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Cátedra de Artes N° 11 (2012): 31-45 • ISSN 0718-2759 © Facultad de Artes • Pontificia Universidad Católica de Chile Haikai – somente as nuvens nadan no fundo do rio: uma performance poético-cênica Haikai – solo las nubes nadan en el fondo del río: una performance poético-escenica Haikai – only clouds swim at the bottom of the rivers: a poetic-scenic performance Roberson de Sousa Nunes Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil [email protected] Resumo Este artigo apresenta uma abordagem do processo de montagem e das apresentações de Haikai – somente as nuvens nadam no fundo do rio, a partir do diálogo com teorias sobre Haikai e performance, dentro de um procedimento work in progress. Com base em uma pesquisa de linguagem, esta reflexão constata uma interlocução experimental entre poesia, teatro, dança, música, artes visuais e vídeo, considerando a estrutura móvel e transformável desta performance poético-cênica, como forma de resistência aos padrões teatrais convencionais. PALAVRAS-CHAVE: Haikai, performance, poesia. Resumen Este artículo presenta un abordaje del proceso de montaje y de las pre- sentaciones de Haikai – somente as nuvens nadam no fundo do rio, a partir del diálogo con teorías sobre Haikai y performance, dentro de un procedimiento work in progress. A partir de una investigación de lenguaje, esta reflexión constata una interlocución experimental entre poesía, teatro, danza, música, artes visuales y video, considerando la estructura móvil y transformable de esta performance poético-escénica, como forma de resis- tencia a los moldes teatrales convencionales. PALABRAS CLAVE: Haikai, performance, poesía. Abstract: is paper presents an approach of the assembly process and the presen- tations of Haikai – somente as nuvens nadam no fundo do rio, from the dialogue with theories about haiku and performance, using a ‘work in progress’ procedure. From a language research, this reflection finds an experimental dialogue among poetry, theater, dance, music, visual arts and video, considering the mobile and transformable structure of this poetic and scenic performance, which presents a kind of resistance to conventional theater standards. KEYWORDS: Haikai, performance, poetry.

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Cátedra de Artes N° 11 (2012): 31-45 • ISSN 0718-2759© Facultad de Artes • Pontificia Universidad Católica de Chile

Haikai – somente as nuvens nadan no fundo do rio: uma performance poético-cênica

Haikai – solo las nubes nadan en el fondo del río: una performance poético-escenica

Haikai – only clouds swim at the bottom of the rivers: a poetic-scenic performance

Roberson de Sousa NunesUniversidade Federal de Minas Gerais, Brasil

[email protected]

ResumoEste artigo apresenta uma abordagem do processo de montagem e das apresentações de Haikai – somente as nuvens nadam no fundo do rio, a partir do diálogo com teorias sobre Haikai e performance, dentro de um procedimento work in progress. Com base em uma pesquisa de linguagem, esta reflexão constata uma interlocução experimental entre poesia, teatro, dança, música, artes visuais e vídeo, considerando a estrutura móvel e transformável desta performance poético-cênica, como forma de resistência aos padrões teatrais convencionais. PAlAvrAs-chAve: Haikai, performance, poesia.

ResumenEste artículo presenta un abordaje del proceso de montaje y de las pre-sentaciones de Haikai – somente as nuvens nadam no fundo do rio, a partir del diálogo con teorías sobre Haikai y performance, dentro de un procedimiento work in progress. A partir de una investigación de lenguaje, esta reflexión constata una interlocución experimental entre poesía, teatro, danza, música, artes visuales y video, considerando la estructura móvil y transformable de esta performance poético-escénica, como forma de resis-tencia a los moldes teatrales convencionales.PAlAbrAs clAve: Haikai, performance, poesía.

Abstract:This paper presents an approach of the assembly process and the presen-tations of Haikai – somente as nuvens nadam no fundo do rio, from the dialogue with theories about haiku and performance, using a ‘work in progress’ procedure. From a language research, this reflection finds an experimental dialogue among poetry, theater, dance, music, visual arts and video, considering the mobile and transformable structure of this poetic and scenic performance, which presents a kind of resistance to conventional theater standards.Keywords: Haikai, performance, poetry.

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A ideia original de Haikai – somente as nuvens nadam no fundo do rio1 nasceu a partir da iniciativa de três artistas: Marcelo Miyagi, Elisa Belém e eu. Nos reunimos com a intenção de criar uma intervenção artística de rua que privile-giasse o caráter imagético, investigando interações entre vídeo, literatura, teatro, dança e artes plásticas. Além do interesse por uma linguagem multidisciplinar, o grupo demonstrava uma inclinação para o universo oriental, com interesse específico pela cultura japonesa. Sob estes princípios, sugeri a leitura dos Hai-kais japoneses dos séculos XVII e XVIII. Isto porque um Haikai caracteriza-se por ser um poema conciso que, através de três versos não rimados, aborda um tema simples, uma ideia ou um momento de transitoriedade, frequentemente ligados à natureza, com economia verbal e objetividade, revelando um instante através do recorte de uma imagem, como uma fotografia. Essas características o aproximam bastante de um tipo de performance de arte cuja ênfase está no momento presente, na visualidade e na exploração das percepções sinestésicas.

Imagen 1. Nome dos performers Roberson Nunes e Elisa Belém. Performance: Haikai - somente as nuvens nadam no fundo do rio. Belo Horizonte – Minas Gerais,

maio de 2006. Foto de Glênio Campregher.

Os Haikais foram então a mola propulsora da pesquisa que viria a ser desenvolvida durante todo o processo de criação do espetáculo, em torno do conjunto poesia-imagem-cena-performance. Os poemas se corporificaram em

1 Haikai estreou no 8º Festival Internacional de Teatro Palco & Rua de Belo Hori-zonte / FIT-BH-2006, tendo sido apresentado em praças públicas da cidade. Em 2007, apresentou-se dentro da programação do Verão Arte Contemporânea de BH; no 14º Festival Internacional de Teatro de Porto Alegre – RS; e no 9º Festival de Teatro de Caxias do Sul – RS. No mesmo ano, foi premiado pela Caravana FUNARTE, para rea-lizar apresentações no interior de Minas Gerais e no Rio de Janeiro. Em 2008, integrou a programação do Circuito SESC de Artes – SP, tendo sido apresentado em dez cidades do interior do Estado de São Paulo. Em 2009, participou do XIV Encontro Nacional de Teatro de Rua de Angra dos Reis – RJ. Em 2012, Haikai compôs a programaçao do 4º. Festival de teatro de Rua de Porto Alegre – RS.

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gestos e ações, através da presença física dos performers, dos aparelhos técnicos utilizados e de outros elementos envolvidos na complexidade do trabalho. A potencialidade imagética das palavras, traço fundamental do Haikai, inspirou diversos quadros cênicos, que foram aos poucos organizando o espetáculo em uma espécie de colagem.

Nos Haikais de Matsuo Bashô (1644-1694), Yosa Buson (1716-1783), Ko-bayashi Issa (1763-1827) e Uejima Onitsura (1660-1738), foram buscadas ações e imagens que potencialmente revelassem “estados de espírito”2 relacionados às alterações climáticas características de cada estação do ano, conforme a tradição da escrita desses poemas. Em nossa criação artística, nos perguntamos, a partir de nossas próprias impressões, que sensações as mudanças das estações durante o ano poderiam provocar no cotidiano das pessoas. Por exemplo, do Haikai de Buson: “Quando venta do oeste / amontoam-se a leste / as folhas mortas” (em Franchetti 187) originou-se a cena referente ao outono. Nesse momento, os per-formers realizavam uma movimentação circular, carregando sacos de linhagem cheios de folhas secas que eram lançadas ao ar livre, espalhando-se pelo chão.

Esta ação transformava o ambiente, reproduzindo um efeito semelhante àquele bastante característico do outono, quando é possível observar um ver-dadeiro tapete de folhas secas cobrindo o solo debaixo das grandes árvores espalhadas pela cidade. Com isto, visava-se a estabelecer a correlação e o en-trecruzamento entre as percepções sensoriais (cheiros, sons, toques) das folhas nas pessoas ao redor. Realçava-se, então, no espetáculo, o efeito sinestésico naturalmente inspirado na filosofia e nos princípios da poesia Haikai. Como explicou Donald Keene (1956):

Las imágenes que empleaba Bashô para captar el momento de la verdad eran casi siempre de índole visual. . . . Pero Bashô no se apoyaba exclusivamente en imágenes visuales; el momento podía percibirse lo mismo con cualquiera de los demás sentidos. Y a veces los sentidos se confundían unos con otros de un modo sorprendentemente moderno: el mar se oscurece, / los gritos de las gaviotas / son ligeramente blancos. (56-57)

As palavras utilizadas no poema de Bashô, citado por Keene, mesclam cor e som, provocando sensações mistas no leitor. Em Haikai, optou-se, na maior parte do tempo, pela exploração da sonoridade instrumental ou pelo silêncio, bem como pelo uso de materiais táteis com vistas a atingir essa confluência sinestésica típica de alguns Haikais, capazes de revelar impressões bastante concretas. As palavras poéticas se transcodificaram no espetáculo, através de

2 A arte japonesa é permeada por valores budistas que primam pela interiorização, conforme sugere Yoshi Oida (1999): “As crenças japonesas tradicionais afirmam, na verdade, que em cada coisa reside um espírito” (122). Trabalhar os estados de espírito em um espetáculo, entretanto, seria explorar ambientes internos que se exteriorizam, deixando-se perceber pelo espectador, através da ritualização da gestualidade dos artistas.

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ações corporais, sons de instrumentos musicais e da manipulação de objetos, por meio das quais construímos as imagens. Nenhuma palavra foi pronunciada. Optou-se, portanto, por não declamar os Haikais, mas traduzir sua materialidade através de outros recursos cênico-performáticos, o que sublinhou a escolha de trabalhar com a pesquisa de linguagem, ideia primordial do grupo de artistas3 envolvidos com a montagem.

Apenas um Haikai, Salta uma truta / somente as nuvens / nadam no fundo do rio (aquele que deu origem ao título espetáculo), aparecia de fato em cena, reforçando as relações entre imagem e escrita. Dois performers escreviam o poema concomitantemente, um em português e o outro em japonês, com gran-des pincéis e tinta preta em largos papéis brancos, desenrolados sobre o asfalto.

Imagen 2. Performers: Marcelo Miyagi, Gregory Melo, Roberson Nunes e Sarasvat. Performance: Haikai - somente as nuvens nadam no fundo do rio. Belo Horizonte -

Minas Gerais, maio de 2006. Fotos de Glênio Campregher.

Naquele momento, apresentavam-se, então, dois idiomas que se traduziam pela escrita. As letras em português e os ideogramas japoneses eram dispostos lado a lado. Desenhados, letras e ideogramas constituíam o efeito sensorial da leitura, para o que também contribuía a textura dos materiais utilizados (rolo de papel, tinta, pincel) e os gestos ampliados dos atores4, com o objetivo de se-

3 Este grupo de artistas se nomeou como o Coletivo Pulso. Foi composto por pro-fissionais independentes das áreas de teatro, dança, música, literatura e vídeo, que se uniram no intuito de investigar diversas linguagens e realizar espetáculos de caráter performático, em espaços alternativos. Com a montagem e mais de quarenta apresen-tações de Haikai – somente as nuvens nadam no fundo do rio, o Pulso alcançou pessoas de diversas áreas, idades e camadas econômicas, nos estados de MG, RJ, SP e RS.4 O gesto a que me refiro aqui, naturalmente, difere de um gesto cotidiano, des-preocupado com sua realização. Trata-se de um gesto preparado, treinado e repetido tecnicamente para ressoar ampliadamente, no espaço cênico. Como diz Oida (2001):

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duzir, no sentido de atrair a atenção daquele que observa, isto é, do espectador. Fazia-se presente uma relação múltipla entre ação e percepção da ação através do ato de escrever em cena. Especificamente sobre o ato da escrita japonesa com o pincel, Marinho (1989) descreve o seguinte:

A escrita feita com pincel possui um componente sinestésico muito forte e um aspecto sensual importante, ligado à textura do papel e ao movimento do pincel sobre ele. Esta sensualidade está intimamente ligada à estética da caligrafia, aparecendo nitidamente no padrão dos golpes do pincel sobre determinada superfície. O processo está mais ligado a um desenho feito a tinta do que à simples reprodução de uma palavra falada. . . . A leitura da caligrafia japonesa torna-se, assim, uma experiência multidimensional, envol-vendo nossa reação emocional aos caracteres escritos, aos seus sons, aos seus significados, à textura da superfície escrita e aos padrões abstratos, borrados pela tinta ao fundo da superfície escrita. Além disso, a leitura envolve uma sensibilidade dos movimentos do pincel e do caráter de quem os escreveu ou expressou. (O cérebro japonês)

A transcriação dos poemas em gestos, objetos e imagens móveis, foi corpori-ficada em um espaço tridimensional que, na maioria das vezes, não era um teatro (prédio). Haikai foi proposto para espaços públicos urbanos (ruas, quarteirões fechados, praças, quadras, galpões), tendo em vista o estabelecimento de uma relação direta com a arquitetura dos espaços escolhidos, o que interferia na produção e na recepção do espetáculo. Dentro desta estética, o espaço funciona como um produtor de sentido, e não apenas o local onde se dá o evento, de modo que a relação espaços/ corpos/ performers/ espectadores se estabelece a partir desta ideia. O sentido que uma performance poético-cênica sobre Hai-kai, como a que vemos aqui, pode adquirir nos dias de hoje, só pode ser de fato estruturado se levarmos em conta o diálogo entre as distintas linguagens em um tempo e espaço determinados.

Em Haikai, o acontecimento teve lugar em espaços alternativos, nos quais a encenação explorava os signos já existentes nos locais. Estes signos, na maio-ria das vezes, diferiam de um lugar para o outro, desde o quarteirão fechado de uma metrópole até a caixa cênica de um palco italiano. Em cada uma das dezenas de vezes que Haikai foi apresentado, a proposta do espaço interferia, necessariamente, na concepção e na recepção do espetáculo.

“… o corpo do ator é um ‘objeto’ que pode se fazer mais ressonante e significativo. Temos um corpo cotidiano que faz compras pela manhã e fica meio largado depois de uma refeição. Temos também um ‘objeto’ de representação que pode falar de outros níveis da experiência humana. Ao treinar o corpo, é importante lembrar que estamos treinando o ‘corpo do ator’, o qual é ‘maior’ e tem mais ressonância do que o ‘corpo cotidiano’” (68-69).

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Por vezes, a apresentação acontecia como uma “intervenção cênica”5 na ro-tina dos comerciantes, dos passantes, etc., provocando certo “estranhamento” e criando, para alguns, uma situação inesperada. Criava-se, então, uma interação espacial, visual e sonora que alterava a realidade cotidiana de uma rua ou praça. Um ritmo diferenciado transformava o ambiente público, interferindo direta-mente no dia a dia dos transeuntes e provocando novos olhares e percepções. Muitas pessoas que se dirigiam a determinado local, a fim de apreciar o espe-táculo, surpreendiam-se com a relação plateia/ performance, pois não se tratava de um “espetáculo fechado”, mas de um trabalho móvel que se deslocava no espaço (o qual não se estabelecia como roda ou uma arena na rua). Certamente, isto representava uma estrutura desestabilizante para alguém que quisesse “se sentar para ver” o espetáculo. A expectativa do público de ver algo em uma roda, como é comum nos teatros de rua, foi afrontada com uma performance que se deslocava, que não estabelecia uma narrativa linear e não se constituía de acordo com as unidades padrão de ação continuada, tempo cronológico e espaço determinado de uma peça teatral tradicional.

Imagen 3. Performers: Marcelo Miyagi, Elisa Belém e Roberson Nunes. Performan-ce: Haikai - somente as nuvens nadam no fundo do rio. Belo Horizonte - Minas

Gerais, maio de 2006. Fotos de Glênio Campregher

Porém, tal situação mudou quando Haikai foi apresentado, por exemplo, na Praça de Serviços no campus da UFMG, um lugar cuja arquitetura se aproxima à de um teatro de arena. A utilização das arquibancadas pelos espectadores, e do centro da praça pelos performers, considerando as diversas frentes de um teatro de arena, com movimentações circulares, acabou, neste caso, por caracterizar Haikai como um espetáculo para “se sentar e assistir”.

5 De fato, como afirma Renato Cohen (2002), a performance “é basicamente uma arte de intervenção, modificadora, que visa uma transformação no receptor” (45).

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Imagen 4. Performers Marcelo Miyagi, Elisa Belém e Roberson Nunes. Performance: Haikai - somente as nuvens nadam no fundo do rio. Belo Horizonte - Minas Gerais,

abril de 2007. Fotos de Foca Lisboa.

Em outra ocasião, esta performance poético-cênica foi apresentada no I Verão Arte Contemporânea (VAC), evento realizado em Belo Horizonte entre março e abril de 2007. Desta vez, Haikai ocupou o espaço do Teatro Marília, explorando os corredores, o saguão, o lugar das cadeiras da plateia, o palco e os porões do prédio. Nesta versão do espetáculo, os espectadores eram convi-dados a se sentar no palco, em roda, ao lado dos performers que serviam chá para todos. Enquanto se realizava a “cerimônia do chá”, uma atriz manipulava um boneco todo branco e contava a história do sábio Daruma, cuja imagem é associada à ingestão ritualística do chá pela seita Zen6, no Japão. Trata-se de uma lenda curta sobre meditação e vigília. Note-se que a cerimônia do chá é uma das artes voltadas para a purificação da mente, como lembra o mestre Nakano Kazuma:

O espírito do chá-no-yú é purificar os seis sentidos. Vendo o Kakemono na sala de chá e as flores no vaso, purifica-se o sentido do olfato. Ouvindo a água ferver na chaleira e escorrer da concha de bambu, purifica-se o paladar. E manuseando os utensílios do chá, o tato se purifica. Quando todos os órgãos dos sentidos estão limpos, a mente também está limpa de qualquer mancha. A arte do chá é antes de tudo uma disciplina espiritual e minha aspiração em cada hora do dia é não me afastar do espírito do chá, o qual não é, de forma alguma, mero entretenimento. (em Franchetti 55)

A cena do chá, junto ao pequeno texto, foi incluída na encenação porque o espaço cênico permitiu que algo fosse dito de maneira delicada e aconchegante para poucas pessoas. Naturalmente, isso não seria possível na rua, a não ser através

6 Segundo Kuzano: “O zen-budismo propõe o amálgama de sujeito e objeto, a força do inconsciente, não através dos recursos lógicos da linguagem articulada e das associações mentais, mas intuitivamente, através do meio mais simples, rápido e direto: o grito da natureza” (50).

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do uso de microfones, o que desmancharia o caráter intimista da proposta. A espacialização, então, confirmava-se efetivamente como um elemento determi-nante de variantes para a montagem e as apresentações de Haikai. Em outras palavras, pode-se dizer que a definição do espaço de apresentação implicava alterações no roteiro e modificações na estrutura do espetáculo.

Imagen 5. Nome da performer: Elisa Belém. Performance: Haikai - somente as nuvens nadam no fundo do rio. Belo Horizonte- Minas Gerais, março de 2007. Foto

de Maria di Britto.

A flexibilidade das conceitualizações que circundam esta análise é o que me permite nomear Haikai como uma performance poético-cênica que, organizada através de combinações ou superposições simultâneas de “quadros”, não tem a intenção de construir uma narrativa cumulativa. Se em um teatro performático existe um texto, no caso de Haikai, o espetáculo funciona muito mais como um pré-texto, um impulso criativo, do que como um elemento estrutural a ser reproduzido ipsis literis, da maneira como fez ou faz o teatro ocidental tradicional.

Devido a que Haikai não trabalhava de acordo com os conceitos clássicos da narrativa dramática aristotélica, e sim experimentando diferentes estruturas de or-ganização, o espetáculo estaria de fato bastante próximo do work in progress, ou work in process7. Sobre este ponto, vale destacar duas “âncoras” do procedimento work in progress, quais sejam, em primeiro lugar, aquela que aponta uma organização com base em um leitmotiv, e, em segundo, aquela que implica o environment/espaciali-zação. Em uma de suas explicações, Cohen (2004) diz que o “termo leitmotiv. . . é originário da música e literatura: uma primeira tradução possível seria vetor, dando conta dos diversos impulsos e tracejamentos que compõem a narrativa” (25). Neste caso, pode-se pensar que foi mesmo o Haikai japonês que serviu de leitmotiv para a

7 Segundo Renato Cohen (2004): “O termo corrente usado na literatura é work in progress (trabalho em progresso). Utilizamos, nesse livro, também a terminologia work in process, incorporando as noções de progresso temporal e processualidade” (XXVIII).

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criação do poema cênico. Sobre o processo em termos de environment/espacialização, Cohen diz que “a organização espacial por territórios literais e imaginários substitui a organização tradicional – de narrativas temporais e causalidades” (26). Esta última ideia é importante no contexto deste trabalho, pois o processo de elaboração de Hai-kai se deu através de uma concepção imagética de signos que subvertia os princípios da representação em virtude da utilização sincrônica de vários espaços concretos (rua, praça, corredores de teatro, palco, porão, etc.) e imaginários (campo, quintal, um Japão imaginário, etc.). Este pensamento também conduziria ao abandono das práticas e modos conformados de se pensar, em que o “isto ou aquilo” determina o fazer artístico. Cohen explora bem a questão:

A característica ontológica do work in progress – processualidade pelo uso de trama de leitmotiv, rastros de passagem, vicissitudes – e a especificidade dessa operação criativa – hibridização, superposição de conteúdos – fazem com que o recorte do objeto aponte a observação para desde manifestações transitórias (cenas não configuradas, laboratórios, situações cotidianas), contextos ulteriores ao contexto artístico (‘cena da vida’, ‘cena da mídia’), até expressões híbridas, fronteiras (performances, manifestos, intervenções) e, finalmente, a cena teatral contemporânea. (4-6)

As características do procedimento work in progress estão interligadas, for-mando uma rede de construção que permeia os aspectos aqui analisados. Esta rede pode ser comparada ao rizoma deleuziano, que se caracteriza pelos princí-pios de “conexão e heterogeneidade”, “multiplicidade” e “ruptura”, entre outros. Uma trama trabalhada a partir destes princípios lida com diversas direções in-terconectadas. Trata-se de linhas de pensamento e criação que funcionam apenas na multiplicidade. Nas palavras do próprio Deleuze (2007), acompanhado por Guattari, “Os fios da marionete, considerados como rizoma ou multiplicidade, não remetem à vontade suposta una de um artista ou de um operador, mas à multiplicidade das fibras nervosas que formam por sua vez uma outra marionete seguindo outras dimensões conectadas às primeiras” (16).

Seguindo este raciocínio, pode-se pensar que Haikai funcionava como um quebra-cabeça em que as peças eram montadas e desmontadas, adaptadas, alte-radas, incorporadas ou esquecidas, bem de acordo com o seu caráter processual. Trabalhou-se, efetivamente, com a ideia do work in progress como “um campo expressivo, no qual se inclui, conforme Cohen, o risco, a processualidade, a en-campação da complexidade” (Work in progress XXVIII). O caráter processual do trabalho permanecia vivo porque a proposta não se esgotava, estando sempre aberta às renovações, a cada apresentação. Este procedimento ocorreu tanto durante o período mais fechado de criação do grupo como durante as apresen-tações, quando se explorava o diálogo direto com os espectadores.

O caráter intencional de incompletude do poema Haikai também não podia deixar de estar presente na performance. Assim como na poesia, em que os sig-nificados devem ser preenchidos pelo leitor, na performance poético-cênica em

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questão, as lacunas de sentido deviam ser preenchidas pelos espectadores. Esses, em Haikai, são ativos, não só porque podem recriar o espetáculo nas suas cabeças, mas porque podem, efetivamente, modificá-lo em sua estrutura, através de ações realizadas no momento da performance. Um exemplo desta interferência do pú-blico foi quando uma mulher entrou em cena, na apresentação realizada no campus da UFMG, pegou um guarda-chuva (elemento de cena) e protegeu um dos atores da chuva artificial que acontecia na cena do verão. Em outra ocasião, no momento em que vários lençóis brancos eram estendidos em varais, os espectadores que se localizavam atrás deles levantaram os tecidos, mostrando seus rostos em meio às projeções fotográficas que aconteciam sobre a tela formada pelos panos brancos. Trata-se, então, de um tipo de “intervenção na intervenção”, que demonstra como o espectador é vivo e revivifica a performance artística com seu comportamento, tornando-se responsável pelos processos de alteração e construção do trabalho.

A estética desenvolvida em um espetáculo como Haikai comunica com ou atinge o receptor por vias não unilaterais, que promovem uma diferenciação em relação ao que estou chamando de convencional ou tradicional, justamente por não estabelecerem elos evidentes de comunicação. Não se trata aqui de algo parecido com os sinais de trânsito, cujo objetivo é apenas informar. O registro é certamente outro, abrindo-se a leituras múltiplas. Os canais de percepção são povoados por lacunas, espaços em branco, contaminados por informações entrecruzadas, afetivas, construídas e desconstruídas no jogo de linguagens que se alternam e se autoinfluenciam.

Em Haikai, as linguagens do vídeo, da fotografia, da música, da literatura, das artes plásticas, da dança e do teatro assumiram o espaço cênico para trazer à baila as sensações obtidas e extraídas dos poemas. Conforme o aprofundado estudo de R. H. Blyth, A history of haiku, no Haikai, os dois elementos intei-ramente diferentes que estão juntas em uma mesma identidade são poesia e sensação. No poema japonês, o significado poético é obtido por uma sensação de atrito, gerada pela relação concreta dos caracteres, dispostos segundo o método ideogrâmico8. Quanto ao aspecto cênico, por sua vez, o que acontece é algo como o referido por Patrice Pavis (2003), quando afirma que “o olhar do espectador, mesmo o ocidental, é sempre também um pouco ‘abocanhador’: ele toca com os olhos, seu corpo só em aparência está imóvel e passivo, ele mima interiormente a tatilidade e a gestualidade” (144).

Com a intenção de alimentar esta capacidade sensorial, todo o aparato téc-nico utilizado no espetáculo buscou reafirmar formas concretas de expressão dos sentidos (visual, sonoro, tátil), visando alcançar a materialidade das sensações e provocar o fruir sinestésico no espectador. Durante todo o processo, não era a simples soma dos elementos sígnicos o que compunha o espetáculo, mas sua

8 Cito Ezra Pound: “O método ideogrâmico consiste em apresentar uma faceta, e logo outra, até que, em um dado momento, consiga-se atingir a superfície morta e desvitalizada da mente do leitor em alguma parte sensível” (em Campos 98).

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inter-relação. Nesse sentido, seria pertinente pensar que as leituras possíveis dos signos (signo pensado como aquilo que substitui algo que não está presente) encontrados em Haikai teriam a ver com o jogo entre presença e ausência e com o deslocamento de energias. No conceito de “teatro de energias”, desenvolvido por Lyotard, encontra-se uma proposta de abordagem teatral que me parece adequada para esta reflexão, porque, como expõe Marvin Carlson (2002):

A teatralidade joga com ‘ocultamento e revelação’. Entretanto, a consciên-cia moderna não pode aceitar mais o primado desse ‘outro’ oculto; ‘nada há a substituir, nenhuma posição estabelecida é legítima ou todas o são; consequentemente, o sentido passa a ser ele próprio um substituto para o deslocamento’. Nessa base, Lyotard propõe um ‘teatro de energias’ em vez de um teatro de signos, edificado sobre ‘deslocamentos de libido’ e não sobre ‘substituições representativas’. (482)

No meu modo de ver, o deslocamento de energias estaria presente em Hai-kai nos momentos em que os artistas criadores reescrevem o poema, através de construções cênico-imagéticas que não são representativas, descartando a obviedade. Na parte do espetáculo referente ao inverno, por exemplo, não havia demonstração de frio ou figurinos que pudessem indicar baixa temperatura ou algo do gênero. O que havia era a projeção, através de um datashow9, de fotogra-fias antigas de antepassados dos próprios performers. Os artistas relacionaram o inverno à intimidade da casa e a lembranças da infância. Ao invés de se ter uma representação do inverno, elaborava-se, portanto, uma reescrita poético--cênica que poderia ser lida dentro daquela perspectiva lyotardiana, aberta ao deslocamento de energias e ao desejo dos próprios criadores.

Também foram projetados, ao longo das apresentações, vídeos de paisagens e estradas em movimento (durante os quadros da primavera), e de crianças brincando com uma grande bola vermelha, num largo campo verde (no verão). O espetáculo era encerrado com uma chuva artificial, provocada por um caminhão-pipa. Neste caso, talvez se pudesse pensar em algo próximo de um signo que representaria outra coisa que não estaria presente. Ainda assim, o fato é que o espectador tinha a chance de atribuir os mais diferentes significados (ou nenhum) àquela água. Os performers dançavam enquanto o público via a chuva sendo provocada artificialmente.

As pessoas podiam até se molhar, sentindo na pele a realidade da água. Havia, então, dentro daquele universo ficcional, a presença do factual, uma característica específica que diferencia a arte cênica da arte literária. Para os criadores de Haikai, a cena da chuva remetia ao verão (associação própria à região Sudeste do Brasil, de

9 O uso do equipamento remete a uma interação própria da arte contemporânea, conforme indica Cohen: “Os novos mídias e suportes tecnológicos apontam intersec-ções com a arte-performance, viabilizando e amplificando a escritura do hipertexto e a realização de trabalhos in progress” (XXX).

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onde se falava) que configurava uma espécie de kigo, ponto fundamental do Haikai, que determina a estação do ano na qual o poema é realizado. Todas aquelas ima-gens – os retratos dos familiares, as paisagens projetadas, as crianças brincando e a chuva – intencionavam produzir, artisticamente, efeitos análogos aos da natureza, para provocar sensações físicas nas pessoas presentes no evento (artistas, espectadores, passantes), procurando, ao mesmo tempo, remeter à poesia japonesa. Os elementos utilizados no espetáculo jogavam com o sentido das coisas, com sua significação.

Imagen 6. Nome dos performers: Marcelo Miyagi, Elisa Belém e Roberson Nunes. Performance: Haikai - somente as nuvens nadam no fundo do rio. Foto A (esquerda) de Glênio Campregher. Belo Horizonte - Minas Gerais, maio de 2006. Foto B (direi-

ta) de Ana Paula Brum. Taubaté - SP, novembro de 2008.

As imagens e sensações selecionadas para serem experimentadas em cena foram produzidas a partir dos fragmentos de alguns poemas, de modo que remetiam a eles, concretizando-se através de suportes variados. Estavam em cena poemas como “O grito do faisão – / Que saudade imensa / De meu pai e minha mãe” (Bashô, em Franchetti 88); “Chuva de primavera – / Uma criança / Ensina o gato a dançar” (Issa, em Franchetti 84); “Que maravilha: / Nas folhas verdes, nas folhas novas, / brilha o sol!” (Bashô, em Franchetti 124); “Sem Ba-rulho, sobre o musgo, / A chuva do início do inverno – / Como eu me lembro dos tempos antigos!” (Buson, em Franchetti 165). Não se buscavam, todavia, traduções explícitas ou representações “ao pé da letra” do que foi lido nos livros. Tratava-se, antes, de visualizações possíveis, de interpretações subjetivas, inspi-radas nos quadros fotográficos propostos pelos Haikais, em cruzamento com as memórias pessoais dos performers e com a real possibilidade cênica, artesanal, de materialização da impressão dos artistas criadores, a partir dos poemas.

No processo de criação, as noções e a experimentação de espaço, memória, na-rrativa não linear, fragmentação, desestabilização conceitual, multidisciplinaridade, corpo10 e ritual aproximam, definitivamente, Haikai das teorias da performance.

10 Cito Sara Rojo: “O corpo no teatro atual é um lugar de pesquisa, portanto, um material de trabalho que, em algumas ocasiões, pode ser empregado para a construção de uma

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Para Richard Schechner, rituais são memórias coletivas codificadas em ações, ou seja, acrescento, em performances. Em suma, o comportamento restaurado é a prin-cipal característica da performance (1985). Este processo de recuperação significa uma reconstrução de sentidos, que pode ser feita a partir de um mito, de uma ação cotidiana, de uma tradição, de um ritual de culturas e/ou naturezas diversas, desde que trazidos para o momento presente como um resgate do comportamento. Isto se aplica, efetivamente, a Haikai, que se constitui de diversos resgates.

Veja-se, como exemplo neste sentido, a apropriação da ação cotidiana de se estender lençóis em varais, um dos quadros cênicos do espetáculo. Este comportamento, típico das donas de casa que vivem em casas com quintal, foi recuperado, esteticamente, recebendo um novo sentido no momento em que os varais eram amarrados em árvores nos locais públicos e os lençóis brancos utilizados como tela para as projeções das fotos dos antepassados dos próprios artistas. As referências retiradas de experiências vividas e lembranças dos artistas foram trazidas para dentro do espetáculo, sendo reelaboradas de acordo com o universo poético dos Haikais. Isto condiria com a ideia central sobre performance, trabalhada por Schechner, segundo a qual os performers, de acordo com suas percepções, remanejam fragmentos de suas memórias, restituindo comporta-mentos escolhidos intencionalmente para serem (re)transmitidos.

Uma intenção clara de Haikai foi provocar, no espectador, uma pausa para a reflexão, um momento de contemplação, uma quebra no ritmo alucinado do modo de vida contemporâneo. Desde o início do processo de montagem, o Coletivo Pulso pretendia interferir no cotidiano da rua de forma simples e concisa. A intervenção, com efeito, deveria acontecer num nível de percepção sutil, incomum, que subtraísse o espectador de sua rotina, de modo a ensejar a expansão de suas formas de sentir/pensar e estimular novas percepções, nos níveis visual, auditivo e tátil. Para além das buzinas, sirenes e outros sons comuns do trânsito, pretendia-se explorar as sonoridades de um acordeom e de uma clarineta, tocando uma música suave e tranquila. Para além da visão de pessoas andando apressadas, em meio a compras e obrigações, visava-se a chamar a atenção para a contraposição da presença de um grupo vestido de branco, com o rosto pintado de branco, caminhando lentamente em um ritmo bem compassado. Haikai criava, então, um contraponto significativo entre o poético corporificado e nossa atual cultura urbana.

A performance realizada no e por Haikai se manteve viva, em diálogo com os momentos e lugares por onde passou, parecendo acontecer em um tempo e lugar distintos, tanto do Japão dos séculos XVII e XVIII, quanto do Brasil do

personagem e, em outras, pode apresentar-se como o objeto mesmo do espetáculo, como lugar de chegada do processo de pesquisa teatral. O corpo significa, entre outras coisas, transcriação das práticas de poder, lugar da diferença, o corpo da literatura e, dentro dessa linha, o corpo do texto” (74). Em Haikai, o corpo pretendia presentificar o poema.

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século XXI, o que, naturalmente, só foi possível porque a arte contemporânea está carregada de influências e entrecruzamentos estéticos e temporais. Haikai, de fato, aconteceu num trânsito entre culturas, explorando a apropriação de eventos e a reconstrução de sentidos. Um recorte sobre uma arte produzida no Japão em séculos passados recuperou comportamentos para comentar aquilo que estava latente na pesquisa do Pulso, em Belo Horizonte, Minas Gerais. Para fazer frente ao cotidiano avassalador e a fim de quebrar o estado anestésico provocado pela mesmice e pela rapidez cega em que se vive nas grandes cidades, o grupo encontrou uma via contrária: a pausa, o silêncio e a atenção aguçada às sensações corporais. A fonte primordial para a recriação dos poemas foram, justamente, os próprios corpos, suas memórias e seus repertórios.

A fisicalização dos poemas, através dos corpos e ações dos performers, revelou, além das marcas da história individual de cada um, as referências múltiplas dos universos do Haikai e da performance. É claro que a presença física do performer traz consigo toda sua vivência, que se faz notória na cena. Lembro, aqui, o que Caio Próchno (1999) disse sobre o ator: “Antes de tudo, o ator é uma presença física, um corpo propriamente físico em sua materialidade concreta irredutível; o ator não tem como prescindir dessa fisicalidade inextricável” (219). O ator, o performer em ação, é mesmo aquele que se expõe, expondo, também, sua própria presença material e psíquica, desenhada historicamente em seu corpo/mente.

Nesta abordagem teórica sobre Haikai, considerei alguns pontos que podem ser vistos como marcas de resistência ao engavetamento das propostas artísticas, apontando ao mesmo tempo uma tendência da cena contemporânea de pesquisa. Trata-se de princípios que podem provocar uma quebra, tanto no cotidiano quanto nas formas pré-estabelecidas de arte, desde que, na passagem ao ato, o performer tenha consciência de si e de sua investigação e o público possa ter ou adquirir esta consciência, sem, contudo, colocar a performance de um lado e o público de outro, pois aquela existe, justamente, nas fronteiras, no seio de uma forma inacabada, objeto em contínuo processo de construção e desconstrução.

Ressalto, ainda, o fato de que Haikai toca a memória coletiva a partir do momento em que lida com um imaginário amplo, povoado por lembranças, seja de lençóis dependurados no varal, seja das brincadeiras de bola na chuva, seja das folhas secas lançadas ao vento, seja de uma avó sentada na cadeira de balanço a mostrar fotos envelhecidas, entre tantos outros signo, cuja presença liga os Haikais à cena performática. O que tenta expressar ali, o que quer recuperar, é um eco através da releitura e da ressignificação que a performance poético-cênica faz dos poemas nipônicos. Todo o conjunto do trabalho, inspirado na leitura da poesia japonesa, no esvaziamento Zen e nas vivências dos performers, apresenta entrecruzamentos significativos e essenciais quando o que está em jogo não é outra coisa senão a própria performance poético-cênica Haikai – somente as nuvens nadam no fundo do rio.

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Recepción: mayo de 2012Aceptación: julio de 2012