Idade da alma

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Oscar Kurusú A Idade da Alma São Paulo - 2013

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Oscar Kurusú

A Idade da Alma

São Paulo - 2013

“Time present and time past Are both perhaps in time future

And time future contained in the time past” O tempo presente e o tempo passado

Estão ambos talvez presentes no tempo futuro E o tempo futuro contido no tempo passado.

(T.S. Eliot)

Esses poemas têm a “linguagem” da idade da minha

alma, levam a marca de um tempo de formação, de

buscas e de amadurecimento, que possivelmente jamais

consegui. Estão impregnados de imperfeições próprias

dos aprendizes. Sei que poderão interessar às pessoas

que me conhecem, por isso ao escrever esta introdução

penso em você, meu amigo, minha amiga.

Estou certo que a graça da beleza funcionou em

alguns deles, apenas em alguns, mesmo assim ofereço a

você o sentimento que, alguma vez, provocaram estas

palavras ajuntadas ao azar.

Espero que goste.

Oscar K.

1. Dizer que as palavras têm vida Que da ponta da caneta A morte se ausenta Que em cada partícula de chuva O universo se entrega Desnudo de ausência Dizer que o tempo nos cerca Ingênuos mendigos na porta Aguardando a esmola que resta Aceitando o amor que salva Que devolve humanidade Esperança de quem morre Dizer que as palavras têm vida Que no poema não existe a morte Que a canção é eterna Esperar que a dor seja vencida Sofrimento e alegria Brilhos de beleza Que os sonhos não enlouqueçam As madrugadas sejam eternas Que o colibri enfurecido permaneça E renove as palavras Para que a morte não vença (os jaguares brincam com as estrelas)

2. Amparo da noite escola de samba Sábado de carnaval chuva fina da manhã Voltar para casa entre máscaras e sombras passos quietos cansados melodias repetidas repartidas Chuva fina em São Paulo voltar para casa espetáculo pra ninguém Solidão do quarto Parece outono no verão O vento brinca com a brincadeira acabou o desfile apagaram-se os aplausos os homens limpam a calçada É hora de voltar para casa caem as asas a capa a bota as unhas de madeira A fantasia dorme no sofá Não será preciso tirar a máscara.

3. Todo mistério leva à alegria alegria das coisas pequenas peixinhos comendo larvas milagre da luz na gota d'água presente de um arco-íris Entardecer com o rosto de ternura No planeta sentado pensante Amanhecer e recordar uma melodia de Brahms uma sombra na janela uma fruta sobre a mesa o voo tranquilo da tristeza Que todo mistério é alegria que toda alegria é um milagre Quando tudo é milagre as xícaras solitárias sobre a mesa como essa chuva no quintal tão insistente brigando com o tempo O silêncio o cheiro das lembranças a lua avermelhada a mesma formiga que habita minha alma Tudo é mistério meus Deus como é misterioso o Seu Nome.

4. Há algo que devora por dentro Sem entender o que seja Escrevo em forma de poemas Para ver se me liberto É o silêncio que me obriga a dizer algo A rabiscar conceitos Uma palavra que se faça alma Viva sozinha Uma palavra que possa sangrar Se reproduza Que se faça carne Sinta o mesmo que sentimos Por não compreender o mundo Por achar tudo tão miúdo Por esperar que o vento cesse Que o caminho seja horizonte Infinito como a vida Finito como o mundo Que o poema seja carne Seja pele Uma palavra que possa sangrar Que viva e morra como nós E possa se emocionar Como todo mundo Com um singelo poema de amor

5. A faca brilha (luminosidade da morte) A mão treme Encontro de corpos De forças Dois homens lutam Falam línguas diferentes O mais forte leva vantagens A tarde vazia A morte brinca por perto A tropa passou (Barulhos de botas sobre as pedras) Os soldados fumam (desaparecem na esquina) A faca atravessa o peito lentamente Lentamente O soldado para de gritar O mais forte se levanta Limpa a faca na calça Tem vontade de chorar Acaba de matar um homem Sabe que a morte espera Nessa tarde vazia Sai à rua e ouve uma voz Uma ordem e um tiro de fuzil (o barulho da queda sobre a pedra) Antes de morrer vê que o céu ainda é azul...

6. A dança do mundo Do universo O pequeno planeta gira e baila Descansa Água luminosa Saborosa Beijos de colibri Transparentes Sementes Vida nova Homem novo Profeta do cosmos Fósforo apagado Fumaça Grito num mercado Pequenos grilos Universo Estrelas Big Bang Explosão (o sangue recorre as veias mais finas e chega ao coração) Voam os poemas Colibri Palavras do profeta Cosmos.

7. Moedas velhas sobre a mesa Ferrugem do tempo A sombra em silêncio Velas do cemitério As almas esperam Muros escuros na sombra Fungos carnívoros Tristeza de grafite Espelho na parede do quarto Reflexos de ontem Sorrisos, choros, caretas O disco de vinil no estante Melodia daqueles que se foram Vozes e poesias As xícaras sobre a mesa Esperando eternamente Companhias de cadeiras As roupas velhas O cheiro de naftalina As fotos na parede Os livros amarelados Os jornais vencidos As cartas não enviadas Tudo segue no mesmo lugar Ninguém morreu, ninguém partiu Tudo está guardado Na eternidade da memória...

8. Ave-Maria, livrai-nos do mal A bala assobia ao passar Triste como a morte Caim onde está seu irmão? -não sou guarda dele não- Irmão, estás no chão Amarga terra amarga tua testa Suor e lágrimas Não é Abel É o próprio Adão Irmão, estás no chão Estás sem roupa Nesse caixão de papelão Ave-Maria livrai-nos do mal Trêmula oração delirante Túmulo no ventre da terra Terra fértil feminina Que sangra como fêmea Bela como a liberdade A morte e as suas migalhas Seu peito aberto Para que descanses meu irmão... Caim onde está seu irmão? -não sou guarda dele não- (o capanga abaixa a arma o patrão tira o chapéu para rezar) Ave-Maria livrai-nos do mal.

9. Haverá algo que nos salve no final do caminho? Uns braços que nos acolham? Umas lágrimas de Verônica que refresquem as nossas mágoas? Mulher valente Verônica! És a manhã que salva Malva saborosa Braços de ternura Esposa generosa Amastes o teu Senhor Desafiastes o poder das armas Os soldados romanos Tu e tua cruz Jesus! Achastes repouso na beleza do amor Nos olhos nobres de Verônica Ela quis testemunhar a poesia No modesto pano de linho O teu rosto Jesus! Tu e tua cruz Olhai Verônica A nossa ensanguentada face piedade de nós que ainda nos damos o direito de matar nosso semelhante!

10. Captar o menor instante Da solidão que é imensa Perceber que as sombras e as palavras São pobres demais Tentar expressar o mais íntimo Que esconde ao calar Imaginar a bondade para todos E sonhar Perpetuar em palavras as nossas dores Calar por não entender o sentido Olhar o vazio e ouvir o silêncio Calar e aguardar respostas novas Celebrar a banalidade do viver E não morrer Respirar As coisas nobres que subsistem Resistem Um olhar Uma dor Um adeus Um pinheiro em flor O infinito voando num pássaro Calar perante o mistério Respirar e aguardar o amor.

11. Já não estou seguro de nada Esqueci até meu nome Não sei se sou deste mundo Se será verdade a música de Fito Paez Se serão ouvidas as orações que rezo Não sei se algo vale a pena Os livros que leio Os lábios que desejo Os cabelos que não perfumam Não sei se o mundo gira ainda Se os homens seguem covardes Se sangram as mulheres Nada disso sei agora Apenas sei que é difícil se acostumar Acordar de manhã e saber Que o meu chinelo morre de frio Sem o seu par... Olho a espada do Samurai A foto que esqueceste Metade da tua pasta de dentes O cinzeiro É difícil aceitar Que és apenas parte do ar ... -amanhã vou enfeitar com flores o seu túmulo-

12. Se tudo explodisse Se tudo virasse fumaça Se tudo fosse novo Se pudesse recuar o tempo Voltar um pouco Apagar Desligar Explodir Nada... fumaça maçã massa informe forme fome ... e ver que tudo passa colibri pássaro indefeso vestido com cores infantis pássaro assassino maldade da flor explosão fumaça... -forma-informe-da-dor-

13. Que tudo gire Ventania do universo Que funcione o circo O palhaço nos faça rir A mulher faça strip-tease Grite o pastor em nome de Deus Que guarde suas moedas o mendigo Do carro a madame feche o vidro Que voe o anjo para sujar as asas E na cagada do gato pise o doutor a faca nada disto é verdade um pouco de lixo no cinzeiro que tudo gire ventania do universo umbigo de fora

fora a mulher veste a roupa o pastor guarda a bolsa suspira sua dor a madame apenas o gato e Deus

gargalham sem parar sem parar

pairar pai-ar Pai

Ar

14. Esperar Espada enferrujada Solidão dão vontade de esperar Adão toma pinga Adão toma a espada para brigar com o tempo para partir as nuvens tirar as roupas bufas roupas de soldado espada enferrujada tarde enferrujada arde a pinga na sua garganta Adão toma a espada Abre a porta do banheiro Espera e Escreve Rabisca no espelho Quebra o espelho Ouve a chuva lá fora Percebe a solidão do universo a solidão do verso veja só o universo que une os versos veja só o soldado morto Revivendo nas suas coisas Alguns falarão de casa assombrada Mas que nada Todo soldado morto Tem direito de esperar a amada...

15. E ficas nua em todas as sílabas Em cada palavra se evapora a alma tua a lama nossa de todos os dias O relógio de areia perpetua o tempo e o espaço E as palavras ficam nuas Nuances prematuras imaturas verduras do nosso universo duras pedras-guerreiras Jogo solitário do computador Alface no prato do chinês E ficas nua em todas as sílabas Bêbada em cada grão de uva Jogada diante da televisão Imagens da natureza em azul Alma virtual das coisas vitral das almas um milhão de anos-luz E ficas nua Desligada a televisão A cidade dorme na escuridão...

16. Pensar as coisas mais brilhantes Haverá um mundo lá fora? Imaginar outros caminhos Saber que pode ser longa a contenda Sair como um guerreiro ansioso Ir até o moinho de vento Amanhecer com a espada na mão Herói de uma guerra esquecida Transitoriedade da alma Tristeza de um Quixote Haraquiri não praticado Aborto diante da morte Instante de covardia Sabedoria quem sabe A morte também é sábia Doçura dos amantes Elogios dos dementes Um profundo grito desde a torre "Ser ou não ser" não é mais a questão Sobreviver, eis a questão Universo que passa pelo meu coração Encontrar por fim a razão De algo maior, mais brilhante A maior questão é o amor Amar ou não amar, eis a questão...

17. Eu sei Tudo é muito simples Brigo com onças raivosas Devoradoras de constelações As onças dos meus antepassados Sem ser guerreiro como eles As suas palavras derrotavam o mal Eu sei Não sou um guerreiro Não sou artista das palavras mágicas As paredes de concreto não me deixam Brigo com o barulho dos carros Com o preço do pão que aumentou Brigo por isso com o passado Com o tempo que não vivi As palavras que nunca ouvi Sou como um guerreiro maldito Devorado pela espada da beleza Devorado pelas garras das onças Sem as mágicas palavras Do deus Colibri dos antepassados

18. Nem sequer sei que nada sei E se fôssemos líquidos Deixássemos pelos parques o que somos Sendo ora bebidos pelas pombas Ora orvalho sobre as rosas Se as nossas almas se diluíssem Nesses mortais que perambulam a noite Caídos pelas calçadas Pedindo esmolas nas esquinas E se fôssemos todos prostitutas Ou misteriosos assassinos de morcegos Fanáticos pastores safados Se fôssemos todos poetas Inventássemos novas formas De mentir as verdades De dizer o maldito não dito Adoecer perante a beleza Se fôssemos músicos de uma orquestra Deixássemos na melodia um pouco de Deus Se fôssemos estrelas cadentes-decadentes Ou fantasmas aposentados Que não mais assustam as crianças Se fôssemos onças, girafas ou cavalos Que alegria e que loucura Se fôssemos sempre grama verde Para alimentar os animais milhares de vezes E voltar a ser apenas grama e leite.

19. Qual será a melhor palavra que expresse o que nos falta? O infinito é pesado em demasia chega a queimar as entranhas As perguntas insistem até os ossos Qual é o caminho que nos levaria à felicidade ou à morte? A tristeza que mascara e vai embora como se nada Aliada a esse fio gelado que sacode o corpo inteiro Quem és tu de onde vens para onde vais e a morte? As perguntas de sempre desde que o mundo é mundo desde que aprendemos o absurdo dos caminhos iluminados das tardes de pôr-de-sóis Qual será a melhor palavra para nomear o que nos falta? Será a aposta a audácia as saudades tão gastas?

Sobram tantas palavras gritadas pelos profetas modernos Tu és um trabalhador um animal sexual um bêbado um torcedor doente um voraz consumidor Obrigado a votar Por alguém mais mentiroso Que engasga televisão Vida ao vivo Janelas abertas das comédias privadas Seios fartos e bundas empinadas Crianças programadas por videogame Preparadas para o mercado do mundo Anciãos que acabam como número de estatística de hospitais E os que sobrevivem à beira do rio Tietê ou Riachuelo debaixo dos Viadutos? E tu quem és?, De onde vens?, Para onde vais? E a morte? Qual será a melhor palavra para nomear o que somos e deixamos de ser? Amor talvez, beleza, esperança, mistério? Saudades das estrelas dignas Dos caminhos empoeirados Da verdade da vida Esquecida entre os cacos do consumo.

20. Vazio... as lágrimas têm dentes salgadas e quentes queimam a alma explode a pele há nos olhos um desmaio devaneio do vazio da ausência mistério do peito vazio as horas têm asas retornam, escapam só falta a ponte para a morte (quem me dera seja a morte minha irmã para não temê-la) mania de escapar? Mania da vida dádiva minha (quem me dera fosse lágrima para acabar na boca da morte) as pedras estão tristes a faca que condena a bússola sobre a mesa sou sobrevivente perdido na ausência afogado no vazio um dia voltarei a navegar (quem me dera ocupar os lugares de todos os ausentes)

21. Dizem todos os dias que devemos ser fortes resistir esperar que a lua volte que o vento seja o tempo a verdade sem horas árvores sem folhas o tempo que consome que carcome fantasmas do que tem que findar obrigação de voltar a ser ar o tempo não tem alma não tem corpo usa a nossa fugacidade para brilhar e quando ele brilha nós apagamos devedores da beleza entender rezar esperar - todos um dia seremos estrelas - não mais haverá este espaço buracos intermináveis dentro da gente que incomodam nos delatam

esses rostos murchos nos espelhos mortos compaixão de nós Virgem Maria devemos ser fortes - resistir - esperar amar - amar - somente amar único verbo que não exige pesar que abre a porta do infinito não haverá preocupação com o tempo que volte a lua que volte o vento revivam nossos olhos murchos no espelho mais velho da nossa esperança

22. Dizer que tudo é agonia Que a loucura bate na porta Que habita nas mãos a ternura Que explode o olhar no vazio da ausência Escrever o último poema Que jamais será o último Feitiço dos que devem esquecer Morrerão as flores e chegará o inverno O tempo brincará com o silêncio das tuas pernas Na fugacidade do bem e do mal se moverá o mundo E a morte será sempre a morte Eu procurarei esquecer Procurarei ser Serei? Quebrará o feitiço a dor da existência Quebrará o limite Escolher a escuridão ou o brilho Misteriosas claves da vida Dos teus seios Sombras espalhadas Limites para quem a morte é um dever A espada e as lutas de um Samurai

Esperar a explosão da memória Que volte ao segundo inicial Ao gênesis Ao silencioso nada Reinventar a vida como uma formiga Explodir no fruto da maçã Pesada memória do ancião encurvado De um adeus tão velho De um final feliz...

23. Que fale a poesia Que diga sem medo suas verdades Com seus olhos grandes Suas forças miúdas... Tudo em ti é poesia Resquício da fantasia do mundo Brisa leve dos caminhos... Deixai que as deusas da beleza Transformem o mundo Carência infinita que atormenta Que paira no céu Que pousa nos sorrisos programados Pássaros que voam sem asas, Sem medo de abismo e de altura Deixai que fale a poesia Que diga suas mentiras Que invente suas verdades...

24. Uma figura humana na bruma Na solidão da estrada O nevoeiro impede ver o seu sorriso O que estará acontecendo conosco? O nosso olhar escondido As caricias acanhadas Onde foi que perdemos o mistério? Alguém avisa que os aviões estão atrasados A culpa será da neblina Como gastar o tempo que não temos? Que quase nunca nos pertence O seu senso de humor é acidez pura Quem sabe você precise da sua solidão Para deleitar-se com o seu egoísmo Onde foi que perdemos a simplicidade Das crianças escondidas em nós? A bruma terá sido maior que a própria dor? Uma imagem humana na neblina Não é certeza que seja homem ou mulher Alguém aguarda na escuridão Alguém sempre aguarda E se fôssemos maleáveis Se o coração fosse flexível Mas o orgulho transforma o sorriso A tristeza sempre vence as batalhas internas

O alto-falante avisa que o tempo seguirá frio Que os atrasos seguirão por horas Quem sabe dure a vida toda Quem sabe cheguemos sempre atrasados Aos nossos encontros marcados da vida O que ganhamos com isso? Com fechar a cara e fingir que seguimos vivos? Por que custará tanto ser transparente? Por que custará tanto ser luminoso? Aquele olhar na neblina no meio da noite No meio da neve e do silêncio Dos amores quase sempre contrariados

25. A ingenuidade de um poema Ou do poeta que pensa que pensar basta Você deveria saber que o feijão não é de graça Que tudo tem preço e as suas desgraças Resgatar quem sabe na hora exata Um pingo de ternura das coisas antigas Das ferrugens das horas abandonadas Nem que fosse a humildade De uma máquina de costura As teias de aranha invadem O teclado do seu computador Da bateria recarregada da sua fome Eis a ingenuidade de quem não sabe Que a vida é silêncio Para quem tanto faz Um prato de arroz frito com limonada O poema sempre fracassa diante da vida A sua sede de eternidade Acaba na porta da geladeira Você devia saber que engordar é mais fácil Difícil mesmo é ser invisível na praça A ingenuidade consiste em ser ternura Em tempo de violência cotidiana Imaginar que as pessoas se movem por amor Que a vida mesquinha é coisa estranha Que os interesses pertencem aos comerciantes

A arrogância de quem pensa que ser santo Consiste em apertar um botão de contraponto Cumprir obrigações como lavar um carro Ou levar passear os seus gatos de estimação Seus objetos de prazer quem sabe O poema é sempre ingênuo Acredita que todas as pessoas são humanas Inocentes até provar-se o contrário Alguém tem culpa das culpas que carregamos Aprendizagem do poeta na sua arte de viver Perceber a sutileza das coisas sem densidade Um ser anônimo que costuma ser mais Aguardar na porta o amigo que nunca vem Como as chuvas de confetes na festa sem graça

26. Há um poema na porta Que bate, que toca Sem motivos? Sem respostas? Será a saudade da falta? A alegria e o sorriso que mentem? A dor que mora na memória? Há um poema no ar Que pede acolhida Que exige liberdade Que perturba o mundo Será saudades do infinito? Desse Deus que nos fez sedentos? E nos abandonou sem água? Há um poema na porta Que bate Que toca Terá sede Terá fome Até parece um homem...

27. O profeta fala, grita Espera o brilho da graça Da poesia que gira Que paira como o Espírito Santo Que tudo enche Que em tudo evapora No papel que convida e espera Nas miúdas formas das letras Que formam e concretizam A dança E o brilho da graça... Espera, o profeta espera Há de esperar sempre Eternamente E as palavras voam O profeta fala Os pedaços quebrados do espelho da vida Parecem luminárias nos nossos caminhos Também nós aguardamos a misericórdia...

28. A espada enferrujada Espelho estilhaçado Poeiras no caminho Não mais guarda as pegadas Do guerreiro derrotado Na sombra onde descansa Descansa também a memoria Das batalhas que ganharam Dos guerreiros que mataram E que ao mesmo tempo lhes mataram Debaixo dessa árvore A sombra é solidão E os cacos de vidro quebrados Ainda guardam retalhos quentes Do seu sangue Que ainda não coagulara.

29. Havia mundos por descobrir Mistérios por desvendar Estrelas pra se olhar Tesouros pra se achar Navegamos confiantes Nos bons ventos do norte Enfrentamos a solidão do mar Os fantasmas Os monstros sem capitães As sombras malvadas da dor Que perseguem sem tréguas Que nos fazem naufragar E naufragamos Nenhuma estrela há de guiar Até que o Amor resgate e devolva A arte da aventura de navegar E seguiremos navegando Eternamente Buscando estrelas e fantasmas raros Os demônios do mar Havia mundos por descobrir E a vida é tão breve e é tão fácil naufragar E naufragamos Explode a vida Explode a morte Brilham estrelas sem norte E havia mundos por desvendar

Os fantasmas sempre rondam A brevidade da vida A fugacidade da morte Arte de caminhar Arte de viver Havia mundos por descobrir Estrelas no alto mar.

30. Hoje é um bom dia para esquecer e tentar recomeçar Jogar alguns poemas no lixo tirar a barba e cortar os cabelos deixar que o sol acorde de novo desde a janela às nove da madrugada Hoje é um bom dia para festejar, para esquecer recomeçar E como seria bom comer goiabada com pão de queijo um lindo dia para recomeçar tentar acabar de ler o livro terminar o trabalho escolar abrir a janela e olhar se não será ela a passar ver o bêbado tocar a campainha do bar seria um dia perfeito se não fossem três meses de aluguel que o poeta deve pagar.

31. Me converti em sentido inverso Verso Reverso Anjo sem asas? Com asas de papelão Melão?... Os convertidos em linha reta Geralmente são fanáticos Lunáticos e radicais E todos devem ser como eles Convertidos Convencidos Atrevidos... Ninguém deve cometer os erros por eles cometidos Falam de condenação e perdição Aberração de diabos e quiabos Inferno e capetas Grampos sem violetas Sejam religiosos, políticos ou ladrões Encontram razões para condenar os outros Amarram as mãos (sempre as dos outros) As pernas As vizinhas E as velhinhas que tenham uma boa conta bancária As domesticam e as fazem serviçais

Prefiro os inteligentes Os sonhadores, os poetas, os loucos barridos Os dementes sem sementes sem mentiras E desconfio dos políticos Dos que se proclamam santos Os que se dizem juízes e advogados de Deus Eu me converti em sentido inverso Definitivamente em verso E deixo que o mundo me ensine Que a beleza mestra me guie Que seja a minha única musa A vida que passa Seja vivida Sem mentiras Sem tiras Sem fantasmas com asmas Que perturbam que reclamam Dos sonhos mais triviais Sorriso que acaba em abraços Nos braços de quem se ama Abraço que se torna carícias Que vicia sem malícias Manhã gelada congelada Esquentada com chocolate quente De repente Bolacha e leite As mãos da mãe que seca O suor do filho doente tão demente como eu que fica doente apenas pra ver a mãe chegar e ganhar o beijo da cura

Sou convertido em sentido inverso in-verso E celebro com vinho tinto Abacaxi Guaraná e Guarani Estas palavras loucas do meu verso Em verso Re-verso Que nem bem compreendo Nem entender pretendo Pois sou um convertido E preciso festejar Me libertar Cantar Rolar No ar Viva o vinho A poesia A vida Viva a liberdade Viva em liberdade

Oscar Kurusú Contato: [email protected]