por aí espero ter o mesmo sucesso que em 2015. Uma nota suplementar: a Comissão da DG Justice, no programa de trabalho, abriu um concurso para uma candidatura no âmbito das confe-rências e formações e houve uma enti-dade que, connosco, formou um consór-cio e concorreu a esse projeto, no senti-do de congregar a intervenção em ter-mos de formação com a Lisbon

Addictions. E isso está a acontecer e, portanto, em simultâneo, haverá um grupo de 130 jovens investigadores e jovens profis-sionais que ouvirão parte das comunicações e discutirão esses conteúdos em workshops, no âmbito de um projeto chamado Twist. E o próprio projeto Twist, inicialmente desenhado para acoplar à Lisbon Addictions, convidou alguns investigadores e abrirá sessões aos participantes da Lisbon Addictions.

Na antecâmara desta realização, passaram-se dois anos de intenso trabalho… Pergunto-lhe se valeu a pena o esforço e que mensagem deixaria aos participantes da Lis-bon Addictions…

MC – Permita-me ser absolutamente imodesto na resposta: em primeiro lugar, este é um trabalho feito com o OEDT. Não é uma conferência SICAD, mas antes do SICAD, OEDT, Addic-tion e Isage… E a dimensão europeia do Observatório, o traba-lho que o SICAD fez no âmbito do álcool, com a RAHRA, repre-senta também essa dimensão europeia. E a afluência dos in-vestigadores internacionais transformou a Lisbon Addictions num evento universal. Não sei se a Conferência de Lisboa será já a referência do momento mas passará certamente a sê-lo porque é claramente de âmbito global. Ultrapassámos a dimen-são nacional pelas exigências que nos vão sendo feitas, pelas várias visitas que nos fazem dos diferentes cantos do mundo, a tentar perceber o que é o modelo português, nomeadamente no âmbito das ilícitas, mantendo-a nesta edição em que teremos conferências sobre o nosso modelo mas diria que é essa di-mensão quase universal que nos faz sair do SICAD ou deste cantinho à beira mar plantado e nos torna cidadãos do mundo. E aí está a minha imodéstia… se pudermos mudar alguma coi-sa, perfeito! E acho que já o conseguimos, nomeadamente adoptando a designação/marca “comportamentos aditivos e de-pendências”, que está também a universalizar-se.

Page 8: João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo de drogas em Portugal ... psicoativas lícitas, ilícitas e sobre as ... de ouvir

9Manuel Cardoso foi o representante português na reunião dos coordenadores nacionais da UE:

Estónia mostra à UE como

lidar com ameaça Fentanil

Em que contexto surgiu esta reunião da presidência da UE, encabeçada pela Estónia?

Manuel Cardoso (MC) – Todas as presidências da União Europeia organizam uma reunião dos coordenadores nacionais de cada um dos países dedicada à discussão de um tema que consideram de especial importância ou preocupação. Simulta-neamente, esta reunião serve para partilharem informação do que vão fazendo em cada um dos países e discutirem o que se poderá fazer em parceria, com o objetivo de evoluírem face a cada um dos problemas que vão sendo identificados. Neste caso, essa reunião decorreu em Talin, na Estónia, país a quem cabe a atual presidência da UE e que denota hoje uma preocu-pação, que é já premente em países como os EUA e o Canadá, que é o consumo de Fentanil, um opiáceo que tem vindo a substituir ou a ser usado conjuntamente com heroína. Nestes casos do Canadá e dos EUA têm mesmo havido mortes por overdose em quantidades completamente absurdas. Por outro lado, em termos europeus, a Estónia parece ter sido um dos países onde o Fentanil tem sido mais vendido, substituindo mesmo a heroína. E, não sendo a coordenação nacional da área da saúde, o enfoque terá sido dado à vertente segurança, através de uma intervenção policial que visa a redução da ofer-ta, a verdade é que os estónios se orientaram muito especifica-mente para a oferta/combate ao tráfico de Fentanil. Não estão “preocupados”, porque não têm dispositivos nem recursos fi-nanceiros, para se dedicarem também à redução da oferta de

outras substâncias ilícitas como a canábis, porque se dedica-rem claramente ao Fentanil. E tiveram sucesso nessa vertente. Em termos redução do número de overdoses, tiveram também sucesso na implementação de um programa de redução da procura, que tem a ver com a utilização de um antagonista, com doses que estão disponíveis inclusivamente para os con-sumidores ou para as suas famílias, na tentativa de estarem perto com um “antídoto” mais ou menos no momento em que possam consumir uma quantidade que possa gerar uma over-dose. Enquanto opiáceo, o Fentanil tem uma característica muito específica que se prende com o facto de a dose de segu-rança ser muitíssimo baixa. Ou seja, entre o consumidor ficar bem e ter uma overdose, uma quantidade mínima de pode ser fatal. Portanto, o risco é muitíssimo maior…

E o que poderemos retirar dessa experiência?MC – A sensação que fica é que, com esta nova droga a

ser entregue pelo correio vinda da China, facilmente pode che-gar a qualquer mercado da UE. A nossa preocupação ali foi que qualquer dia poderemos ser confrontados com um surto de risco. Por outro lado, constatámos que, se estivermos prepara-dos, é possível agir em conformidade e de imediato, nomeada-mente com o tal antagonista. Em suma, esta reunião, a primei-ra para mim, foi bem interessante… E ainda bem que estive lá porque fiquei muito mais desperto para o que poderá vir a acontecer…

Page 9: João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo de drogas em Portugal ... psicoativas lícitas, ilícitas e sobre as ... de ouvir

10Artigo de (com) opinião, Ana Feijão:

Dependências, grupos de trabalho e Kafka,

ou o risco de deitar fora a criança, a água

do banho e a banheira…

O modelo português de intervenção nos comportamentos aditivos e dependências foi reconhecido internacionalmente como a resposta mais eficaz, inovadora, coerente, humanista e com maiores ganhos em Saúde, entre as abordagens tentadas por todo o mundo, com o seu profundo humanismo e a percep-ção do inultrapassável direito à dignidade de qualquer homem ou mulher doente. Com a Lei da descriminalização do consumo de substâncias psicoactivas retiraram-se do sistema penal, e trouxeram-se ao mundo da Saúde, milhares de pessoas doen-tes, que eram penalizadas e condenadas pela sua doença e que devido à criminalização dos seus comportamentos viviam no medo de ser descobertos e, por isso, no medo de procurar ajuda e tratamento.

Graças à força mobilizadora e ao incrível empenho que diri-gentes e profissionais do organismo de combate às dependências dedicaram a esta causa, conseguiram-se em Portugal ganhos an-tes inimagináveis.

A abrangência da visão no tratamento de dependentes, fora do contexto redutor dos serviços de Psiquiatria, permitiu uma abordagem multifactorial que teve em conta as dimensões do pro-blema em termos de Saúde Mental mas também de Saúde Públi-ca, e a abordagem especializada da prevenção, da reinserção e da redução de riscos e danos.

O Instituto da Droga e Toxicodependência foi extinto pelo go-verno de Passos Coelho, sem que houvesse alguma outra razão para além de preconceitos ideológicos conservadores e ignoran-tes nesta matéria e sem que houvesse qualquer tipo de visão ou plano para substituir os serviços e as respostas que se desmante-lavam. Contribuíram também os preconceitos corporativos de al-guma Psiquiatria que nunca se quis ocupar destes doentes, mas não suporta que qualquer aspecto da Saúde Mental escape ao controlo que nunca conseguiu manter sobre os seus próprios ser-viços e que continua a degladiar-se numa paroquial guerra de ter-ritórios e quintinhas.

A extinção resultou na criação de uma cabeça sem corpo e de um corpo desmembrado em pedaços, que se calculava virem a apodrecer rapidamente.

Criou-se uma direcção geral sem funções, a cabeça decepa-da, apenas porque a necessidade de uma aparência de decência o impunha. Não parecia bem dispensar sumariamente profissio-nais tão prestigiados internacionalmente como o Dr. João Goulão, rosto do modelo português de intervenção no problema das de-pendências, e da realidade traduzida em relatórios internacionais sobre factos como o consumo de drogas e álcool em Portugal se situar abaixo da média europeia.

As equipas locais de intervenção, o “corpo desmembrado”, fo-ram atribuídas, ou distribuídas, às ARSs, em situação provisória no início, e precária sempre, com tratamentos e atribuições dife-rentes consoante as ARSs em que se encontravam.

Repetidamente alertado para a degradação a que as respos-tas estavam submetidas, o actual Ministério da Saúde, criou (mais uma vez) um grupo de trabalho, para se debruçar sobre o assunto. A primeira questão que o Ministério da Saúde colocou ao grupo foi sobre os eventuais prejuízos resultantes da integração das unida-des locais de intervenção nas ARS.

É aqui que o paradoxo surge, a situação impossível se descobre, o drama kafkiano nos atinge. Funcionando no quadro criado pela destruição do IDT, os profissionais, porque eram profundamente em-penhados naquilo que faziam e profundamente conscientes da im-portância e validade do seu trabalho, fizeram o impossível, contra to-das as dificuldades e constrangimentos, maltratados e submetidos a desigualdades inaceitáveis de avaliação e condições de trabalho, numa constante incerteza e luta contra a dissolução anunciada, para continuar a manter as respostas a funcionar. Espoliados de recursos humanos e materiais, mantiveram as intervenções, maximizando ao limite as capacidades dos profissionais e dos serviços.

O grupo de trabalho deparou-se, assim, com a constatação de que os prejuízos da integração não foram demasiados. Não fora a luta insana dos profissionais para manter os serviços e as respos-tas a funcionar, poderia responder-se que a situação piorou muito! Mas não. Apesar dos resultados preliminares de estudos recentes apontarem para um aumento de consumos nestes últimos anos, e a realidade mostrar serviços desmantelados, uma conclusão su-perficial (e conveniente) do grupo de trabalho é que, então, talvez seja de manter o tipo de solução sem planeamento, sem razão e sem sentido antes encontrada. Ou seja, concretizar finalmente a destruição que só não aconteceu plenamente porque a boa-vonta-de e o imenso esforço dos profissionais impediu.

Quando pensamos em serviços de saúde deveríamos avaliar, antes de tudo, que ganhos obtêm as pessoas que deles usufruem. Nenhum dos profissionais desta área duvida que os ganhos que os nossos utentes obtêm dos nossos serviços são muito superio-res aos que obtêm quando são tratados em serviços não vocacio-

Page 10: João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo de drogas em Portugal ... psicoativas lícitas, ilícitas e sobre as ... de ouvir

11

nados, sem coerência e competências específicas, sem uma ver-dadeira cultura organizacional relativa aos processos de interven-ção na área das dependências. Ninguém informado duvida, tam-bém, de que os variadíssimos ganhos económicos, da existência de respostas eficazes e coerentes, (quando os estudos são eco-nómicos e não economicistas), são reais. Portugal não tem falta de respostas nalguns aspectos desta área da saúde, mas tem uma multiplicidade de intervenções fragmentadas, desarticuladas e que se atropelam entre si, que constitui uma importante disper-são de recursos humanos e técnicos.

Perder a oportunidade de re-criar um serviço que constitua uma verdadeira rede de cuidados em comportamentos aditivos e dependências, com unidade e coerência, vai agravar essa disper-são e concretizar, finalmente, aquilo que o governo Passos Coe-lho tanto tentou, sem sucesso.

É este o drama kafkiano com que os profissionais esgotados por anos de incerteza e dificuldades são confrontados agora! Ao fazerem das tripas coração, transformando as adversidades em forças, para salvar respostas em saúde e impedir a destruição imediata dos serviços, arriscaram a responsabilidade moral de contribuírem para os condenar, a prazo, à destruição!

O grupo de trabalho vê agora o seu tempo de vida e obriga-ções prolongados, com a “nova” tarefa de auscultar, articular estu-dar e avaliar (seria suposto tê-lo feito logo que foi mandatado para apontar soluções…) sendo-lhe encomendado que estude a possi-bilidade da construção de um modelo em matriz que inclua uma visão nacional técnico-normativa e funcional, apoiado na orgânica das unidades incluídas nas ARSs numa rede de organização efec-tiva de integração de cuidados”.

Esperemos que, por uma vez, a lucidez impere, o interesse dos doentes se sobreponha a interesses corporativos e a busca de excelência sobreleve a mesquinha pequenez

E que seja possível recuperar o melhor daquilo que tínhamos, um serviço que cuidava dos dependentes com uma perspectiva competente, específica e coerente de norte a sul do país, adicio-nando aquilo que faltava, a integração efectiva no SNS e uma re-lação próxima e estreita com todas as suas estruturas. Constituir-

-se-á assim uma verdadeira rede nacional de cuidados em adi-ções, com coerência técnica e funcional e a especificidade neces-sárias, num organismo nacional com a proximidade e adequação regional e local que uma articulação eficaz com as várias estrutu-ras de saúde vai permitir em cada região do país. Para isso impor-ta manter a autonomia das unidades de internamento. Nesta era de partilha de recursos não se justifica a integração nos hospitais, mas sim a partilha de recursos com os mesmos. A integração pura e simples destruirá a coerência e operacionalidade de um modelo de tratamento de excelência, com mais valias efectivas. Veja-se os exemplos da Unidade de Alcoologia de Coimbra, ou da UD ou até da CTAI, para falar apenas da minha realidade. Uma rede de cuidados públicos em adições deve incluir unidades de excelência que sejam modelo e escola simultaneamente. Integrar as unida-des de internamento nos hospitais e não no serviço/rede nacional de adições, será deitar fora com a água do banho, não só a crian-ça, mas a banheira, a toalha e o sabonete.

Ana Maria Feijão Neves da Silva Gomes Coordenadora e directora clínica da Unidade de Alcoologia de Coimbra

Page 11: João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo de drogas em Portugal ... psicoativas lícitas, ilícitas e sobre as ... de ouvir

12Projeto resulta de parceria entre DICAD da ARS Centro, CRI de Aveiro, SICAD e autarquia local:

Projeto Mais Saúde no

Trabalho chega à autarquia

de Albergaria-a-VelhaO Projeto Mais Saúde no Trabalho resulta de uma parceria en-

tre o município de Albergaria-a-Velha, a DICAD da ARS Centro/CRI de Aveiro e o SICAD. Consiste essencialmente numa inter-venção que visa prevenir o consumo excessivo de álcool e de ou-tras substâncias em meio laboral, desenvolvida junto dos traba-lhadores da autarquia local e elege como objetivos a adopção de comportamentos mais saudáveis a nível pessoal e profissional. O projeto é materializado em ações que visam sensibilizar e desper-tar os trabalhadores para a sua responsabilização e envolvimento nestas matérias, bem como em apoio terapêutico aos trabalhado-res que já se encontrem em situação de risco ou dependência.

Não perspetivando uma abordagem punitiva mas antes de responsabilidade e envolvimento, esta intervenção visa informar os trabalhadores sobre os efeitos psicológicos e fisiológicos do consumo abusivo de álcool e de outras substâncias, o impacto so-bre o indivíduo e o local de trabalho e a existência de mecanismos de apoio e de aconselhamento social, psicológico e médico.

Dependências foi conhecer este projeto, em visita ao CRI de Aveiro, onde entrevistámos Cristina Conceição da Equipa de Pre-venção local.

CRISTINA CONCEIÇÃO

“É necessário uma intervenção integrada para prevenir os consumos em meio laboral”

Em que consiste concretamente este protocolo celebrado com a autarquia de Albergaria-a-Velha para intervenção em meio laboral?

Cristina Conceição (CC) – Este protocolo vem estabelecer as formas de cooperação entre a Câmara Municipal de Albergaria, o SICAD e a ARS Centro através da DICAD/CRI de Aveiro no âm-bito do Projeto Mais Saúde. Este projeto consiste numa interven-ção que visa a promoção da saúde e segurança no trabalho e con-cretiza-se com o desenvolvimento de ações de prevenção dos ris-cos profissionais decorrentes do consumo de substâncias psicoa-tivas em meio laboral. Parte-se do pressuposto de que o consumo de substâncias psicoativas no local de trabalho é um problema de segurança e saúde que pode ser alvo de deteção precoce e enca-minhamento para tratamento, com o menor tempo possível de afastamento do local de trabalho, e que deve contemplar ações preventivas, tendo em conta que estas são menos onerosas do que as relacionadas com o tratamento para além de que promo-vem a produtividade e competitividade da organização.

Como são desenvolvidas as ações?CC – A intervenção inicia-se com uma reunião que envolve

os responsáveis da autarquia, o CRI/DICAD e o SICAD na qual se efetua um levantamento das preocupações no âmbito da problemática dos comportamentos aditivos e se definem as li-nhas gerais do projeto. O passo seguinte é a elaboração de um folheto informativo que para além de divulgar o projeto contém um pequeno questionário anónimo que deverá ser respondido por todos os trabalhadores. Este questionário permite-nos efe-tuar um diagnóstico que servirá de base à definição da inter-venção para que esta corresponda às necessidades identifica-das. Entretanto é efetuada uma apresentação formal do projeto e dos resultados do questionário aos responsáveis da autar-

Page 12: João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo de drogas em Portugal ... psicoativas lícitas, ilícitas e sobre as ... de ouvir

13

quia numa perspetiva de proporcionar a reflexão sobre o dese-nho inicial do projeto e sugerir eventuais alterações. A partir da-qui iniciam-se as sessões de formação envolvendo, num pri-meiro momento, as chefias e depois os restantes trabalhado-res. As sessões são realizadas em pequenos grupos, privilegiando a criação de uma relação de proximidade com os vários intervenientes. Estas visam a sensibilização para a pro-blemática dos comportamentos aditivos e para as consequên-cias dos consumos de substâncias psicoativas no local de tra-balho, no sentido de potenciar a alteração de comportamentos e, simultaneamente, divulgar as respostas existentes no terre-no e as formas de aceder às mesmas.

Há quanto tempo iniciaram este projeto?CC – Em Albergaria-a-Velha, iniciámos o projeto em dezem-

bro do ano passado com a primeira reunião de trabalho com os responsáveis da autarquia e, neste momento, estamos na fase de implementação das sessões de formação juntos dos trabalhado-res.

Mais do que oferecer respostas, estamos a falar em pre-venção e sensibilização e, eventualmente, em redução de ris-cos?

CC – Sim, trata-se de um projeto com enfoque na prevenção até porque sabemos que a maioria dos trabalhadores não é de-

pendente de substâncias psicoativas ainda que possam existir pa-drões de consumo nocivo ou intoxicações agudas por álcool ou outras substâncias psicoativas. Podemos igualmente falar em re-dução de riscos na medida em que ao alertarmos para os riscos profissionais relacionados com o consumo de álcool e outras substâncias psicoativas estamos a contribuir para a redução de riscos para os próprios e para os restantes trabalhadores. Além disso, temos a preocupação de efetuar um trabalho articulado com a saúde ocupacional numa perspetiva de detetar precoce-mente situações de risco e de criar mecanismos que permitam aproximar os trabalhadores com comportamentos de consumo problemáticos das respostas existentes nos nossos serviços, no-meadamente das respostas de tratamento.

Isso tem acontecido?CC – A avaliação que realizámos até ao momento não nos

permite ainda ter esse nível de resposta, além disso, reconhece-mos que apesar do investimento ao nível da avaliação, os benefí-cios para os trabalhadores e organizações são dificilmente quanti-ficáveis. No entanto parece-nos evidente que esta intervenção traz benefícios quer para os indivíduos quer para as organizações visíveis no aumento da produtividade e competitividade, bem como, na diminuição dos comportamentos de risco e consequente aumento do nível de saúde dos trabalhadores.

Page 13: João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo de drogas em Portugal ... psicoativas lícitas, ilícitas e sobre as ... de ouvir

14Entrevista com Emídio Abrantes, representante do Grupo de Aveiro:

Existem muitos serviços em

risco, nomeadamente com

falta de recurso médicos

O Grupo de Trabalho sobre alterações ao modelo organi-zacional do SICAD, criado pelo Governo no sentido de es-tudar uma possível alteração orgânica no âmbito dos CAD já elaborou o Relatório final, que foi inconclusivo quanto a uma solução concreta... Como avalia o Grupo de Aveiro esta indefinição?Emídio Abrantes (EA) – Muito mal! Acreditamos estar peran-

te mais um adiamento relativamente a soluções que deveriam ser facilmente tomáveis, por uma razão muito simples: existe uma proposta de reestruturação do serviço que foi enviada pelo SICAD ao Governo no dia 16 de setembro de 2016… Confesso que esta proposta também nos suscitou algumas dúvidas mas, ainda as-sim, mantém alguma coerência e respondia aos anseios dos pro-fissionais que exercem atividade nos CRI e era uma base de tra-balho importante. A verdade é que, passado um ano, continuamos com o mesmo problema. E mais grave ainda, o Governo pediu mais um sem número de estudos e relatórios para, novamente, sustentar uma decisão que não sabemos por onde poderá passar. Confesso que estamos muito preocupados…

Mas reconhece algo positivo nesse relatório publicado pelo Grupo de Trabalho?EA – Sim… Ainda assim, o relatório do Grupo de Trabalho, publi-

cado a 20 de julho, tem algumas coisas positivas, sobre as quais gos-taria de falar… Desde logo, porque reconhece que as políticas públi-cas no domínio do combate aos CAD é algo importante; também por-que reconhece o esforço dos profissionais em manterem em funcio-namento a resposta ao nível do terreno, apesar das enormes contrariedades, dificuldades e constrangimentos; reconhece que a extinção do IDT foi precipitada e não foi ponderada; reconhece que as Unidades de Intervenção Local devem ser mantidas autónomas;

reconhece a especialização em CAD; aceita, com unanimidade, que se deve reestruturar a resposta pública no âmbito dos CAD; e há um consenso generalizado, excepto do Conselho Nacional de Saúde Mental, para um serviço nacional e vertical, embora ganhe nuances nas audições dos coordenadores das DICAD das ARS.

Presumo que sobressaiam os pontos negativos…EA – Desde logo, o facto de o relatório ser inconclusivo… Por

outro lado, não foram ouvidos os profissionais no processo de ela-boração do referido relatório nem foi tido em conta aquilo que são os 40 anos de experiência de trabalho em serviços públicos no âmbito dos CAD. E foram produzidos documentos técnicos por parte dos profissionais que nem sequer foram mencionados… Não foram ouvidas as plataformas existentes de cidadãos que de-fendem os interesses de indivíduos com CAD; Estranhamos as re-comendações do Conselho Nacional de Saúde Mental, que não tiveram em conta o conjunto dos pareceres formulados pelos seus membros, designadamente da Ordem dos Psicólogos e da Ordem dos Enfermeiros, que apontam caminhos diferentes. E estranha-mos que a direcção do CNSM tenha tomada essa postura, que não é consensual e não reflete o todo. Outra coisa que estranha-mos é que o Governo esteja ainda a pedir pareceres e estudos e adiar por mais 120 dias… é incompreensível… alguns dos parece-res solicitados já são públicos e mais uma vez vão ao encontro dos anseios dos profissionais nomeadamente o da Ordem dos En-fermeiros e o do Sindicato dos Quadros Técnicos do Estado e En-tidades com Fins Públicos. É também público um relatório produ-zido pela Associação Nacional das Unidades de Saúde Familiar.

Mas se já havia consenso por parte dos profissionais re-lativamente à necessidade de mudança e ao caminho a seguir quanto a uma solução organizacional, veria algu-ma necessidade quanto à criação do Grupo de Trabalho?EA – Não. Penso que não era necessário…

Entretanto, a solução tarda em surgir… Em que medida poderá haver aqui algum critério económico a constituir uma barreira?EA – Não sei se haverá algum critério económico mas haverá

com certeza racionalização imposta para o desenvolvimento de novos serviços públicos…estamos na era da concentração de ser-viços….

E que motivos encontra o Grupo de Aveiro para que o Gru-po de Trabalho não tenha conseguido produzir uma solu-ção que reflectisse a opinião de um conjunto de peritos?

Page 14: João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo de drogas em Portugal ... psicoativas lícitas, ilícitas e sobre as ... de ouvir

15

EA – Creio que existem questões de fundo interessantes que foram reveladas no relatório. São questões que se prendem com concepções, modelos organizacionais e a forma como se opera-cionaliza a centralidade no cidadão. Todos estão de acordo que os serviços têm que estar próximos dos cidadãos e que sejam confi-guradas mais autonomias para que possam ser mais capazes de decidir. O que me parece estar em causa é o conceito de promo-ver essa proximidade. Para alguns, o conceito de chegar mais próximo do cidadão passou pelo desmantelamento de um serviço e pela criação de uma unidade inexistente nas redes e nas plata-formas formais de referenciação… ficamos com duvidas com essa ideia de proximidade e de modelo… Acontece que, na nossa ativi-dade profissional no âmbito dos CAD, tem que haver coerência nacional. Somos um país tão pequeno que não se justifica estar desmembrado. Os nossos utentes precisam de coerência do pon-to de vista dos seus tratamentos parece-me difícil que um utente, em determinada região do país, possa ter acesso a um programa e noutra região não tenha. Atualmente observam-se disparidades e assimetrias no acesso aos tratamentos nomeadamente no aces-so ao tratamento em comunidades terapêuticas. As ARS têm hoje comportamentos diferentes a este nível. Portanto, tem que haver um modelo organizacional que seja mais ou menos comum e coe-rente para poder garantir o sucesso do trabalho integrado com o utente, suas famílias e os diversos sistemas.

Isso leva-nos a pensar no sucesso do nosso já extinto mo-delo…EA – Sucesso esse que passou por um modelo integrado. E o

modelo integrado passa pelo tratamento, pela prevenção, pela re-inserção, pela redução de riscos e pela dissuasão. São cinco pila-res essenciais para o modelo integrado, que hoje se encontram espartilhadas e fragmentados. O próprio PORI é um programa in-tegrado que, neste momento está tudo…mas menos integrado. Nesta altura, deveria voltar a fazer-se um diagnóstico nacional e uma avaliação da situação a nível de CAD de forma transversal no país, voltando a procurar perceber-se onde estão as manchas dos problemas. O que está a ser feito são actualizações de diagnósti-cos em territórios já contemplados com intervenções…

Aquando da alteração organizacional que ditou a extin-ção do IDT e a criação do SICAD, de que resultou ainda a transferência dos CRI para a égide das ARS, algo que se manteve intacto foram as equipas desses CRI. Ora, se es-

ses recursos humanos passaram de uma tutela para outra não seria legítimo esperar-se a continuação da integração das respostas?EA – Um dos dados do relatório aponta precisamente o reco-

nhecimento do esforço dos profissionais em manterem em funcio-namento a resposta ao nível do terreno, apesar das enormes con-trariedades, dificuldades e constrangimentos. Uma das premissas do Grupo de Trabalho consistia em fazer o levantamento das con-sequências da extinção do IDT e um dos indicadores passava por avaliar estatisticamente a capacidade de resposta das Unidades aos cidadãos com CAD. E constataram que, globalmente e esta-tisticamente, não houve perdas ao nível do trabalho no terreno… Pois claro que não há perdas, porque os profissionais que exer-cem a sua atividade nos CRI apresentam uma cultura de trabalho e de dedicação extraordinária. Na verdade, embora todos nós te-nhamos ficado contrariados com a situação resultante dessa alte-ração organizacional, estivemos sempre centrados no trabalho e nas respostas que temos de dar aos nossos cidadãos e à comuni-dade e não nos problemas estruturais da organização. Localmen-te os profissionais asseguram e teimosamente mantêm em funcio-namento unidades que provavelmente já deveriam ser repensa-das!

No entanto, sabemos que tal como os utentes, também os profissionais estão a sofrer consequências negativas…EA – Sim, claro que estão… Muitos profissionais foram-se

embora. Tivemos saídas de colegas dos serviços, uns por idade, outros antecipando a saída, outros pedindo mobilidade… e os que ficaram desdobram-se todos os dias para fazerem o melhor, a de-dicarem-se. Essas saídas não foram colmatas, o quadro pessoal está envelhecido, não entra gente nova há muito tempo, somos um quadro altamente especializado e com muitas competências, capaz de responder a uma série de problemas, quer na interven-ção como na investigação e que, pura e simplesmente, está atual-mente sobrecarregado. Existem muitos serviços em risco, nomea-damente com falta de recursos médicos. Existem serviços que apenas dispõem de um médico e enfermeiros alguns dias por se-mana…são serviços clínicos que deveriam ter uma equipa multi-disciplinar permanente para assegurar os tratamentos diários…Existirão, provavelmente, tarefas e funções que não deveriam ser assumidas por determinados profissionais…

Page 15: João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo de drogas em Portugal ... psicoativas lícitas, ilícitas e sobre as ... de ouvir

16

Terá tudo isto a ver com a perda da visibilidade do fenó-meno toxicodependência em Portugal? Ou seja, vocês contribuíram para a melhoria dos resultados e, ao mesmo tempo, quase que se “auto mutilaram” por essa via…EA – Ainda bem que é assim quanto à diminuição da visibilida-

de e aos resultados mas, neste momento, não vejo que o Ministé-rio da Saúde desconsidere esta questão dos CAD. Creio que terá mais a ver com a perspetiva de modelo organizacional e racionali-zação de serviços públicos. Até entendo que a proposta de des-centralização ou integração possa ser um caminho a seguir mas a verdade é que ainda não estamos prontos para lá chegarmos. Até porque a dinâmica organizacional dos ACES, prevista há quase uma década, nunca foi completada. Continuamos com confusões e disparidades no terreno, com as ULS, ACES e Mega ACES, que funcionam e outros não, com dinâmicas organizacionais, todas elas por complementar e vamos agora ser encaixados numa es-trutura que ainda não está organizada? E a nova lei orgânica do Ministério da Saúde? Que sentido faz integrarmo-nos numa enti-dade que ainda não se encontra desenvolvida no terreno, numa altura em que os problemas dos CAD têm um recrudescimento, onde o problema da canábis se acentua, onde os problemas da heroína e da cocaína se agravam em determinadas zonas do país, o aparecimento de novos opioides a serem usados para con-sumos, o grave problema do álcool, as dependências sem subs-tâncias? Neste momento, importa recuperar enquanto é possível a capacidade de resposta e perspetivar com um prazo devido um novo enquadramento organizacional no âmbito dos CAD. Repito: a própria Associação Nacional das USF acredita, tal como todos os profissionais, que tem que haver uma autonomia funcional e técnica e a melhor maneira de garantir coerência dessa autono-mia não passa pela integração nos ACES mas passa por constituir um serviço especializado em adições, num modelo integrado, coeso, coerente, compreensivo e flexível, permitindo intervenções individualizadas com adaptação dos recursos às necessidades do utente, quer do ponto de vista clínico quer do ponto de vista social, respondendo à multiplicidade de fatores associados a esta doen-ça é essencial. Exige uma intervenção multidisciplinar e em rede, com recurso a vários tipos de respostas e estruturas terapêuticas adaptados à pessoa, é em nossa opinião necessário reestruturar um serviço de âmbito nacional que coordene e execute as políti-cas em matéria de CAD. Integrada no SNS e em articulação per-

manente, como sempre estivemos com as estruturas locais de saúde, cuidados saúde primárias e hospitais.

Basicamente, ninguém está satisfeito com o panorama atual…EA – É verdade. E devo acrescentar que o modelo atual é in-

sustentável…A manutenção deste modelo de intervenção bicéfa-la, SICAD vs ARS, com as características que tem hoje é insusten-tável e não é desejada por ninguém a não ser por organizações que desconhecem o terreno. A mudança é urgente e necessária sob pena de se perder um quadro de pessoal altamente especiali-zado e desmembrar aquilo que foi um serviço de ponta, quer no rigor técnico, cientifico, administrativo e financeiro com reconheci-mento internacional.

Ninguém está satisfeito, o Grupo de Trabalho não conse-guiu ser conclusivo face a uma recomendação… se nos colocarmos na posição de um ministro ou secretário de estado, que tem que decidir… também não parece ser fá-cil…EA – Pois não… Mas ele tem a solução na mão. Só não avan-

çam porque não querem… Poderá não resolver os problemas dos profissionais, poderá não resolver de forma imediata o problema da contratação de novos profissionais, comum e transversal à adminis-tração pública, só ultrapassado na estreita articulação com a rede SNS, mas resolve o problema de integração e de coesão, resolverá um problema que se prende com a qualidade das respostas integra-das no terreno, na capacidade de montar uma resposta eficaz, nos novos desafios das adições e tal como outras doenças crónicas esta multiplica-se, reinventa-se, adapta-se, molda-se ao tecido sociocultu-ral das comunidades, resolverá um problema de ligação com as co-munidades formais e informais e ligará as instituições a nível macro, meso e micro seguramente de forma mais eficaz.

Que ações estarão previstas, nos próximos tempos, no seio do Grupo de Aveiro?EA – O Grupo de Aveiro recebeu, no dia 24 de julho, um des-

pacho do Sr. Secretário de Estado Adjunto e da Saúde que diz que, relativamente ao Relatório enviado por parte do Grupo de Trabalho criado por despacho, foi exarado despacho no sentido do referido Grupo de Trabalho efectuar audição aos profissionais ligados à temática. Portanto, sabemos que seremos ouvidos pela Secretaria de Estado da Saúde, assim como pela Comissão Par-lamentar de Saúde… Estamos à espera…

Page 16: João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo de drogas em Portugal ... psicoativas lícitas, ilícitas e sobre as ... de ouvir

17

Page 17: João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo de drogas em Portugal ... psicoativas lícitas, ilícitas e sobre as ... de ouvir

18Rede Social de Felgueiras reforça parceria:

Felgueiras apresenta Plano

de Respostas Integradas para

Comportamentos Aditivos e Dependências

A Rede Social de Felgueiras, em colaboração com o Centro de Respostas Integradas (CRI) Porto Oriental – Unidade da ARS Norte – e várias entidades do concelho, têm vindo a desenvolver um trabalho no âmbito da intervenção em Comportamentos Aditi-vos e Dependências, que culminou na elaboração do Plano de Respostas Integradas do Território de Felgueiras.

No seguimento do trabalho realizado, foi apresentado publica-mente, no Auditório do Edifício dos Paços do Concelho, no dia 15 de setembro, o Plano de 2017, sessão que serviu ainda para a as-sinatura do Compromisso de Colaboração entre as futuras entida-des que constituirão o Núcleo Territorial do Programa de Respos-tas Integradas de Felgueiras, no âmbito da intervenção em Com-portamentos Aditivos e Dependências (CAD). A cerimónia contou com a presença dos representantes de várias envolvidas no pro-cesso, como o Centro de Respostas Integradas (CRI) Porto Orien-tal, a Câmara Municipal de Felgueiras, o Centro Distrital de Segu-rança Social do Porto, o

ACES Tâmega III – Vale do Sousa Norte, a Guarda Nacional Republicana (Destacamento Territorial de Felgueiras), a Santa Casa da Misericórdia de Felgueiras, os Agrupamentos de Escolas do concelho, a Escola Secundária, a Escola Profissional de Fel-gueiras, Escola Superior, o Centro de Formação, a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de Felgueiras, associações e clu-bes desportivos.

Dependências esteve presente no evento, onde entrevistá-mos Inácio Ribeiro, Presidente da Câmara Municipal de Felguei-ras e Jorge Barbosa, Coordenador do CRI Porto Oriental.

INÁCIO RIBEIRO, PRESIDENTE DA CÂMARA MUNICIPAL DE FELGUEIRAS“Pretendemos reduzir os indicadores atuais”

Que importância atribui à assinatura deste PRI para o concelho de Felgueiras?

Inácio Ribeiro (IR) – Desde que estou na autarquia, tenho de-senvolvido, sempre que posso e no limite, ações de parceria para realizar as iniciativas mais simples… Esta é uma comunidade com 60 mil habitantes, servida pelas mais diversas instituições sociais, culturais, desportivas, educativas e de outras naturezas e tenho a noção clara de que, seja em que área for, ninguém faz um percur-so sozinho. O homem é o animal mais dependente à superfície da Terra. Se o planeta Terra existisse sem homens e mulheres, teria, seguramente, mais anos de vida. E, não obstante a nossa racio-nalidade, se somos tão dependentes, temos que ter a noção e a consciência de que temos que partilhar, que cooperar, que desa-fiar todas as instituições mesmo para os mais simples planos de ação, seja em que área for, de forma a comprometer todos. Neste caso concreto estamos a falar de uma área muito sensível: os comportamentos aditivos, desviantes e as dependências, que nor-malmente atingem populações em fases de transição do seu cres-cimento, quer do ponto de vista físico, quer do ponto de vista da sua percepção do mundo, emocional… Aqui vimos, pelos estudos produzidos, com base em questionários realizados juntos de cen-tenas de meninos e meninas e milhares de respostas, num univer-so que atingiu jovens dos 11 aos 22 anos, que o pico dos grandes desafios se coloca entre os 12 e os 16 anos. De facto, correspon-de à idade em que o homem e a mulher mais sonham e pensa ser imortal, de uma forma entusiasta, acreditando no auto domínio…

Que principais problemáticas destacaria a partir desse diagnóstico?

IR – A análise técnica dos estudos e dos inquéritos aqui de-senvolvidos, permite-nos verificar que, com nuances próprias do género e ligeiramente da idade, as principais problemáticas an-dam em torno do álcool, do tabaco e das tradicionalmente desig-nadas drogas mais leves. Por outro lado, também constatámos al-

Page 18: João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo de drogas em Portugal ... psicoativas lícitas, ilícitas e sobre as ... de ouvir

19guma dependência das tecnologias, nomeadamente da internet e do jogo.

Partindo de uma análise do passado e do presente, o que perspetiva para o futuro desta área?

IR – No passado, tirando as tecnologias, que representam uma realidade recente, temos a questão do álcool como um clás-sico ao longo dos tempos. E, numa terra de vinho verde, devo fri-sar que melhorámos muito e continuaremos certamente a melho-rar… No que respeita às “drogas leves”, fenómenos que se foram introduzindo e crescendo na Europa com a globalização, não sen-do propriamente recente, diria que é certamente mais recente face à ancestralidade do álcool. Sabemos também que este fenómeno das dependências foi inicialmente gravitando em particular em tor-no de um género e, posteriormente, foi-se estendendo… Basta pensarmos que a liberdade, entre aspas, concedida à mulher para pudesse fumar, por exemplo, é relativamente recente… Agora, co-loca-se um desafio: o que fazer para melhorar perante este diag-nóstico? Naturalmente, o que pretendemos é reduzir os indicado-res atuais. Como aqui foi anunciado, dentro de meio ano, teremos uma avaliação do trabalho desenvolvido, pelo que urge fazermos um bom trabalho no que concerne à definição dos territórios de in-tervenção, à forma como atuamos e à avaliação do desempenho, por forma a identificarmos possíveis correcções. Seguramente, e voltando àquele ideal da juventude, o sonho seria reduzirmos as dependências a zero mas, conhecendo a nossa natureza, sabe-mos que tal é impossível. Então, tentemos esbatê-las o mais pos-sível.

Falamos aqui num PRI não financiado, cujo financiamento caberá à autarquia, sendo que esta área, normalmente, não produz efeitos imediatos…

IR – É algo que assumo e que sempre assumi, sem pensar em efeitos mediáticos. Acredito que a formação cultural é aquela que dá maior consistência a uma comunidade, ainda que esse seja o investimento menos visível. Queremos fazer com que as nossas crianças e jovens cresçam em sabedoria, num ambiente mais saudável e de muito mais respeito pelo seu semelhante. De facto, esse valor, esse ativo e esse investimento não tem visibilidade nem mensurabilidade mas estou certo de que será o que mais irá render. Não é por acaso que, num universo de 308 municípios, so-mos o 28º que mais transferências e apoios confere às famílias e instituições, feito que alcançámos nos últimos quatro anos e que continuará a ser a nossa aposta.

JORGE BARBOSA, COORDENADOR DO CRI PORTO ORIENTAL“A manutenção da atual orgânica não é sustentável nem desejada”

Assistimos hoje à assinatura de um PRI não financiado, que responderá a diversas problemáticas com base na inte-gração de respostas… Pergunto-lhe como poderá uma enti-dade como o CRI Porto Oriental assegurar essas repostas in-tegradas, tendo como cúpula uma instituição que parece es-tar toda ela desintegrada?

Jorge Barbosa (JB) – Apesar da perpetuação da indefinição orgânica que vamos assistindo ao longo destes anos, nós, profis-sionais que intervimos nos CAD, continuamos a materializar os projectos e as ações de intervenção que estão definidas no âmbito do Plano para Redução dos Comportamentos Aditivos e Depen-dências, em colaboração com os municípios e com os ACES, pro-movendo as medidas estruturantes: PORI e Rede de Referencia-ção. Este é mais um exemplo daquilo que resgatamos do passa-do, sobretudo o património técnico-científico do ex-IDT que conti-nuamos a aplicar diariamente nas nossas ações a nível concelhio. Este PRI não financiado centra-se na otimização dos recursos. Face à escassez de recursos nesta área e particularmente no do-mínio da saúde, procuramos minimizar os constrangimentos atra-vés da cultura da partilha e do trabalho articulado com as institui-ções que compõem as redes sociais concelhias. O trabalho inte-grado com as escolas, com o centro de saúde local e com a autar-quia, tem permitido a disponibilização de técnicos e professores para o desenho e materialização de projetos nas áreas dada pre-venção, do tratamento e da reinserção social. É um processo que envolve também as IPSS locais e as instituições culturais e des-portivas, que estão disponíveis para colaborar connosco de uma forma concertada na implementação do modelo de respostas inte-gradas. Esta tem sido a estratégia que temos definido para mini-mizar os condicionalismos e as adversidades identificadas a nível organizacional, tais como: a coordenação bicéfala (cinco ARS e SICAD); a inacessibilidade aos sistemas de informação e comuni-cação utilizados pelo cuidados de saúde primários (CSP) e em meio hospitalar no SNS e o fraco investimento na implementação da Rede de Referenciação em CAD.

Existem falhas ou sequelas atribuíveis a essa indefinição orgânica que referiu?

JB – Observamos falhas no domínio da identidade e da cul-tura organizacional e também no âmbito da cidadania. Necessi-tamos de uma liderança organizacional nacional, vertical e uni-forme para todo o território nacional. A acessibilidade aos cui-dados de saúde e sociais, em matéria dos CAD, tem que salva-guardar os princípios da igualdade, da universalidade e da equidade no âmbito da cidadania em saúde. Um doente em

Page 19: João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo de drogas em Portugal ... psicoativas lícitas, ilícitas e sobre as ... de ouvir

20Bragança tem que ter o mesmo nível de acessibilidade às res-postas assistenciais daquele que se encontra em Lisboa ou no Porto. Verificamos que as assimetrias territoriais agravaram-se nos últimos anos. Para além disso, é também importante reno-var as equipas, olhando para os recursos dos CRI, que acom-panham também o processo de envelhecimento da sociedade portuguesa. Temos saídas de colegas dos serviços por aposen-tação, que não são substituídos. Outros casos, prendem-se com pedidos de mobilidade, devido a instabilidade e incerteza organizacional. Necessitamos de integrar nas equipas multidis-ciplinares técnicos de outras áreas profissionais para intervir neste domínio, até porque nos surgem diariamente novos pro-blemas para os quais ainda não estamos suficientemente pre-parados. Ouvimos aqui em Felgueiras uma referência particular ao jogo patológico entre os jovens em idade escolar e na con-sequente dificuldade que os professores sentem para leccionar face a alunos com perturbações do sono, com as naturais faltas de concentração e de motivação para a aprendizagem, e por isso a necessidade da dinamização de novas estratégias e de novos técnicos para intervir neste contexto. Temos que repen-sar rapidamente as estratégias e readequar a nossa estrutura às novas realidades atuais: desvalorização do consumo de cannabis relacionado com o movimento que defende a legaliza-ção do uso recreativo, o aumento do consumo do álcool e can-nabis nas mulheres, o jogo patológico (jogo on-line) nos mais jovens e as consequências associadas ao processo de enve-lhecimento das pessoas com CAD, particularmente no grupo dos heroinómanos.

Apesar da “desintegração”, os indicadores não são tão preocupantes como poderiam resultar… A que se deverá isso?

JB – Deve-se ao compromisso, à responsabilidade e ao empenho dos profissionais que intervêm em CAD. São eles que ainda asseguram e mantêm em funcionamento as respostas assistenciais em CAD. São profissionais responsáveis e muito qualificados, que respeitam as particularidades das pessoas com CAD, garantindo uma cultura de serviço público. Por isso, torna-se necessário também ouvir os profissionais em CAD que assumiram um compromisso com a população, com sentido de responsabilidade pública, que continuaram a inovar e a manter os indicadores assistenciais. E particularmente, porque são eles que melhor conhecem o problema dos CAD e sabem qual é o modelo de gestão organizacional mais adequado às realida-des atuais neste contexto específico da saúde. Porque, no mo-

mento atual, sentem que não são reconhecidos, valorizados e respeitados… Sentem que foram abandonados no seio da saú-de, apesar de contribuírem para o reconhecimento internacio-nal de um modelo apreciado pelos dados resultantes da interven-ção em matéria de CAD. Frequentemente somos visitados por de-legações internacionais que vêm conhecer o nosso modelo de respostas integradas. Ainda este ano, no CRI Porto Oriental, rece-bemos a visita de um grupo de profissionais do Brasil, de uma te-levisão italiana e ainda do Instituto Nacional de Luta Anti-Drogas de Angola. Mas esse empenho e dedicação à causa pública estão a esgotar-se. E os profissionais, aproximadamente 700 a nível na-cional, já expressaram, numa carta enviada à tutela, as dificulda-des quotidianas na gestão das unidades que estão a conduzir-nos paulatinamente para uma situação de ruptura, comprometendo deste modo esta resposta do Serviço Nacional de Saúde, dirigida a uma população socialmente vulnerável e com dificuldades em exigir ou expressar os seus direitos sociais. E perante a ausência de respostas, a que acrescem muitas incertezas em relação ao fu-turo das unidades assistenciais em CAD, torna-se urgente um es-clarecimento da estratégia do Governo Português no âmbito das políticas de saúde para a área dos comportamentos aditivos e das dependências. É preciso insistentemente relembrar os decisores políticos que na última década houve um desinvestimento político na área dos CAD e que este problema está a aumentar nos jo-vens. Os recentes estudos referem que em Portugal os consumos de álcool, tabaco e substâncias psicoativas ilícitas, principalmente cannabis, aumentaram nos últimos cinco anos.

Por que não se resolve então este problema organizacio-nal e funcional?

JB – Provavelmente porque no seio político ainda prevalece um certo preconceito em relação às pessoas com CAD. Confesso que tenho dificuldade em entender e aceitar este retrocesso nas políticas de saúde para a área dos CAD. No início deste ano foi criado um grupo de trabalho para analisar as consequências da extinção do ex-idt e propor um novo modelo orgânico. Mas devido ao facto do relatório ser inconclusivo o Governo solicitou mais pa-receres, estudos e adiou a decisão por mais 120 dias. Os proble-mas emergentes com os quais nos confrontamos diariamente não se compadecem com a inércia política e a morosidade deste pro-cesso que se arrasta desde 2012. Quem perde com os sucessivos adiamentos são as pessoas com CAD. E a manutenção da atual orgânica não é sustentável e também não é desejada por todos. Por este caminho vamos perder um serviço público reconhecido internacionalmente!

Page 20: João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo de drogas em Portugal ... psicoativas lícitas, ilícitas e sobre as ... de ouvir

21Reportagem no Estabelecimento Prisional do Porto (Custóias):

“Temos resultados de

excelência na Unidade

Livre de Drogas”

Dependências visitou o Estabelecimento Prisional do Porto, em Custóias. Testemunhos de responsáveis como o diretor da instituição, do terapeuta da Unidade Livre de Drogas e de reclusos integrados neste programa permitem concluir que, ainda que num contexto de reclusão, existe uma luz entre as grades, projetada sob a égide da reconstrução de um projeto de vida. Neste périplo, conhecemos um projeto pioneiro, fruto de uma parceria celebrada entre este estabelecimento prisional e o Hospital de São João, com vista ao tratamento de doentes infetados com hepatite c, bem como algumas propostas terapêuticas para quem vive duplamente em reclusão...

JOSÉ JÚLIO“A saúde é um direito que deve ser garantido a qualquer cidadão em liberdade ou em reclusão”

É o responsável pela direcção de um estabelecimento onde vivem pessoas privadas de liberdade mas não de direi-tos… Como se conseguem conjugar estas duas premissas?

José Júlio (JJ) – A própria lei portuguesa assim o impõe. Inde-pendentemente de as pessoas estarem cá dentro porque comete-ram um crime lá fora, mantém a titularidade dos seus direitos fun-damentais, salvas as limitações inerentes ao sentido da sentença condenatória.

E recordo que um desses direitos é o de voto em eleições nacionais…

JJ – Aí está… Hoje mesmo, à hora em que decorre esta entre-vista, 22 reclusos vão votar para as autárquicas, exercendo um dos mais importantes direitos em termos cívicos. É mais um dos direitos que conquistámos recentemente lá fora e que se mantém cá dentro.

Antes de entrar para a entrevista, reparei que o Sr. Diretor foi provar as refeições que serão hoje servidas… É uma preo-

cupação garantir que este direito humano de acesso a uma alimentação digna seja assegurado?

JJ – Sim, aliás, não sou só eu que faço a prova da alimenta-ção. É também a minha adjunta para a área económica, o comis-sário prisional e o médico do EP… todos participamos na fiscaliza-ção da alimentação e creio que é fundamental que assim seja. Existe a questão da contratualização com as empresas para o for-necimento da alimentação e tem que haver controlo e fiscalização da nossa parte, nomeadamente por mim, pela área clínica e pela área económica, no sentido de garantir que o que foi servido cor-responde ao contratualizado nos cadernos de encargos. É algo que fazemos há muitos anos e creio que os dirigentes deverão continuar a fazê-lo.

Entre esses direitos, figura o acesso à saúde… Em que medida constitui a garantia deste acesso um problema para quem dirige este EP?

JJ – Falamos, uma vez mais, de um direito que deve ser ga-rantido a qualquer cidadão em liberdade ou em reclusão. O reclu-so mantém o direito de ser utente do SNS, algo que nem sempre foi entendido desta forma. A questão da saúde num EP é das de maior importância, mais ainda porque a população que entra no sistema prisional vem, normalmente, numa situação de particular degradação. Se os serviços tiverem pelo menos essa oferta, tra-duzida no apoio à saúde, estarão a beneficiar a própria sociedade, uma vez que é de todo o interesse que o cidadão recluso, após o cumprimento da pena, possa ser restituído ao exterior em melho-res condições físicas e mentais. Em suma, a saúde é muito im-portante num EP e saliento que tem havido nesse capítulo um enorme progresso. A saúde nos EP tem vindo a caminhar num sentido sempre positivo, havendo uma cobertura cada vez maior e chegando a atingir uma certa contradição, uma vez que um reclu-so consegue hoje mais rapidamente consultas médicas e trata-mentos de muitas especialidades do que o cidadão que se encon-tra lá fora. Por outro lado, há muita gente que, se estivesse lá fora, não se trataria e muitos deles teriam certamente morrido… Para muitos, se alguma coisa de positivo a reclusão lhes trouxe foi te-rem sido tratados a algumas doenças graves. Há muita gente que entra para cumprir uma pena de seis meses e faz consultas e exa-mes que nunca tinha feito lá fora… É hoje inquestionável que os reclusos saem muito mais saudáveis em relação à altura em que entraram no EP.

Existe algum modelo de diagnóstico e de prevenção rela-tivamente a doenças como a hepatite c?

JJ – Sim, se já tínhamos antes o encaminhamento para os hospitais de referência para as primeiras consultas, através do

Page 21: João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo de drogas em Portugal ... psicoativas lícitas, ilícitas e sobre as ... de ouvir

22

“VHC: Os nossos primeiros 30 utentes acabaram os

tratamentos e cerca de 45 estão a acabar o ultimo mês de

tratamento e, face às últimas análises realizadas, constatamos

100 por cento de cura.”

protocolo que temos hoje com o Hospital de São João, são os clí-nicos do hospital que se deslocam aqui. É um grande progresso, desde logo associado à questão dos custos, sendo que temos muitas dificuldades de meios inerentes às deslocações para o ex-terior e, desta forma, essa questão é ultrapassada. Os clínicos vêm cá, trazem os equipamentos necessários à realização dos diagnósticos, conseguem acompanhar mais rapidamente uma maior quantidade de reclusos, sendo que, neste momento, são cerca de 50 os reclusos acompanhados. Sendo nós pioneiros nes-ta questão, esse cenário já foi alargado ao EP feminino de Santa Cruz do Bispo e irá estender-se a outros EP, daqui advindo signifi-cativos ganhos, desde a saúde individual à pública, passando por transtornos logísticos que são ultrapassados pelo Hospital de São João quanto à recepção destes indivíduos e terminando nos ga-nhos económicos.

De acordo com a ONG, a prevalência de hepatite c é muito superior na população reclusa… Que justificações encontra para este indicador?

JJ – O grande dilema, muitas vezes, é que nós juntamos num espaço gente que, lá fora, já tinha problemáticas associadas a de-terminados tipos de comportamentos de risco. Se nos referirmos, por exemplo, aos consumos, enquanto lá fora grande parte desta gente é consumidora de estupefacientes e tem um espectro muito grande em termos territoriais, quando é recluída vem toda ela para um mesmo espaço, logo, acabamos por ter aqui, num universo de 1200, muito mais consumidores do que em 1200 cidadãos lá fora. O mesmo se passa com a questão das hepatites, em que as pes-soas já trazem problemas associados lá de fora, juntando-se num mesmo espaço cá dentro. Não será o espaço aqui que está a po-tenciar a doença mas o facto de concentrarmos gente que já apre-sentava essas problemáticas.

O que levou o EP de Custóias a ser o primeiro a avançar com este protocolo?

JJ – Este é um somatório de vontades e de pessoas… Não tem apenas a ver connosco mas igualmente com o facto de o Hos-pital de São João e de as valências que cobrem a área das hepa-tites estarem receptivos a virem cá. As casas fazem-se com as pessoas que lá estão e, no caso do EP de Custóias, existiam es-ses anseios de trazer essas valências de fora para o interior e, por outro lado, no Hospital de São João, também existia alguém moti-vado e que entende que também ganha algo com isso, não descu-

rando a questão social envolvida. Tudo isto tem a ver também com os próprios profissionais envolvidos, com a sua sensibilidade e com as direcções dos serviços médicos.

Foi difícil ultrapassar as barreiras burocráticas inerentes à ligação entre dois grandes sistemas, como a Direcção Geral dos Serviços Prisionais e o Ministério da Saúde para uma in-tervenção holística?

JJ – Não. Não foi e até constatamos atualmente uma enorme vontade do atual diretor geral de caminhar neste sentido, espevi-tando-nos mesmo para a procura de soluções como esta. E tam-bém se congregam vontades da parte dos responsáveis da saúde, no sentido de criarmos essas condições, estabelecendo protoco-los para que sejam eles a virem cá, o que resulta em ganhos con-juntos e na garantia de uma cobertura obrigatória de direitos. E re-pare que, no caso concreto da hepatite, os médicos do Hospital de São João que vêm cá não têm essa obrigação… Fazem-no volun-tariamente, confirmando uma vontade reforçada nos últimos tem-pos por parte da saúde, em colaborar connosco.

Em que medida será essa postura e colaboração com ou-tras entidades a melhor ferramenta para a reinserção social desta população?

JJ – O conceito reinserção é muito complexo… Nós contribuí-mos na medida das nossas competências e atribuições… Aqui é apenas o começo, sendo que resta um enorme trabalho que tem que ser desenvolvido lá fora. Ao iniciarmos e completarmos mui-tos tratamentos na área da saúde, estaremos no primeiro passo do tratamento para a reinserção… Mas, depois da saída, já não temos qualquer competência. O nosso contributo para a reinser-ção social na questão particular da saúde passa por garantirmos que saiam devidamente tratados e munidos de outras condições facilitadoras da reinserção social e profissional.

Parte desta população não conhece outra condição de vida senão aquela ligada à marginalidade… Já encontrou pes-soas que se sentissem mais felizes aqui do que no exterior?

JJ – Confesso que sim, o que considero mau… Vir para a ca-deia e considerar que se está melhor do que lá fora, é mau mas, nalguns casos, não deixa de ser verdade. Muitos já me admitiram, ao longo dos vários anos que levo de serviço, que se estivessem lá fora já teriam morrido porque, na situação em que estavam an-tes da reclusão, o caminho passaria rapidamente pela morte, fos-

Page 22: João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo de drogas em Portugal ... psicoativas lícitas, ilícitas e sobre as ... de ouvir

23se por overdose, pelos consumos ou pelas doenças infecto-conta-giosas e pelo abandono do seu tratamento. E existem outras ver-tentes para além da saúde mas, nesta questão, foi o EP que lhes trouxe alguma luz e auto-estima. No entanto, reitero que é mau que não tenham a oportunidade de adquirirem isso em sociedade, lá fora…

Que outros programas oferece o EP de Custóias, designa-damente para esta população que abusa ou é dependente de substâncias psicoactivas?

JJ – Têm que existir soluções variadas e tudo isso depende muito também dos profissionais de saúde que estão cá e da sua sensibilidade para determinado tipo de apostas. A questão concreta da Unidade Livre de Drogas traduz-se num programa que tem este pressuposto em que deixam de existir consumos, o que à partida, deixa antever que nem toda a gente consegue lá chegar, muito embora tenhamos resultados de excelência. Hoje, grande parte dos locais de responsabilidade do EP está entregue a reclusos que integram a ULD… Mais: até os pró-prios tribunais de execução de penas valorizam muito positiva-mente as posturas desses reclusos que cumprem o programa da ULD, concedendo-lhes benefícios, seja em saídas jurisdicio-nais, seja nas próprias liberdades condicionais. Mas temos consciência de que não é fácil, pura e simplesmente, abando-nar um consumo após largos anos e, por isso, existem outras soluções, como o programa de substituição com metadona. E essas soluções têm também em consideração o tipo de popula-ção a que se dirigem. Neste caso, em que temos penas mais curtas, adequámos a oferta ao tipo de população.

JORGE TAVARES

“A ULD é um espaço de liberdade e Reconstrução dentro de uma prisão”

Estamos num estabelecimento prisional que, tanto quan-to nos apraz verificar, apresenta uma unidade que responde, em boas condições, a reclusos privados de liberdade mas não de saúde…

Jorge Tavares (JT) – Os reclusos são parte integrante das nossas comunidades e devem ser protegidos e respeitados na sua dignidade humana. È de notar que os reclusos só estão priva-dos de liberdade mantendo intactos todos os seus outros direitos de cidadania. Desde logo, o cidadão preso não deixa de ser cida-dão… A única restrição que o tribunal decretou foi a perda de li-berdade e, a partir daí, exceptuando essa, mantém todos os direi-tos intactos. A título de exemplo, temos a Unidade Livre de Dro-gas, um programa voluntário, dotado, como pôde constatar, de

Testemunhos“A necessidade de consumir, leva-nos a fazer coisas que não deveríamos ter

feito. Não olhamos a meios para atingir os nossos objectivos.”

“Consciente ou não, a gente faz tudo para conseguir dinheiro para comprar

a droga.”

“A privação da droga, obriga-nos a tomar decisões que não são as mais

correctas ou as mais fáceis…e por isso estamos aqui.”

“De uma maneira geral as drogas que mais consumimos são a cocaína,

heroína e o haxixe.”

“A primeira experiencia com as drogas são a cannabis, o ecstasy depois a

cocaína e por aí fora até cair.”

“Já passei por outras Comunidades em Portugal e no estrangeiro e não

funcionou…hoje sinto-me bem e capaz de levar o programa até ao fim.”

“ Essa ideia das “drogas leves ou pesadas” é um falso mito, não existem,

são todas iguais e a prova está aqui á sua frente… somos o reflexo da

degradação a que chegamos.”

“Sonhar é o que nos resta, apesar de não ser fácil a vida que nos

espera lá fora.”

“ Temos uma grande carreira contributiva no consumo das drogas…

são muitos anos de experiência”

“Nos últimos 15 anos os problemas com o consumo das drogas mudou muito em Portugal. Hoje somos tratados e

olhados com dignidade, estamos muito gratos por isso, apesar de sabermos e

reconhecermos que ás vezes nem todos o merecemos”

Page 23: João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo de drogas em Portugal ... psicoativas lícitas, ilícitas e sobre as ... de ouvir

24

boas instalações mas, no seio da qual, acrescento, estão dupla-mente “presos”, à ordem do tribunal e da cadeia, bem como às normas da ULD, que têm que cumprir.

Em termos quantitativos, que capacidade tem a ULD?JT – A capacidade do programa, se tivesse espaço fisico, se-

ria de 16 utentes. Conseguimos trabalhar com 16 na última fase do tratamento… Contudo, gostaria de apresentar uma ideia, quiçá mirabolante ou peregrina, que consiste em começarmos do “outro lado” na ala adjacente, fazendo desintoxicações e adaptações ao regime terapêutico da ULD, ao que sucederia, numa etapa poste-rior, uma fase comportamentalista… Estes indivíduos denotam in-variavelmente uma perda de regras, o que obriga a que seja feito um trabalho a esse nível e, mais tarde, viriam então para esta par-te da Unidade, onde trabalharíamos com eles ao nível da preven-ção da recaída, da teoria motivacional e do cognitivo comporta-mentalismo. Em suma, considerando que deveriam começar por camaratas, ao que se seguiriam salas de grupos terapêuticos, fi-nalizando na atual ala da ULD, assim, poderíamos ter dois grupos de 16 utentes. Neste momento e face à escassez de espaço fisico, temos apenas um refeitório para 12 reclusos, não podemos exce-der este número de utentes.

Como chega o doente à ULD?JT – Na ULD a adição é perspetivada como um sintoma de

vida em crise em que é exigida uma intervenção holística. A ULD pretende construir condições favoráveis de estruturação para o to-

xicodependente e a duração média da estadia será entre os 24 e os 30 meses.

A solicitação de ingresso é apresentada à Equipa Técnica pelo recluso ou um serviço de referência. Os seus elementos deverão rea-lizar uma avaliação individual para posterior integração do recluso, assim são condições gerais de admissão, solicitação voluntária e por instância do interessado; motivação adequada ao cumprimento do programa e dos seus objectivos; avaliação individual de prontidão para o tratamento e prontidão para a mudança; aceitação das nor-mas de funcionamento sob a forma de contrato; ser consumidor “comprovado” de substâncias psicoactivas encontrando-se em fase de abstinência total; não apresentar quadro sintomatológico de dis-túrbio psiquiátrico / psicológico que seja considerado incompatível com o trabalho a desenvolver na ULD e vaga disponível.

Como descreveria o programa terapêutico que oferecem na ULD?

JT – A metodologia do programa é eclética e pragmática isto é temos um programa adaptado. Digamos que corresponde a um mix de Portage, com Clínica do Meilão e outras teorias e práticas de refe-rência, tais como TCU- Manuais para Tratamento Adaptativo ajusta-dos às normas da cadeia. Existem normas específicas, de acordo com o contexto, a que temos que obedecer e, a este nível, posso re-ferir um exemplo: numa comunidade terapêutica, posso restringir os telefonemas dos utentes à família durante um mês, ao passo que, dentro da cadeia, não o posso fazer. Em suma, lá fora, poderiam conquistar por exemplo esse direito de telefonar e, aqui, conquistam outras coisas como por exemplo o tomar café em vez de carioca. Atualmente, aqui, conquista-se tudo, consoante o comportamento e a evolução no programa. Objectivo é a abstinência total do consumo de substâncias psicoativas, capazes de provocar oscilações artificiais do estado de humor/comportamento do indivíduo.

Com muitas regras durante todo o projeto terapêutico?JT – A ULD funciona 24 h por dia 365 dias por ano, com algu-

mas regras, a exemplo posso referir a participação activamente na vida da ULD em espírito de entreajuda e comunicação com os ou-tros; a participação nas reuniões e nas actividades sejam lúdicas ou terapêuticas e aceitação da autoridade da equipa técnica.

Percorrendo todas as fases, o processo terapêutico termina por volta dos dois ou três anos, com a criação de imagens de referencia

“Creio que se afigura premente a criação de casas de saída no

norte perspectivando uma maior proximidade face aos territórios dos EP e das famílias, que conferissem

uma continuidade ao programa e potenciasse a adaptação dos

utentes à realidade.”

Page 24: João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo de drogas em Portugal ... psicoativas lícitas, ilícitas e sobre as ... de ouvir

25

da comunidade terapêutica em que se investe nos contactos com o exterior e maior responsabilização nas actividades internas bem como a preparação de saídas da unidade e trabalho específico rela-cionado com prevenção de recaídas e projecto de vida no exterior.

Terminado esse processo, o que acontece ao indivíduo?JT – Como costumo dizer, um alcoólico …volta para a adega,

isto é para volta para a tentação, e pressão dos pavilhões … Por isso, tento ter aqui indivíduos cujo fim de pena seja idealmente dentro de três anos ou quatro anos. E muitos deles saem livres daqui. Agora, o que preconizaria seria a implementação de uma casa de saída, que até existe no seio da Direcção Geral dos Ser-viços Prisionais mas que se situa nas Caldas da Rainha… E eu não posso pedir a um homem do norte, com uma relação familiar estável que foi conquistada com muito esforço, que integre essa casa e que, possa (para) estar episodicamente com a sua família, tendo esta que se deslocar o que acarreta gastos muito maiores para as famílias

A prevalência da infeção por hepatite c é muito superior na população reclusa do que na população geral… Que res-postas oferece este EP a esse nível?

JT – Não podemos ignorar que, aqui, estão muito mais concen-trados… De todo o modo, tínhamos há algum tempo, as normais res-postas oferecidas pelos hospitais mas, após termos celebrado um protocolo com o Serviço de Gastrenterologia do Hospital de São João, conseguimos algo fantástico: os médicos vêm cá - honra seja feita ao Professor Guilherme Macedo e sua equipa Dr. Rui Gaspar e

Rodrigo Liberal, uma verdadeira pedra no charco – e todos os reclu-sos com hepatite C do EP com indicações de tratamento, são trata-dos e devidamente medicados. Os nossos primeiros 30 utentes aca-baram os tratamentos e cerca de 45 estão a acabar o ultimo mês de de tratamento e, face às últimas análises realizadas, constatamos 100 por cento de cura. Pensava que era mais um medicamento mas não… este é o medicamento para a hepatite C. Resta-nos fazer a se-gunda parte do trabalho: dizer-lhes que, agora que estão curados, devem evitar reinfectar-se e, a esse nível, o Professor Guilherme Ma-cedo e a sua equipa, já está a desenvolver ações de formação e de sensibilização para que consigamos reduzir os riscos de reinfeções.

A questão da reinserção social continua a constituir a grande falha…

JT – Não sendo da área jurídica e pensando unicamente ao nível da saúde, uma das ações que defendo é que estes jovens que integram a ULD tivessem uma flexibilização ainda maior da pena. Penso que, se os juízes estivessem mais despertos para esta realidade, teriam provavelmente reduzido ou flexibilizado mais as penas, dando ênfase ao esforço de voluntariamente não consumirem drogas. Uma atenção sobre todos os jovens que es-tão aqui na ULD, cujos crimes, alguns graves, se devem mais ou menos directamente às drogas seria muito positiva, e uma força motivacional muito forte. Por outro lado, creio que se afigura pre-mente a criação de casas de saída no norte perspectivando uma maior proximidade face aos territórios dos EP e das famílias, que conferissem uma continuidade ao programa e potenciasse a adaptação dos utentes à realidade. As comunidades terapêuticas extra-muros já o fazem e nós poderíamos copiar um exemplo bem sucedido. Por fim, defendo um acompanhamento mais próximo e efectivo destes indivíduos, muitos dos quais já são encaminhados para os CRI, por parte do Instituto de Reinserção Social, pois os problemas com que se depararam em liberdade são muito com-plexos. Não são todos relacionados com os consumos como por exemplo um sitio para morar ou um trabalho que lhe possibilite di-nheiro para uma vida digna em sociedade.

Gostaria de acabar com uma expressão de Juan Luis Lorda. “No homem há uma liberdade que se vê; fazer o que se quer, ir de um lado para o outro, etc…; e uma que não se vê, a liberdade in-terior, que deriva do facto de não se ter impedimentos interiores para exercitar a nossa consciência e de atuar de acordo com ela”.

Page 25: João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo de drogas em Portugal ... psicoativas lícitas, ilícitas e sobre as ... de ouvir

26Entrevista com Torres Freixo, médico psiquiatra do CRI de Braga:

“A exaustão dos profissionais é uma ameaça real”

Porque estamos numa equipa técnica especializada de um centro de respostas integradas, relembro as sucessivas alterações ao nível dos consumos, padrões e perfis… Em que medida possui a ET de Braga respostas para contrariar ou mi-nimizar os novos problemas que vão atualmente surgindo?

Torres Freixo (TF) – Creio que tem havido uma conscienciali-zação da evolução dos padrões de consumo, dos grupos etários, profissionais e sociais… Parece-me que tem sido feito um acom-panhamento desses indicadores mas, em termos gerais, não se verifica uma actuação actualizada face aos tempos que estamos a viver. Já em termos individuais, existem pessoas com muita cate-goria e qualidade e que estão realmente a fazer um trabalho já sintonizado e actualizado face aos padrões e necessidades atuais. Mas, no colectivo, esse trabalho não aparece…

Antes da constituição dos atuais CRI, tivemos os CAT, tra-dicionalmente vocacionados para o tratamento de doentes dependentes de heroína e cocaína. Entretanto, foram surgin-do novos fenómenos, com particular relevância atual para substâncias como a canábis e o álcool mas também para CAD sem substâncias. Que respostas e ferramentas têm atualmente os CRI para tudo isto?

TF – O que constato é que cada um de nós tem de dar o seu melhor… E tem que procura-lo porque não existe uma política ge-ral para isto. Em suma, temos consciência, percebemos em que estado estão as coisas e interiorizamos que temos que dar a me-lhor resposta possível. E confesso que não me chegam quaisquer normas ou guias para intervirmos de forma padronizada…

Desde a extinção do IDT à criação do SICAD, passando pela integração dos CRI nas ARS, muitas têm sido as queixas dos profissionais relativamente à limitação da vossa interven-ção… Comunga dessas opiniões?

TF – Acho que se não tivéssemos já interiorizado o ADN do antigo SPTT, seria muito difícil termos uma conduta, uma dedica-

ção e uma intervenção como a que temos assegurado até agora. Não se perdeu muito porque ainda há muito ADN disperso pelas várias extensões mas, obviamente, corremos o risco de perder isso porque muitas pessoas vão saindo. E isso resulta em perda de identidade, cultura e partilha. Se existe serviço onde a interven-ção é verdadeiramente de equipa, o mesmo situa-se certamente nesta área dos CAD.

Recorda-se da primeira vez que recebeu um toxicodepen-dente para tratamento?

TF – Antes de entrar para esta área, tive a sorte de fazer aqui formação, voluntariamente, durante cerca de um ano… Hoje, a formação dos psiquiatras contempla formação nesta área, algo que não sucedia na altura, exceptuando na temática do álcool. Portanto, sentia que ia tirar a especialidade sem já nada saber da actualidade. Na altura, era o Dr. Carlos Sousa que estava aqui, a quem pedi para, voluntariamente, trabalhar e aprender. E como fui bem acompanhado e integrado, confes-so que o panorama não me assustou particularmente. Foi um percurso gradual, algo que não acontece atualmente, em que existe um concurso e o profissional admitido, seja ele médico, psicólogo, enfermeiro ou assistente social, entra de olhos com-pletamente vendados. Há que dar o tempo necessário às pes-soas, particularmente nesta área, em que demoramos anos a adquirir a necessária sensibilidade e capacidade de relaciona-mento. Sendo verdade que a intervenção em toxicodependên-cia tem muito de ciência e de técnica, não é menos verdade que também tem muito de arte. E se não soubermos utilizar adequadamente a arte, toda a ciência e técnica valem zero.

E o que mudou desde essa altura até hoje?TF – Algumas coisas não mudaram… Outras, de facto, muda-

ram hoje há também uma intervenção em problemas ligados ao álcool e também graças a formação ministrada pelo SICAD no jogo patológico . Desde logo, existe hoje um enorme desgaste nas equipas, que não estão auto-suficientes. Embora tenha havido um esforço recente para dotar as equipas das pessoas necessárias, mesmo assim ainda estamos aquém e, como tal, as equipas en-contram-se exaustas face ao excesso de carga laboral e até às condições físicas dos espaços onde trabalhamos, que não são as melhores. Por outro lado, também não existe a oferta de formação que deveríamos ter e estamos dispersos. Dantes conhecíamos os nossos chefes… hoje não os conhecemos… Os próprios canais de comunicação deixaram de existir, contrariamente ao que suce-dia na altura do IDT… Entretanto, gostaria também de frisar que, no meu entendimento, o CRI foi uma boa invenção: conseguir in-tegrar os cuidados necessários ao doente com patologia aditiva foi uma viragem histórica muito importante. Mas não chega. É preci-so dinamizar.

Page 26: João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo de drogas em Portugal ... psicoativas lícitas, ilícitas e sobre as ... de ouvir

27Uma das valências mais visíveis das equipas de trata-

mento dos CRI tem a ver com o tratamento ambulatório, no-meadamente o de substituição opiácea, em que os profis-sionais dispõem hoje, essencialmente, de dois medicamen-tos, a metadona e a buprenorfina… O que distingue estes dois?

TF – Quando estes serviços foram formados, os mesmos re-sumiam-se praticamente à administração de metadona. Basica-mente, o objetivo consistia em retirar o doente da rua e dar-lhe uma substância para substituir o que consumia na rua. Felizmen-te, isso evoluiu imenso e, hoje, não só conseguimos tirar o doente da rua como devolver-lhe capacidade de intervenção real no tra-balho, na família, na sociedade, na cultura… Por aí, há vantagens evidentes. E a buprenorfina, mais concretamente o suboxone, veio virar uma página e beneficiar esta possibilidade de o doente estar um mês ou mais sem precisar de ser tão periodicamente subjugado a testes de despistagem de consumos, entre outras práticas.

Consideraria a buprenorfina um medicamento de substi-tuição ou será mais do que isso?

TF – A meu ver, é mais do que substituição. É um passapor-te para a liberdade, algo que permite ao doente funcionar em pleno, sem ter que se “sujeitar” a práticas individualistas. Esta possibilidade que lhe confere de pegar na receita e aviá-la em qualquer local dá-lhe uma liberdade muito grande e, por outro lado, o medicamento é agonista parcial e não total, o que impli-ca também uma responsabilidade do doente, que sabe perfeita-mente que, se consumir com buprenorfina, vai ficar bem pior. Em suma, consciencializado este factor, creio tratar-se de um medicamento bastante seguro, diminui o desvio e o uso indevi-do da medicação que trouxe uma liberdade enorme, quer na fa-mília, quer nas vertentes social e laboral. E sendo a buprenorfi-na muito menos sedativa do que a metadona, isto permite ao doente ter mais lucidez, capacidade de decisão e de ação na forma de estar com os outros.

Sendo o dependente um doente crónico, como descreve-ria as dificuldades encontradas relativamente ao processo de desabituação destes dois medicamentos?

TF – Com metadona, geralmente, temos que fazer interna-mentos para fazermos as desabituações. Com buprenorfina, con-seguimos fazê-lo mais facilmente em ambulatório. É fácil a fase de desabituação… A desabituação é relativamente fácil em am-bulatório com a buprenorfina /suboxone. É mais seguro…

Quando um doente surge nestes serviços com uma de-pendência opiácea, pode iniciar imediatamente esse trata-mento de substituição?

TF – Lá está: não existe um guião… Tenho imensos doentes relativamente aos quais, mediante uma avaliação, que inclui a sua história, o prognóstico e a análise da sua personalidade e dos apoios de que beneficia, não tenho qualquer problema em iniciar o tratamento de imediato com buprenorfina diminui o risco de over-dose e a indução é rápida, bem como a estabilização e manuten-ção, não necessita de uma supervisão diária.

Quantos utentes estão atualmente em tratamento de substituição na ET de Braga?

TF – Em metadona, entre a Equipa de e a ET de Braga, serão cerca de 360; em buprenorfina há um numero muito superior e que continua a crescer devido ao perfil de segurança, de fácil in-dução e manutenção.

Seria a buprenorfina uma boa solução para administração nos estabelecimentos prisionais?

TF – Sim, porque o manuseamento é mais fácil, diminuiria as mortes por overdose, e poderia diminuir as tensões entre os reclusos. Como sabe, não há nos estabelecimentos prisio-nais a prática de tomar buprenorfina. Quando o doente que en-tra estava num programa de buprenorfina, este é substituído pela metadona. Isto sucede porque se pensa erradamente que se controla melhor a situação e que se evita o mau uso e o des-vio da medicação.

Ou será uma questão económica?TF – Talvez seja também… Mas é também o receio de manu-

sear um medicamento que tem um valor comercial E sabemos que as coisas valem muito nas cadeias…

Na sua prática, como avalia a atual afluência de doentes dependentes de opiáceos?

TF – É irregular… Existem alturas em que não surgem doentes durante um considerável período de tempo e, noutras, são uns atrás dos outros. Diria que não é com a intensidade que se verificava antigamente mas, aqui em Braga, esse de-créscimo é ligeiro e prolongado no tempo mas ainda aparece muita gente com dependência de heroína, particularmente gen-te com idade mais avançada. Os mais novos já estão “noutra onda”…

E quanto à procura de tratamento para a dependência de álcool?

TF – Muito grande! Exponencial. Hoje, diria que é 50 por cento de álcool e 50 por cento de outras substâncias ilícitas. Numa reunião de distribuição de doentes pelos colegas, quase metade é alcoólica. Nesse aspecto, acho que estamos a pres-tar um bom serviço. Estamos muito ligados aos cuidados de saúde primários e o médico de família faz uma referenciação destes casos para nós. Se tivermos uma situação que, em ter-mos psiquiátricos, médicos ou orgânicos, seja muito preocu-pante, encaminhamos para o hospital para facilitar outro tipo de tratamento. No caso particular de Braga, estamos no meio e muito ligados aos médicos de família. Sensibilizámos estes co-legas da saúde familiar, que fazem o teste AUDIT e desenvol-vem algum trabalho nesta matéria, encaminhando-nos muitos casos.

E como se resolve este problema face ao exponencial aumento de procura e à acentuada diminuição de recur-sos?

TF – Tem-se resolvido com muita imaginação, com muita dedi-cação e profissionalismo mas, realmente, a exaustão é uma ameaça real. Braga, particularmente, tem sido um serviço esque-cido. Só este ano passámos a ter dois psiquiatras, após muitos anos com apenas um… E cheguei a ser o único para todo o distri-to…

Page 27: João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo de drogas em Portugal ... psicoativas lícitas, ilícitas e sobre as ... de ouvir

28O Companheiro – Associação de Fraternidade Cristã, IPSS.

Para que não haja homem

excluído pelo homem

Instituição que comemora 30 anos de existência, O Compa-nheiro tem desenvolvido a sua atividade na ótica da inserção so-cial de pessoas reclusas e ex-reclusas desde 13 de fevereiro de 1987. A instituição surgiu na sequência da atividade de visitadores prisionais, por inspiração do Padre Dâmaso, tendo por pressupos-to que os indivíduos tinham mais apoio durante o cumprimento da pena do que após o seu termo. O Companheiro tem elegido como principal atividade a inserção pessoal, social, laboral e cultural de pessoas que se encontrem em situação de exclusão social, ten-tando contribuir para a sua inclusão e integração societal. Assim, definiu dois grandes grupos de setores: um focado numa missão assistencial (residência coletiva masculina; refeitório social, higie-nização e tratamento de roupas, apoio social, intervenção clínica e aconselhamento jurídico) e outro que procura articular a missão assistencial com fins técnicos, económicos e produtivos.

Em 1990, O Companheiro candidata-se ao Programa de Luta contra a Pobreza, sendo que, em 1991, a Câmara Municipal de Lisboa cederia os terrenos onde atualmente permanecem instala-dos os Serviços e Equipamentos, na Avenida Marechal Teixeira Rebelo, em Lisboa, com uma área de terreno de aproximadamen-te 30.000m2 e ocupando uma área construída de 2500m2.

No ano de 1992, a instituição criava o modelo ocupacional para atividades oficinais e artesanais (serralharia, construção civil, tapetes de Arraiolos, entre outras), de modo a permitir a subsistência d’ O Companheiro. Aos clientes, permitiu levar a cabo um processo de aprendizagem, no sentido de se prepararem para a sua própria inser-ção no meio laboral. Foi criado um setor de produção, que se organi-zou num modelo análogo ao empresarial, usando a potencialidade dos clientes para o mercado de trabalho, pelo que os clientes inseri-dos neste setor cumpriam um horário de atividade e recebiam um subsídio. Paralelamente, O Companheiro desenvolveu uma área de investigação-ação e de formação profissional a que designou de Pro-jetos, recorrendo para o efeito a fundos europeus e parcerias com o Instituto de Emprego e Formação Profissional, nomeadamente o Centro de Emprego de Benfica, zona de implementação.

Em 2004, O Companheiro decide evidenciar a sua vocação para a “prevenção do crime”, assumindo uma ação de espetro alargado, indo desde a promoção da melhoria de competências profissionais aos normativos organizacionais de indivíduos, evi-denciando o seu público alvo em ex-reclusos e reclusos em regi-me de RAE e suas famílias. Nesta fase, e de acordo com a auto--proclamação preconizada, e a “prevenção do crime” pode atuar a nível individual, agindo sobre a casuística, ou a nível geral, com a finalidade de envolver grupos e a sociedade. Paralelamente, pode revestir uma tripla abordagem: Primária, através de ações que evi-tem o crime; Secundária, intervindo em comportamentos de risco; e Terciária, apostando na prevenção da reincidência.

De modo a facilitar o cumprimento do estabelecido na sua Missão, Visão e Política, O Companheiro implementou o processo de certificação em qualidade, pela norma ISO 9001:2008. A quali-dade dos serviços foi reconhecida a 22 Setembro de 2014, atra-vés de Certificado da Qualidade, emitido pela APCER. A norma ISO 9001 constitui uma referência internacional para a Certifica-ção de Sistemas de Gestão da Qualidade. A Certificação de acor-do com a ISO 9001 reconhece o esforço da organização em asse-gurar a conformidade dos seus produtos e/ou serviços, a satisfa-ção dos seus clientes e a melhoria contínua.

Em 2017, no âmbito nacional que os estatutos lhe conferem, expande-se com dois gabinete de atendimento: um na cidade de Lagoa (Algarve) e outro na cidade de Leiria, ambos com o apoio dos respetivos munícipes locais, Câmara Municipal de Lagoa (Ga-binete Sul) e Câmara Municipal de Leiria (Gabinete Centro) com o objetivo de assegurar um apoio mais profícuo no pós-reclusão.

A criação de uma Escola Social no âmbito d’ O Companheiro é uma experiência inovadora em Portugal no seu funcionamento como rede de conhecimento partilhado para o combate à exclusão social, abandonando o tradicional institucionalismo. Visa criar uma estrutura modular, flexível, e com graus de formalização e desen-volvimento diferenciados que arranca já este ano lectivo 2017/18.

Durante estes 30 anos, O Companheiro tem prestado apoio psico-socio-laboral a várias centenas de pessoas ex-reclusas (de ambos os géneros), reclusos em Regime Aberto ao Exterior (RAE) e Saídas Jurisdicionais (SJ), estando este vocacionado para a in-clusão da pessoa, promovendo a inserção laboral através da me-lhoria das competências pessoais, profissionais e normativos or-ganizacionais. O Companheiro procura, direta e indirectamente, incentivar as pessoas em situação de exclusão social a dar novos passos de integração psicossocial, para que este seja um ponto de passagem e não de ancoragem.

Em visita à instituição, Dependências registou uma máxima enraizada e partilhada: “Há que dignificar o Homem, não permitin-do a perpetuação dos seus erros. Quem ousa vence! Todos os dias acreditamos. Todos os dias trabalhamos. Todos os dias re-construímos”.

Page 28: João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo de drogas em Portugal ... psicoativas lícitas, ilícitas e sobre as ... de ouvir

29José de Almeida Brites, Diretor, guiou-nos na visita a uma ins-

tituição, por natureza, de portas abertas…

JOSÉ DE ALMEIDA BRITES“Só podemos dar o que temos e gostava que esta máxima prevalecesse”

O que é, concretamente, O Companheiro?José Almeida Brites (JAB) – O Companheiro nasceu a 13

de fevereiro de 1987, fazendo este ano 30 anos, com um cape-lão dos estabelecimentos prisionais, o Padre Dâmaso que, na altura, juntamente com um grupo de visitadores prisionais, en-tendeu que não havia nenhuma instituição que assegurasse cobertura no pós-reclusão. Então, nasce O Companheiro, ini-cialmente com objetivos mais focalizados na componente so-cial, em componentes como a habitação, a higienização, ali-mentação, a roupa lavada… À medida que fomos avançando no tempo, a realidade foi também alterando e, hoje, a aposta centra-se claramente no treino de competências. Trata-se de um trabalho muito profícuo, por vezes de difícil realização face ao grande estigma associado, sendo que a sociedade não aceita nem compreende muito bem o facto de trabalharmos com pessoas que estão reclusas, que se viram privadas da li-berdade e que estão à margem… Realidade esta que impõe que trabalhemos igualmente mentalidades de uma forma orga-nizada, coerente, com tempo e resiliente. É o que O Compa-nheiro procura fazer há 30 anos, promovendo a inserção e a inclusão da pessoa reclusa, ex-reclusa e suas famílias.

Como se promove a reinserção de uma pessoa reclusa e muitas vezes rotulada como criminosa numa sociedade tão estigmatizadora?

JAB – Isso depende sempre da ótica com que perspetiva-mos o fenómeno da criminalidade. É sempre aquela velha questão do copo meio vazio ou do copo meio cheio… O Com-panheiro procura sempre uma visão do copo meio cheio, ou seja, numa perspetiva mais positiva do que representa traba-lhar a estigmatização. E como o fazemos? Desde logo, pelo know-how que acumulámos ao longo destes 30 anos de exis-tência, que nos possibilitam hoje perspetivar o melhor proces-so de inclusão da pessoa, que passa por um Plano individual de Inclusão (PII) que contempla uma ocupação física e mental. Isto significa que, quando a pessoa sai do estabelecimento pri-sional, a pessoa precisa de ser imediatamente enquadrada. Grande parte das pessoas que chegam ao Companheiro vêm basicamente sem quaisquer motivação, quase como fosse para uma instituição de fim de linha, o que significa que a famí-lia já se demitiu das suas funções, não querem saber rigorosa-

mente nada da pessoa que está presa, que entretanto perdeu tudo o que eram os valores, a identificação e sentimento de pertença com o exterior e, a partir daqui, é renascer, reabilitar, corrigir comportamentos, tornar um homem novo. E reabilitar, no nosso entendimento, passa sempre por uma ocupação la-boral, escolar e formativa. A pessoa chega à instituição e tem que ser enquadrada numa dessas atividades. Quando refiro que esta é uma instituição de fim de linha, significa que as pes-soas que aqui chegam vêm completamente destroçadas, des-truturadas mentalmente, com hábitos e consumos de drogas e álcool, muitas vezes, pensando até que, chegados ao exterior da prisão, a vida passará a ser muito mais risonha, possibili-tando-lhes outra (re)integração… Mas com o tempo deparam--se com enormes barreiras.

Em que medida será legítimo afirmar-se que a vossa existência se deve ao falhanço do sistema?

JAB – Não diria que é um falhanço do sistema…

… Mas se a ideia da reclusão consiste em encetar um processo de reabilitação da pessoa que cometeu algum delito, a reinserção deveria estar à partida assegurada…

JAB – Certo… Percebo o alcance da questão… A Consti-tuição refere que, a partir do momento que há a leitura da sen-tença de condenação, começa o processo de reinserção. Este torna-se, na realidade, difícil num país que tem 49 estabeleci-mentos prisionais, 14 mil reclusos e algumas centenas de téc-nicos. A própria Direção Geral de Reinserção e Serviços Pri-sionais já tornou público que, em alguns serviços prisionais, existe um rácio de um técnico para 400 reclusos… É evidente que este processo é difícil. Existe uma crise identitária relativa-mente ao processo de reinserção e quase um esquecimento

Page 29: João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo de drogas em Portugal ... psicoativas lícitas, ilícitas e sobre as ... de ouvir

30destas pessoas. E O Companheiro emerge exatamente pela constatação que referi ter surgido há 30 anos atrás, o facto de não existir uma instituição que desse apoio à pessoa reclusa. A partir do momento em que defendemos uma causa, a nossa missão é claramente promover a reinserção. Não é, de todo, fácil… A sociedade tem que ser responsabilizada, chamada a prenunciar-se sobre o que quer no pós-reclusão e deveria dar mais suporte, ser mais tolerante e igualitária. Costumo afirmar que só podemos dar o que temos e gostava que esta máxima, em que fui educado, prevalecesse. Posso garantir neste mo-mento que, quando a pessoa sai da prisão e é feito um levan-tamento, uma necessidade e um plano individual de inclusão com a pessoa, conseguimos dar uma resposta, na maioria das vezes enquadrá-la. A pessoa sai da prisão e, no dia seguinte, está a trabalhar ou a fazer uma formação específica. Temos técnicos especializados para uma resposta eficaz e eficiente na inclusão no pós-reclusão.

Como sinalizam os casos? Estes reclusos são referen-ciados ou procurados pela instituição?

JAB – Temos uma medida, as saídas Jurisdicionais, vulgo precárias, em que recebemos pessoas ainda presas referen-ciadas pelos estabelecimentos prisionais - porque o processo de reinserção começa por aqui e a lei prevê que a pessoa pode, ainda presa, pode sair para o meio exterior, sendo O Companheiro uma das entidades que pode receber estas pes-soas – a quem é feita a seguinte pergunta: quando sair, em ter-mo de pena ou em liberdade condicional, precisa do apoio do Companheiro? Se responder afirmativamente, começamos desde logo a trabalhar no sentido de perspetivar quando sairá, para o podermos enquadrar nos nossos protocolos, de acordo com os seus conhecimentos e mais-valias… É feito um plano de inclusão com o indivíduo, prestado um trabalho do ponto de vista técnico, educacional, de direito… No fundo, trata-se de um conceito de “família alargada”, em que nós, internamente, temos serviços especializados através dos quais procuramos dar a resposta possível para o pedido daquela pessoa. Uma regra desta casa é que ninguém sai daqui sem uma resposta à sua solicitação, ao seu problema, à sua dificuldade. Se tiver-mos essa capacidade instalada, damos resposta; caso contrá-rio, encaminhamos para outras entidades. O indivíduo sai da

prisão, é recebido no Companheiro, onde temos uma residên-cia para 22 pessoas atualmente lotada e, se tudo correr bem, no dia seguinte está numa atividade ocupacional. Paralela-mente, começa todo um trabalho social, psicológico, médico, legal, desportivo…

Falamos de reclusos exclusivamente do EPL ou de ou-tros estabelecimentos prisionais?

JAB – Falamos de todo o território nacional, embora não tenhamos uma relação muito próxima com o norte, devido à distância. Este ano, abrimos um gabinete em Lagoa, estamos também já com um gabinete em Leiria e, como tal, já assegu-ramos dois terços do território nacional e esperamos poder es-tar na região norte até ao início do próximo ano. Também nos deslocamos aos estabelecimentos prisionais, onde desenvol-vemos ações de sensibilização, damos a conhecer a existên-cia de uma instituição no pós-reclusão, que trabalha estas competências, à qual podem dirigir-se através dos técnicos do serviço prisional ou pelo próprio pé, quando saírem.

E como vive a Associação?JAB – Vivemos com o apoio da Segurança Social pela re-

sidência e este é o apoio fundamental que temos para poder-mos ter todo o corpo técnico especializado a trabalhar neste sentido; vivemos através dos protocolos celebrados com em-presas, que nos cedem géneros para que possamos fazer face aos nossos serviços; em termos de empregabilidade, trabalha-mos com a Câmara Municipal de Lisboa, com a Junta de Fre-guesia de Benfica, com a Junta de Freguesia de São Domin-gos de Rana… Numa lógica quase empresarial, procuramos financiar todo este projeto, que toda a gente reconhece e a prova disso encontramos nas frequentes visitas que recebe-mos. Ainda no final de agosto, o MBA Roterdam School trouxe aqui uma delegação para perceberem como trabalhamos no pós-reclusão… Mas gostaria de salientar outro dado: embora não tenha propriamente dados estatísticos, deveríamos reflec-tir sobre a poupança que projetos como O Companheiro repre-sentam para o Estado e para o contribuinte português. No mês de agosto, tivemos 83 pessoas em ocupação laboral, a serem produtivas, a não beneficiarem de outros apoios sociais… Se fizermos contas aos custos que representariam para o contri-buinte a inatividade destas pessoas e a concessão de apoios sociais, ficaríamos provavelmente surpreendidos… E quando, muitas vezes, realizamos um evento e pedimos um apoio para um coffee break, dizem que não têm meia dúzia de euros para nos apoiarem, muitas vezes sustentados num rótulo e num es-tigma porque não pretendem estar associados à reabilitação de ex-reclusos… Esta é a nossa grande luta diária. E atrevo--me a afirmar que a crise que o país atravessou trouxe uma lei-tura completamente diferente das pessoas face às problemáti-cas sociais. Temo que, agora que saímos do lixo das grandes agências, voltemos ao passado e não tenhamos aprendido ri-gorosamente nada… Na verdade, as pessoas ficaram a pensar que ficarem desempregadas seria uma forte possibilidade. As-sim como terem alguém próximo que caísse nessa situação e, por conseguinte, terem que adoptar comportamentos ilícitos passou a constituir algo que já não era assim tão descabido. E começaram a olhar para esta casa com outra perspetiva… A determinada altura, porque temos que gerir uma casa que tem

Page 30: João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo de drogas em Portugal ... psicoativas lícitas, ilícitas e sobre as ... de ouvir

31quase 100 pessoas a serem financiadas todos os meses, te-mos que enveredar pelo empreendedorismo social… E há qua-tro anos atrás, fiz talvez dos projetos mais bonitos e de que mais me orgulho: as práticas educativas parentais (PEP), ou seja, uma ferramenta que nos permite trabalhar com crianças que, de alguma forma, já transportam o rótulo de terem pais ou outro familiar privados de liberdade, que muitas vezes não têm outro modelo senão o que testemunham em casa. Com elas desenvolvemos métodos de estudo, acompanhando-as no pós-escola e trabalhando com elas determinadas competên-cias sociais e fazendo tudo para que possam ter sucesso.

De que recursos humanos dispõem para levarem a cabo esta missão hercúlea?

JAB – neste momento, temos 13 pessoas afetas ao quadro de pessoal, a grande maioria licenciadas em psicologia. Asso-ciado, temos outra vertente extremamente importante, o volun-tariado.

Não sendo propriamente fácil para a população em ge-ral obter emprego, será certamente muito mais difícil con-segui-lo para a população com que trabalham, o que deve-rá pressupor a construção de uma forte rede social… Como é possível assegurar emprego um ou dois dias após a chegada de ex-reclusos à instituição?

JAB – É possível graças a um conjunto de parceiros insti-tucionais que acreditam no nosso trabalho e que connosco tra-balham diariamente. Isto só é possível se trabalharmos em rede e, se não tivesse uma Câmara Municipal de Lisboa que acredita efetivamente no nosso trabalho, se não tivesse um parceiro como a Junta de Freguesia de Benfica, onde temos seis pessoas a trabalhar, se não tivesse parceiros como a Car-ris ou o Metro de Lisboa, onde temos 19 pessoas a trabalhar, seria muito difícil. Queremos e ambicionamos novos parceiros institucionais, que acreditem e nos ajudem a fazer diferente porque o passado ajuda-nos a pensar o presente e a projetar o futuro. Este é um trabalho que obriga a que haja responsabili-dade social. O objetivo comum é que não haja homem excluído pelo homem.

Em que medida sustentam os vossos programas em evi-dência científica?

JAB – Sim, claro! Além de ser diretor desta casa, sou pro-fessor universitário e, sempre fui ensinado a mostrar evidên-cias científicas e empíricas. A título de exemplo, após dois anos letivos das práticas educativas parentais, temos dados objetivos que demonstram melhoria de competência. Os nos-sos programas psicossociais têm resultados empíricos, valida-dos cientificamente. Essa é a mais-valia do Companheiro. Nós temos que ensinar a pessoa e só o podemos fazer dando-lhes competências. E é isso que pretendemos implementar na Es-cola Social Companheiro. Temos programas que desenvolve-mos, em termos de Métodos de Estudo, Uma Família com Fu-turo, Custos e Benefícios da Agressividade, Treino de Interven-ção Assistida com Animais, tudo isto devidamente fundamenta-do do ponto de vista científico. Aliás, todas as pessoas que trabalham connosco possuem essa capacidade e a nossa Es-cola Social tem que ter uma base científica e empírica para po-demos demonstrar ao mundo que uma pessoa que entrou no

Companheiro para fazer um programa, por exemplo, de redu-ção de consumo de canabinóides, reduziu efetivamente o con-sumo; A pessoa que fez o Custo e Benefício da Agressividade conseguiu baixar os índices de agressividade… Tudo isto tem, obviamente, também o outro lado o da pessoas que não con-segue melhorar, o que significa que temos que continuar a tra-balhar e adaptarmo-nos à realidade da pessoa. Agora, sabe-mos que este trabalho não se desenvolve de um dia para o ou-tro. Como disse Almada Negreiros, “Quando eu nasci todas as frases sobre salvar a humanidade já estavam escritas só falta mesmo salvar a humanidade”.

Page 31: João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo de drogas em Portugal ... psicoativas lícitas, ilícitas e sobre as ... de ouvir

32UAC prossegue II Ciclo de Formação em Alcoologia com novo tema:

Direitos das crianças em

contexto familiar

A Unidade de Alcoologia de Coimbra (UAC), unidade especia-lizada no tratamento e reabilitação de doentes com problemas li-gados ao uso, abuso e dependência de álcool continua a apostar na formação holística dos seus profissionais e da comunidade que intervém em CAD, partilhando momentos de troca de conheci-mentos em diversos domínios. Desta feita, no âmbito do II Ciclo de Formação em Alcoologia da UAC, esta unidade organizou, no dia 26 de setembro, a sessão “Direitos das crianças no contexto fami-liar”, dinamizada por Rui Alves Pereira, que versou sobre a legis-lação na matéria, bem como no âmbito do exercício da parentali-dade e de como é posta em prática, do impacto dos processos de dependência de substâncias para efeitos de regulação das res-ponsabilidades parentalidade e da centralidade da criança nestes processos. Licenciado em Direito, especializado em Direito da Fa-mília e das Sucessões, e pós-graduado em Responsabilidades Parentais e Direito de Protecção de Menores pela FDUC, Rui Al-ves Pereira é advogado recomendado pelos directórios internacio-nais de referência - The Legal 500,Who’s Who Legal Best Law-yers. Advogado na PLMJ desde 1999 e Sócio de PLMJ - Socieda-de de Advogados desde 2014 até 2016; Sócio e Sócio Coordena-dor da Equipa de Clientes Privados da AAMM-Sociedade de Advogados desde 2017; Coordenador e co-autor de cursos de Di-reito de Família no Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Ad-vogados; Presidente da Associação “A Voz da Criança” – Associa-ção Portuguesa da Criança e seus Direitos. Leciona nas Faculda-des de Direito das Universidades de Lisboa e de Coimbra, sendo ainda autor das publicações “Quando as Quatro Mãos Não Emba-lam o Berço – Parentalidade Interrompida ou Não Assumida” e “Regulamento da União Europeia em Matéria Sucessória – Guia Prático, Direito da Família e Sucessões”.

A UAC mantém assim o propósito de propor para cada ação um tema de reconhecido interesse, um palestrante de sólida qua-lidade científica, seguindo-se uma hora de debate com esse mes-mo palestrante, que permite colocar dúvidas, esclarecer conceitos e discutir aspetos práticos. Os vários profissionais, médicos, en-fermeiros, assistentes sociais, psicólogos e outros, encontram também nestas sessões a oportunidade de colocar à discussão com a equipa da UAC casos clínicos, aspetos práticos relativos à orientação de utentes dos seus ficheiros, formas de fazer em que podemos trocar experiência e conhecimento e praticar, efetiva-mente, uma verdadeira e eficaz articulação, forma enriquecedora de aumentar a qualidade das várias intervenções, de otimizar re-sultados e conjugar esforços, potenciando o papel das redes de articulação no funcionamento quotidiano, no conhecimento próxi-mo dos profissionais sobre o funcionamento dos outros serviços e na comunicação eficaz.

Dependências esteve presente no evento e entrevistou Rui Al-ves Pereira.

RUI ALVES PEREIRA

“As crianças e os jovens não sabem quais são os seus direitos”

Do que falamos em concreto quando abordamos a temáti-ca dos direitos das crianças em contexto familiar?

Rui Alves Pereira (RP) – Quando falamos em direitos das crian-ças, estamos obviamente a falar do direito à educação, do direito à saúde, do direito a ser cuidado pelos pais e pela família efetivamente alargada, direitos esses consagrados na norma principal das crian-ças, a Convenção sobre os Direitos das Crianças. E, como estamos a falar de direitos, falamos de sujeito de direitos… O curioso é que to-dos nós, adultos, falamos dos direitos das crianças mas convém ser aquele que é titular dos direitos a ter conhecimento dos mesmos e, na verdade, as crianças e os jovens não sabem quais são os seus di-reitos. Essa é de facto a nossa luta e preocupação, acima de tudo.

E como se transmite esse conhecimento?RP – Esse conhecimento transmite-se seguindo de perto as

recomendações da União Europeia, que já aconselhou todos os seus estados-membros a terem formação sobre esta matéria, tra-duzida numa disciplina na própria escola; através da divulgação dos direitos da criança, com manuais próprios e desde as idades mais tenras. A verdade é que, quando faço formação nas escolas e pergunto às crianças quais são os seus direitos, elas só nos res-pondem deveres… Desconhecem os seus direitos.

Em Portugal, apesar da curta dimensão territorial, temos uma sociedade muito diferenciada, com barreiras de acesso à informação e formação particularmente evidentes no interior, o que se reflete em termos de conhecimento. Quando os adul-tos não conhecem plenamente os seus direitos e deveres, não será assim tão fácil garantir às crianças e jovens o aces-so pleno aos seus direitos…

RP – É verdade… Efetivamente, as pessoas dos grandes cen-tros estão muito mais informadas, ao passo que no interior não existe um conhecimento tão aprofundado quanto aos direitos, nem mesmo pelos próprios adultos… Enfim, é um trabalho que temos que desen-volver no sentido de fazer chegar esse conhecimento às pessoas, te-

Page 32: João Goulão, SICAD – General-Director · ... o jornalista norte-americano refere que o consumo de drogas em Portugal ... psicoativas lícitas, ilícitas e sobre as ... de ouvir

33mos várias formas de o fazer, seja através de iniciativas das autar-quias, das escolas e outras entidades. Algo tem que se fazer para cultivarmos os direitos das crianças. Não defendo a ditadura das crianças, pelo contrário, mas também não defendo o sentimento de posse dos pais. E uma coisa são os direitos das crianças e o relacio-namento dos pais com as crianças num grande centro ou num centro mais rural e tudo isto terá que ser contextualizado. Não podemos ra-dicalizar porque uma criança é uma criança.

Falamos aqui essencialmente numa óptica de prevenção, de formação e de sensibilização… Pergunto-lhe se, no plano mais punitivo, serão muitos os casos que chegam às barras dos tribunais por violação dos direitos das crianças.

RP – Quando estamos a falar em violação dos direitos das crianças, há de facto uma “punição”, em que se aplica a lei tutelar educativa, o Código Penal para jovens, digamos assim, mas efeti-vamente pela violação dos seus direitos. Mas se falarmos em vio-lação de direitos como o acesso à educação, aí já não temos e isso pressupõe o cumprimento desses instrumentos, quer interna-cionais, quer nacionais e pressupõe também, claramente, proces-sar o Estado, quando não é respeitado, por exemplo, o seu direito à saúde ou à educação. Não há, de facto, muita tradição nesse sentido, apesar de as reivindicações serem cada vez maiores e de o nosso Estado fazer um esforço no sentido da integração e do respeito pelos direitos da criança.

A esse nível, temos um instrumento importante, as CPCJ…RP – Sim, as CPCJ são uma outra realidade. Estamos a falar

de comissões de proteção de crianças e jovens em perigo, às quais qualquer situação pode ser transmitida e essas instituições, que desenvolvem um excelente trabalho, após uma consulta com os pais, se identificarem alguma situação de risco físico ou psico-lógico para a criança, podem e devem agir. Sendo certo que, mui-tas vezes, os pais ainda não estão habituados a esta realidade e não admitem a intervenção destas comissões, dotadas de exce-lentes profissionais. Mas quando assim sucede, a comissão sabe o que tem que fazer, que é participar ao Tribunal de Família e, nessa medida, é o próprio Ministério Público, como defensor da criança, que tomará a iniciativa.

Fazendo a ponte para a área dos CAD, que inclui muitas vezes situações de reclusão dos pais ou quadros de violência doméstica e outra criminalidade associada, como funciona a proteção da criança?

RP – Quando falamos numa situação de violência doméstica ou nalgum comportamento de risco de um dos pais, estamos efetiva-mente perante uma criança em risco e, nesse caso, ou há, como re-feri, uma intervenção da comissão ou, posteriormente, do tribunal, sendo que este pode adotar medidas provisórias ou mesmo definiti-vas que salvaguardem esta criança. Se estivermos a falar, por exem-

plo, numa família em que pai e mãe sejam alcoólicos, a demonstra-rem-se esses factos, é muito possível que a criança seja retirada aos pais e entregue a outra parte da família biológica que possam cuidar dela. Sempre que está num ambiente de risco, nomeadamente na fa-mília – e não podemos esquecer que é na família que se cometem os principais crimes – compete às comissões e mais propriamente ao tri-bunal tomar leis que estão previstas na lei, que vão desde o apoio junto dos progenitores à retirada da criança.

Já nos casos de reclusão, em que se pressupõe que o in-divíduo condenado inicia, logo no primeiro dia no estabeleci-mento prisional, um processo de reabilitação, será legítimo retirar-se a convivência entre o progenitor e a criança?

RP – Acho que não… Mas se virmos do ponto de vista dos adul-tos, achamos que sim, no sentido, que na perspetiva destes, se um pai tem aquele comportamento, a criança deve ser-lhe retirada…

… Mas a criança tem o direito de ter um pai e uma mãe…RP – Sim, mesmo em determinado tipo de condições. Não po-

demos confundir o que é tirar um pai ou uma mãe a uma criança com tirar uma criança a um pai ou a uma mãe… São coisas com-pletamente diferentes…

Mais ainda quando o indivíduo está a iniciar um processo de reinserção…

RP – Exatamente. Está a iniciar esse processo, tem que se cui-dar dessa pessoa mas, simultaneamente, a criança tem o direito a estar com ele. Se me perguntar se é uma coisa boa, responderei que não… Mas entre a menos má, de ver ou não ver, prefiro que veja, em determinado tipo de condições decididas pelo tribunal.

Acha que está assegurada a representatividade das crian-ças na nossa sociedade?

RP – Estão, em primeiro lugar, através do Ministério Público, a entidade do Estado que representa as crianças e os jovens. E tem-no feito bem, apesar de ainda haver muito a fazer e, por isso mesmo, de acordo com as recomendações europeias e com a lei portuguesa, foi indicado que, em determinado tipo de casos, a criança tem direito a um advogado.

Nesta área particular dos CAD é frequente ouvir-se a expres-são, por parte dos destinatários das intervenções, “nada sobre nós sem nós”… Não deveriam também as crianças e os jovens ter di-reito a outro tipo de representatividade que incluísse os próprios?

RP – É uma boa questão… Acho que sim! E respondo desta for-ma: evidentemente, o nosso Estado tem para elas reservada uma re-presentação, que é indicar um procurador do Ministério Público ou um advogado mas, se for ver as recomendações da UE sobre uma justiça adaptada às crianças e aos jovens, constata que têm que ser concedidos os meios para a própria criança ter acesso ao processo e a poder escolher o seu próprio representante. Isso é ser informado.