Influências da Constituição de Cádiz na Constituição do Império do Brasil
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Influências da Constituição de Cádiz na Constituição do Império do Brasil
Constitution of Cádiz influences on the Constitution of the Empire of Brazil
Wagner Silveira Feloniuk*
INTRODUÇÃO
A Constituição Política da Monarquia Espanhola de 1812, ou Constituição de Cádiz, foi
uma norma espanhola que alcançou grande repercussão em países da Europa e da América que
desejavam implantar sistemas liberais durante a década de 1820. Este estudo se propõe a
apresentar as influências que a norma teve sobre a Constituição do Império do Brasil de 1824.
No momento de elaboração da Constituição brasileira, a norma já tivera uma trajetória de
influências sobre o Brasil, mas perdia importância porque previa um legislativo muito forte
politicamente – um modelo semelhante ao francês, mas expressamente condenado por Dom
Pedro I.
O trabalho apresenta as principais influências da constituição espanhola no Brasil de
maneira resumida e depois apresenta as influências sobre a Constituição do Império. A análise
é feita a partir de estudos das constituições, das atas das cortes, de normas francesas e
portuguesas, e também de trabalhos doutrinários da época e atuais. Seu objetivo é mostrar os
locais nos quais é possível verificar concretamente o influxo espanhol sobre a norma brasileira.
1 Influências da Constituição de Cádiz no Brasil
* Doutorado em Direito Constitucional com bolsa CAPES (2013-), Mestrado Acadêmico com bolsa CNPQ (2012),
Especialização em Direito do Estado (2011) e Graduação com Láurea Acadêmica em Ciências Jurídicas e Sociais
(2006-2010) na Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Professor das pós-graduações da Verbo
Jurídico e de Advocacia de Estado e Direito Público da UFRGS. Editor-Executivo e Responsável Acadêmico da
Revista Cadernos do Programa de Pós-Graduação PPGDir./UFRGS (2012-) e Membro do Corpo Editorial da
Revista E-Civitas e Revista Brasileira de Direitos Humanos da Lex Magister. Autor do livro "A Constituição de
Cádiz: Análise da Constituição Política da Monarquia Espanhola de 1812". Pesquisador dos Grupos de Pesquisa
CAPES: A Revolução Federalista e o Ideário Parlamentarista, Clássicos do Direito do Estado e Direito e Filosofia.
Submissão em: 15 jun. 2015. E-mail: [email protected].
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A influência da Constituição de Cádiz no Brasil se deu principalmente por duas vias.
Uma foi a influência dos portugueses, que consideraram a norma espanhola um exemplo a ser
seguido na sua luta pelo liberalismo. Os portugueses conseguiram impor a volta do rei Dom
João VI à Portugal e planejavam reimplantar o sistema de vantagens comerciais cessados com
a vinda da família real, a Constituição espanhola estabelecia a centralização almejada para o
Brasil ao mesmo tempo em que limitava o rei, garantindo a continuidade do poder ocupado
pelos liberais no vácuo político criado em Portugal. A segunda via foi brasileira, as ideias
liberais chegavam com doutrinadores franceses, mas também, em menor escala, com o exemplo
da norma espanhola, que era uma obra vendida em grande quantidade no Brasil (NEVES, 2003,
p. 79). A norma não era desconhecida dos intelectuais e foi progressivamente incluída também
em manifestações populares, como panfletos e jornais.
Apesar da atenção outorgada não ser costumeiramente grande, a Constituição de Cádiz
é provavelmente a segunda maior fonte de influência estrangeira sobre o constitucionalismo
nascente do Brasil em 1820. A França era o referencial teórico que guiava o movimento, mas
as normas espanholas tiveram um peso relevante na conformação do Brasil até a outorga da
Constituição Imperial.
O primeiro elemento relevante para apresentar a influência espanhola nas normas do
Brasil foi as Bases da Constituição da Monarquia Portuguesa de 1821. A influência é
reconhecida por diversos autores, como MORAES e SILVEIRA (p. 7-8), VARELA
SUANZES-CARPEGNA (2010, p. 250-251) e CUNHA (2005, p. 176-228). 23 dos 37 artigos
foram inspirados na norma espanhola. Essas Bases foram, ao menos em sentido formal, a
segunda Constituição a viger no Brasil e foi sob ela que se realizou a primeira eleição geral do
Brasil, para escolher os representantes brasileiros às cortes portuguesas que iriam elaborar uma
Constituição unindo os três reinos. O restante da influência é francesa e ocorreu principalmente
na declaração de direitos.
As eleições gerais de 1821 são o segundo momento de influência da norma espanhola.
No início de 1821, Dom João VI adere à Revolução Portuguesa, aceita voltar ao país de origem
e o Brasil é chamado a apresentar representantes eleitos em Portugal. A norma utilizada para
tal eleição foi a Constituição de Cádiz. O mesmo decreto que anuncia a passagem do governo
para o príncipe regente determinou o uso do sistema eleitoral espanhol (BONAVIDES;
AMARAL, 2012, p. 491-492). Nessas eleições, os cidadãos – sem necessidade de comprovar
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renda – elegeriam compromissários, que sucessivamente elegeriam eleitores de freguesia,
comarca e província. Foi nesse ambiente em que a exclusão dos descendentes de africanos
prevista na norma espanhola foi criticada pelo ex-Governador da Província de Minas Gerais e
Vice-Rei da Índia, Dom Manuel de Portugal e Castro. Os pardos, anunciava ele, eram em
número igual ou superior aos brancos, e muitos estavam tão bem estabelecidos quanto os
descendentes de portugueses, a exclusão era uma discriminação injusta e incompatível com o
Brasil (SILVA, 2012, p. 47-49).
A realização dessas eleições levou, indiretamente, a um outro efeito da Constituição
espanhola no Brasil. O sistema eleitoral de quatro graus pressupunha a estrutura criada para as
províncias espanholas e, também por isso, são implantadas as províncias no Brasil. Algumas
capitanias brasileiras haviam se revoltado contra a monarquia e haviam sido declaradas
províncias pelos revolucionários portugueses antes das eleições, mas agora com a adoção do
sistema eleitoral, as capitanias deixaram de existir em todo o Brasil. Era um sistema
centralizador, mas que dava formalmente mais liberdade do que existia no sistema das
capitanias (FELONIUK, 2014, 237-256).
Durante a realização dessas eleições, no dia 21 de abril, ocorre a revolta na Praça do
Comércio no Rio de Janeiro em que há a outorga da norma espanhola no Brasil. A população
estava inconformada com a partida do rei levando grande quantidade de bens e não aprovara a
nova escolha de ministros que auxiliariam o príncipe. O resultado foi a pressão popular, talvez
organizada por Dom Pedro, que exigia a instauração da Constituição de Cádiz enquanto não
ficasse pronta a nova Constituição a ser elaborada em Portugal (LEAL, 2012, p. 15). Dom João
VI acata o pedido e a norma entra em vigor por um dia (MELLO MORAES, 1871, p. 47). No
entanto, depois de um episódio violento na mesma noite, em que o descontrole e possível
indução à violência levou à morte de 40 revoltosos, o rei voltou atrás e retirou a vigência da
norma (BONAVIDES; AMARAL, 2012, p. 494). Esse foi o episódio mais marcante para
demonstrar que influência daquele texto não existia só na classe social com mais poder político,
a Constituição de Cádiz aparecia também no imaginário da população. Para a política, uma das
consequências mais importantes do episódio foi a ida definitiva de Dom João VI para Portugal,
que ocorreu poucos dias depois.
Por fim, e em meio a outros elementos de menor impacto, a Constituição de Cádiz
também chegaria à Constituição Imperial. Essa influência pouco documentada pode ser traçada
quando se analisa as origens da primeira constituição escrita no Brasil.
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2 A Influência da Constituição de Cádiz na Constituição do Império do Brasil
A análise das influências foi feita a partir da comparação dos textos espanhóis e
brasileiros, da análise de atas de discussões e de dados sobre a existência de correlatos em outras
normas, como as constituições francesas, portuguesa e a Declaração de Direitos do Homem e
do Cidadão. Como o objetivo é mostrar influências espanholas, apenas serão objeto de
apresentação e análise as normas nas quais parece ter havido o efetivo influxo.
2.1 Direitos e Garantias
O último artigo da Constituição do Império garante a inviolabilidade dos “Direitos
Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros”, nele está a lista dos direitos reconhecidos e
algumas das garantias existentes para assegurá-los.
A primeira possível influência espanhola foi a continuidade da censura da imprensa em
matéria religiosa. O instituto existia durante todo o Antigo Regime, mas as discussões dos
deputados espanhóis em suas cortes e a decisão final deles por manter a restrição
(HIGUERUELA DEL PINO, 2002, p. 69) foi o motivo pelo qual os deputados portugueses não
a retiraram da norma portuguesa, e se criou um ambiente que possivelmente facilitou a decisão
nesse sentido também no Brasil. O ambiente cultural e a forte influência da religião na
sociedade brasileiras também foram fatores determinantes, mas o enfraquecimento das ideias
filosóficas francesas nesse quesito, tão relevantes nos outros direitos, possivelmente está ligado
ao exemplo dado na Espanha. É como afirmaram expressamente os deputados portugueses
quando o assunto foi discutido – disse o deputado Madeira Torres, em 14 de fevereiro de 1821,
com a posição que se sagraria vencedora: “[...] censura prévia se acha resolvido na
Constituirão d'Hespanha pela parte affirmativa, e por uso decidido igualmente o nosso
respeito, visto que a nossa Constituição deve levantar-se sobre as bases d'aquella [...]”
(PORTUGAL, 1821).
Nos direitos ligados à proteção dos que respondiam a processos ou foram condenados,
as ligações entre a Constituição de Cádiz e a Constituição do Império também aparecem. Apesar
da importância do liberalismo e iluminismo francês nesses institutos, havia uma tradição
comum e mais antiga nos países ibéricos de humanização dos tratamentos. Essa conexão de
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culturas jurídicas dificulta apontar a existência de influências específicas de uma Constituição
sobre outra, mas indica a existência de tendências em comum. Nesse sentido é que, por
exemplo, os motivos para fundamentar a prisão são tão mais desenvolvidos nos países ibéricos
do que eram na França. Os contatos no Direito Penal provavelmente incluem os incisos X, XI,
XII, XIII e XX1 da Constituição do Império, que continham correlatos fortes com as normas
Espanholas de 1812 e já haviam aparecido também na criação da Constituição de Portugal de
1822, profundamente influenciada pela Constituição de Cádiz.
Uma outra ligação possível entre as normas era o direito de petição. A Constituição de
Cádiz prevê a possibilidade de qualquer cidadão se dirigir aos reis ou à corte para reclamar a
observância da Constituição. Uma versão genérica do direito já existia na França e em alguns
estados dos Estados Unidos (PORTELLA, 1876, p. 403), mas a expressa possibilidade de
acessar qualquer dos dois poderes, repetida no artigo 179, XXX, da Constituição do Império, é
possivelmente uma remissão à prerrogativa igualmente outorgada aos espanhóis no artigo 373
da norma espanhola.
2.2 Divisão de Poderes
A Constituição de Cádiz previa três poderes, seguindo a tradição norte-americana e
francesa que começava a ser utilizada por diversos países. A Constituição brasileira, por outro
1 Texto original dos incisos do artigo 179:
“X. A' excepção de flagrante delicto, a prisão não póde ser executada, senão por ordem escripta da Autoridade legitima. Se esta fôr arbitraria, o Juiz, que a deu, e quem a tiver requerido serão punidos com as penas, que a Lei determinar.
O que fica disposto acerca da prisão antes de culpa formada, não comprehende as Ordenanças Militares, estabelecidas como necessarias á disciplina, e recrutamento do Exercito; nem os casos, que não são puramente criminaes, e em que a Lei determina todavia a prisão de alguma pessoa, por desobedecer aos mandados da justiça, ou não cumprir alguma obrigação dentro do determinado prazo.
XI. Ninguem será sentenciado, senão pela Autoridade competente, por virtude de Lei anterior, e na fórma por ella prescripta.
XII. Será mantida a independencia do Poder Judicial. Nenhuma Autoridade poderá avocar as Causas pendentes, sustal-as, ou fazer reviver os Processos findos.
XIII. A Lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue, o recompensará em proporção dos merecimentos de cada um.
[...]
XX. Nenhuma pena passará da pessoa do delinquente. Por tanto não haverá em caso algum confiscação de bens, nem a infamia do Réo se transmittirá aos parentes em qualquer gráo, que seja.” (BRASIL, 1824).
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lado, tem como sua principal inovação a previsão do Poder Moderador, numa adaptação do
Poder Real previsto por Benjamin Constant em 1815 na obra Principes de Politique, Aplicables
a tous les Gouvernemens Représentatifs et Particulièrment a la Constitution Actuelle de la
France2 e nunca antes utilizada para dividir os poderes de um Estado.
Essa divisão fortaleceu politicamente a monarquia brasileira (FRANCO, 1994, p. 29) e
foi o símbolo mais visível de uma importante alteração da ordem política em relação a Portugal,
Espanha e França. O ordenamento jurídico foi organizado para não confiar ao legislativo
algumas competências muito relevantes. Essa decisão, mais importante do que a inclusão
formal de um poder, determinou o surgimento de um sistema que pretendia ser ideologicamente
diverso do existente naqueles países. Não há semelhanças a serem buscadas dentro do Poder
Moderador – ocorre o contrário, essa diferença criada em parte por ele é que merece a atenção
na comparação. Por meio da inclusão foram alterados aspectos centrais na organização do
Estado brasileiro, aumentando o poder do monarca.
Nos outros três poderes, as principais semelhanças existentes entre a Constituição de
Cádiz e a Constituição do Império podem ser observadas.
2.3 Poder Legislativo
O artigo 15 da Constituição do Império concentra as principais semelhanças com a
Constituição de Cádiz. As semelhanças desligadas das atribuições são poucas. A duração das
seções era semelhante – o legislativo brasileiro se reunia por quatro meses, vedada a
prorrogação; o espanhol se reunia por três meses, possibilitada uma prorrogação de um mês. A
tradição francesa era de não limitar a duração das cortes. Para o início das seções novamente
havia semelhanças, pois na Espanha e no Brasil ela dependia da maioria absoluta dos membros,
enquanto na França a data de abertura era decidida pelo rei contanto que iniciassem até o último
dia de maio – a maioria poderia apenas adiantar o início das seções.
No artigo 15, das atribuições, são diversas as influências. Ele possui dezesseis incisos,
divididos em dois grupos. O primeiro grupo, do inciso I ao VII, tem normas relacionadas à
monarquia e a família real – nessas normas é ampla a ligação com a norma espanhola. No
2 Tradução livre: Princípios de Política, Aplicáveis a todos os Governos Representativos et Particularmente à Constituição Atual da França.
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segundo grupo, do inciso VIII ao XVI, estão as atribuições tipicamente outorgadas aos
legislativos em qualquer Constituição escrita.
A Constituição do Império do Brasil tem o seguinte texto no artigo 15, o mais
amplamente influenciado pela Constituição de Cádiz:
Art. 15. E' da attribuição da Assembléa Geral
I. Tomar Juramento ao Imperador, ao Principe Imperial, ao Regente, ou
Regencia.
II. Eleger a Regencia, ou o Regente, e marcar os limites da sua
autoridade.
III. Reconhecer o Principe Imperial, como Successor do Throno, na
primeira reunião logo depois do sem nascimento.
IV. Nomear Tutor ao Imperador menor, caso seu Pai o não tenha
nomoado em Testamento.
V. Resolver as duvidas, que occorrerem sobre a successão da Corôa.
VI. Na morte do Imperador, ou vacancia do Throno, instituir exame da
administração, que acabou, e reformar os abusos nella introduzidos.
VII. Escolher nova Dynastia, no caso da extincção da Imperante.
VIII. Fazer Leis, interpretal-as, suspendel-as, e rovogal-as.
IX. Velar na guarda da Constituição, e promover o bem geral do Nação.
X. Fixar annualmente as despezas publicas, e repartir a contribuição
directa.
XI. Fixar annualmente, sobre a informação do Governo, as forças de
mar, e terra ordinarias, e extraordinarias.
XII. Conceder, ou negar a entrada de forças estrangeiras de terra e mar
dentro do Imperio, ou dos portos delle.
XIII. Autorisar ao Governo, para contrahir emprestimos.
XIV. Estabelecer meios convenientes para pagamento da divida
publica.
XV. Regular a administração dos bens Nacionaes, e decretar a sua
alienação.
XVI. Crear, ou supprimir Empregos publicos, e estabelecer-lhes
ordenados.
XVII. Determinar o peso, valor, inscripção, typo, e denominação das
moedas, assim como o padrão dos pesos e medidas (BRASIL, 1824).
Entre os incisos I e VII, com exceção do inovador inciso VI, a influência do artigo 131
da Constituição de Cádiz é evidente. Há correspondentes espanhóis da alínea segunda em
diante, seguindo a mesma ordem – que só é quebrada na alínea terceira do artigo 131,
correspondente ao inciso V da norma brasileira:
Art. 131. Las facultades de las Cortes son:
Primera. Proponer y decretar las leyes, e interpretarlas y de rogarías
en caso necesario.
Segunda. Recibir el juramento al Rey, al Príncipe de Asturias y a la
Regen-cia, como se previene en sus lugares.
Tercera. Resolver cualquier duda, de hecho o de derecho, que ocurra
en orden a la sucesión a la corona.
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Cuarta. Elegir Regencia o Regente del reino cuando lo previene la
Constitu-ción, y señalar las limitaciones con que la Regencia o el Regente han
de ejercer la autoridad real.
Quinta. Hacer el reconocimiento público del Príncipe de Asturias.
Sexta. Nombrar tutor al Rey menor, cuando lo previene la Constitución. [...] (ESPANHA, 1812/1994).
A norma espanhola era bastante mais restritiva ao monarca e previa normas outorgando
ao legislativo ainda os assuntos ligados à educação e ao casamento dos membros da família real
– nos artigos 199 e 208. Ela regrava com especial detalhe também o tema do inciso VII,
ocupando não um inciso, mas dez artigos (174 a 184), e estabelecendo a sucessão com amplos
detalhes, ainda que a eventual extinção da Família Real fosse levar à uma escolha também do
legislativo, como no Brasil.
Apesar da grande semelhança, as poucas alterações brasileiras são para criar normas que
aumentam o poder do imperador. Por exemplo, é afirmado que caberia à assembleia brasileira
apontar o tutor apenas se o rei não o fizesse em testamento – uma atribuição exclusiva do
legislativo na Espanha.
2.3 Poder Executivo
O Poder Executivo é regrado de maneira concisa na Constituição do Império, apenas
três artigos, e a maior parte das normas pode ser encontrada desde as primeiras normas
francesas. A influência espanhola existente é na redação de alguns dos quinze incisos do artigo
102, que lista as competências.
A primeira possível influência é do inciso II, “Nomear Bispos, e prover os Beneficios
Ecclesiasticos” (BRASIL, 1824). Esse resquício de união entre Estado e Igreja não se origina
na Espanha, mas sua permanência na Constituição brasileira possivelmente tem relação com a
não retirada da mesma norma do artigo 171, alínea 6, da Constituição de Cádiz – como ocorrera
com a censura, a religião é um dos assuntos nos quais o exemplo espanhol freou as ideias
laicizantes da França.
As outras duas influências no artigo 102 são os incisos XII: “Expedir os Decretos,
Instrucções, e Regulamentos adequados á boa execução das Leis” e XIII: “Decretar a
applicação dos rendimentos destinados pela Assembléa aos varios ramos da publica
Administração”. Eles correspondem, quase sem alterações, aos textos espanhóis do artigo 171,
alíneas 1 e 12, respectivamente: “expedir decreto e regulações que creia conducentes a
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execução das leis” e “decretar o investimento dos fundos destinados a cada um dos ramos da
administração”. Não é uma influência relevante, mas aponta para o uso subsidiário da norma
também no Poder Executivo.
Fora dos artigos estritamente relacionados ao Poder Legislativo estava o Conselho de
Estado brasileiro. Na prática, ele acabou sendo utilizado com uma relativa semelhança ao
conselho francês, tomando decisões de grande importância durante o período imperial.
Normativamente, no entanto, o conselho pouco tinha de semelhante às normas francesas, que
previam um órgão de funções jurisdicionais que separava a jurisdição civil e penal da ligada
aos atos administrativos do Estado francês. O conselho brasileiro fora imaginado em
semelhança ao Conselho de Estado espanhol, que mais tarde fora fonte de inspiração também
para o português. O conselho brasileiro, regido ao longo de oito artigos, prevê um conselho
consultivo de dez membros para os assuntos mais importantes, como o uso das atribuições do
Poder Moderador, relações internacionais e declarações de guerra. Os membros seriam
responsáveis politicamente, assim como na Espanha, e diferentemente do que ocorria na França.
Apesar da regra geral de semelhança no estabelecimento do Conselho de Estado, havia
diferenças em relação modelo espanhol: o conselho espanhol tinha quarenta membros, sua
escolha se dava por lista tríplice (e não por nomeação direta do monarca) e havia até reservas
de quatro lugares para nobres e outros quatro para membros do clero.
2.4 Poder Judicial
O Poder Judiciário era chamado de Poder Judicial e regrado no Brasil entre os artigos
151 e 164. Era um regramento mais curto que na Espanha, no qual sessenta e cinco artigos
foram dedicados ao Poder e um grau de detalhamento maior. Apesar de mais detalhado, o
sistema espanhol é bastante semelhante ao brasileiro, ambos derivando do modelo francês. Há
uma hierarquia de quatro níveis. Um nível de arbitragem, dois de jurisdição ordinária
(julgamento e apelação) e um de jurisdição extraordinária – com recursos à corte suprema dos
países.
As ligações com as normas espanholas são possíveis em cinco dos quatorze artigos
brasileiros. Inicialmente, a inamovibilidade dos juízes brasileiros (chamada de perpetuidade no
artigo 153), não tinha precedentes diretos no texto das constituições francesas, mas foram
previstas na Constituição de Cádiz. De maneira semelhante, durante o estabelecimento das
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garantias, a possiblidade de suspender juízes contra os quais houvesse denúncias existia na
França, mas apenas no Brasil e Espanha era necessário ouvir o Conselho de Estado antes de
concretizar a suspensão.
Outra aparente ligação é com o Supremo Tribunal de Justiça. O nome pode estar ligado
ao “Supremo Tribunal de Justicia” espanhol. As cortes supremas de outros países tinham nomes
bastante diferentes - House of Lords, Supreme Court of the United States, Casa de Suplicação,
Tribunal de Cassation. Com mais relevância que um nome, no entanto, WEHLING (2013, p.
133-134) narra que o modelo adotado de corte suprema como última instância julgadora na
Espanha foi o adotado no Brasil. A principal diferença entre as duas cortes era o maior escopo
de atuação da corte suprema espanhola. Wehling traz que a retirada dos papéis político-
constitucionais do tribunal no Brasil, relacionados a tirar dúvidas na interpretação das leis,
publicar estatísticas e elaborar notícias à tribunais inferiores, ocorreram como parte da reação
conservadora do Imperador, tendo sido essas atribuições deixadas aos demais poderes, sobre os
quais ele teria mais influência. No entanto, a ligação entre a origem das cortes é afirmada pelo
autor.
2.5 Império e Família Imperial
Diversas normas sobre a família imperial e o imperador parecem estar relacionadas à
Constituição Espanhola. Inicialmente, a inclusão de regras na Constituição sobre a extinção da
dinastia e o papel do legislativo na escolha de uma nova não provinham da França, assim como
as regras sobre o casamento da princesa imperial que fosse herdeira do trono (no casamento,
com escolhas sendo feito pelo Imperador no Brasil e pelas cortes na Espanha). De maneira
geral, os dotes decorrentes de casamento não fizeram parte das constituições francesas, mas
existiam na brasileira e na espanhola. Outra ligação entre as normas é a existência de um artigo
específico citando o nome dos reis e imperadores – na Espanha fora citado Dom Fernando VII,
e no Brasil, Dom Pedro I – os dois textos casuístas eram acompanhados pela Constituição de
Portugal, mas não tinham precedentes na francesa.
Sobre a regência também há ligação. A regência de maneira geral seguia o rito francês,
mas a provisória era extremamente semelhante à espanhola. No artigo 124, em semelhança à
disposição espanhola, a regência provisória era presidida pela Imperatriz Viúva (ou Rainha
Mãe, na Espanha) e composta pelos dois Conselheiros de Estado mais antigos. Havia, no
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entanto, uma diferença, no Brasil participariam da regência provisória também os ministros do
Império e da Justiça, enquanto na Espanha os outros dois membros seriam os deputados mais
antigos nas cortes. Os juramentos feitos pelos membros da regência brasileira são, igualmente,
bastante semelhantes aos espanhóis.
Por fim, os juramentos feitos pelos herdeiros presuntivos da coroa espanhola e
brasileira, ambos aos quatorze anos, apresentam novamente as aproximações entre os textos –
conforme o artigo 212 da norma espanhola e 106 da brasileira. Os juramentos são bastante
semelhantes nos seus textos, o juramento era à religião, à Constituição e ao Rei na Espanha; no
Brasil, os elementos eram quase os mesmos, com a única adição de que após jurar à
Constituição, o príncipe jurava também obedecer às leis.
2.6 Forma de Estado e Centralização
É adotado o sistema unitário no Brasil, como ocorria em todo o mundo, salvo nos
Estados Unidos. Alguma a proximidade com o federalismo viria com o Ato Adicional de 1834,
mas nenhuma relação existe entre qualquer dessas opções com o sistema espanhol, unitário e
bastante centralizador.
A Constituição do Império utiliza o sistema de províncias que foi implantado em função
da Revolução Portuguesa de 1820 – um sistema espanhol, implantado em parte pela necessidade
de suas estruturas para a realização de eleições gerais. No entanto, a inspiração para o nome
esconde a diferença importante que se criou entre os modelos efetivamente estabelecidos – a
Constituição brasileira criou muitas normas originais e mais adequadas a realidade brasileira,
que poucas ligações tinham com a províncias espanholas e ainda menos com os departamentos
franceses. De semelhante, por exemplo, está a norma brasileira que sugere a possibilidade de
se formarem novas divisões conforme a necessidade, algo que as normas francesas não faziam.
No Brasil há mais abertura para a intervenção de cidadãos nas províncias – uma postura
diferente da francesa ou espanhola. Nos outros países, províncias e departamentos eram mera
extensões do Poder Executivo, mesmo as deputações provinciais espanholas não tinham, de
acordo com os deputados que criaram a Constituição de Cádiz, qualquer caráter representativo.
No Brasil, havia a reconhecida possibilidade de intervenção dos cidadãos nos órgãos municipais
e provinciais – as Câmaras dos Distritos e os Conselhos Gerais das Provinciais. Diversas
normas brasileiras apontam para uma maior descentralização – os presidentes desses
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legislativos eram escolhidos pelos representantes eleitos no Brasil e o número de representantes
era em geral maior. Sobretudo, no entanto, os governos locais brasileiros tinham a atribuição
de criar algumas normas – algo inexistente dentro do sistema centralizante estabelecido na
Espanha, no qual haviam apenas cláusulas de natureza estritamente administrativa. De
semelhante entre Espanha, França e Brasil eram, por exemplo, a nomeação dos chefes dos
executivos provinciais, sempre dependentes do rei ou imperador.
CONCLUSÕES
A Constituição de Cádiz influiu na Constituição do Império do Brasil. Não foram
influências que moldaram o sistema constitucional brasileiro, mas esse é o resultado do
afastamento intencional realizado por Dom Pedro e não afasta a importância da norma
espanhola.
Dentre as outras influências espanholas sobre a política e o constitucionalismo brasileiro
do período, esses influxos normativos sobre a Constituição imperial despontam como um dos
efeitos mais duradouros da Constituição espanhola.
São influências sobre os direitos, a divisão de poderes, a família imperial e a organização
territorial do Poder. Ao longo de toda a norma brasileira podem ser encontrados vestígios da
norma espanhola que em alguns casos – como na organização do Poder Judiciário –
continuaram repercutindo na cultura constitucional e tem efeitos concretos até os dias atuais.
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