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Anais 80 anos

Leishmaniose tegumentar no Brasil: reviso histrica da origem, expanso e etiologia* Tegumentary leishmaniasis in Brazil: a historical review related to the origin, expansion and etiology*Everton Carlos Siviero do Vale1 Tancredo Furtado2

INTRODUO Em 1925, no primeiro e segundo fascculos do volume um dos Annaes Brasileiros de Dermatologia e Syphilographia, Eduardo Rabello publica na seo de "Memrias Originais" o trabalho intitulado "Contribuies ao estudo da leishmaniose tegumentar no Brasil" (Figura 1), que tratava do histrico e da sinonmia da doena.1 Naquela reviso, conclui o autor que a leishmaniose tegumentar (LT) j existia no pas desde muitos anos e distingue trs perodos na histria da doena. O primeiro, de origem incerta e baseada em referncias vagas, vai at 1895, ano da observao clnica do 'boto da Bahia' e sua filiao ao 'boto do Oriente'. O segundo estende-se at 1909, quando identificado e descrito o agente etiolgico da 'lcera de Bauru'. O terceiro se inicia em 1910 com o achado do parasita em leses mucosas, ento incorporadas ao quadro clnico da doena, indo at a poca da publicao do artigo. Estudos arqueolgicos desenvolvidos em huacos peruanos - vasos de cermica com reproduo de figuras humanas sadias e mutiladas por diferentes molstias - puderam assegurar a ocorrncia da uta e espundia - denominaes locais para as formas cutnea e mucosa da LT, respectivamente entre os incas durante a era pr-colombiana, embora a princpio tenham sido confundidas com a sfilis. Ao contrrio, estudos das cermicas antropomrficas produzidas por nossos ancestrais indgenas, por seu carter rudimentar, no permitiram a mesma constatao. A nica indicao segura e talvez mais antiga da existncia da doena no Brasil

verifica-se em citao na tese de Tello, "Antiguedad de la syphilis en el Per", de 1908, relativa obra escrita, Pastoral Religioso-Poltico Geographico, editada em 1827, que descreve a viagem de um missionrio pela regio amaznica. Este observara a existncia de indivduos com lceras nos braos e pernas, relacionadas a picadas de insetos, tendo como conseqncia leses destrutivas de boca e nariz. Sem ter sido mencionada anteriormente no Brasil, Rabello achava mais razovel supor que, endmica na Amaznia, porm proveniente do Peru e da Bolvia, a doena pudesse ter-se disseminado nos estados do Norte do pas por indivduos que para l se dirigiram em busca de trabalho nos seringais e que retornaram infectados a suas origens. Quanto s regies Centro e Sul do Brasil, achava mais verossmil a importao da Bolvia ou da Amaznia, via Mato Grosso, e provavelmente tambm do Paraguai, via Mato Grosso ou Paran, considerando sua existncia de forma endmica naqueles pases, muito antes do descobrimento. provvel que esse longo perodo de indenidade tenha sido determinado pelo isolamento, em conseqncia da precariedade de trfego na poca. Considerava ainda serem fortes evidncias da ocorrncia da doena tambm na regio Centro-Sul do Brasil, no final do sculo XIX, os seguintes fatos: a) modelos encontrados no Museu da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, datados de 1882 a 1884, que representam casos indubitveis de LT; b) casos diagnosticados em imigrantes italianos de So Paulo que retornaram a seu pas, descritos por

Recebido em 20.07.2005. Aprovado pelo Conselho Consultivo e aceito para publicao em 27.07.2005. * Trabalho realizado no Servio de Dermatologia, Hospital das Clnicas, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte (MG), Brasil.1

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Professor Assistente e Mestre em Dermatologia, Departamento de Clnica Mdica, Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) - Belo Horizonte (MG), Brasil; Ps-graduado em Imunodermatologia na Universidade de Munique - Alemanha. Professor Emrito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) - Belo Horizonte (MG), Brasil.

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FIGURA 1: Reproduo do ttulo do artigo de Rabello, publicado nos Anais em 1925

Breda (1884), na Itlia, como 'buba brasiliana' (Figura 2); c) reprodues em aquarela de casos de afeces ulcerosas do nariz apresentados Sociedade Brasileira de Dermatologia em 1912 (Figura 3), observados por Carneiro da Cunha em 1906, em pacientes provenientes de Uberaba, Minas Gerais, que as apresentavam h 27 anos, portanto desde 1879. O segundo perodo da histria da LT no Brasil inicia-se com Juliano Moreira, que, estudando o chamado 'boto da Bahia', em 1895 relacionao pela primeira vez ao 'boto endmico dos pases quentes', quando ento sugerida a possvel impor-

FIGURA 3: Reproduo de aquarela, apresentada por Carneiro da Cunha em 1912 Sociedade Brasileira de Dermatologia, ilustrando caso de LTA por ele observado em 1906

FIGURA 2: Reproduo de gravura de Breda (1884), ilustrando caso de LTA, por ele denominada buba brasiliana An Bras Dermatol. 2005;80(4):421-8.

tao da doena, por meio de incurses srias ao Novo Mundo em tempos remotos, opinio na poca no compartilhada por observadores de outras regies do pas. Baseando-se em tese de doutoramento de Adeodato apresentada Faculdade de Medicina da Bahia em 1895, Rabello atribui essa correlao a Moreira e no a Cerqueira, que na verdade desde 1885 teria visto doentes com 'boto da Bahia', sem, entretanto, estabelecer qualquer associao entre ambas. Em 1903 Wright identifica o Helcosoma tropicum como agente do 'boto do Oriente', mais tarde denominado Leishmania furunculosa, o que permitiu filiarem-se leishmaniose vrias dermatoses com denominaes diversas, geralmente designando as regies geogrficas atingidas. A grande epidemia de casos de lceras acompanhadas de leses mucosas no incio do sculo XX no Estado de So Paulo, com a construo da Estrada de Ferro Noroeste, descritos como 'lcera de Bauru', prenuncia o fim do segundo perodo, que culmina com a identificao do agente em 1909, quase simultaneamente por Lindenberg e por Carini & Paranhos. O terceiro perodo considerado o mais profcuo segundo Rabello, porque a identificao do agente permitiu a constatao da endemia em diversos pontos do pas, como o Vale do Rio Doce em Minas Gerais, regio amaznica e sul da Bahia, entre outros. Seu incio marcado pelo achado do agente em leses mucosas por Splendore, em 1910. Fato culminante desse perodo foi a descoberta do tratamento com o trtaro emtico por Gaspar Vianna em 1911, comunicada em 1912,

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durante o Congresso de Dermatologia realizado em Belo Horizonte. Ao final da primeira parte de seu trabalho, Rabello conclui ter ficado demonstrada h muito tempo a presena da leishmaniose cutneo-mucosa no pas, designada por expresses regionais, como 'boto da Bahia' e 'buba brasiliana', ou denominaes vagas, como 'ferida brava'. Descoberta a leishmnia como agente etiolgico do 'boto do Oriente' e tambm verificada nas condies acima referidas, estas puderam ser includas sob o mesmo critrio nosogrfico. Em 1909, Lindenberg sugere a designao 'leishmaniose ulcerosa'. Reconhecidas as manifestaes mucosas, infiltrativas e vegetantes alm de ulcerosas, aquela denominao no poderia mais subsistir. Assim, prope Rabello a expresso 'leishmaniose tegumentar' que, abrangendo as leses cutneas e mucosas de diversa morfologia, permite sua distino da forma visceral de leishmaniose. Na poca o autor encontrava duplo inconveniente na denominao de 'leishmaniose americana das florestas', proposta em 1913 por Brumpt & Pedroso, tanto por dar delimitao geogrfica doena como por fazer da ocorrncia em florestas elemento preponderante. Chamava a ateno para o fato de a doena existir e se propagar fora de florestas virgens, referindo-se a diversos casos observados na zona urbana do Rio de Janeiro j naquela poca. Em seguida reconhece serem muitos dos casos de gangosa - rinofaringite mutilante - manifestaes de LT. Tambm comenta a impossibilidade de distino, na poca, entre as leishmnias encontradas na leishmaniose tegumentar no Brasil e aquelas presentes no 'boto do Oriente', considerando por isso imprpria a denominao 'L. brasiliensis' dada por Gaspar Vianna em 1911, o que leva o autor a questionar a doena no Brasil como entidade autnoma. Discute em seguida outros argumentos a favor de entidade nosolgica nica. Entre esses refere: a) a atribuio ao carter fagednico de determinadas molstias nos trpicos, provavelmente pela ingerncia de germes secundrios; b) a predominncia de formas cutneas benignas no Brasil, algumas vezes auto-resolutivas; c) a observao ocasional de formas cutneas agressivas e mutilantes de 'boto do Oriente', assim como a demonstrao de manifestaes de leishmaniose mucosa grave no Sudo, Egito e ndia; d) a semelhana das alteraes histopatolgicas da doena em ambas regies; e) a possibilidade, nos trpicos, da associao de outras doenas que poderiam mascarar o quadro original da LT. Conclui Rabello que "no poder, por conseqncia, subsistir a designao de 'americana', para uma doena que, sem ter etiologia diversa e quadro ana-

tomoclnico autnomo, j comea a ser vista fora da Amrica e cuja zona de propagao ser de futuro, evidentemente ampliada". CARACTERIZAO DO AGENTE DA LEISHMANIOSE TEGUMENTAR AMERICANA NO BRASIL No passado admitia-se a Leishmania braziliensis como nico agente da leishmaniose tegumentar americana (LTA) existente no pas. At o incio da dcada de 1960 as classificaes dos parasitas baseavam-se exclusivamente no comportamento clnicoevolutivo, configurando formas clnicas da doena nas diversas regies geogrficas, posto que a morfologia dos parasitas microscopia ptica no permitia sua distino.2 Em 1961 Pessoa j propunha a subdiviso da L. braziliensis nas variedades braziliensis, guyanensis, peruviana, mexicana e pifanoi, que estariam relacionadas a formas clnicas diversas da doena em diferentes regies.3 A partir da, a classificao das leishmnias ganhou novo impulso, com a distino dos complexos mexicana e braziliensis, baseada em critrios mais consistentes, como as caractersticas do comportamento do parasita em meios de cultura, animais de experimentao e vetores.4 Desde ento os avanos representados pela microscopia eletrnica, biologia molecular, bioqumica e imunologia abriram novas perspectivas na taxonomia das leishmnias.5 Os novos mtodos que passaram a ser empregados na caracterizao das leishmnias incluem principalmente o estudo do desenvolvimento dos promastigotas no intestino do vetor flebotomneo,6 o estudo morfomtrico das formas amastigotas e promastigotas microscopia eletrnica,7-9 a mobilidade eletrofortica de isoenzimas,10 a determinao da densidade flutuante do DNA do ncleo e do cinetoplasto,11,12 a anlise de produtos de degradao do DNA por enzimas de restrio,13 a radioespirometria,14 a caracterizao de antgenos especficos de membrana externa pelos anticorpos monoclonais,15 as tcnicas de hibridizao do DNA/RNA16,17 e a anlise do DNA do cinetoplasto por meio da tcnica de amplificao pela reao da cadeia da polimerase.12,18 As classificaes mais utilizadas na atualidade seguem o modelo taxonmico proposto por Lainson & Shaw (1987),19 que dividem as leishmnias nos subgneros Viannia e Leishmania. No Brasil so reconhecidas pelo menos sete espcies de Leishmania responsveis por doena humana, sendo a forma tegumentar causada principalmente pela L. (V.) braziliensis, L. (V.) guyanensis e L. (L.) amazonensis e, mais raramente, pela L. (V.) lainsoni, L. (V.) naiffi e L. (V.) shawi, enquanto a L. (L.) chagasi a responsvel pela doena visceral.12 Cada espcieAn Bras Dermatol. 2005;80(4):421-8.

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apresenta particularidades concernentes s manifestaes clnicas, a vetores, reservatrios e padres epidemiolgicos, distribuio geogrfica e at mesmo resposta teraputica. DISTRIBUIO GEOGRFICA DA LEISHMANIOSE TEGUMENTAR AMERICANA NO BRASIL At a dcada de 1950 a LTA disseminou-se praticamente por todo o territrio nacional, coincidindo com o desflorestamento provocado pela construo de estradas e instalao de aglomerados populacionais, com maior incidncia nos estados de So Paulo, Paran, Minas Gerais, Cear e Pernambuco. A partir da at a dcada de 1960, a doena parece ter entrado em declnio, com o desmatamento j completado nas regies mais urbanizadas do pas, alm da relativa estabilidade das populaes rurais.2 Desde ento, em reas de colonizao antiga, novos surtos vm sendo assinalados em diversos estados. 20 No Rio de Janeiro foram particularmente relatados na Ilha Grande, em Jacarepagu, Campo Grande e Parati. 21 Em Minas Gerais, alm da permanncia dos antigos focos endmicos na regio de mata atlntica nos vales do Rio Doce e Mucuri, 22 foram registrados numerosos casos fora dessas reas, alguns na regio metropolitana de Belo Horizonte. 23 Novos focos foram descritos em So Paulo, no Vale do Mogi-Guau e na zona litornea do Vale da Ribeira, 24 e grande foco foi observado na periferia da capital do Esprito Santo, nos municpios de Viana e Cariacica. 25 Tambm no Nordeste a LTA persiste como endemia em reas de civilizao antiga, especialmente nas zonas serranas dos estados do Cear, Paraba e Bahia. 26 Nos ltimos 20 anos tem sido observado franco crescimento da endemia, tanto em magnitude quanto em expanso geogrfica, com surtos epidmicos na regies Sul, Sudeste, Centro-Oeste, Nordeste e, mais recentemente, na Regio Norte.27 Nas reas de colonizao recente, a expanso est associada derrubada de matas para construo de estradas, novos ncleos populacionais e ampliao de atividades agrcolas, sendo mais comum na Amaznia28 e Centro-Oeste, onde atinge principalmente a populao migrante, freqentemente poupando os indgenas.2 Entre 1985 e 1999 foram registrados 388.155 casos da doena no pas, sendo que no ltimo ano foram verificados os maiores coeficientes de deteco nas regies Norte (92/100.000) e Centro-Oeste (50/100.000), especialmente nos estados de Mato Grosso, Amap, Rondnia, Acre, Par, Amazonas, Tocantins e Roraima, alm de Maranho, na Regio Nordeste.27An Bras Dermatol. 2005;80(4):421-8.

TEORIAS SOBRE ORIGEM E EXPANSO DA LEISHMANIOSE TEGUMENTAR AMERICANA NO BRASIL Os progressos na biologia e epidemiologia da LTA permitiram a evoluo do conhecimento sobre a origem e a expanso da doena. Em 2003, Altamirano-Enciso et al. fazem interessante reviso sobre esse tema, a partir de fontes histricas pr- e ps-colombianas.29 Com a descrio do 'boto da Bahia' e sua filiao ao 'boto do Oriente', surgia a primeira teoria da origem 'mediterrnea' da LTA, que teria sido importada durante as viagens de fencios ou srios ao Nordeste brasileiro ainda na Antigidade, 30,31 embora essas viagens nunca tenham sido comprovadas. A segunda teoria seria a 'andina', formulada por Rabello em 1925,1 a partir dos descobrimentos dos huacos peruanos. Embora no aceita por todos os estudiosos do assunto,32 a proposta de Rabello sobre a origem da LTA em territrios frios, nas regies da Bolvia e do Peru, a que predomina na literatura biomdica.29 A terceira teoria, a 'amaznica', foi proposta por Marzochi & Marzochi em 1994,33 com base em estudos epidemiolgicos e de distribuio geogrfica da Leishmania (Viannia) braziliensis em diferentes ecossistemas, envolvendo vetores e reservatrios diversos. Sugerem que a doena humana tenha surgido na regio amaznica ocidental, principalmente ao sul do rio Maraon-SolimesAmazonas, onde predomina a L. (V.) braziliensis. Em acordo com a hiptese de disseminao da LTA sugerida por Rabello, admitem ainda que o processo de disperso para outras reas do Brasil recente e que tenha ocorrido sobretudo durante o ciclo econmico da borracha, entre 1880 e 1912, que atraiu milhares de nordestinos - essa populao, aps o declnio desse ciclo, retornou s origens ou, atrada pela expanso do cultivo do caf, migrou para a Regio Sudeste, particularmente Minas Gerais e So Paulo. Essa migrao deu-se por volta de 1930, quando se iniciou a grande epidemia da LTA.34 Outros ciclos posteriores, que tambm implicaram mobilidades sociais para o sul da Amaznia, como a construo de estradas (196070), a minerao de ouro (1970-80) e a explorao de madeira (1980-90), teriam contribudo para a expanso da LTA, com reaparecimento em vrios estados das regies Centro-Oeste e Sudeste, e recente aparecimento no Sul, coincidindo com o retorno dos trabalhadores. Deve-se ainda destacar a urbanizao da doena verificada nas regies metropolitanas do Rio de Janeiro 35 e Belo Horizonte.23

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Este ltimo modelo reforado pela comparao entre a heterogeneidade gentica da leishmnia observada na regio amaznica e a homogeneidade daquela encontrada fora dessa regio,18,36 sugerindo sua introduo tardia. A persistncia da L. (V.) braziliensis, demonstrada em cicatrizes de LTA em pacientes ligados a atividades rurais, aps vrios anos da cura clnica,37 corrobora a possibilidade de o homem servir de fonte de infeco e, portanto, tambm transportar o parasita para outras reas onde existem os transmissores, fazendo surgirem novos focos da doena. Um argumento usado para refutar a origem amaznica da LTA seria o fato de, no passado, ela no ter sido observada em indgenas - por isso considerados indenes doena -, o que fez supor que a LTA no existiria nas florestas at finais do sculo XIX. Alm disso, relatrios de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, em 1913, sobre o vale do Amazonas relatavam a ocorrncia de leses mucosas apenas na populao no autctone. Pesquisas recentes tm demonstrado, pela hipersensibilidade da reao de Montenegro, que alto o ndice de infeco por leishmnia, na forma subclnica, entre nativos da Amaznia brasileira, desde a infncia, havendo poucos casos de doena cutnea com elevada tendncia cura espontnea.38 A ltima teoria, entretanto, carecia de confrontao histrica. O estudo etno-histrico de Altamirano-Enciso et al.,29 com base nas fontes histricas do sculo XVI (Pizarro, 1571; Santilln, 1563; Loayza, 1586; vila, 1598), refora a teoria de origem amaznica da LTA, particularmente a forma mucosa, entre os limites do Brasil com Bolvia e Peru, que, por intermdio de migraes humanas entre as regies amaznica e andina em tempos arqueolgicos, ascendeu selva alta e posteriormente s terras quentes interandinas. Sugere ainda que durante o imprio inca grupos migrantes (mitmaq ou mitimaes) tenham contribudo para disseminar a LTA para diferentes regies do norte andino e que, mesmo no perodo da colonizao espanhola, a doena continuou espalhando-se para novas regies das serras interandinas e da costa central, onde flebotomneos e ces conviviam com comunidades agrcolas, no tendo sido perdido o elo com a Amaznia e incrementando-se a LTA em grupos forasteiros. Estudos moleculares recentes sugerem que tambm a uta, forma cutnea da LTA observada nos Andes peruanos e causada pela L. (V.) peruviana, tenha surgido na Amaznia h cerca de 500 a mil anos e chegado aos Andes como zoonose, por meio de roedores, alcanando a costa norte. 39 No entanto, estudos arqueolgicos vieram revelar que, no perodo formativo entre o segundo e o

terceiro milnio antes da nossa era, toda essa regio estava coberta por exuberante vegetao, constituindo-se numa das principais rotas humanas entre a costa e a selva. 40 Esses estudos biolgicos, portanto, tambm corroboram os dados etnohistricos e parecem confirmar a origem amaznica da LTA. Recentemente, Thomas-Soccol et al. formularam a teoria monofilogentica das leishmnias, baseando-se em estudos de DNA mitocondrial de 20 espcies diferentes de leishmnias do mundo, que considera a origem comum dos troncos Viannia e Leishmania, que remontariam aos perodos cretceo e jurssico, h 120 milhes de anos, quando os continentes ainda estavam unidos na pangia.41 Entretanto persiste polmica a questo da regio de origem das espcies de leishmnias, se neotropical,42,43 paleortica44 ou africana.45 COMENTRIOS FINAIS As evidncias recentes baseadas em estudos biolgicos e etno-histricos permitem afirmar que Rabello acertou quando concluiu que a LTA era endmica na regio amaznica j no incio do sculo XIX, de onde se difundiu para o resto das regies Norte e Nordeste do pas, por meio de migraes humanas iniciadas com o ciclo da borracha. Errou, entretanto, quando sups ser a doena originria das terras altas andinas, para posteriormente descer s terras baixas da regio amaznica. Estudos atuais tm revelado que a LTA surgiu na Amaznia em tempos arqueolgicos e fez a rota inversa, em direo s regies de florestas altas e posteriormente regio andina, mantendo-se a endemia durante o imprio inca e o perodo da colonizao espanhola, devido ao fluxo humano em ambos sentidos. As pesquisas atuais tambm sugerem que a doena se tenha expandido s demais regies do pas por meio de migrantes que, aps o declnio da extrao do ltex na Amaznia, retornaram a suas origens na Regio Nordeste ou se dirigiram para a Regio Sudeste, principalmente Minas Gerais e So Paulo, atrados pelo desenvolvimento gerado pelo cultivo do caf. No entanto, essa onda de migrao na direo sul teria ocorrido posteriormente observao de casos na Regio Sudeste no final do sculo XIX e ocorrncia da epidemia de LTA no noroeste paulista durante a primeira dcada do sculo XX. Sendo assim, poderia estar certo Rabello de ser a LTA da Regio Sudeste proveniente da regio amaznica ou mesmo da Bolvia, e nesse caso teria chegado a So Paulo via Mato Grosso. Outra possibilidade seria a importao do Paraguai, via Mato Grosso ou Paran. Ainda que importada da Bolvia ou Paraguai, a doena seriaAn Bras Dermatol. 2005;80(4):421-8.

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tambm originria da Amaznia, mas, em todas as possibilidades, decorrente de migraes mais antigas que aquelas ocorridas aps a decadncia da economia da borracha. Certamente estas ltimas migraes poderiam ser responsveis pela grande epidemia de LTA observada na Regio Sudeste a partir da dcada de 1930, que se estendeu at a dcada de 1950. Alm disso, novas migraes humanas para o sul da Amaznia, geradas pela construo de estradas, explorao mineral e extrao da madeira, nas dcadas de 1960, 1970 e 1980, teriam colaborado para o surgimento de vrios surtos epidmicos e a franca expanso da endemia nos ltimos 20 anos em diversas regies do pas. Tambm deve ser comentada a impropriedade da restrita relao da doena s florestas, j destacada por Rabello, opinio decorrente da observao de inmeros casos urbanos naquela poca. Posteriormente constatou-se que a doena pode assumir um dos padres epidemiolgicos distintos. Um clssico, ligado s atividades florestais e ao desmatamento, tendo animais silvestres como reservatrios e que geralmente se verifica na forma de surtos epidmicos junto s frentes pioneiras de colonizao. Outro aparentemente sem relao com a floresta, que geralmente observado na periferia de centros urbanos, em reas de colonizao antiga, e que possivelmente se deve adaptao dos parasitas e vetores a alteraes ambientais e a animais domsticos como novos reservatrios. Novamente enganou-se Rabello quando

salientou a impropriedade da denominao do agente etiolgico como Leishmania braziliensis e afirmou que "...no poderia subsistir a designao 'americana' para uma entidade sem etiologia diversa e quadro anatomoclnico autnomo...", usando como argumentos a dificuldade de sua diferenciao com o parasita do 'boto do Oriente' e a inadequao da delimitao geogrfica da doena. Realmente com os recursos disponveis na poca era impossvel a distino entre as diferentes espcies de leishmnia que puderam ser identificadas mais tarde e at correlacionadas com diferentes padres epidemiolgicos, de distribuio geogrfica, de manifestaes clnicas e at mesmo de resposta teraputica. Desde a brilhante reviso histrica de Rabello em 1925, considerveis avanos foram conseguidos no conhecimento das leishmanioses, sobretudo a biologia das leishmnias e a imunologia da doena. Os mtodos diagnsticos foram aprimorados, e os recursos teraputicos, melhorados. Em que pese o progresso alcanado, foroso reconhecer que passados 80 anos a situao dessas doenas pouco se alterou. Elas continuam vivamente presentes na nosologia atual, constituindo-se em importante problema de sade pblica em diversas regies do mundo, coincidentemente nos pases subdesenvolvidos, lado a lado com outras doenas infecciosas e parasitrias, de carter fundamentalmente social, em conseqncia das marcantes desigualdades que ainda dominam a economia mundial no terceiro milnio.

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