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INAPLICABILIDADE DA LEI 9.099/95 AOS CRIMES DE ABUSO DE AUTORIDADE: VIOLAÇÃO DO IMPERATIVO DE TUTELA PENAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS FEDERAL LAW N. 9.099/1995 IS CANNOT BE USED TO PUNISH CRIMES RELATED TO ABUSE OF POWER CRIMES: VIOLATION OF THE PROTECTION OF PENAL FUNDAMENTAL RIGHTS Nestor Eduardo Araruna Santiago José Donato de Araújo Neto RESUMO O Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem entendendo que o abuso de autoridade é considerado infração de menor potencial ofensivo. Pretendida interpretação viola frontalmente a Constituição Federal, pois a repressão penal aos crimes de abuso de autoridade tem previsão no mandado constitucional de criminalização implícito no direito à vida e liberdade. O Estado deve, portanto, segundo imperativo constitucional, adotar medidas eficientes na tutela penal dos direitos fundamentais. É o que se chama de princípio da proibição da proteção deficiente. Assim, mostra-se inconstitucional a aplicação de benesses legais, dentre elas, a transação penal, aos crimes de abuso de autoridade, por ser flagrante a inadequação e insuficiência da medida. Por outro lado, reveste-se de nítido retrocesso penal, em comparação com a já defasada Lei n. 4.898/65, a aplicação da Lei n. 9.099/95 ao abuso de autoridade. A solução adequada constitucionalmente é não considerar o crime de abuso de autoridade como infração de menor potencial ofensivo. PALAVRAS-CHAVES: ABUSO DE AUTORIDADE. MANDATO IMPLÍCITO DE CRIMINALIZAÇÃO. PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA PROTEÇÃO DEFICIENTE. PRINCÍPIO DO RETROCESSO PENAL. ABSTRACT The Brazilian Higher Court of Justice (STJ) considers abuse of power a minor offense. However, such interpretation clearly violates the Brazilian Constitution, as repression to abuse of power is inferred in the regulation concerning the protection of the rights to life and of personal liberty. Therefore, and as determined by the Constitution itself, the State must adopt efficient measures for enforcing the protection of the fundamental rights, thus applying the so-called "principle of the prohibition of faulty protection". In this sense, it is unconstitutional to resort to the use of legal benefits, such as transaction, in case of crimes related to abuse of power, as such benefits are clearly inadequate and deficient. On the other hand, the use of Law number 9.099/95 consists a clear setback, in comparison with the rules on abuse of power which are part of Law number 4.898/65. 1514

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INAPLICABILIDADE DA LEI 9.099/95 AOS CRIMES DE ABUSO DE AUTORIDADE: VIOLAÇÃO DO IMPERATIVO DE TUTELA PENAL DOS

DIREITOS FUNDAMENTAIS

FEDERAL LAW N. 9.099/1995 IS CANNOT BE USED TO PUNISH CRIMES RELATED TO ABUSE OF POWER CRIMES: VIOLATION OF THE

PROTECTION OF PENAL FUNDAMENTAL RIGHTS

Nestor Eduardo Araruna Santiago José Donato de Araújo Neto

RESUMO

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem entendendo que o abuso de autoridade é considerado infração de menor potencial ofensivo. Pretendida interpretação viola frontalmente a Constituição Federal, pois a repressão penal aos crimes de abuso de autoridade tem previsão no mandado constitucional de criminalização implícito no direito à vida e liberdade. O Estado deve, portanto, segundo imperativo constitucional, adotar medidas eficientes na tutela penal dos direitos fundamentais. É o que se chama de princípio da proibição da proteção deficiente. Assim, mostra-se inconstitucional a aplicação de benesses legais, dentre elas, a transação penal, aos crimes de abuso de autoridade, por ser flagrante a inadequação e insuficiência da medida. Por outro lado, reveste-se de nítido retrocesso penal, em comparação com a já defasada Lei n. 4.898/65, a aplicação da Lei n. 9.099/95 ao abuso de autoridade. A solução adequada constitucionalmente é não considerar o crime de abuso de autoridade como infração de menor potencial ofensivo.

PALAVRAS-CHAVES: ABUSO DE AUTORIDADE. MANDATO IMPLÍCITO DE CRIMINALIZAÇÃO. PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA PROTEÇÃO DEFICIENTE. PRINCÍPIO DO RETROCESSO PENAL.

ABSTRACT

The Brazilian Higher Court of Justice (STJ) considers abuse of power a minor offense. However, such interpretation clearly violates the Brazilian Constitution, as repression to abuse of power is inferred in the regulation concerning the protection of the rights to life and of personal liberty. Therefore, and as determined by the Constitution itself, the State must adopt efficient measures for enforcing the protection of the fundamental rights, thus applying the so-called "principle of the prohibition of faulty protection". In this sense, it is unconstitutional to resort to the use of legal benefits, such as transaction, in case of crimes related to abuse of power, as such benefits are clearly inadequate and deficient. On the other hand, the use of Law number 9.099/95 consists a clear setback, in comparison with the rules on abuse of power which are part of Law number 4.898/65.

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If the Constitution is to be respected, the appropriate solution for this problem is not to consider abuse of power as a minor offense.

KEYWORDS: ABUSE OF POWER. IMPLICIT CONSTITUTIONAL OBLIGATION OF CRIMINALIZATION. PRINCIPLE OF PROHIBITION OF FAULTY PROTECTION. PRINCIPLE OF PENAL SETBACK.

1 EXPOSIÇÃO DO PROBLEMA

A Lei n. 9.099/95, que instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais (JECC), dando cumprimento ao dispositivo do art. 98, I, da Constituição Federal (CF), definiu o que seria infração de menor potencial ofensivo, considerando como tal as contravenções e os crimes com pena máxima em abstrato não superior a 1 (um) ano, excluídos, porém, os crimes com a previsão de procedimentos especiais.

Desta forma, diante do texto do art. 61, caput, da Lei n. 9.099/95, ao preceituar que não se incluíram na definição de infração de menor potencial ofensivo os crimes perseguidos mediante procedimento especial, a jurisprudência chegou ao entendimento de que os crimes de abuso de autoridade, por possuírem rito próprio previsto na Lei n. 4.898/65, não se enquadrariam na definição de infração de menor potencial ofensivo. Foi o que decidiu, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do Habeas Corpus (HC) n. 77.216/RO.

Posteriormente, com o advento da Lei n. 10.259/01, instituindo os JECC no âmbito da Justiça Federal, alargou-se a definição de infração de menor potencial ofensivo, para alcançar os crimes em que a pena máxima, abstratamente cominada, não seja superior a 2 (dois) anos. Além disso, diferentemente do que preconizava a Lei n. 9.099/95, restou suprimida a alusão quanto aos crimes de rito processual próprio.

A partir desta nova definição, dada pela Lei n. 10.259/01, englobando no conceito de infração de menor potencial aqueles crimes processados em procedimento especial, passou-se a discutir se os crimes de abuso de autoridade, que como visto possuem rito especial, restariam ou não, a partir da nova definição legal, abrangidos pelo sistema dos Juizados Especiais.

Na doutrina, vários autores passaram a defender que, com o suprimento da exceção do procedimento especial, os crimes de abuso de autoridade passariam, após a edição da Lei n. 10.259/01, à categoria de infração de menor potencial ofensivo.

José Paulo Baltazar Júnior (2008, p. 250-251) assim defende este ponto de vista com base na nova redação do art. 61 da Lei n.9.099/95, dada pela Lei n. 11.313/06, que não mais contém cláusula de exclusão de crimes para os quais a lei preveja procedimento especial, sendo este o caso dos crimes previstos na Lei n. 4.868/68.

Fernando Capez também pensa que os crimes de abuso de autoridade seriam espécie de infração de menor potencial ofensivo após a edição da Lei 10.259/01 (2006, p. 39-40).

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Ricardo Andreucci não destoa do posicionamento dos dois autores acima citados, pois, segundo ele, a Lei n. 10.259/01 não continha cláusula restritiva relativa aos crimes com procedimento especial e que, por isso, poderiam ser considerados de menor potencial ofensivo, com ampliação da competência dos JECC (2005, p. 198).

No campo jurisprudencial, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem decidindo reiteradamente que os crimes de abuso de autoridade são infrações de menor potencial ofensivo, aplicando-se, por conseguinte, as normas da Lei n. 9.099/95, conforme se vê no julgamento do HC n. 59.591/RN, ocasião em que o Min. Felix Fischer ressaltou:

[...] tratando-se o abuso de autoridade de infração de menor potencial ofensivo, deve ser aplicada ao paciente as benesses da referida lei. É de se ressaltar que com a Lei nº 11.313/2006, resta superada a discussão no tange a competência dos Juizados Especiais para os delitos que possuam rito especial. Em outras palavras, com o advento da Lei nº 11.313/2006, que modificou a redação do art. 61 da Lei nº 9.099/95 e consolidou entendimento já firmado nesta Corte, "consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa", independentemente de a infração possuir rito especial.

Como se vê, o atual estado da dogmática jurídica manifesta-se no sentido de que os crimes de abuso de autoridade são considerados infrações de menor potencial ofensivo, com o autor do fato, por conseguinte, tendo direito a todas as benesses legais trazidas pela Lei n. 9.099/95, discussão que, aliás, segundo decisões do STJ, perdeu qualquer sentido após a nova redação do art. 61 da LJCC, dada pela Lei 11.313/06, que excluindo qualquer alusão aos delitos processados por rito próprio.

A interpretação não resiste ao teste de compatibilidade vertical com a Constituição Federal. Com efeito, se a presente interpretação parece estar logicamente consentânea com as leis ordinárias que disciplinam o assunto, se transferida a questão para um olhar constitucional, chegar-se-á à conclusão que é incompatível com as normas definidoras dos direitos fundamentais, considerar abuso de autoridade infração de menor potencial ofensivo.

Em verdade, evidente que referida interpretação, ao conceder várias benesses legais, dentre elas, a figura da transação penal, a crimes tão graves e de grande potencialidade lesiva aos direitos fundamentais dos cidadãos, não atende a Constituição Federal no aspecto da máxima efetividade dos direitos fundamentais.

Considerar que o abuso criminoso de agente estatal seja definido como infração de menor potencial ofensivo, fomenta a prática da violência estatal, pois a censura penal exposta pelos institutos dos Juizados Criminais não cumprem com a tarefa de prevenir e reprimir devidamente o arbítrio dos agentes estatais.

Deste modo, sendo obrigação constitucional do Estado adotar medidas positivas de proteção aos direitos fundamentais, dentre elas, incluindo, evidentemente, as de caráter

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penal, proibi-se, assim como o excesso na proteção, a deficiência na prestação estatal de salvaguarda do direito fundamental.

O enfraquecimento na persecução penal dos crimes de abuso de autoridade, ao considerá-los infração de menor potencial ofensivo, configura nítido retrocesso penal no já anacrônico e desatualizado mecanismo de repressão penal previsto na Lei n. 4.898/65, contribuindo ainda mais para o ineficiente combate aos abusos dos agentes do Estado.

2 O IMPERATIVO DE TUTELA PENAL DO CRIME DE ABUSO DE AUTORIDADE COMO DECORRÊNCIA DA DIMENSÃO OBJETIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: MANDADO IMPLÍCITO DE CRIMINALIZAÇÃO PREVISTO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E NO PACTO DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA

Historicamente, fruto da perspectiva liberal-individualista, própria do Estado Moderno em formação no século XIX, os direitos fundamentais foram forjados como uma espécie de escudo de proteção contra o Estado, considerado o inimigo número um do cidadão.

Dentro dos ideais do Estado Liberal, o denominado Estado Leviatã de Hobbes – “mau” e “opressor” - retratado no antigo Estado absolutista, deveria ser contido para assegurar a liberdade da classe burguesa que consolidava, em suas mãos, os poderes econômicos e políticos.

O perfil estatal adotado para alcançar e proteger a esfera de liberdade dos indivíduos foi a adoção de um Estado mínimo e abstenteísta, interferindo o menos possível na autonomia da vontade.

Nessa quadra da história, os direitos fundamentais dos cidadãos exerceriam uma zona de proteção oponível ao Estado, em que os órgãos deveriam abster-se de qualquer conduta que violasse referida área de proteção.

Os direitos fundamentais caracterizavam-se, assim, como direitos subjetivos negativos a serem exercidos contra as ingerências do Estado na liberdade pessoal.

Com a evolução dos fins do Estado e, por conseqüência, da dogmática jurídica dos direitos fundamentais, foi-se agregando uma nova perspectiva ao caráter subjetivo dos direitos fundamentais.

Com efeito, se no Estado Liberal os direitos fundamentais se limitavam à função de serem direitos de defesa contra os abusos estatais, no decurso do tempo reconheceu-se, ao lado da perspectiva clássica, que os direitos fundamentais eram uma ordem de valores básicos diretivos da ação dos poderes públicos.

Referido reconhecimento dos direitos fundamentais, enquanto ordem de valores básicos da comunidade, para além da ótica subjetivista dos direitos fundamentais, implicou a outorga de diversas funções aos direitos fundamentais.

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Por tal razão, assevera-se que a perspectiva objetiva constituiu uma mais-valia à teoria dos direitos fundamentais, ao agregar novas funções e objetivos, que não somente o clássico direito de defesa do indivíduo.

Para os fins do presente trabalho, sem descurar das inúmeras funções que a perspectiva objetiva pode oferecer à categoria dos direitos fundamentais, importa registrar uma delas, amplamente reconhecida pela teoria constitucional, que é o dever de proteção dos direitos fundamentais a cargo do Estado.

Este dever consiste, em suma, na adoção de medidas ativas de proteção, incluindo, inclusive, medidas de caráter penal na salvaguarda dos direitos fundamentais contra abusos de particulares e do próprio Estado.

Dentro dessa nova visão, os direitos fundamentais tanto ostentariam a tradicional na natureza de escudo de proteção contra o Estado (perspectiva liberal), permanecendo intocável o seu caráter individual e subjetivista, quanto de um direito da comunidade de exigir do Estado a adoção de ações de proteção para resguardá-la de atos ilícitos.

Assim, de uma posição inicialmente inerte e passiva, o Estado se transformaria em sujeito ativo e amigo dos direitos fundamentais, responsável pela realização de prestações de fazer, para proteger os mesmos direitos fundamentais.

A respeito do caráter objetivo dos direitos fundamentais, no que tange aos inúmeros aspectos que o dever de proteção do Estado pode assumir, Sarlet (2004, p. 159) defende a adoção de medidas de caráter penal como um dos instrumentos que os organismos estatais poderão utilizar para salvaguardar os direitos fundamentais:

Outra importante função atribuída aos direitos fundamentais e desenvolvida com base na existência de um dever geral de efetivação atribuído ao Estado, por sua vez agregado à perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, diz com o reconhecimento dos direitos de proteção (Schutzplichten) do Estado, no sentido de que a este incumbe zelar, inclusive, preventivamente, pela proteção dos direitos fundamentais dos indivíduos [...] Esta incumbência, por sua vez, desemboca na obrigação de o Estado adotar medidas positivas da mais diversa natureza (por exemplo, por meio de proibições, autorizações, medidas legislativas de natureza penal, etc.), com o objetivo precípuo de proteger de forma efetiva o exercício dos direitos fundamentais.

Na mesma senda, Gilmar Mendes, Gonet Branco e Inocêncio Mártires Coelho (2007, p. 257) mencionam como conseqüência da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, o dever de proteção estatal dos direitos fundamentais contra agressões do próprio Estado, de particulares, sendo que para a consecução desse dever, o Estado deverá adotar até mesmo medidas de ordem penal que protejam efetivamente os direitos fundamentais.

Assim sendo, o dever de proteção do Estado, via Direito Penal, exigência do caráter objetivo dos direitos fundamentais, denota uma nova feição a esta espécie de controle

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estatal, pois se transforma em um verdadeiro imperativo de tutela estatal na defesa dos bens jurídicos albergados pelas normas definidoras de direitos fundamentais.

Destarte, a ótica de limitação do Direito Penal, própria do paradigma liberal-individualista, que o vê unicamente como um instrumento “repressor” e “mau”, devendo, por essa razão, ser contido a todo custo pelos direitos e garantias individuais penais e processuais-penais, passa a conviver harmoniosamente com o dever estatal de proteção penal dos direitos fundamentais.

No caso brasileiro, a Constituição Federal em várias passagens[1] impõe ao legislador ordinário, verdadeiros mandatos de criminalização, obrigando, em caráter positivo, a edição de norma incriminadora, ou mesmo quando já exista norma disciplinadora do imperativo de tutela penal constitucional, uma obrigação negativa, consistente na vedação da retirada da proteção já existente[2].

No âmbito do STF, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 3112, o Ministro Gilmar Mendes reconheceu a existência de mandados de criminalização na CF, próprios do dever de proteção estatal:

Os mandatos constitucionais de criminalização atuam como limitações à liberdade de configuração do legislador penal e impõem a instituição de um sistema de proteção por meio de normas penais (...) Outras vezes cogita-se mesmo de mandatos de criminalização implícitos, tendo em vista uma ordem de valores estabelecida pela Constituição. Assim, levando-se em conta o dever de proteção e a proibição de uma proteção deficiente ou insuficiente (untermassverbot), cumpriria ao legislador estatuir o sistema de proteção constitucional penal-adequado.

Registre-se, ainda, que ao lado dos mandatos expressos de criminalização, Luciano Feldens (2005, p. 94) defende, a partir de uma análise contextual da CF, a existência de normas implícitas de penalização de determinados bens jurídicos, considerados primários no âmbito de uma sociedade democrática, submetidos a um programa constitucional básico, assentado na defesa da vida, da liberdade e da dignidade humana.

Especificamente, sobre a obrigação de criminalização do abuso de autoridade, Feldens defende a existência de um imperativo constitucional implícito de tutela penal para essa categoria de delito, em razão da necessidade de se resguardar o valor básico da liberdade:

Situação igualmente grave parece verificar-se quando a agressão a esse direito fundamental provém de agentes do Estado. Pensemos na hipótese de detenção intencionalmente arbitrária, ilegal de um cidadão, sem qualquer observância das diretrizes constitucionais, ou mesmo a prática de outras formas de uso desmesurado da autoridade que tendam a cercear-lhe ilicitamente a liberdade (abuso de autoridade). (2005, p. 148)

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Em prosseguimento à abordagem sobre a imposição constitucional de criminalização do abuso de autoridade, Feldens aprofunda a análise para sentenciar que o direito penal é a única alternativa possível à proteção efetiva do bem jurídico albergado pela norma penal:

Pelo menos em tais situações (extremas), a necessidade de normas penais parece demonstrar-se como a única alternativa possível a conferir uma proteção efetiva ao bem jurídico sob comento.

As demais sanções cogitáveis, de índole eminentemente patrimonial, ou quando muito as índole administrativa incidentes sobre o funcionário público, não parecem oferecer um conteúdo sancionador proporcional ao nível da agressão sofrida, pelo motivos que antes expusemos; ao não causarem um efeito comprovadamente dissuasório (prevenção geral), deixariam insuficientemente protegido o bem jurídico liberdade [...]. (ibid.)

É de se observar que a incriminação do abuso de autoridade, decorrência do mandato constitucional implícito de criminalização, tem dentre as suas conseqüências a de que não é facultado ao legislador infraconstitucional tipificar ou não o fato. Não há liberdade legislativa. O mandato constitucional é impositivo e visa proteger os direitos fundamentais objeto da tutela penal do abuso de autoridade.

Em reforço à necessidade de o Estado adotar medidas protetivas dos direitos fundamentais, no plano do direito internacional, o art. 1º. 1, do Pacto de San Jose da Costa Rica impõe aos Estados-Partes o dever garantir o exercício livre e pleno dos direitos consagrados na Convenção.

Por força desse compromisso internacional, os Estados possuem, face à expressão garantir, a obrigação de adotar todas as medidas positivas para prevenir e punir toda e qualquer violação aos direitos humanos decorrentes da norma internacional.

Segundo Gomes e Mazzuoli (2008, p. 22), comentando o dispositivo internacional, a locução garantir requer uma atuação positiva que traga efetividade à proteção desses mesmos direitos e liberdades, ressaltando que todos os poderes estatais podem ser responsabilizados nas hipóteses de não contribuir para a aplicação prática da Convenção.

Ilustrando a obrigação que os Estados-Partes assumem para garantir os direitos humanos dispostos no Pacto da Costa Rica, citando decisão da Corte Interamericana no caso Velásquez Rodrigues, Gomes e Mazzuoli verificam, dentre as obrigações positivas impostas ao Estado, para garantir os direitos humanos previstos na Convenção, a existência de medidas de caráter penal:

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Esta obrigação implica o dever dos Estados-Partes de organizar todo o aparato governamental e, em geral, todas as estruturas por meio das quais se manifesta o exercício do poder público, de maneira tal que sejam capazes de assegurar juridicamente o livre e pleno exercício dos direitos humanos. Como conseqüência desta obrigação os Estados devem prevenir, investigar e sancionar toda violação dos direitos reconhecidos pela Convenção. [...] (ibid.)

É imperioso constatar, conforme já inicialmente ressaltado, que não basta tão-somente a edição de ato normativo infraconstitucional, instituindo o tipo penal e a sua respectiva sanção, para que o desiderato da obrigação constitucional de criminalização seja cumprido.

Importa, além da elaboração do comando normativo, a proteção dos direitos fundamentais dentro de padrões razoáveis de efetividade, pois não faz qualquer sentido obrigar o Estado a fazer o manejo do Direito Penal sem que seja imposto um grau mínimo de eficiência da norma, imposição do próprio Direito.

É o que a teoria constitucional vem denominando de princípio da proibição da proteção estatal deficiente, cujo fundamento jurídico reside no princípio da proporcionalidade.

Assim sendo, para que o Estado cumpra sua obrigação de proteção penal contra as condutas de abuso de autoridade, não satisfaz tão-somente a edição de lei criminalizadora, mas sim, e, sobretudo, que referida legislação atinja satisfatoriamente os resultados de prevenção e repressão penal.

Deste modo, visto que o tratamento penal do crime de abuso de autoridade é conseqüência de mandado implícito da CF, tem-se por inconstitucional, a priori, possível lei revogadora da Lei n. 4898/65.

A esse respeito, da impossibilidade de uma abolitio criminis inconstitucional, quando a tipificação penal resultar de um imperativo de tutela penal, aduz Luciano Feldens:

De fato, trilhando sob o epíteto de uma Constituição normativa, parece-nos inexistir razão de qualquer natureza apta a imunizar (blindar) as normas penais de um tal controle quando se conteúdo, ainda que despenalizador, venha a situar-se em relação de contrastes às disposições constitucionais paramétricas. Ou será o legislador penal – e ele, e apenas ele – árbitro absoluto de suas decisões (des)penalizadoras? (2005, p. 93)

Nesse diapasão, embora a incidência das benesses legais dos Juizados Especiais Criminais não tenha operado a descriminalização do abuso de autoridade, é forçoso convir que, a despenalização[3] operada pelas Leis 9.099/95 e 10.259/01, diminuiu consideravelmente a eficácia da tutela penal referente a tal espécie de crimes. É o que se verá a seguir.

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3 PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO DEFICIENTE COMO FACETA DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: INCONSTITUCIONALIDADE DA INCIDÊNCIA DAS BENESSES LEGAIS DA LEI N. 9.099/95 AOS CRIMES DE ABUSO DE AUTORIDADE

Foi visto que na função de imperativo de tutela estatal, os direitos fundamentais obrigam o Estado a uma postura mais ativa, eficaz e adequada na proteção do indivíduo.

Desse modo, ao tempo em que o Estado é obrigado a agir na defesa dos direitos fundamentais, agrega-se o sentido de que essa proteção seja eficiente, pois não faz sentido obrigar a uma ação ineficiente.

O princípio da proibição da proteção deficiente apresenta-se como uma ferramenta de controle da proporcionalidade da medida penal visto sob o aspecto da sua (in)suficiência à proteção do bem jurídico tutelado, observando-se que não só é vedado o excesso, mas também o oposto, ou seja, o Estado tanto não pode ir além da proteção (excesso), como também não pode ficar aquém do limite mínimo (deficiência) no resguardo do direito fundamental.

Tem o princípio por objetivo impedir que o Estado, na sua função de garantidor positivo, atue deficitariamente na defesa dos direitos fundamentais. Dentro dessa perspectiva, o Estado deve adotar medidas adequadas e suficientes para a efetiva proteção do direito fundamental que se quer proteger.

Nesse sentido, a proteção estatal exercida pelo direito penal assume grande importância como uma das armas mais eficazes contra as agressões aos direitos fundamentais dos cidadãos.

Luciano Feldens assevera que a doutrina e jurisprudência tradicionais rotineiramente conjugam o princípio da proporcionalidade à noção de proibição do excesso. Entretanto, diz o autor, que a vedação do excesso é apenas uma das facetas da proporcionalidade. Segundo ele, o desenvolvimento teórico dos direitos fundamentais como deveres de proteção tem sugerido o princípio da infraproteção ou de proteção deficiente.

Para Feldens, a proibição deficiente configura uma aptidão operacional que permite ao intérprete determinar se um ato estatal retratado em uma omissão total ou parcial vulnera direito fundamental (2005, p. 109).

Como se nota, o princípio da proporcionalidade, na sua face de proibição da proteção deficiente, pretende identificar um padrão de mínimo de tutela estatal dos direitos fundamentais, padrão esse que também pode ser exigido do legislador penal.

A proporcionalidade da atuação estatal na defesa de direitos fundamentais não deve ter aplicação apenas quando presentes medidas gravosas e excessivas, mas também no sentido de proibir a proteção insuficiente ou subdimensionada.[4]

A proibição de proteção deficiente, no campo do direito penal, impede que o legislador renuncie livre e arbitrariamente ao emprego das sanções criminais quando diante de um bem jurídico de inquestionável magnitude, cuja proteção penal é constitucionalmente requerida[5].

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No julgamento da ADI n. 3.112 foi visto que o STF, no voto do Ministro Gilmar Mendes, descortinou a existência de mandatos constitucionais de criminalização. Na oportunidade, o Ministro deixou claro que essa obrigação constitucional de crimininalização não só deve existir, como a sua instituição deve ser suficiente e adequada para proteção dos valores constitucionais

Em outra oportunidade, o princípio da proibição deficiente encontrou aplicação no âmbito do STF quando do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) n. 418.376, em que o Ministro Gilmar Mendes considerou inconstitucional o art. 107, VII, do Código Penal, que concedia favor legal de extinção da punibilidade pelo casamento da vítima com o agente ou com terceiro, considerando que a norma em referência protegia insuficientemente o valor da dignidade da pessoa humana.[6]

Ressalte-se que o dever de proteção estatal dos direitos fundamentais, via Direito Penal, aplica-se ao Estado no plano mais geral, e também quanto ao Poder Judiciário, no plano mais específico.

Portanto, o dever de proteção estatal não é vinculativo apenas ao Estado-legislador, mas também ao Poder Judiciário, quando da interpretação e aplicação da norma no caso concreto.

Assim sendo, quando da interpretação e aplicação das normas penais protetivas dos direitos fundamentais, os tribunais não possuem carta branca, sendo obrigação construir a interpretação que melhor proteja os direitos fundamentais, dando o sentido ao texto que garanta uma defesa eficiente e adequada dos bens jurídicos em jogo.

Com efeito, toda atividade jurisdicional deve estar orientada na necessidade de interpretar as normas de direito penal em consonância com a CF, [7] assumindo o juiz um compromisso com a eficaz proteção jurídico-penal, fazendo dela uma própria garantia do direito fundamental agredido.

Por essa razão, a interpretação dada pelo STJ, considerando os crimes de abuso de autoridade infrações de menor potencial ofensivo, revela-se um caso patente em que o Poder Judiciário não vem cumprindo a contento o seu dever de salvaguarda dos direitos fundamentais, pois a aplicação de benefícios penais e processuais penais previstos na Lei n. 9.099/95 não se coadunam com a imposição constitucional de uma resposta efetiva e proporcional aos delitos de abuso de autoridade.

Pela relevância dos bens jurídicos protegidos pela Lei n. 4.898/65, direitos fundamentais previstos na Constituição Federal; pela gravidade ainda da ação violadora, posto ser causada pelo próprio Estado, o guardião-mor dos direitos fundamentais das pessoas, não há como conceber a interpretação de que o crime de abuso de autoridade configure infração de menor potencial ofensivo.

Referida interpretação do STJ viola frontalmente o postulado da proporcionalidade na sua faceta da proibição da proteção deficiente. Entender, por exemplo, que manter pessoa em cárcere por mais tempo do que o determinado em lei constitua mera infração de menor potencial ofensivo, é posição que conflita com o dever do Poder Judiciário de proteger efetivamente os direitos fundamentais.

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Eugênio Pacelli de Oliveira esclarece a imbricação entre a Constituição Federal e a tutela processual penal dos direitos fundamentais, demonstrando que o art. 5º, LIX, obriga ao legislador ordinário a adoção de um processo público condenatório e não consensual quando em vista a proteção penal aos direitos fundamentais. [8]

Para o autor, há uma vedação constitucional à institucionalização de procedimentos tendentes à disponibilização da persecução penal em relação a infrações que atinjam gravemente direitos fundamentais.

Nos termos proferidos por Pacelli, sendo o crime de abuso de autoridade infração grave contra os direitos fundamentais, a exigir, portanto, processo público de caráter condenatório, não seria permitido ao legislador pretender adotar procedimento de natureza diversa, tendentes à disponibilização da persecução penal, como foi o caso do art. 61, caput, da Lei n 9.099/95, com redação dada pela Lei n. 11.313/06.

Fica claro, portanto, que a mudança do procedimento condenatório para consensual, quando for o caso de proteção de direitos fundamentais, viola a Constituição Federal, haja vista a deficiência do procedimento consensual no combate a crimes tão graves.

Significa dizer, em outras palavras, que a aplicação do procedimento consensual dos Juizados Especiais Criminais aos crimes de abuso de autoridade configura nítido retrocesso penal na defesa dos direitos fundamentais, atitude incompatível com a CF.

4 A LEI N. 9.099/95 NÃO PODE SE APLICAR AOS CRIMES DE ABUSO DE AUTORIDADE SOB PENAL DE RETROCESSO PENAL

É assente na doutrina e na jurisprudência que uma vez editada lei que discipline dispositivos de envergadura constitucional, e em especial, normas definidoras de direitos fundamentais, tem-se proibida a sua revogação, ou mesmo a adoção de uma interpretação judicial que prive totalmente a norma constitucional de eficácia, na hipótese de não haver uma contraprestação estatal que corresponda à altura da proteção exercida anteriormente. É o que se passou a denominar de princípio da proibição do retrocesso.

O princípio da proibição do retrocesso, previsto implicitamente na CF, dentro da noção de Estado de Direito e da segurança jurídica, visa a evitar que uma vez atingido determinado grau de proteção de norma constitucional, venha-se a incorrer numa situação de retrocesso representada pela exclusão da disciplina legal.

Com efeito, para Sarlet, a proibição do retrocesso assume a feição de princípio constitucional implícito, proveniente da noção de Estado de Direito, da máxima eficácia e efetividade das normas constitucionais, do direito à segurança jurídica e da própria dignidade da pessoa humana.[9]

Apesar de comumente ser desenvolvida e aplicada no âmbito dos direitos fundamentais sociais, acreditamos ser perfeitamente aplicável a teoria da vedação do retrocesso em matéria de direito penal, quando em jogo a tutela penal de direitos fundamentais.

Como é facilmente perceptível, vários direitos fundamentais ao longo de todo o art. 5º da CF têm a sua proteção exercida e reforçada por normas de caráter penal.

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Exemplificando, o tipo do art. 121, caput, do Código Penal, que trata do homicídio, assegura a fruição do valor fundamental da vida. Desta forma, a revogação desse artigo configuraria frontal violação ao princípio do retrocesso, uma vez que o direito fundamental à vida ficaria sem qualquer proteção no âmbito penal.

Assim sendo, parece-me claro a possibilidade da aplicação da proibição do retrocesso no direito penal. Nesse sentido, entendendo que a vedação do retrocesso pode assumir outras feições, diz Sarlet (2004):

Que faz referência a outras possíveis acepções da proibição de retrocesso. Registre-se que a nossa concepção de proibição de retrocesso em sentido estrito, embora próxima, não coincide exatamente com o entendimento adotado pelo ilustre Procurador da República citado, já que este restringe a proibição de retrocesso em sentido estrito à seara dos direitos sociais. no nosso entender, a proibição de retrocesso em sentido estrito não se manifesta apenas na esfera dos direitos fundamentais sociais (ou das normas programáticas em matéria de justiça social em geral) mas diz com a possibilidade de limitar a auto-reversibilidade de medidas do poder público que tenham concretizado direitos fundamentais em geral, ainda que o problema tenha indubitavelmente maior relevância no campo dos direitos sociais e que este tenha sido o enfoque priorizado neste estudo.

Frise-se, em reforço à idéia da vedação do retrocesso legislativo em matéria de direitos fundamentais, que o princípio visa não somente impedir casos de revogação total da legislação ordinária, mas também situações de revogação parcial, na hipótese de ofensa ao núcleo essencial do direito fundamental, e ainda na construção de interpretações que importem em defasagem da proteção anteriormente exercida pelo entendimento anterior.

Diante de tal quadro, pretender que os crimes de abuso de autoridade sejam considerados infrações de menor potencial ofensivo, afigura-se claro retrocesso em matéria penal.

A despenalização dos crimes de abuso de autoridade operada pelos institutos da Lei n. 9.099/95 esvazia radicalmente a proteção penal dada aos direitos fundamentais protegidos pela Lei n. 4.898/65.

Ademais, é notório, bastando ver os noticiários jornalísticos, que longe de diminuírem os casos de abusos dos agentes estatais, a justificar a adoção de um tratamento mais benigno, o que se vê é o contrário. Diuturnamente, e das mais variadas formas possíveis, observam-se situações em que direitos fundamentais são violados abusivamente por autoridades, não havendo, portanto, qualquer razão plausível para um afrouxamento na repressão a tais delitos.

Não há, assim, motivo fático para tão drástica redução na repressão ao abuso de autoridade. Muito ao contrário. Se mudança deve ocorrer, é no sentido da criação de

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novos tipos e procedimentos que dêem uma resposta eficiente e adequada à gravidade do abuso da autoridade.

Em outras palavras, significa que não há carta branca ao Estado para o estabelecimento de tratamento mais favorável aos crimes de abuso de autoridade, principalmente quando a situação vivida no Brasil aponta para solução diversa.

5 CONCLUSÃO: UMA PROPOSTA DE SOLUÇÃO CONSTITUCIONALMENTE ADEQUADA

Demonstrada a insuficiência estatal na prevenção e repressão aos crimes de abuso de autoridade, ao considerá-los como infrações de menor potencial ofensivo, o caminho a ser trilhado, enquanto não editada legislação adequada e eficaz no combate a tão odiosos ilícitos, é a aplicação da técnica da declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, [10] proclamando-se a inconstitucionalidade da interpretação que tenha por pretensão a incidência do art. 61, caput, da Lei n. 9099/95, com redação dada pela Lei 11.313/2006, aos crimes previstos na Lei n. 4.898/65.

A técnica de declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto permite ao intérprete, diante de uma lei ou ato normativo, excluir interpretação inconstitucional, ao mesmo tempo em que preserva a existência da lei.

Sendo assim, diante do art. 61, caput, da Lei n. 9099/95, o intérprete deverá excluir a interpretação inconstitucional, consistência na incidência da norma aos crimes de abuso de autoridade, preservando, porém, a sua existência para outras interpretações possíveis.

Desta forma, no caso sob análise, a interpretação constitucionalmente adequada é: o art. 61, caput, da Lei 9.099/95 será inconstitucional se aplicável aos crimes de abuso de autoridade previstos na Lei n. 4.898/65. Os crimes de abuso de autoridade, devido à gravidade das ações previstas no art. 3º e 4º, ofensivas contra os direitos fundamentais mais básicos dos cidadãos, mostram-se incompatíveis com a noção de infração de menor potencial ofensivo.

Nesse mesmo sentido, Maria Luiza Streck propõe a técnica da nulidade parcial sem redução de texto para as hipóteses de infrações penais que violem direitos fundamentais e que, por essa razão, não podem ser classificados como de menor potencial ofensivo[11].

Desse modo, praticado delito de abuso de autoridade, o procedimento a ser respeitado não é o previsto na Lei n. 9.099/95, mas sim o rito da Lei n. 4.898/65.

REFERÊNCIAS

ANDREUCCI, Ricardo Antônio. Legislação Penal Especial. São Paulo: Saraiva, 2005.

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CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Legislação Penal Especial. São Paulo: Saraiva, 2006, v. 4.

BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Crimes Federais. 2 ed., rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 6 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2004.

FELDENS, Luciano. Direitos Fundamentais e Direito Penal: Garantismo, Deveres de Proteção, Princípio da Proporcionalidade, Jurisprudência Constitucional Penal, Jurisprudência dos Tribunais de Direitos Humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

______. A Constituição Penal: A Dupla Face da Proporcionalidade no Controle de Normas Penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direito Penal: Comentários à Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, Pacto de San José da Costa Rica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, v. 4.

GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados Expressos de Criminalização e a Proteção de Direitos Fundamentais na Constituição Brasileira de 1998. Belo Horizonte: Fórum, 2007.

MENDES, Gilmar; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. Saraiva: São Paulo, 2007.

SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 4 ed., rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.

STRECK, Maria Luiza Schäfer. Direito Penal e Constituição: a face oculta da proteção dos direitos fundamentais. Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2009.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Processo e Hermenêutica na Tutela Penal dos Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

[1] Art. 5º da Constituição Federal, incisos XLI, XLII, XLIV.

[2] Cf. FELDENS (2005, p. 75): “[...] em uma obrigação de caráter positivo dirigida ao legislador, para que define a norma incriminadora, ou, quando esta já existe, em uma obrigação negativa, no sentido de que se lhe é vedado retirar, pela via legislativa, a proteção já existente”.

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[3] Dentre os institutos despenalizadores sobressai a transação penal, que impede a pena de prisão, permitindo que o agente cumpra penas alternativas, dentre as mais comuns, a prestação de serviços à comunidade e multa.

[4] Cf. Gonçalves, 2007, p. 55.

[5] Cf. Feldens, 2005, p. 119.

[6] Referido dispositivo legal foi ab-rogado pela Lei n. 11.106, de março de 2005.

[7] “Toda interpretação constitucional se assenta no pressuposto da superioridade jurídica da Constituição sobre os demais atos normativos no âmbito do Estado. Por força da supremacia constitucional, nenhum ato jurídico, nenhuma manifestação de vontade pode subsistir validamente se for incompatível com a Lei Fundamental” (Barroso, 2004, p.161).

[8] Oliveira, 2004, p. 52-55.

[9] Sarlet, 2004, p. 422.

[10] Sobre a aplicação da nulidade parcial sem redução de texto, ver ADIs n. 319, 491 e 1045, no STF.

[11] Streck, 2009, p. 150.

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