Gontijo, Daniela Cabral & Pereira, Ondina Pena. (2012). Direito à vida sem tortura: direitos...

download Gontijo, Daniela Cabral & Pereira, Ondina Pena. (2012). Direito à vida sem tortura: direitos humanos para humanos direitos? Psicologia Política, 12(24), 313-327.

of 15

Transcript of Gontijo, Daniela Cabral & Pereira, Ondina Pena. (2012). Direito à vida sem tortura: direitos...

  • 7/28/2019 Gontijo, Daniela Cabral & Pereira, Ondina Pena. (2012). Direito vida sem tortura: direitos humanos para human

    1/15

    DIREITO VIDA SEM TORTURA: DIREITOS HUMANOS PARA HUMANOS DIREITOS?

    PSICOLOGIA POLTICA. VOL.12. N 24. PP.313-327. MAIOAGO.2012 313

    Direito Vida sem Tortura:direitos humanos para humanos direitos?

    For the Right to a Life free from Torture:human rights for the right humans?

    Derecho a la Vida sin Tortura:derechos humanos para los humanos derechos?

    Daniela Cabral Gontijo

    [email protected] Pena [email protected]

    ResumoEm pleno sculo XXI, a tortura sobrevive no Brasil de forma

    ampla e sistemtica. No mero resqucio da ditadura, ouexceo num pico de criminalidade como incitado pela mdia;

    pelo contrrio, tem sido regra, um dos smbolos da perpetuaodo terrorismo de Estado contra as classes subalternas, que seinscreve tanto na seletividade dos corpos torturveis, quanto nahistria, mediante o discurso excepcionalista. Nesse sentido,aproxima-se do crime perfeito, que, na perspectiva de

    Baudrillard, expressa o banimento do real e a instaurao daordem do simulacro. Ao tomar como exemplo pesquisa realizadano Distrito Federal em 2004, este artigo busca entender como aopinio pblica sobre a tortura participa deste cenriocriminoso, ou seja, a forma pela qual os sujeitos se inscrevem

    sutilmente nessa ordem dos simulacros na qual a razo cnica seestabelece. dessa forma que se imbricam as dimenses polticae psicolgica desse cenrio, no qual a maior ameaa odiscurso da inevitabilidade.

    Palavras-chaveTortura, Crime perfeito, Razo cnica, Classes subalternas,

    Direitos Humanos.

    AbstractIn the 21st century, torture survives in Brazil in a wide andsystematic manner. It is not a mere residue of the military

    Mestre em Direito pelaUniversidade de Utrecht, Pases

    Baixos e doutoranda noPrograma de Ps-Graduao emBiotica da Universidade deBraslia, Brasl ia, DF, Brasil.

    Doutora em Antropologiapela Universidade de Braslia,Brasil. Professora daUniversidade Catlica de

    Braslia no Programa de Ps-Graduao em Psicologia,

    Braslia, DF, Brasil.

    Gontijo, Daniela Cabral &Pereira, Ondina Pena. (2012).Direito vida sem tortura:direitos humanos parahumanos direitos? PsicologiaPoltica, 12(24), 313-327.

  • 7/28/2019 Gontijo, Daniela Cabral & Pereira, Ondina Pena. (2012). Direito vida sem tortura: direitos humanos para human

    2/15

    DANIELA CABRAL GONTIJOONDINA PENA PEREIRA

    ASSOCIAO BRASILEIRA DE PSICOLOGIA POLTICA314

    dictation or exception in a peakof criminality as incited by the media. On the contrary, ithas been a rule, one of the symbols of the perpetuation of State terrorism against the

    subaltern classes, which translates in the selectivity of the torturable bodies as well as inhistory, through an exceptionalist discourse. In this sense, torture renders the prefect crime,which, in Baudrillards perspective, expresses the banishment of the real and the instaurationof the order of simulacra. Taking research held in the Federal District of Brazil in 2004 as anexample, this article intends to understand how public opinion on torture participates of thiscriminal scenario, in other words, by what means do subjects subtly inscribe themselves in theorder of simulacra in which cynical reason is established. This is how political and

    psychological dimensions imbricate in a scenario in which the greatest threat is the discourseof inevitability.

    KeywordsTorture, Perfect crime, Cynical Reason, Subaltern classes, Human Rights.

    ResumenEn pleno siglo XXI, la tortura sobrevive en Brasil de forma amplia y sistemtica. No se tratade un mero resquicio de la dictadura, o la excepcin en la cima de criminalidad incitada

    por los medios; por el contrario, ha sido una regla, uno de los smbolos de la perpetuacindel terrorismo de Estado contra las clases subalternas, que se inscribe tanto en la

    selectividad de los cuerpos torturables, como en la historia, mediante el discursoexcepcionalista. En ese sentido, se aproxima al crimen perfecto, que, desde la perspectiva de

    Baudrillard, expresa el desvanecimiento de lo real y la instauracin del orden del simulacro.Al tomar como ejemplo una investigacin realizada en el Distrito Federal en 2004, esteartculo busca entender cmo la opinin pblica alrededor del tema de la tortura, participade este escenario criminal, o sea, la forma por la cual los sujetos se inscriben sutilmente en

    ese orden de los simulacros en el cual se establece la razn cnica. Es de esa forma que seimbrican las dimensiones poltica y psicolgica de ese escenario, en el cual la mayoramenaza resulta ser el discurso de la inevitabilidad.

    Palabras claveTortura, Crimen perfecto, Razn Cnica, Clases Subalternas, Derechos Humanos.

  • 7/28/2019 Gontijo, Daniela Cabral & Pereira, Ondina Pena. (2012). Direito vida sem tortura: direitos humanos para human

    3/15

    DIREITO VIDA SEM TORTURA: DIREITOS HUMANOS PARA HUMANOS DIREITOS?

    PSICOLOGIA POLTICA. VOL.12. N 24. PP.313-327. MAIOAGO.2012 315

    Introduo

    No exagero dizer que, no Brasil, o crime de tortura1 o crime perfeito. Osperpetradores? Agentes do estado, policiais e agentes penitencirios, abrigados sob a

    legitimidade estatal, investidos de f pblica, fora de lei, poder de polcia. A cena do crime?O espao perfeito, apartado da sociedade, segregado por paredes. As vtimas? As de sempre,as classes subalternas. Mais especificamente homens jovens, negros (pretos e pardos,conforme conveno do IBGE), pobres, analfabetos e semi-analfabetos, e suspeitos se nosuspeitos, feitos suspeitos, pelo Estado e pelo imaginrio social de um crime, na maioria dasvezes, contra o patrimnio, conforme dados do Ministrio da Justia (2010). A inteno:extrair informao por um bem maior: a soluo de um crime. Ademais, a recompensa paraa sociedade valiosa: punir algum pelo bem de que no cometa mais crimes. Os agentes docrime de tortura declaram-se inocentes. A sensao? Alvio. Os juzes: longe de imparciais. Alei que tipifica o crime: um curinga. Os casos de tortura so geralmente arquivados oudesclassificados para crimes mais leves como outros tratamentos degradantes e desumanos

    ou abuso de autoridade, que levam igualmente a sentenas mais leves (MNDH, 2002:29).A impunidade dos agentes estatais construiu no somente a memria pblica, mas tambm

    uma pedagogia de insensibilidades, contribuindo poderosamente para os nveis endmicos detortura no Brasil, onde os criminosos da tortura no so condenados. Desde a colonizao, soas classes subalternas o foco da tortura estatal. No h como entender a situao de tortura no

    pas sem lhe aferir a devida historicidade que evidenciam a seletividade racial, perspectivabasilar na criminologia crtica latino-americana. O terrorismo de estado2 ou o que Agamben(2004) chamou de estado de exceo permanente foi iniciado com os genocdios das naesindgenas perpetradas pelos colonizadores e, desde ento, no feneceu (Segato, 2007). Ailustrao intentada aqui deve ser lida atravs da mirada da criminologia crtica antropolgica,considerando a distinta estrutura de formao do controle social no capitalismo perifrico

    (Duarte, 2006) e seu vis ideolgico, expresso no no panptico de Bentham, mas na premissade inferioridade biolgica de Cesare Lombroso, como assinala Zaffaroni (1991:77).

    Relatrios de organismos internacionais apontam para a tortura ampla e sistemtica nopas; o Plano de Aes Integradas para Preveno e Controle da Tortura no Brasil (2010)tambm, trazendo uma seleo de estudos que corroboram o quadro aqui apresentado. OBrasil no diferente dos demais pases do mundo comete ocrime de tortura; contudo, porser signatrio de tratados que o condenam, lava as mos, numa encenao e poltica de fazo que pode para a implementao desses tratados.

    O crime perfeito ocorre diuturnamente e h sculos em territrio brasileiro. Beneficia-se com o discurso excepcionalista este que remete a tortura ao regime ditatorial de 1964 a

    1985, como se fosse um crime datado ou em extino. Contudo, a tortura no Brasil no tributria dos estados de exceo oficiais (1930-45, 1964-1985) ou mero rano desses, pelocontrrio, tem sido a regra (Gontijo, 2004). O discurso excepcionalista, comocontundentemente demonstrado por Passos, organiza a memria pblica e consolida uma

    pedagogia que forja sensibilidades e um horizonte tico-poltico refratrio ao discurso crtico

    1 Compreenda-se tortura como tortura institucional, perpetrada por agentes estatais (policiais, agentespenitencirios) com o fim de punir ou obter uma confisso.

    2 Para crtica contundente ao terrorismo estatal vide Passos (2008) eMatos (2009).

  • 7/28/2019 Gontijo, Daniela Cabral & Pereira, Ondina Pena. (2012). Direito vida sem tortura: direitos humanos para human

    4/15

    DANIELA CABRAL GONTIJOONDINA PENA PEREIRA

    ASSOCIAO BRASILEIRA DE PSICOLOGIA POLTICA316

    dos direitos humanos (2008:184), ao pretender inibir, apagar e anular a conscincia de queh, no curso da histria do Brasil, um continuum classista e racista de terrorismo de Estado

    perpetrado pelas polcias em face das classes subalternas (2008:8).Assim, o crime de tortura perfeito porque justificvel, um mal necessrio dentro de

    uma gramtica excepcionalista, com partcipes que desenvolvem papel essencial e quasefecham o crculo num infindvel crime. A despeito de sua inscrio na legislao, no Brasil, avtima de tortura no-merecedora de respeito aos seus direitos humanos so os humanosno-direitos. Essa noo remete de abjeo de Giorgio Agamben (2002), homo sacer:

    pessoas vtimas deste julgamento excepcionalista, as vidas nuas, a vida matvel, eliminadano exclusivamente nos morros do Rio, mas em qualquer periferia dos centros urbanos eavanando aos espaos antes rurais. A polcia do Rio de Janeiro matou 1.114 civis em 2005 e1.069 em 2006, confirma oRelatrio da Sociedade Civil para o Relator Especial das NaesUnidas para Execues Sumrias, Arbitrrias e Extrajudiciais (2007:8). Segundo o relatriode 2004 da Anistia Internacional, a polcia matou, em 2003, 2.039 pessoas somente no Rio eem So Paulo (Passos, 2008:15). Dados oficiais do Rio de Janeiro apontam que 4.370 pessoas

    foram mortas, entre 2007 e 2010, em confronto com policiais, sendo 1.330 somente no ano de2007 o que, segundo pesquisadores, torna a polcia fluminense a mais letal do planeta(Junqueira, 2011).

    A Sociedade, a Opinio Pblica

    Pode-se facilmente apontar os agentes torturadores estatais como os nicos responsveispela tortura. preciso, contudo, complexificar um pouco a questo, sem pretender minimizaro ethos corporativista da instituio policial, mas compreend-la como pea fundamental da

    poltica estatal, como poder disciplinar no sentido foucaultiano, constituindo-se como uma

    malha difusa de controle social.Os policiais, todavia, esto menos para sdicos e mais para marionetes e ventrloquos deum Estado que agencia as classes subalternas por meio da justia penal, como nos apontamautores como Wacquant. No entanto, tal atuao criminosa de agentes estatais legitimada

    pela presso social por um policiamento cada vez mais ostensivo. Teresa Caldeira traz, entreuma srie de discursos que sistematiza em Cidade dos Muros, uma entrevista do Secretrio deSegurana Pblica Manoel Pimentel poca ao jornal Folha de So Paulo, em 02 de junho de1983, sobre aRota apolcia que mata do famoso livroRota 66, de Caco Barcellos:Quandoa gente permite que a Polcia Militar mate, h reao violenta dos que acham os Direitos

    Humanos desrespeitados e chega, a rezar missa pela alma dos marginais. Por outro lado, apopulao reclama segurana e quer a Rota na rua para matar marginal. (...) No

    irnico? (Caldeira, 2003:170). Caldeira traz, ainda, algumas pesquisas de opinio pblica.Uma revela que 85,1% dos entrevistados eram contra a extino da Rota (2003:170)

    Em consonncia com o que vem sendo chamado aqui de crime perfeito, possvelperceber que os agentes da tortura contam, ainda, com o perfeito libi: as classessubalternas. Ironicamente, aqueles que as classes mais favorecidas associam a perigo tambmesto controlados pelo medo, capturados pelo discurso de guerra aos bandidos (aoscriminosos comuns e no aos grandes bandidos corruptos que desviam milhes),naturalmentedifundido pela mdia. As classes subalternas somam presso/lgica repressiva, pulverizando

  • 7/28/2019 Gontijo, Daniela Cabral & Pereira, Ondina Pena. (2012). Direito vida sem tortura: direitos humanos para human

    5/15

    DIREITO VIDA SEM TORTURA: DIREITOS HUMANOS PARA HUMANOS DIREITOS?

    PSICOLOGIA POLTICA. VOL.12. N 24. PP.313-327. MAIOAGO.2012 317

    o medo: Quem tem que ser torturado o ladro, o estuprador, disse uma mulherentrevistada, empregada domstica, 36 anos. Outra, camareira, 24 anos, comentou: A gentet morrendo de fome. Vive condio muito ruim. Se d condio na priso, vai todo mundoquerer ir morar l. (Gontijo, 2004).

    Tampouco exagero afirmar que, nesse crime perfeito, a sociedade testemunha dedefesa. O seu depoimento o silncio, a tcita conivncia. O crime perfeito , ao mesmotempo, o crime invisvel. No se v coisa alguma, no se ouve sequer um pio. Estamostrancafiados(as) em nossas casas, acuados(as) pelo medo da violncia urbana ou a sensaode violncia fomentada pela mdia que mostra progressivamente mais violncia, um discursode guerra ao crime, no sentido que lhe d Martha Huggins. Ns, a sociedade, somos obystander3 crucial do crime de tortura. Diz-se: o cara foi torturado, e o discursoimediatamente ricocheteia: mas o que foi que ele fez? A tortura justifica-se perfeitamente,em o que se poderia bem chamar de legtima defesa social. Justifica-se para que ns, asociedade, possamos dormir tranquilas(os). Isso significa que, em relao ao crime datortura, jogamos o mesmo papel crucial que os cidados comuns jogaram na realizao do

    projeto eugnico nacional-socialista: nossa falsa ingenuidade esconde nossa aceitao daexistncia das prises como lugar onde devem ser trancafiados os delinquentes, que, por suavez, justificam a existncia da polcia (Foucault, 2006). Essa funcionalidade do crimeconstitui tambm um problema nas reflexes de Hannah Arendt (1983) sobre o julgamento deEichmann, as responsabilidades desse cidado para com o projeto do nacional-socialismo.Contra a imagem de um Eichmann sdico, Hannah Arendt no v seno uma terrificantesuperficialidade, o que lhe faz constatar, surpresa, a facilidade com que um povo, na suagrande maioria, cedeu ao apelo do carrasco.

    No caso da tortura, Estado e classes favorecidas agenciam uma tribuna moral, julgam ecriminalizam as classes subalternas e, concomitantemente, asseguram os seus interesses: amanuteno das benesses de uma ordem social desigual (Caldeira, 1991). No meu ponto de

    vista, o que a populao quer que a polcia chegue junto, diz, em entrevista, o ex-Secretrio de Segurana Pblica Fleury (Caldeira, 1991:172).

    Ser que no somos ns quem usufrumos ou que nos convencemos deste usufruto das benesses do terrorismo de Estado? A tortura um crime de Estado, perpetrado por seusagentes contra as classes subalternas, que permanece impune e silenciado, em face de umaintricada rede estatal corporativa, parcial, seletiva, atravessada pela atualizao cotidiana daestrutura colonial (Segato, 2007). Isto no acontece, contudo, sem a conivncia ouconvenincia? da opinio pblica, que justifica o crime da tortura com uma lgica moral:direitos humanos so para humanos direitos. Com este mesmo slogan elegemos polticoscomo o Ubiratan Guimares (PP)4, comandante do Massacre do Carandiru e um dosdeputados estaduais mais votados em SP, em outubro de 2002. A mdia corporativa cmplice nesta trivializao do terrorismo estatal, promovendo formas mais sutis de

    3 O conceito, usado por autores como Ervin Staub (1989), para designar o papel crucial de cidados co-muns supostamente inofensivos no Holocausto. Hitler mesmo acelerou a soluo final, surpreendidopela grande aceitao social das leis que restringiam os direitos de pessoas com ascendncia judaica.

    4 Morreu recentemente. Tambm foram eleitos Lopes (PP), com 207.006 votos e Jazadji (PFL), com157.602. Juntos, foram os trs mais votados. Guimares recebeu 56.155 votos, de acordo com a reporta-gem Discurso antidireitos elege campees de voto em SP, de 13 de outubro de 2003, do Dirio de SoPaulo.

  • 7/28/2019 Gontijo, Daniela Cabral & Pereira, Ondina Pena. (2012). Direito vida sem tortura: direitos humanos para human

    6/15

    DANIELA CABRAL GONTIJOONDINA PENA PEREIRA

    ASSOCIAO BRASILEIRA DE PSICOLOGIA POLTICA318

    conivncia, como a constante promoo da analogia bandidos-brbaros, no sentido que lheatribuiu Segato: como parte de la dada civilizacin-Barbrie (2007:158)5. Para adjetivar

    bandidos que desviam milhes, colarinhos brancos, agentes estatais criminosos datortura, a palavra brbaro, ironicamente, perde sentido. No importa se fomos capturados

    pelo discurso excepcionalista ou se nos deixamos capturar; somos parte desta teialegitimadora da violncia policial e da tortura, pelo medo, pela garantia das benesses deuma ordem social desigual, pela assuno de que a violncia justifica-se por contrapor a

    balana com a criminalidade.A sociedade, a opinio pblica, convencida dentro de um projeto social

    excepcionalista e se convence tambm, diuturnamente, de que plausvel, justificvel, e/oudefensvel o projeto de justia estatal, nacional. Primeiramente, a gramtica j estformulada. Selaram-se, numa definio criminosa e territorializada, as classes subalternas,asfavelas, asperiferias.

    Depois, a polcia e a prpria delinquncia so partes vitais do projeto social, conformeapontado por Foucault, em uma de suas crticas ao utilitarismo da criminologia: A

    delinquncia era por demais til para que se pudesse sonhar com algo to tolo e perigosocomo uma sociedade sem delinquncia. Sem delinquncia no h polcia. O que torna apresena policial, o controle policial tolervel pela populao se no o medo do delinquente?[...] Ou se no houvesse, todos os dias, nos jornais, artigos onde se conta o quo numerosos e

    perigosos so os delinquentes? (2006:137-138).Mas se, por um lado, o medo e o discurso que o fomenta sustenta o cenrio de tortura

    no pas, por outro, igualmente pilar a confiana de que este permanente estado de exceo(Agamben, 2004) atingir apenas os excepcionais neste caso os no-normais, no-cidados:os humanos no-direitos (Gontijo, 2004).

    As percepes e o discurso da sociedade conivente com a tortura, pelo silncio, pelamoralidade, pelo medo, pela razo cnica, ilustra o que Segato chamou de discurso da

    inevitabilidade (2006:16), que formam, nas palavras da autora, uma intricada teia moral ediscursiva (2003), que termina por legitimar o crime perfeito.

    Parece que se pode afirmar, sem exagero, que a populao est ciente do cenrioapresentado e permanece indiferente, fomentando um ciclo de tortura, represso policial eimpunidade no pas. Quando se pergunta sobre o crime de tortura a algum das classes maisfavorecidas, isto , que no o vivencia na pele, a resposta muitas vezes : isto coisa dapoca da ditadura (Gontijo, 2004). O que parece contraditrio a princpio pode explicarcomo a conivncia com a tortura est sutilmente, mas fundamentalmente estabelecida nasociedade brasileira.

    Em suma, sugere-se que a percepo da sociedade legitima o cenrio, por um lado,

    mediante o clamor para o endurecimento da represso, por outro, por meio do silncio quantos violaes. Parece que a maioria, inclusive membros das classes subalternas, sustenta algica de combate aos bandidos e a represso torna-se uma desculpa, uma justificativa paratoda sorte de abusos e crimes em massa por policiais e agentes penitencirios. Nesse contexto,ganha importncia o estudo da opinio pblica.

    5 Para discusso mais aprofundada, vide Anbal Quijano (2000), Santiago Castro-Gmez (2001), RitaSegato (2007) etc.

  • 7/28/2019 Gontijo, Daniela Cabral & Pereira, Ondina Pena. (2012). Direito vida sem tortura: direitos humanos para human

    7/15

    DIREITO VIDA SEM TORTURA: DIREITOS HUMANOS PARA HUMANOS DIREITOS?

    PSICOLOGIA POLTICA. VOL.12. N 24. PP.313-327. MAIOAGO.2012 319

    O cenrio, tal qual apresentado, foi o que instigou uma das autoras a pesquisar asintricadas impresses e discursos de uma parcela da opinio pblica, culminando nadissertaoFreedom from torture in Brazil: a human right for the right human? A study onthe societal perception of the practice of torture in the Federal District(Gontijo, 2004)6.

    A pesquisa, realizada em maio de 20047, entrevistou, via questionrio semi-estruturado,200 pessoas em 5 Regies Administrativas do Distrito Federal (Braslia, Taguatinga,Candangolndia, Ceilndia e Parano)8, produzindo dados quanti-qualitativos, com a intenode compreender percepes, tais como: O que a tortura? Quem torturado(a)? Quem oagente torturador? Por que e por quem usada a tortura? H diferenas entre a percepo dasclasses privilegiadas e das subalternas? Quais as contradies? possvel perceber

    julgamentos morais por trs das justificativas para tortura? Como essas percepes legitimama violncia policial? (Gontijo, 2004)

    Se a primeira pergunta revelou uma definio tortura alguma forma de violncia exps tambm um problema. A tipificao do crime no est ntida para as pessoas. Apesar daConstituio Federal de 1988 proibir a tortura, somente em 1997 adveio a Lei Federal n.

    9.455, tipificando o crime. Contudo, a prpria lei no faz distino entre tortura institucional eoutras formas de tortura. Na Lei Federal, entende-se a tortura institucional apenas como umagravante: 4 Aumenta-se a pena de um sexto at um tero: I se o crime cometido poragente pblico.

    Quando perguntadas sobre a existncia da lei contra a tortura, 116 das 200 pessoasentrevistadas desconheciam a lei. Destas, todas as que no sabiam ler. Inesperadamente,apenas 52,9% das entrevistadas com ensino superior completo conheciam a lei. Quando

    perguntadas se existisse uma lei, o que diria?: 79,5% disseram que proibiriam a tortura;15,5% que proibiriam certos tipos; e 5% que permitiriam a tortura. A falta de uma definiodificulta o enfrentamento tortura. Esta ausncia, patente na lei que tipifica a tortura no pas,aponta o desinteresse estatal em coibir esse crime ou em enfrentar os nveis amplos e

    sistemticos da tortura no pas (Gontijo, 2004).Desse modo, a tortura institucional carece de um tipo penal especfico capaz de classificar

    penalmente a tortura sistemtica e histrica contra as classes subalternas. Num sentido, peem risco sua caracterizao; se um tipo penal carece de inteligibilidade, pode ser tudo equalquer coisa. particularmente mais preocupante quando se sabe que a tortura um crimeinvisvel, o crime perfeito como ilustrado acima. Enfrentar algo indefinido na perceposocial beira a impossibilidade.

    6 O interesse aqui no o de nos determos nos meandros da pesquisa, tampouco esgotar os dados a levan-tados, mas refletir sobre um sentido geral para o qual ela aponta, qual seja, a relao entre o cenrio detortura, a noo de crime perfeito, no sentido baudrillardiano, e a razo cnica. Para uma anlise exaus-tiva de dados, vide dissertao mencionada.

    7 Sob superviso local da Dra. Paola Biasoli (UCB), formou-se uma equipe de quatro pesquisadoras-colaboradoras da UCB.

    8 A pesquisa, realizada entre 26 e 28 de maio de 2004, foi estratificada por sexo (50% cada), idade (pessoasentre 18 e 60), e renda familiar, selecionando, por sorteio, uma regio administrativa de cada grupo (den-tre cinco grupos), seguindo a estratificao oficial por renda e a subdiviso em grupos realizada pelo Go-verno do Distrito Federal (Relatrio da Secretaria de Ao Social (PISEF/DF; CODEPLAN/GDF,2002:10-12). Foram realizadas 40 entrevistas em cada regio. Para mais informaes, vide referida disser-tao (Gontijo, 2004).

  • 7/28/2019 Gontijo, Daniela Cabral & Pereira, Ondina Pena. (2012). Direito vida sem tortura: direitos humanos para human

    8/15

    DANIELA CABRAL GONTIJOONDINA PENA PEREIRA

    ASSOCIAO BRASILEIRA DE PSICOLOGIA POLTICA320

    A indefinio quanto ao tipo penal relaciona-se tambm vtima de tortura. Na sequnciadas perguntas, quando solicitadas a responder sobre quem seriam as grandes vtimas, oscriminosos foram apontados como as pessoas mais torturadas, com 54,5%; um ndice pequenose comparado com os dados reais. No mais, apontaram-se mulheres, crianas, pessoas idosas,numa evidente indefinio do termo tortura, fazendo aluso violncia domstica 9. Emseguida, as entrevistadas exemplificavam as respostas acima com exemplos pessoais,incluindo-se como vtimas tambm dessa violncia genrica que definiram como tortura. Oque pareceu um contrassenso quando se viram como vtima, mas no quando apontaram quemseriam as grandes vtimas.

    Quando se perguntou: quem voc pensa que tortura?, a maioria entrevistada disse:criminosos e policiais militares. Esta diviso revela que, quando se pensa em agentes docrime, o imaginrio social no invoca os criminosos da tortura, dos tratamentos desumanos oudegradantes. Por outro lado, divergem de dados em relao ao crime de tortura no Brasil:

    perpetrado majoritariamente por policiais civis e agentes penitencirios, segundo dados doSOS Tortura (MNDH, 2003)10. Uma entrevistada, que elegeu os agentes penitencirios, disse:

    bem, eles to l dentro, no podemos ver. Antagonicamente, a maioria alegou o mesmopara justamente no eleger agentes penitencirios (por estarem l dentro, no poderiam dizer).Apenas 9% (18) apontaram agentes penitencirios como os maiores torturadores. O ex-

    presidente nacional da OAB Rubens Approbato disse, poca, em uma entrevista: ningumv o agente penitencirio torturando o preso. A sociedade no v o policial torturando o

    suspeito para obter uma confisso. E a sociedade no se choca, porque, no fundo, aceita essaprtica (Campbell, 2003).

    Quando perguntadas se qualquer pessoa seria capaz de praticar a tortura, 50%responderam que sim, 47% que no, 3% no souberam responder. Por outro lado, perguntadasse seriam capazes de praticar a tortura, 26% disseram que sim, 62% que no, 8,5% que talveze 3,5% que no sabiam. Ao cruzar os dados, interessante notar que das 50% (100 pessoas)

    que disseram que todos so capazes de torturar, 37% negaram que seriam capazes de talfeito, 13% disseram que talvez fossem capazes e 6% que no saberiam (Gontijo, 2004).Assim, mais da metade afirma genericamente que todas as pessoas seriam capazes de praticara tortura, excluindo a si mesmas desse grupo11. Certo que as pessoas, em geral, tmdificuldade em atribuir-se caractersticas negativas. No entanto, quando questionadas, muitassustentavam a afirmao, abrindo mo da mnima coerncia exigida de um juzo. Ao faz-lo,sugerem uma forma tpica de operao da razo cnica: se todas as pessoas humanas socapazes de torturar e quem faz essa afirmao pertence categoria de humanidade, logo, necessrio algum grau de conscincia cnica, no sentido que lhe atribuiu Sloterdijk, capaz dese abster de tirar coerentemente todas as consequncias lgicas a que levam a premissa deonde o(a) entrevistado(a) partiu.

    9 interessante notar que 37% dos casos registrados pelo SOS Tortura, incluam-se na categoria violnciafamiliar, sendo quase metade de violncia domstica contra mulheres (MNDH, 2003:46-47).

    10 Apesar de o relatrio apontar que apenas 14% das denncias so contra agentes penitencirios, tambmaponta como certa sua sub-notificao.

    11 Para um estudo sobre obedincia, autoridade, responsabilidade por atos e contradies sobre a percepode si e o que uma pessoa capaz, vide experimento de Milgram (1974) e Zimbardo, autor do renomadoexperimento do crcere modelo de Stanford, 1971. Sobretudo, The Luciffer Effect (2007), onde apri-mora a tese de como pessoas comuns e supostamente boas, so capazes de atos atrozes.

  • 7/28/2019 Gontijo, Daniela Cabral & Pereira, Ondina Pena. (2012). Direito vida sem tortura: direitos humanos para human

    9/15

    DIREITO VIDA SEM TORTURA: DIREITOS HUMANOS PARA HUMANOS DIREITOS?

    PSICOLOGIA POLTICA. VOL.12. N 24. PP.313-327. MAIOAGO.2012 321

    Crime Perfeito e Razo Cnica: notas conclusivas

    Mas o crime seria, de fato, perfeito? O que o crime perfeito? Na perspectiva deBaudrillard (1996, 1976, 1990), a capacidade de fazer desaparecer o real, no deixando

    deste qualquer trao. assim que o autor v, por exemplo, a entrada do mundocontemporneo, em todos os seus nveis, na era do simulacro. A realidade e sua representao que supe a distncia crtica entre a realidade e os modelos substituda pela meraprecesso dos modelos, que prescindem da realidade. De que forma a tortura pode ser vistacomo o crime perfeito, nessa perspectiva? Exatamente na medida em que a sua realidade, soba presso da cumplicidade entre agentes estatais e opinio pblica amedrontada, deixa de serrepresentada criticamente, banalizada, perde sua densidade, transformando-se em meronome dado a uma necessria tcnica de fazer falar a verdade.

    Felizmente, numa perspectiva baudrillardiana, o crime no perfeito, pois h resquciosde realidade por toda parte. A tortura, enquanto acontecimento, resiste rede de simulaes,apontando o cinismo da razo.

    Assim, se por um lado, o discurso excepcionalista promove e tem promovido ao longo dahistria uma amnsia seletiva um processo de banimento que expulsa, da memriapblica, a histria da violncia estatal dirigida contra o, assim chamado, criminoso comum(Passos, 2008:184), por outro lado, no entanto, possvel percebermos, cotidianamente, asfissuras desse projeto. Isto , at o senso comum constata que a Justia no para todas as

    pessoas, que o direito, de uma forma geral, salvaguarda os interesses das classes burguesasetc. As pessoas entrevistadas pareciam cientes do projeto excepcionalista: A Lei deveria ser

    para todos. Porque que o rico no torturado?, perguntou um entrevistado, de 33 anos,assistente de cozinha. Outro entrevistado, trabalhador no comrcio, de 22 anos, como tantosoutros, tambm adensou esta indagao: Deveria ser igual, se uma pessoa pobre apanha pra

    falar alguma coisa, porque os filhinhos de papai no?.

    Assim, talvez, a restituio da densidade ao real, atravs do justo reconhecimento desseestado de coisas como um estado de emergncia, no sentido que lhe atribuiu WalterBenjamim, suponha o esforo de compreenso do que seja a cultura do simulacro(Baudrillard, 1976) e a razo cnica que nasce a. Esta, na expresso proposta por Sloterdijk(2000), inverte a formulao marxista da ideologia: eles no sabem o que fazem, mas fazem

    para eles sabem o que fazem, mas fazem (Zizek, 1996:312).Percebe-se uma razo cnica generalizada e que pode servir para levantar questes sobre a

    perpetuao do crime de tortura no Brasil. Se uma conscincia ingnua (que se confundecom o prprio conceito de ideologia) pode ser submetida a um processo crtico-ideolgico quemostre suas fissuras, e que faa reconhecer uma realidade social que ela distorce, e medianteesse ato mesmo, dissolver-se, a conscincia cnica, ao contrrio, por viver em uma era ps-ideolgica, refratria a uma anlise crtica (Zizek, 1996:312).

    So muitos os exemplos de razo cnica. esta que absorve a to moderna lgica dadissociao. Podemos assistir a um documentrio sobre os carregadores de baterias doscelulares daNokia, produzidas numa fbrica chinesa onde a situao dos operrios aproxima-se ao trabalho escravo, comovermo-nos com tal desumanidade e continuarmos a consumirseus aparelhos. Ou sabermos do desmatamento e da poluio que provocam a pecuria no

    pas, e, da mesma forma, continuar a comer carne. Sabermos, de forma mais genrica, quenem todas as pessoas podem exercer a cidadania no pas, que a Justia no para todas elas,

  • 7/28/2019 Gontijo, Daniela Cabral & Pereira, Ondina Pena. (2012). Direito vida sem tortura: direitos humanos para human

    10/15

    DANIELA CABRAL GONTIJOONDINA PENA PEREIRA

    ASSOCIAO BRASILEIRA DE PSICOLOGIA POLTICA322

    que no h representatividade das elites e classes burguesas nas prises e, no obstante,continuarmos invocando as leis, o Estado e as noes de igualdade constitucionais.

    Quem acredita, de fato, que o Judicirio pune a todas as pessoas, sem distino de classe,raa? Quem acredita que esto nas favelas do Rio os grandes traficantes? Talvez esteja narepresso s drogas a maior expresso da conscincia cnica. H imensa demanda porconsumo de drogas ilcitas pelas classes favorecidas, que no esto dispostas a protestar porsua descriminalizao, mas preferem consumi-las ilegalmente, certas de que sobre elas norecair qualquer lei. A razo cnica j no ingnua, mas o paradoxo de uma falsaconscincia esclarecida: sabe-se muito bem da falsidade, tem-se plena cincia de umdeterminado interesse oculto por trs da universalidade ideolgica, mas, ainda assim, no serenuncia a ela, aponta Zizek, ao discutir a tese de Sloterdijk (1996:313).

    Assim, se, por um lado, o crime de tortura no inteiramente perfeito, por no se deixarcapturar nas redes de simulao de sentido, por outro, a prpria razo cnica procurareconstitu-lo na perfeio que ele para si mesmo. Para a razo cnica, paradoxalmente, asverdades, esses resqucios de realidade, no interessam. O irnico que o crime da tortura foi

    historicamente entendido como um crime para revelar-se a verdade, seria uma ferramenta paraque a verdade viesse tona. O seu uso moderno (quando j se sabia que, sob tortura, a pessoaconfessaria qualquer coisa, ou seja, que nada ali se revelaria) anlogo prpria razocnica.A verdade, para os prprios agentes torturadores, o que menos interessa. Da mesma forma,na denncia do crime de tortura no basta demonstrar como se sustenta, fomenta e fomentado por um projeto estatal excepcionalista. J o sabemos. Parece que dizer o real

    produz apenas alvio, mas no desfaz qualquer iluso ideolgica, porque esta j no existe.Este alvio justamente o que possibilita que as coisas permaneam como esto, querecapturem um sentido de normalidade, levando ao paradoxo a ironia em si. Zizek, em

    palestra dada em Nova Iorque, recorre ao exemplo da guerra do Iraque: quando Blairanunciou seu apoio, a populao foi s ruas em protesto. O curioso, segundo ele, que a

    populao parece ter ficado satisfeita afinal, fez sua parte. Tambm Blair parece ter ficadosatisfeito, embora tenha continuado apoiando a guerra. O prprio Bush, em um cinismo maistosco, e por isso mais verdadeiro (pois se permite revelar), teria dito: por isso que vou aoIraque, para que as pessoas, um dia, possam ir s ruas protestar por algo.

    Temos, na expresso de Bush, um atentado noo histrica que se desenvolveu noOcidente sobre a fora reveladora da palavra e seu poder de traduo racional, inteligvel, daverdade. A descrena no poder iluminador do conceito, na sua capacidade de expressointeligvel do real, j sofre vrios abalos desde os fins do sculo XIX, quando umaconscincia trgica da existncia comea a tomar forma, mostrando a ntida separao das

    pessoas humanas com o mundo e das humanas entre si, e despertando a suspeita sobre acapacidade das palavras em traduzir a incomensurabilidade do mundo, da realidade.

    Antecipa-se aqui um momento histrico em que as palavras se revelariam cada vez maisimpotentes para traduzir qualquer forma de relao dos humanos com o ser. H uma espciede decadncia da cultura, que se concentra em produzir uma linguagem utilitria, deixandoum vazio enorme em nossa capacidade de comunicao simblica. Esses espaos vazios,insuportveis para a cultura ocidental que pretende tudo erigir em evidncias, comearo a ser

    preenchidos com sinais abstratos ou meramente funcionais. Nesse processo, as palavras vosendo esvaziadas do seu contedo. Por exemplo, termos como liberdade, pessoa, democracia,

  • 7/28/2019 Gontijo, Daniela Cabral & Pereira, Ondina Pena. (2012). Direito vida sem tortura: direitos humanos para human

    11/15

    DIREITO VIDA SEM TORTURA: DIREITOS HUMANOS PARA HUMANOS DIREITOS?

    PSICOLOGIA POLTICA. VOL.12. N 24. PP.313-327. MAIOAGO.2012 323

    so empregados de maneira cada vez mais massificada e se tornam slogans, perdendo adensidade de sua significao.

    Esse tipo de uso da linguagem se alimenta da iluso de que as palavras esto, como ascoisas, nossa disposio. Fazemos delas um uso continuado, irrefletido, medida que vamosmanipulando os objetos em funo de nossas convenincias e necessidades, recobrindo deinautenticidade a experincia que temos do real, aprisionando as significaes necessidadede tudo traduzir em signos funcionais, permutveis de pessoa para pessoa, de interesse parainteresse.

    Poderamos relacionar esse processo de banalizao do sentido com a produo da ordemdo simulacro (Baudrillard, 1976). Nesta, o sentido vai perdendo cada vez mais o lastro nanossa experincia com o real e se faz atravs de pura simulao. O simulacro precede e

    prescinde da realidade e da experincia e articula-se perfeitamente com a razo cnica.Na perspectiva de Baudrillard, a cultura do simulacro d origem a uma nova ordem, sutil,

    e no mais a nossa conhecida ordem da dominao. A ordem da dominao fcil decaracterizar. Seu modelo pode ser o da relao entre homem e mulher, entre mestre e escravo,

    entre patro e empregado etc. So relaes entre pares de opostos, onde um tempredominncia hierrquica sobre o outro. Nessas relaes mesmo sendo relaes onde halienao possvel pensar em termos de contradio, de relaes de fora, que podemculminar em uma revoluo, por exemplo. Mas a ordem da hegemonia, essa nova ordem sutil, mais complicada de se definir, porque onde a verdade produzida. Seria a produogeneralizada da mscara, com o emprego desmedido de todos os signos, o escrnio em relaoaos seus prprios valores, o cinismo. Como nada tem lastro na realidade, os valores, ento,

    podem ser trocados um por outro de acordo com nosso interesse.Em outras palavras, a dominao clssica, histrica, funcionava pela introduo autoritria

    de um sistema de valores, que eram ostentados e defendidos. Na hegemonia contempornea,ao contrrio, h uma espcie de liquidao simblica de todos os valores, j que so

    simulados. Assim, todo o trabalho do negativo, todo o trabalho do pensamento crtico, porexemplo, com relao opresso, qualquer que seja ela, ou com relao alienao, no temmais a fora que teria no sistema de dominao. Simplesmente porque essa nova configuraohegemnica absorve a crtica, absorve o negativo. Eis a forma de funcionamento, o trabalhoessencial da razo cnica: transformar toda crtica, todo movimento contrrio, em uma

    justificativa para o sistema, um alimento para ele, fazendo do poder uma configurao virtualque metaboliza em seu prprio proveito qualquer elemento. Tal possvel na medida em quese perde a noo de totalidade do sistema, na medida em que o mundo, as culturas, sofragmentadas, transformadas em um amontoado de peas avulsas no mais coerentes entre si.

    Nesse sentido, Rita Segato escreveu recentemente em Da inaudibilidade do grito inevitabilidade da luta armada, sobre o massacre do povo palestino exibido pela mdia, e decomo os apelos e narrativas esbarram numa impossibilidade, que a prpria impossibilidadeda representao. Em suas palavras: O incrvel fenmeno da inaudibilidade do grito indicaque mergulhamos sem perceb-lo na incomunicabilidade prpria de toda atmosfera totalitria,com seu cerco miditico, com sua lngua eufemstica, com o encapsulamento dos sujeitos(2009).

    A ideia de uma impossibilidade da representao est presente nas anlises de Baudrillard(2002) sobre o mundo contemporneo, no qual triunfa uma cultura antidialtica, cega scontradies. Ora, a caracterstica da representao exatamente a da assuno da ausncia,

  • 7/28/2019 Gontijo, Daniela Cabral & Pereira, Ondina Pena. (2012). Direito vida sem tortura: direitos humanos para human

    12/15

    DANIELA CABRAL GONTIJOONDINA PENA PEREIRA

    ASSOCIAO BRASILEIRA DE PSICOLOGIA POLTICA324

    da contradio, da crtica. Na era ps-representao, so os cdigos que se antecipam realidade, modelizando-a e simulando, assim, a transparncia do mundo, que , na verdade, atransparncia dos prprios cdigos. No havendo, pois, representao da realidade, masantecipao desta, ficamos deriva dos modelos, perdendo a capacidade crtica.

    Parece que se trata de uma era ps-ideolgica, que nos exige um constante esvaziamentode sentido e coerncia. Mesmo os textos acadmicos esvaziam-se constantemente designificao. Estamos numa era em que nomear algo tem o mero valor da palavra, nada almdisso. No que a verdade no se possa revelar, mas revel-la no produz qualquer efeito.Pelo contrrio, faz at parte da sustentao de um quadro de inevitabilidades.

    O prprio discurso de direitos humanos corrobora para exaurir de efetividade aimplementao dos tantos tratados internacionais dos quais o Brasil signatrio, bem como aalcunha de Cidad de nossa Constituio. Primeiramente, direitos humanos exigem o que se

    poderia chamar de adeso de conscincia. A eficcia simblica do direito, do qual falavaVillegas (1998), serve apenas num plano terico esvaziado. A realidade um estado deexceo permanente, nas palavras de Agamben (2004), uma seletividade racial, uma

    continuidade histrica de pilhagem e terrorismo contra as classes subalternas. Para que osdireitos humanos funcionassem, precisaramos nos convencer, por adeso. Mas estamosnum tempo em que no precisamos mais nos convencer de nada. Uma conscincia cnica podeaderir sem aderir. Pode indignar-se e continuar sustentando discursos excepcionalistas.Mesmo um artigo como este pode denunciar o crime perfeito da tortura, e ser parte dele. Osdiscursos acadmicos so perfeitamente dissociveis das prticas.

    Mas ser que vivemos, de fato, em uma era ps-ideolgica, ou a razo cnica parteintegrante das ideologias racistas e classistas cada vez mais sutis e dissimuladas? Assimsendo, como possvel denunciar o discurso excepcionalista que em nome da manuteno de

    privilgios, alija de cidadania parte considervel da sociedade, de feio negra e pobre, semescorregar numa denncia vazia, num mero dizer de palavras?

    Se a era fosse ps-ideolgica, a perfeio do crime se consumaria. A perfeio residiriajustamente na recaptura da denncia por um esvaziamento de sentido generalizado para que omodus operandi permanecesse vigente e prolfico. A repetio ratificada. Como nos apontouBaudrillard, no crime perfeito, a prpria perfeio o crime, perfeio esta punida pelareproduo (1996:20).

    Para Baudrillard, h uma radicalidade essencial na reiterao e perpetuao de um crime:Se as consequncias do crime so perptuas, porque no h nem assassnio [sic] nemvtima. Se houvesse um ou outra, o segredo do crime alguma vez seria desfeito e o processocriminal seria resolvido. O segredo consiste afinal em um e outro estarem confundidos (...)(1996:21). Com isso, o pensador no nos diz que ambos so iguais ou que no hopresso/dominao, mas chama a ateno para o fato de que um sistema s se eternizaquando opressor e oprimido se confundem, quando um speculum do outro e nutre estereflexo. Talvez nos quisesse dizer que o capitalismo se perpetue porque o retroalimentamos;que a sociedade de consumo vigora e grassa porque mesmo quem no consome parece vido

    por faz-lo; que h uma lgica espectral na continuidade de situaes opressivas, como naperpetuao da tortura.

    Ser que, do mesmo modo, ao transferirmos a nossa crtica ao Estado indubitavelmenteo agente maior da tortura tambm no pulverizamos a agncia que nos caberia na dissoluodeste? O socilogo escandinavo Niels Christie (1981) arrisca uma possibilidade: quanto

  • 7/28/2019 Gontijo, Daniela Cabral & Pereira, Ondina Pena. (2012). Direito vida sem tortura: direitos humanos para human

    13/15

    DIREITO VIDA SEM TORTURA: DIREITOS HUMANOS PARA HUMANOS DIREITOS?

    PSICOLOGIA POLTICA. VOL.12. N 24. PP.313-327. MAIOAGO.2012 325

    menos estado melhor. Ele, como a antroploga argentina Rita Segato, so entusiastas do quepoderamos chamar de um retorno s comunidades. J para Coimbra e Nascimento (2009:56),na esteira de Wacquant, o que tem se minimizado o Estado social, enquanto o Estado docontrole se maximiza, dando misria um tratamento penal, com o encarceramento dos

    pobres.Por fim, se o presente cenrio , sobretudo, paradoxal (um Estado criminoso, porm

    inimputvel, que esvazia a noo de justia, e uma sociedade onde se generaliza a razocnica, mas que segue ratificando o basto estatal), , ao mesmo tempo, desafiador: natentativa de significaro grito inaudvel, como no resvalar no lodo da inevitabilidade?

    Paradoxo confirmado pelas palavras de Coimbra e Nascimento ao afirmarem que:

    A era dos direitos, da participao e da liberdade emaranha-se, mistura-se com o atualEstado penal e a Tolerncia Zero. Ao mesmo tempo em que se produzem cantos desereias, sedues, cooptaes e capturas, tambm se forjam prticas punitivas, repressoras,terroristas, em que a tortura e o extermnio so justificados como um mal menor, comonecessrios no sentido de garantir a segurana de alguns. (2009:56)

    No entanto, as autoras parecem contornar o problema da inevitabilidade, apostando napotncia das microrrebelies, nesses micromovimentos libertrios que, longe de se pautarempela conquista de um Estado Democrtico de Direito, afirmam a multiplicidade e aprovisoriedade das reas emancipadas, com o qu buscam escapar ao esmagamento do poderdo Estado, o que significa afirmar, com Nietzsche, a potncia da vida contra a perfeio docrime e contra a razo cnica.

  • 7/28/2019 Gontijo, Daniela Cabral & Pereira, Ondina Pena. (2012). Direito vida sem tortura: direitos humanos para human

    14/15

    DANIELA CABRAL GONTIJOONDINA PENA PEREIRA

    ASSOCIAO BRASILEIRA DE PSICOLOGIA POLTICA326

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    Agamben, Giorgio. (2002). Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte:Universidade Federal de Minas Gerais.

    Agamben, Giorgio.(2004). Estado de Exceo. So Paulo: Boitempo.Arendt, Hannah. (1983).Eichmann em Jerusalm: um relato sobre a banalidade do mal. So

    Paulo: Diagrama e Texto.Baudrillard, Jean. (1976).Lchange symbolique et la mort. Paris: Gallimard.Baudrillard, Jean. (1990).La transparence du mal. Essai sur les phnomnes extrmes. Paris:

    Galile.Baudrillard, Jean. (1996). O Crime Perfeito (Silvina Rodrigues Lopes, trad.). Lisboa: Relgio

    Dgua.Baudrillard, Jean. (2002).A troca impossvel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.Caldeira, Teresa Pires do Rio. (2003). Cidade de muros: crime, segregao e cidadania em

    So Paulo (Frank de Oliveira, & Henrique Monteiro, trads.).So Paulo: Editora 34/Edusp.Campbell, Ulisses. (2003, 10 de agosto de). Conivncia Atroz. Correio Braziliense, [Braslia].Castro-Gmez, Santiago. (2001). Teoria Tradicional y Teoria Crtica de La Cultura. Impulso,

    12(29).Coimbra, Ceclia, & Nascimento, Maria Lvia. (2009). Movimentos Sociais e sociedade de

    controle, Em Silvia Tedesco, & Maria Livia Nascimento (Orgs.), tica e Subjetividade:novos impasses no contemporneo. Porto Alegre: Sulina.

    Christie, Nils. (1981).Limits to Pain. Acessado em: 04 de outubro de 2011, de: .

    Duarte, Evandro Charles Piza. (2006). Criminologia & Racismo: introduo criminologiabrasileira. Curitiba: Juru.

    Gontijo, Daniela C. (2004). Freedom from Torture in Brazil: a Human Right for the RightHuman? A study on the societal perception of the practice of torture in the capital ofBrazil. Dissertao de Mestrado, LLM International Law of Human Rights Program.Utrecht: Utrecht Universiteit.

    Gontijo, Daniela C., & Pereira, Ondina P. (2009). Direito vida sem tortura: direitos humanospara humanos direitos? Anais doXXII Congrs de lAssociation Internationale pour laRecherche Interculturelle. Florianpolis: ARIC.

    Foucault, Michel. (1987). Vigiar e punir: nascimento da priso (Raquel Ramalhete, trad.).Petrpolis, RJ: Vozes.

    Foucault, Michel. (2006). Microfsica do Poder (Roberto Machado, org. e trad.). So Paulo:

    Paz e Terra.Junqueira, Alfredo. (2011, 13 de setembro de). Estado ainda lidera em autos de resistncia eletalidade policial. Estadao.com.br. Acessado em: 04 de outubro de 2011, de: .

    Matos, Elisa. (2009). O inimputvel: crimes do Estado contra a juventude criminalizada.Monografia, Antropologia social. Braslia: Universidade de Braslia.

    Milgram, Stanley. (1974). Obedience to authority: an expermimental view. New York: Harper& Row.

  • 7/28/2019 Gontijo, Daniela Cabral & Pereira, Ondina Pena. (2012). Direito vida sem tortura: direitos humanos para human

    15/15

    DIREITO VIDA SEM TORTURA: DIREITOS HUMANOS PARA HUMANOS DIREITOS?

    PSICOLOGIA POLTICA. VOL.12. N 24. PP.313-327. MAIOAGO.2012 327

    MNDH Movimento Nacional de Direitos Humanos. (2002) Relatrio Anual da CampanhaNacional Permanente de Combate Tortura e Impunidade. Braslia, DF: Autor.

    MNDH Movimento Nacional de Direitos Humanos. (2003) Relatrio Final da CampanhaNacional Permanente de Combate Tortura e Impunidade. Braslia, DF: Autor.

    Passos, Tiago E. L. (2008). Terror de Estado: uma crtica perspectiva excepcionalista.Dissertao de Mestrado, Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social.Universidade de Braslia, Braslia.

    Plano de Aes Integradas para Preveno e Controle da Tortura no Brasil. (2010), daSecretaria de Direitos Humanos/Presidncia da Repblica, Portal do Ministrio da

    Justia. Acessado em: 04 de outubro de 2011, de: .

    Relatrio Brasil Dez/10 (2010).Portal do Ministrio da Justia. Acessado em: 04 de outubrode 2011, de: .

    Quijano, Anbal. (2000). Colonialidad del poder, eurocentrismo y Amrica Latina. Em

    Lander, E. (Org), La colonialidad del saber: Eurocentrismo y Ciencias Sociales Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: FLACSO.

    Segato, Rita L. (2006) Antropologia e Direitos Humanos: Alteridade e tica no Movimentode Expanso dos Direitos Universais.MANA,12(1), 207-236.

    Segato, Rita L.(2007)El color de la crcel en Amrica Latina. Apuntes sobre la colonialidadde la justicia en un continente en desconstruccin. Revista Nueva Sociedad, 208, mar-abr.

    Segato, Rita L. (2009, 13 de janeiro de) Da inaudibilidade do grito inevitabilidade da lutaarmada. UnB Agncia. Acessado em: 04 de outubro de 2011, de: .

    Sloterdijk, Peter. (2000). Critique de la raison cynique. Paris: Christian Bourgois.

    Staub, Ervin. (1989). The Roots of Evil: The Origins of Genocide and Other Group Violence.New York: Cambridge University Press.Villegas, Maurcio G. (1998). La eficacia simblica del derecho: anlisis de situaciones

    colombianas.Bogot:Uniandes.Wacquant, Loic. (2001)Prises da Misria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.Zaffaroni, E.R. (1991), Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema

    penal. Rio de Janeiro: Revan.Zimbardo, Philip. (2007). The Luciffer Effect: understanding how good people become evil,

    New York: The Random House.Zizek, Slavoj. (1996). Como Marx Inventou o Sintoma. Em Slavoj Zizek (Org.), Um Mapa da

    Ideologia. (Vera Ribeiro, trad.). Rio de Janeiro: Contraponto.Zizek, Slavoj. (2007). Ecology: A New Opium of the Masses. Slavoj Zizek at Jack Tilton

    Gallery, NYC Part 2. Acessado em: 04 de outubro de 2011, de: .

    Recebido em 12/01/2012.

    Revisado em 29/04/2012.

    Aceito em 18/06/2012.