Índios na escola

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Ágora, Santa Cruz do Sul, v. 15, n. 2, p. 74 a 85 jul./dez. 2009 O ÍNDIO NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL: PARA ALÉM DO COCAR, DO ANDAR NU E DA OCA. THE INDIAN IN THE FIRST YEARS OF ELEMENTARY SCHOOL: BEYOND THE COCKADE, NAKED WALKING AND HUT Maria de Fátima Santos da Silva 1 Caroline Terra de Oliveira 2 Cauê Lima Canabarro 3 RESUMO O presente trabalho é fruto da análise das formas de estudo e apresentação do índio no ensino de história, objetivamente nos anos iniciais do ensino fundamental. Temos percebido que a visão mítica e fantasiosa do índio que anda nu, usa um cocar, se alimenta de produtos vindos da natureza e dorme em ocas continua perpassando a prática e a fala de muitas educadoras e educadoras dos anos iniciais. Este artigo, ao mesmo tempo em que resgata nossa prática como educadora no processo de formação de professores problematiza essas ações e suas implicações no fortalecimento do racismo e redução da cultura e saberes dos não- brancos. PALAVRAS–CHAVE: História, educação, índio, ensino fundamental, formação de professores. ABSTRACT The present work is the outcome of the analysis of the ways to study and introduction of the Indian in history teaching, objectively in the early years of elementary school. We have observed that the mythic and fanciful view of the Indian who walks naked, uses a cockade, feeds himself with products coming from nature and sleeps in huts continues pervading a habit and speech of many teachers of the first years. 1 Licenciada em História, Especialista em História do Rio Grande do Sul, Mestre em Educação Ambiental e professora substituta no Departamento de Educação e Ciências do Comportamento da Fundação Universidade Federal do Rio Grande. 2 Licenciada em História, Especialista em História do Rio Grande do Sul, Mestranda em Educação Ambiental e Bolsista da CAPES. 3 Bacharelando em História na Fundação Universidade Federal do Rio Grande.

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O presente trabalho é fruto da análise das formas de estudo e apresentação do índio no ensino de história, objetivamente nos anos iniciais do ensino fundamental. Temos percebido que a visão mítica e fantasiosa do índio que anda nu, usa um cocar, se alimenta de produtos vindos da natureza e dorme em ocas continua perpassando a prática e a fala de muitas educadoras e educadoras dos anos iniciais. Este artigo, ao mesmo tempo em que resgata nossa prática como educadora no processo de formação de professores problematiza essas ações e suas implicações no fortalecimento do racismo e redução da cultura e saberes dos nãobrancos.

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  • gora, Santa Cruz do Sul, v. 15, n. 2, p. 74 a 85 jul./dez. 2009

    O NDIO NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL: PARA ALM DO COCAR, DO ANDAR NU E DA OCA.

    THE INDIAN IN THE FIRST YEARS OF ELEMENTARY SCHOOL: BEYOND THE COCKADE, NAKED WALKING AND HUT

    Maria de Ftima Santos da Silva1 Caroline Terra de Oliveira2

    Cau Lima Canabarro3

    RESUMO

    O presente trabalho fruto da anlise das formas de estudo e apresentao do ndio no ensino de histria, objetivamente nos anos iniciais do ensino fundamental. Temos percebido que a viso mtica e fantasiosa do ndio que anda nu, usa um cocar, se alimenta de produtos vindos da natureza e dorme em ocas continua perpassando a prtica e a fala de muitas educadoras e educadoras dos anos iniciais. Este artigo, ao mesmo tempo em que resgata nossa prtica como educadora no processo de formao de professores problematiza essas aes e suas implicaes no fortalecimento do racismo e reduo da cultura e saberes dos no-brancos.

    PALAVRASCHAVE: Histria, educao, ndio, ensino fundamental, formao de professores.

    ABSTRACT The present work is the outcome of the analysis of the ways to study and introduction of

    the Indian in history teaching, objectively in the early years of elementary school. We have observed that the mythic and fanciful view of the Indian who walks naked, uses a cockade, feeds himself with products coming from nature and sleeps in huts continues pervading a habit and speech of many teachers of the first years.

    1 Licenciada em Histria, Especialista em Histria do Rio Grande do Sul, Mestre em Educao Ambiental e

    professora substituta no Departamento de Educao e Cincias do Comportamento da Fundao Universidade Federal do Rio Grande. 2 Licenciada em Histria, Especialista em Histria do Rio Grande do Sul, Mestranda em Educao Ambiental e

    Bolsista da CAPES. 3 Bacharelando em Histria na Fundao Universidade Federal do Rio Grande.

  • gora, Santa Cruz do Sul, v. 15, n. 2, p. 74 a 85 jul./dez. 2009

    This article, at the same time that it rescues the practices as teachers in teacher training,

    discusses these actions and their implications in racism strengthening, as well as reduction of culture and knowledge of the nonwhite.

    KEYWORDS: History, education, Indian, elementary school, teacher training

    Celebremos, ainda assim, no calendrio escolar e nas ruas, o grande dia, do cotidiano de quem abriu estradas, alargou pastos,

    semeou cana, caf, laranja e feijo. De quem fez e faz, na labuta do dia-a-dia, a sala de aula onde cabe a alegria. De quem ergueu

    igrejas, cidades, escolas onde no estudaria. De quem botou a mesa onde jamais comeria. E moveu fbricas por minguado salrio. Cinco

    sculos de dizimao dos povos nativos e escravido dos povos da frica, didtica operria e esperanosa resistncia! Joo Ningum,

    Maria Maria, Z das Couves, Ana que ama e canta a terra em que nasceu. Construtores annimos do Brasil

    (Chico Alencar)

    O interesse pela investigao das formas de abordagem e apresentao do ndio e sua cultura nos anos iniciais do ensino fundamental se iniciou concomitantemente nossa prtica como professora da disciplina de Didtica no Curso de Pedagogia na Fundao Universidade Federal do Rio Grande. Durante as aulas ministradas pudemos perceber e, a partir disso nortear nosso estudo, que as alunas e alunos da Graduao continuam apostando em propostas pedaggicas de trabalhar o ndio no dia 19 de Abril, com uma viso fragmentada e encobridora das desigualdades sociais, mascarando a realidade e no discutindo a situao presente do ndio e sua insero no modo capitalista de produo.

    A imagem mitolgica, preconceituosa e fantstica do ndio nu, que usa o cocar, vive em ocas e no afeito ao trabalho continua perpassando as falas e prticas de muitas futuras pedagogas e professoras, que no compreendem o carter ideolgico das propostas que desenvolvem.

    Este artigo, assim, o resultado de nossas reflexes e inquietaes iniciais. Sabemos que h muito ainda a avanar para que possamos romper com estas idias e juzos de valor que a escola ainda mantm. Como professores no podemos naturalizar este discurso, mas pelo contrrio, problematiz-lo e mostrar seus limites, ainda que isso leve a desconstruo das certezas e verdades que muitos docentes trazem.

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    RECAPITULANDO A HISTRIA: O NDIO SUBJUGADO

    Os primeiros moradores da Amrica so oriundos da sia e chegaram at o continente por meio de movimentos migratrios, os quais no sabemos a data precisa, ainda que os estudos arqueolgicos falem em 11 a 12,5 mil anos atrs. Os povos indgenas que atualmente continuam sobrevivendo na Amrica do Sul so originrios de povos caadores que aqui se abrigaram, procedentes da Amrica do Norte por meio do istmo do Panam, e que ocuparam toda a extenso do continente h milhares de anos. Essas populaes forjaram diferentes formas de manejo e explorao de recursos naturais e constituram uma grande heterogeneidade de modelos de organizao poltico-social.

    No sculo XVI, com a chegada dos portugueses no Brasil, inicia-se o processo de invaso e ocupao do territrio que antes era de domnio dos indgenas. O processo de colonizao levou extino muitas sociedades indgenas que viviam no territrio, tanto pela ao das armas, como em funo da contaminao por doenas advindas da Europa e que contriburam para a dizimao da populao nativa. Milhares e milhares de pessoas feneceram em funo de doenas antes desconhecidas e hoje muito comuns, podemos lembrar a gripe, sarampo e coqueluche, e outras mais graves, como tuberculose e varola, que exterminaram muitas sociedades, pois seus integrantes no tinham imunidade natural a estes males.

    No temos nmeros precisos que dem conta de afirmar com preciso quantos eram os habitantes indgenas, estima-se, entretanto que eles oscilavam entre 1 a 10 milhes de indivduos. Isso mostra a imensa quantidade de pessoas e culturas que foram sub-julgadas ao longo desses mais de quinhentos anos de processo colonizatrio e exploratrio.

    Podemos lembrar aqui, aquilo que Mario Maestri e Florence Carboni problematizam acerca da produo lingstica do Velho sob o Novo mundo:

    os colonizadores lusitanos, espanhis, franceses, ingleses etc. estavam inseridos em uma tradio cultural classista, expansionista e mercantilista que fazia tabula rasa das culturas e civilizaes com que entravam em contato. Essa viso do mundo determinou os signos lingsticos criados ou determinados quando da descoberta, colonizao e explorao do Novo Mundo (2003:67)

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    O termo ndio exemplo emblemtico disto, os habitantes do territrio americano so denominados ndios, inicialmente porque se pensava ter chegado s ndias, era ento um substantivo ptrio. Com o passar do tempo que a palavra vai adquirindo um sentido depreciativo, tornando o ndio menos. Na carta de Pero Vaz de Caminha os termos empregados so homens e gente, expresses pejorativas so encontradas, como gente bestial e de pouco saber.

    No Tratado da Provncia do Brasil, Pero de Magalhes Gandavo, segundo Maestri e Carboni ( 2003:69):

    refere-se sem vacilaes ao americano como ndio, mais de quarenta vezes! To comum seria a denominao que, ao se servir dela, por primeira vez, no se sentiu obrigado a explicar seu significado: No h pela terra adentro povoaes de portugueses por causa dos ndios que no no consentem [...]. No mesmo livro, gentio surge, quatro vezes, como sinnimo de ndio.

    O ndio comea a ser descrito pelo colonizador como praticamente sem essncia humana, seres sem piedade, que vivem tal como animais entregues a vcios e pecados, comedores de carne humana, com rsticos costumes.

    A suposta falta de civilidade do homem justifica sua dominao e escravido, bem como o genocdio de culturas inteiras. O estagio atual da cultura e da lngua indgena resultado direto do processo colonizatrio impetrado pelo europeu no Novo Mundo. A distribuio do ndio pelo territrio hoje fruto de deslocamentos provenientes da expanso poltica e territorial dos colonizadores, em um processo histrico onde muitos foram aculturados ou dizimados.

    A invaso territorial que se processa esta para alm da simples perda da localizao geogrfica, o ndio perde sua ptria, passa a viver em terras cedidas por governos coloniais cujo nico compromisso com o lucro e o enriquecimento da metrpole, mas no podemos pensar que os ndios tenham aceitado de forma pacifica a dominao. Sergio Buarque de Holanda afirma que:

    Ainda hoje se mantm o mito de que os aborgines, nesta parte da Amrica, limitavam-se a assistir ocupao da terra pelos portugueses e a sofrer, pacificamente, os efeitos da colonizao. A idia de que estavam em um nvel civilizatrio mais baixo responsvel por essa presuno. Todavia, nada est mais

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    longe da verdade, a julgar pelos relatos da poca. Nos limites de suas possibilidades, foram inimigos duros e terrveis que lutaram ardorosamente pelas terras, pela segurana e pela liberdade, que lhes eram arrebatadas conjuntamente. (1989:73)

    Os estudos que vem sendo feitos mostram que os povos indgenas apresentam uma grande diversidade e pluralidade de formas de organizao e resistncia, ainda que tenhamos mais informaes sobre os tupis porque eles entraram em contato com os portugueses em quase todas as regies que estes tentaram ocupar e explorar colonialmente (Holanda, 1989:73).

    A forma como se d a reao conquista por parte dos indgenas muito tem a ver com sua forma de organizao e com fatores de vrias ordens, como psico-sociasi e scio-culturais. Em A poca colonial: do descobrimento expanso territorial, coletnea organizada por Srgio Buarque de Holanda, encontramos a seguinte definio para explicar o domnio sobre os Tupis:

    o sistema organizatrio dos antigos Tupis possua um padro de equilbrio interno relativamente indiferenciado e rgido. Este subordinava-se renovao contnua de condies estveis, tanto nas relaes do homem com a natureza, quanto nas relaes dele com seus semelhantes. Alteraes bruscas, que se repartissem regularmente depois, s poderiam ser enfrentadas com sucesso quando as demais esferas da vida se mantivessem estveis e houvesse tempo para explorar, com eficcia, o demorado mecanismo de escolha da soluo, entre tentativas recomendveis luz da experincia anterior. A presena do branco constitua uma alterao dessa espcie, que no poderia ser arrostada, entretanto, em condies favorveis. O sistema organizatrio tribal logo passou a ressentir-se dos efeitos desintegradores, resultantes de sua incapacidade de reajustar-se a situaes novas, impostas pelo contato com o invasor branco. (1989:80)

    A colonizao no pode ser entendida como fenmeno nico, linear, de simples extermnio dos povos considerados passivos, submissos, impotentes, mas como um complexo jogo de relaes, embates, negociaes e conflitos, desde a chegada dos primeiros europeus at os dias atuais, onde povos foram exterminados brutalmente, e outros elaboraram diferentes estratgias para sobreviverem at os dias de hoje. A principio o processo de entrada dos colonizadores no Novo Mundo no trouxe muitas alteraes, o equilbrio da vida do nativo era mantido, contudo o constante estado de sobressalto e medo que viviam os europeus explica em grande medida o processo de destruio da cultura nativa.

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    A grande transformao se processa quando comeamos a ter a passagem do escambo para a agricultura, os portugueses, no caso do territrio brasileiro, alteram completamente seu olhar e interesse sobre o ndio: este passou a ser encarado como um obstculo posse da terra, uma fonte desejvel e insubstituvel de trabalho e a nica ameaa real segurana da colonizao (Id. Ibidem: 82).

    Os ndios faro resistncia ao genocdio que sofrem, o sistema tribal vai lutar para permanecer frente s duas possibilidades que se apresentam ao ndio: a submisso ou a fuga e o isolamento. Aqueles que optam pela segunda opo so cada vez mais escorraados de suas terras, tem que progressivamente ir para regies mais pobres e sem recursos, abandonando seu espao geogrfico para tentar manter sua cultura e forma de organizao social.

    Muito mais poderamos falar acerca da histria do ndio, mas no este nosso objetivo central. Quando buscamos resgatar um pouco da histria deste povo o fazemos com o intuito de mostrar que no podemos reduzir a riqueza e a pluralidade da cultura indgena, como acontece muitas vezes na escola e na nossa vida cotidiana:

    para o brasileiro comum, ndio qualquer descendente destes povos que moravam aqui antes da chegada dos portugueses. Quase sempre ele imagina o ndio como um individuo que vive na selva, anda nu, caa com arco e flecha e usa estranhos adornos nos lbios e orelhas. E acha bom evit-lo porque um sujeito violento, vingativo e traioeiro. (Moonen, 1983:11)

    Estes esteretipos que aprendemos desde a escola so reforados pela televiso, pelo cinema e por sensacionalistas artigos publicados em jornais e revistas. As propostas que temos encontrado de futuras pedagogas e professoras reforam esta conotao e encontramos muita resistncia em problematizar estas questes junto delas, posto que argumentem que sempre trabalharam assim, que os outros professores fazem isso e no h nada de errado, pois esto valorizando o ndio.

    ENTRE O PRECONCEITO E A IDEALIZAO: BRANCOS, NDIOS, NEGROS... DIVERSIDADE E IDENTIDADE NA ESCOLA E NA VIDA

    Podemos dizer que h duas vises predominantes atualmente acerca do ndio: a preconceituosa, que o entende como um ser inferior, menos desenvolvido e limitado e a

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    idealista que no faz o dialogo com a contemporaneidade e a forma como eles vivem hoje. Ambas esto intimamente ligadas, por exemplo, quando uma professora apresenta o seguinte Plano de Aula:

    Contedo: O ndio

    Objetivos:

    Mostrar que o ndio faz parte da cultura brasileira;

    Desenvolver a motricidade fina, construindo smbolos da cultura indgena, no caso o cocar;

    Usar a criatividade para construir um desenho que retrate o modo de vida do ndio.

    Metodologia:

    Exploso de idias, perguntando para as crianas o que elas j sabem sobre os ndios; Explanao acerca do ndio e sua cultura, mostrando a importncia da natureza para o

    ndio;

    Construo de um cocar utilizando jornal e papel crepom; Realizao de um desenho livre sobre o modo de vida do ndio

    Podemos ver claramente uma viso ingnua e, por isso tornando-se preconceituosa pois no discute o que a diferena que aponta. Afirma que o ndio faz parte da cultura brasileira, mas, se no fica claro o que a professora entende por cultura, podemos pensar como ela o percebe dentro das relaes de produo, por exemplo, que envolve no s a vis cultural, e sim todas as relaes estabelecidas na economia e na poltica.

    Alm disso, chama a ateno que o ndio para est professora ainda o da poca anterior ao descobrimento. no mnimo preocupante, desvela problemas e dificuldades na prpria leitura de mundo de futuras professoras que no compreendem que o ndio hoje cada vez mais se insere dentro do mercado de trabalho e sofre com a excluso, o preconceito e a falta de oportunidades. Precisamos reconhecer que:

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    Na realidade, encontramos hoje no Brasil tambm ndios que s falam portugus, que vestem cala e camisa, possuem relgio de pulso, assistem a jogos de futebol e a novela da TV, andam de bicicleta ou tm carteira de motorista. H ndios que pilotam avio, outros possuem ttulos universitrios e em 1982 um deles foi eleito deputado federal (Moonen, 1983:12)

    A grande descoberta que temos que fazer que o ndio gente, gente como ns, vivendo no mesmo espao que ns e, como ns, estabelecendo relaes de pertencimento, de sobrevivncia, de amizade e de intencionalidade. No podemos continuar acreditando que h uma maneira de ser ndio, que eles vivem em ocas, que andam nus e que se adornam com penas e ossos, apenas.

    Vivemos em um pas extremamente racista e escola reproduz isso em suas prticas, certamente que no Brasil temos

    um racismo diferente daquele que acontece nos Estados Unidos ou que foi legitimado durante o extinto regime do Apartheid na frica do Sul. O racismo no Brasil um caso complexo, pois ele se afirma atravs da sua prpria negao. Ele negado de forma veemente no discurso da sociedade e da escola, mas tambm mantm-se presente no sistema de valores que regem o comportamento da nossa sociedade expressando-se atravs das mais diversas prticas discriminatrias.(Gomes: 254)

    Ento, podemos dizer que o processo de identificao racial constitudo por meio de relaes de alteridade. A diferena tem papel central, posto que certamente o ndio diverso do branco, assim como cada um de ns um ser nico, ao mesmo tempo em que forjado por relaes e, portanto, social.

    Quando escolhemos um nico dia para falar e homenagear o ndio, neste nosso ato est implcita uma concepo de educao e um olhar sobre a diferena, um olhar que no reconhece que nossa cultura tem muito de imposta e fruto de um processo de subjugao dos povos nativos da Amrica, o que acontece em funo da

    imposio da religio, da cultura, da viso de mundo dos colonizadores (que) foi acompanhada da formulao de toda uma teoria que se pretendia a mais pura expresso da razo, e sua cincia, do alto da sua pretensa neutralidade e racionalidade, explicava e justificava a subalternidade dos povos colonizados (...) O efeito devastador da ideologia dominante, nos coraes e mentes dos povos oprimidos, gerou um conjunto de valores que causou tenso no sentido de acomodao, de passividade e de absoro da cultura e da viso do dominador. (Azevedo: 25-26)

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    A cultura branca passou a ser muito mais valorizada, vejamos a prpria idia de civilizao e o valor que a escrita tem sob a oralidade em nossa sociedade atual. As professoras e professoras dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental continuam reproduzindo est lgica brbara e funesta de branqueamento cultural, desvalorizando a boniteza das diferenas que nos constituem como povo, como gente que sonha e ainda acredita na educao, como instrumento para a transformao social.

    ALGUMAS IDIAS FINAIS PARA PENSAR A EDUCAO PARA ALM DOS SMBOLOS DE RAA

    justo porque continuamos acreditando no papel que tem a escola e ns, como educadores, a cumprir que temos nos esforado para desconstruir muitas idias que foram naturalizadas pelas graduandas e graduandos dos cursos de licenciatura. No fosse nossa crena de que a mudana possvel no teria sentido nossa prxis.

    A pergunta que temos feito : quando algum escolhe um dia para trabalhar o ndio, o que faz nos outros 199 dias letivos? Temos visto que fala do branco, da cultura branca, do modo de vida branco, ensina a civilizao. Civilizados, desde a poca da conquista da Amrica so considerados os brancos europeus.

    No dia 13 de maio, estas mesmas educadores e educadores falaro de uma certa Princesa que, em um ato de bondade, libertou os escravos, levaro msicas, exaltaro a Corte, mas no falaro do negro hoje, que perdendo suas visveis correntes, ganhou outras muito mais difceis de visualizar e, qui, muito mais difceis de romper.

    No podemos tornar menos nossos alunos, acreditando, como muito temos ouvido, que no so capazes de perceber isto ou aquilo. Se achamos que nossos alunos no podero entender o que a diversidade cultural vamos mentir? Criar uma viso fantasiosa de um ndio que est datado h mais de 500 anos? Um ndio que anda nu, usa cocar, mora em ocas e se alimenta de produtos vindos da natureza?

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    Acreditamos que a construo de um outro olhar sobre a diversidade s ser possvel quando entendermos as diferenas de qualquer natureza e a diversidade tnica como sinnimos de riqueza, de boniteza de possibilidades. A escola s ser efetivamente transformadora quando reconhecermos que cada um de ns nico, mas intimamente ligado ao resto do mundo por que

    cada pessoa precisa descobrir-se como parte do ecossistema local e da comunidade bitica, seja em seu aspecto de natureza, seja em sua dimenso de cultura. Precisamos conhecer os irmos e irms que compartem da mesma atmosfera, da mesma paisagem, do mesmo solo, dos mesmos mananciais, das mesmas fontes de nutrientes; precisamos conhecer o tipo de plantas, animais e microorganismos (Boff: 135)

    Dependemos uns dos outros, porm nossa vida hoje esta assentada sobre um modo de produo faz do trabalho um meio para a dominao da natureza e do trabalhador. Julgamos as pessoas pelo que elas tem, pela tecnologia que desenvolvem e que compreender. Temos um modelo de desenvolvimento que satisfaz apenas uma limitada parcela da populao e exclui a maioria, mas a escola no problematiza isso. A escola muitas vezes parece uma estrutura aparte da sociedade tal seu descompromisso com a analise e deslindamento de nosso tempo presente, em prol de uma postura, simplesmente conteudista, onde o professor apenas um executor de tarefas que no pensa o seu fazer cotidiano. O papel do educador, da educadora no pode se limitar ao repasse de informaes e a trabalhos manuais.

    Finalmente, temos que reconhecer que a criana que chega at a escola tem uma

    vivncia anterior que lhe constitui e forja, no um terreno virgem que temos a explorar e formatar da maneira que queremos. Enquanto tivermos uma escola e uma prtica educativa advinda de uma viso eurocntrica ser complicado romper com a viso fragmentadora, preconceituosa e discriminatria do ndio que se manifesta fortemente na ao de professores e professoras por este mundo afora.

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    REFERNCIAS

    AZEVEDO, Jos Clvis. A escola Cidad: desafios, dilogos e travessias. IN: AZEVEDO, Jos; GENTILI, Pablo; KRUG, Andra e SIMON, Ctia. Utopia e Democracia na Educao Cidad. Porto Alegre: Ed. Universidade UFRGS/Secretaria Municipal de Educao,2000.

    BOFF, Leonardo. Saber Cuidar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.

    BORDIGNON, Mrio. Roia e Baile: mudana cultural bororo. Campo Grande: UCDB, 2001.

    FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.

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    _____. Pedagogia da Autonomia: saberes necessrios prtica educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.

    GOMES, Nilma Lino.Educao Cidad, etnia e raa. IN:AZEVEDO, Jos; GENTILI, Pablo; KRUG, Andra e SIMON, Ctia. Utopia e Democracia na Educao Cidad. Porto Alegre: Ed. Universidade UFRGS/Secretaria Municipal de Educao,2000.

    HOLANDA, Srgio Buarque de (organizador) Histria Geral da Civilizao Brasileira: A poca colonial do descobrimento expanso territorial. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

    MAESTRI, Mario e CARBONI, Florence. A linguagem escravizada. So Paulo: Expresso Popular, 2003.

    McLAREN, Peter. A vida nas escolas: uma introduo pedagogia crtica nos fundamentos da educao.Porto Alegre: Artes Mdicas, 2001.