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    ColecaoANTROPOLOGIA SOCIALdiretor: Gilberto Velho

    Franz Boas

    0 RISO i: 0 RISfvELVerenaAlberti

    CULTURA E RAzAo PRATICA ILHAS DE HIST6RIAMarshall Sahlins

    ANTROPOLOGIA CULTURALFranz Boas0 EspfRITO MILITAR Os MILITARES E A REPUBLICACelso Castro

    Os MANDARINs MILAGROSOSElizabeth Travassos

    GAROTAS DE PROGRAMAMaria Dulce Gaspar

    ANTROPOLOGIA URBANA DESVIO E DIVERGENCIA INDIVIDUALISMO E CULTURA PROJETO E METAMORFOSE SUBJETIVIDADEE SOCIEDADE A UTOPIA URBANAGilberto Velho

    Antropologia Cultural DA VIDA NERVOSALuiz Fernando Duarte

    NOVA Luz SOBREA ANTROPOLOGIAClifford Geertz

    PESQUISASURBANASGilberto Velhoe Karina Kuschnir

    Textos selecionados,apresentacao e traducao:

    Celso Castro

    0 COTIDIANO DA POLITICAKarina Kuschnir

    0 MUNDo FUNK CARIOCA0MISTERIO DO SAMBAHermano Vianna

    CULTURA: UM CONCEITOANTROPOL6GICORoque de Barros Laraia

    BEZERRA DA SILVA:PRODUTO DO MORROLeticiaVianna

    AUTORIDADE & AFETOMyriam Lins de Barros GUERRA DEORlxAYvonneMaggie

    0 MUNDO DA ASTROLOGIALuis Rodolfo Vilhena

    Jorge Zahar EditorRio de Janeiro

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    SUMARIO

    Copyright da selccao de textos e apresentacao 2004, Celso CastroCopyright 2004desta edicao:Jorge Zahar Editor Ltda.

    rua Mexico 31 sobreloja20031-144 Rio de Janeiro, RJtel.: (21) 2240-02261 fax:(21) 2262-5123e-mail: [email protected]: www.zahar.com.br

    7 Apresentacao, Celso Castro25 As limitacoes do metodo comparativo

    da antropologia, 1896Todos os direitos reservados.

    A reproducao nao-autotizada desta publicacao, no todoou em parte, constitui violacao de direitos autorais. (Lei 9.610/98) 41 Os metodos da etnologia, 1920Capa: Valeria NaslauskyFoto da capa: Franz Boasrepresentando a danca do espirito canibal , parte de

    uma cerimonia da sociedade secreta Hamatsa, dos indios Kwakiutl (Vancouver,Canada). A foto foi t irada para servir de modelo ao escultor de urn diorama emtamanho natural, exibido no United States National Museum em 1895.Copyright National Anthropological Archives, Smithsonian Institution/MNH 8304.

    53 Alguns problemas de metodologianas ciencias sociais, 1930

    67 Raca e progresso, 1931CIP-BrasiL Catalogacao-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

    03-2456CDD 306CDU316.7

    87 Os objetivos da pesquisaantropol6gica, 1932

    B634aBoas,Franz, 1858-1942

    Antropologia cultural/Franz Boas;organizacao etraducao Celso Castro.- Riode Janeiro:JorgeZaharEd.,2004

    . -(Antropologia social)ISBN85-7110-760-21. Antropologia. 2. Racas.I. Castro, Celso, 1963-.

    II.Titulo. III.Serie.

    mailto:[email protected]://www.zahar.com.br/http://www.zahar.com.br/mailto:[email protected]
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    ApresentacdoCelso Castro

    E dificil acreditar que este seja 0primeiro livro publi-cado no Brasil de urn autor da importancia de FranzBoas, indiscutivelmente urn dos fundadores da mo-derna antropologia. Nao ha nem mesmo trabalhos deBoas publicados em coletaneas ou em revistas acade-

    micas no Brasil, com a louvavel excecao de urn pequeno texto emuma revista de alunos da usr.' Existem ainda algumas poucastraducoes feitas por professores para uso exclusivo em sala deaula.' Em Portugal foi traduzido apenas urn livro de Boas (Primi-tive Art), de dificil acesso no Brasil.'

    Diante desse quadro, grande parte do ensino de antropolo-gia em cursos de graduacao - nos quais em geral e problematicoadotar textos em ingles - trata rapida e superficialmente da obrade Boas, por vezes utilizando-se apenas de comentadores. 0 obje-tivo desta pequena coletanea e justamente contribuir para modi-ficar esse quadro, permitindo que se amplie 0conhecimento so-bre urn dos mais importantes antropologos de todos os tempos.

    Franz Uri Boas nasceu na pequena cidade prussiana de Minden(Vestfalia) em 9 de julho de 1858, em uma familia de comercian-tes judeus ja culturalmente assimilados a vida alema." Entroupara a universidade em 1877, estudando fisica sucessivamente

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    em Heidelberg, Bonn e Kiel. Nesses anos, como era comum entreos estudantes, envolveu-se em varies duelos - pelo menos urnmotivado por ataques de natureza anti-semita -, nos quais ga-nhou cicatrizes na face visiveis por toda a sua vida.

    Em 1881, Boas concluiu seus estudos universitarios comuma dissertacao sobre a absorcao da luz pela agua. Data dessaepoca seu interesse pela psicofisica (desenvolvida por GustavFechner), disciplina que buscava compreender a relacao entresensacoes fisicas e percepcao psicologica. No entanto, insatisfeitocom as perspectivas da carreira de fisico, mudou seu interessepara a geografia, em parte por influencia do geografo TheobaldFischer, seu professor em Kiel e de quem setornaria amigo. Aposprestar urn ana de service militar obrigatorio, mudou-se paraBerlim, onde conheceu Adolf Bastian (1826-1905), patriarca daantropologia alema e entao diretor do Museum fur Volkerkunde(Museu do Folclore), por ele fundado em 1873 e ao qual Boasficou provisoriamente ligado. Nessa epoca, tambern estudou tee-nicas de medicoes, entao caracterist icas da antropologia ftsica,com 0medico anatomista Rudolf Virchow (1821-1902).

    Sem grandes perspectivas em Berlim, Boas alimentou 0pla-no de realizar uma expedicao a i lha de Baffin (Canada), para es-tudar os esquimos (hoje conhecidos, no Canada, como Inuit).Apos varias tentat ivas, conseguiu obter recursos do dono de urngrande jornal berlinense em troca de artigos sobre a experiencia.Em 1881, antes de embarcar, conheceu e apaixonou-se por MarieKrackowizer, orfa de urn importante medico austr iaco que emi-grara para os Estados Unidos e se estabelecera em Nova York.Marie visitava a Alemanha em companhia de sua mae e de urnamigo da familia, Abraham Jacobi, coincidentemente, tio mater-no de Boas que tambem se mudara para Nova York (no futuro,Jacobi seria de grande importancia para 0 sobrinho, inclusiveajudando-o financeiramente).

    Em 20 de junho de 1883, Boas part iu para sua expedicao aosesquimos. Por insistencia do pai, ia acompanhado por urn em-

    pregado da familia, Wilhelm Weike, da sua idade. Passou urn anana ilha, convivendo com os esquimos em muitas de suas ativida-des diarias, Durante a estada na localidade de Anarnitung, escre-veu em seu diario: "Sou agora urn verdadeiro esquimo. Vivocomo eles, caco com eles e faco parte dos homens de Anarnitung"(cf. Cole, p. 78). Sua permanencia entre os esquimos tambemgerou observacoes como as seguintes, registradas em seu diariono dia 23 de dezembro de 1883:

    Freqiientemente me pergunto que vantagens nossa "boa socieda-de" possui sobre aquela dos "selvagens" e descubro, quanta maisve jo de seus costumes, que nao temos 0 dire ito de olha-los decima para ba ixo. Onde, em nosso povo, poder-se -ia encont rarhospitalidade tao verdadeira quanta aqui? . .. Nos , "pessoas alta-mente educadas", somos muito piores, relativamente falando ... .Creio que, seesta viagem tern para mim (como serpensante) umainf luencia valiosa, ela res ide no for talecimento do ponto de vis tada relatividade de toda formacao [Bildung], e que a maldade, berncomo 0 va lor de uma pessoa , residem na formacao do coracao[Herzensbildung], que eu encontro, ou nao, tanto aqui quantaentre nos."Apesar das grandes dificuldades causadas pelo rigoroso eli-

    rna da regiao, Boas conseguiu cumprir em parte seu projeto deobter inforrnacoes sobre distribuicao e mobil idade entre os es-quimos, suas rotas de comunicacao e a historia de suas migra-coes. As observacoes geograficas que fez foram publicadas em1885 no livro Baffinland; as etnograficas viriam a publico em1888, em The Central Eskimo.

    Boas parece ter permanecido entre os esquimos muito maiscomo urn observador do que como urn pesquisador participante- no sentido que essa expressao assumiria na antropologia pos-Malinowski. No entanto, para contextualizar historicamente asduas experiencias, devemos lembrar que ele viveu entre os esqui-mos trinta e nove anos antes de Malinowski publicar seu famoso

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    10 Antropologia cultural 11presentacao

    Argonau ta s d o Pac if ic o Oc id en ta l (1922), fruto de alguns anos depesquisa entre os nativos dos arquipelagos da Nova Guine, Em-bora a experiencia de Boas nao deva ser encarada como uma su-bita "conversao" antropologica, sem duvida pode ser vista comoo primeiro momenta de urn longo ritual de passagem que 0leva-ria da geografia a antropologia.

    Finda a experiencia entre os esquimos, sua preocupacaoprincipal era casar com Marie. Procurou emprego nos EstadosUnidos (onde permaneceu por quase seismeses) e depois na Ale-manha, quando para hivoltou, em 1885.0 clima na Alemanha deBismarck - com sua onda nacionalista conservadora e 0fortale-cimento do anti-semitismo, sensivel ate mesmo na esfera acade-mica - passou a atrai-lo menos que 0dos Estados Unidos, paisentao visto como terra do liberalismo politico e de melhoresoportunidades profissionais, com vastas possibilidades de cresci-mento acadernico.

    Boas voltou, por urn curto tempo, a ser assistente de Bastianna catalogacao de colecoes etnograficas, Tambem habilitou-secomo privatdozentde geografia na universidade de Berlim. Trata-va-se, no entanto, de uma posicao precaria, remunerada apenaspor taxas pagas pelos alunos.

    Viajou para osEstados Unidos em julho de 1886,durante asferias letivas, para rever Marie e procurar trabalho. Aproveitoupara fazer uma expedicao de dois meses e meio a provincia cana-dense de British Columbia, 0que fez com que cancelasse 0cursoem Berlim por urn semestre. Seus interesses ja eram essencial-mente etnograficos, Visitou, entre outras tribos, ados Kwakiutl(atualmente denominados Kwakwaka'wakw), que se tornariamurn de seus grandes interesses de pesquisa. Nessa expedicao, osobjetivos principais de Boas eram estudar Iinguas e mitos nativose reunir objetos para colecoes museologicas,

    De volta a Nova York no final de dezembro, quando ja seesgotava seu periodo de licenca em Berlim, Boas finalmente con-seguiu emprego como editor-assistente da recem-criada revista

    de divulgacao cientifica Science. Essa posicao permitiu que elepermanecesse em definit ivo nos Estados Unidos e finalmente secasasse com Marie, em marco de 1887.

    Os nove primeiros anos na America foram dificeis. 0 em-prego na Science era modesto e durou apenas dois anos. Em se-guida, Boas foi por tres anos professor de antropologia na recern-inaugurada Clark University (Worcester, Massachusetts), dedi-cando-se sobretudo ao ensino e a pesquisa na area de antropolo-gia fisica. Dai partiu para urn trabalho temporario como assisten-te de Frederick W. Putnam na secao de antropologia da World 'sColumbian Exposition, que celebrava os quatrocentos anos dachegada de Colombo a America. Os anos de empregos inconstan-tes ou temporaries foram intercalados por expedicoes aos indios,viagens a Alemanha e filhos. (Boas e Maria tiveram seis filhosentre 1888 e 1902, dos quais urn morreu antes de completar urnano.)

    Com a mudanca para os Estados Unidos, Boas se tornoucada vez mais antropologo, embora 0campo institucional da an-tropologia ainda fosse limitado naquele pais. Urn pequeno artigopublicado em 1889, "On alternating sounds", e considerado porGeorge Stocking, Jr. urn marco dessa mudanca. Ao analisar dife-rencas de audicao em relacao a urn mesmo som, pronunciado poruma pessoa de outra sociedade, Boas chegou a conclusao de queelas nao se deviam a causas ftsicas, e sim a "apercepcao" diferen-cial do ouvinte com respeito aos sons a que estava acostumado.Para Stocking, Ir., 0art igo continha, em germe, a maior parte dafutura nocao boasiana de "cultura"

    Em 1896, finalmente Boas conseguiu urn emprego estavel, sendocontratado para trabalhar na curadoria das colecoes etnol6gicasdo American Museum of Natural History, em Nova York. A insti-tuicao estava sendo revitalizada sob a Iideranca (e com os recur-

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    sos) do milionario Morris K. Jesup. Boas convenceu Jesup a fi-nanciar uma ampla pesquisa coletiva para investigar as afinidadese relacoes entre os povos da Asia e do Noroeste norte-americano- que ficou conhecida como a Jesup North Pacific Expedition.Foi durante a preparacao dessa expedicao que escreveu, em 1896,o texto sobre "Aslimitacoes do metodo comparativo da antropo-logia", incluido na presente coletanea.

    A expedicao, que se desenrolou entre 1897 e 1902, nao foitao bem-sucedida quanta Boas imaginava. A pesquisa na Siberiae no Alasca ficou muito aquem do esperado, tanto por falta derecursos quanta por dificuldades dos pesquisadores. Ele proprioparticipou apenas de uma etapa da expedicao. Mesmo assim, foireunido urn volumoso material etnografico,

    A partir de 1896, Boas passou a acumular 0 emprego nomuseu a condicao de professor em tempo parcial na universidadede Columbia, embora 0 contrato tivesse de ser renovado anual-mente. Sua posicao sose tornou permanente, mas ainda em tem-po parcial , no inicio de 1899, quando ele t inha quarenta anos.

    Por essa epoca, presidiu urn comite para criar a revista aca-dernica American Anthropologist. 0 primeiro numero saiu em1899, e Boas teve urn papel importante em sua criacao, chegandomesmo a doar dinheiro do proprio bolso. AAmerican Anthropo-logical Association, criada em 1902, assumiu a publicacao da re-vista, e ele tornou-se urn dos primeiros vice-presidentes da enti-dade.

    Por diferencas de orientacao com 0diretor com respeito aorganizacao das colecoes e aos objetivos da instituicao, Boas saiudo museu em 1905. Isso permitiu que ele se tornasse professorem tempo integral em Columbia, concentrando-se em sua pro-ducao intelectual e na orientacao de alunos. Dentre os muitoslivros que publicou nesse periodo, destacam-se 0monumentalHandbook ofNorth American Languages (cujo primeiro volume ede 1911), The Mind of Primitive Man (1911, 2a ed. revista em1938), Primitive Art (192 7) e Anthropology and Modern Life

    (1928). Foram seus orientandos alguns dos principais expoentesda antropologia norte-americana nas decadas seguintes, comoAlfred Kroeber (seu primeiro aluno a doutorar-se, em 1901), Ed-ward Sapir, Robert Lowie, Ruth Benedict, Margaret Mead e Mel-ville Herskovitz. Teve ainda uma importante atuacao como in-centivador da antropologia no Mexico, onde passou 0ana acade-mico de 1911-1912.

    Em 1936aposentou-se em Columbia, apos trinta e sete anosde magisterio. Lecionou tambem na New School for Social Re-search, instituicao fundada em 1919 e que abrigou diversos inte-lectuais estrangeiros exilados ou fugidos da guerra na Europa.Entre eles encontrava-se 0entao jovern e ainda desconhecido an-tropologo Claude Levi-Strauss, que estava sentado ao lado deBoas em urn almoco realizado no Faculty Club da universidadede Columbia, em 21 de dezembro de 1942, quando este morreude urn ataque cardiaco fulminante, aos oitenta e quatro anos deidade.Na segunda metade de sua vida, Boas tornou cada vez maispublicas as suas posicoes politicas progressistas. Em 1906 procu-rou convencer, sem sucesso, alguns milionarios a financiar aconstrucao de urn African Institute, que teria como objetivo mos-trar que a inferioridade do negro dos Estados Unidos se deviainteiramente a causas sociais, e nao raciais. Valelembrar que, na-quela epoca, os afro-americanos eram cidadaos de segunda clas-se, sem direitos politicos e civis basicos - nao votavam e viviamuma realidade cotidiana de segregacao em escolas, bancos de oni-bus, banheiros publicos e templos religiosos.Boas, que se tornara cidadao americano em 1891, desilu-diu-se com a politica dos Estados Unidos a partir da guerra his-pano-americana de 1898, e principalmente apos a entrada dopais em 1917 na Prime ira Guerra Mundial , a qual se opos. Naseleicoes de 1918, preocupado com 0clima cada vez mais repres-sivo, anunciou publicamente sua intencao de votar no PartidoSocialista. No final de 1919, denunciou no jornal a atuacao de

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    14 Apresentacao 15Antropologia cultural

    antropologos que agiam como espioes do governo dos EstadosUnidos no Mexico, 0que motivou sua suspensao por dois anos daAmerican Anthropological Association.

    Foi urn dos fundadores, em 1939, do American Committeefor Democracy and Intel lectual Freedom, criado em uma epocade intensa "caca asbruxas" dos dois lados do Atlantico. Quando,em 1938, a universidade de Heidelberg foi invadida pelas SS na-zistas, seus livros estavam entre os que foram queimados. FranzBoas morreu no auge da Segunda Guerra MundiaL No obituarioque fez, Ruth Benedict ressaltava a importancia de sua acao pu-blica, alem da contribuicao cientifica que dera, concluindo: "Elefoi urn grande homem, e neste momenta precisamos de homenscomo ele."

    co textos aqui incluidos foram publicados entre 1920 e 1932,quando Boas tinha entre sessenta e dois e setenta e quatro anos. Aexcecao e "As limitacoes do metodo comparativo da antropolo-gia', publicado em 1896, quando ele tinha trinta e oito anos - eaqui incluido sobretudo em funcao de sua ampla disserninacao eextraordinaria importancia historica. Fiz a mesma opcao crono-logica que Boas para sua coletanea, embora reconhecendo queisso dificulta a percepcao de mudancas conceituais e de orienta-cao em sua trajetoria intelectual . Aquilo que se perde com essasexclusoes talvez seja com pensado pela concentracao, neste livro,da contribuicao metodologica de Boas para a entao nascente an-tropologia cultural.o primeiro texto, "Aslimitacoes do metodo comparativo daantropologia", foi lido em urn encontro da American Associationfor the Advancement of Science (AAAS) em 1896. Trata-se de umacritica contundente ao metodo do evolucionismo cultural -chamado por Boas, nesse texto, de "metodo comparativo" ou"novo metodo" -, a epoca doutrina dominante na antropologia.

    Impulsionado pela analogia com a teoria da evolucao biolo-gica (Darwin publicaraA origem das especies em 1859), essa linhabuscava descobrir leis uniformes da evolucao, partindo do pres-suposto fundamental de uma igualdade geral da natureza huma-na. Em funcao disso, todos os diferentes povos deveriam progre-dir segundo os mesmos estagios sucessivos, unicos e obrigatorios- dai 0uso que os evolucionistas fazem de "cultura humana" e"sociedade humana", sempre no singular. Esse substrato comumde toda a humanidade explicaria a ocorrencia de elementos se-melhantes em diferentes epocas e lugares do mundo. A compara-pi o entre tais elementos permitiria esclarecer, nao so esse cami-nho unico da evolucao da humanidade, como tambem 0estagiono tempo em que cada povo se encontra. Obviamente esses auto-res colocavam no apice do processo de evolucao a propria socie-dade em que viviam.

    Para esta coletanea, selecionei artigos e textos de conferencias,completos em si mesmos. Optei por nao incluir capitulos de li-vros monograficos, para evitar fragmenta-los (mantenho a espe-ranya de que venham a ser publicados integralmente em portu-gues), Os textos aqui traduzidos foram publicados em Race, Lan-guage and Culture (1940), coletanea organizada por Boas quaseno final da vida. Eleselecionou os sessenta e dois textos curtos deantropologia que julgava mais representat ivos de sua carreira,agrupando-os em tres partes principais, conforme 0 ti tulo dolivro.

    Quatro dos cinco textos do presente livro estavam incluidosna parte sobre cultura. Ficaram de fora os escri tos mais especifi-camente etnograficos de Boas, bern como suas importantes con-tribuicoes nos campos da Iinguistica e da antropologia fisica(neste caso, com a honrosa excecao de "Raca e progresso").

    Na selecao que fez para Race, Language and Culture, Boasprivilegiou os textos da fase madura, na qual suas ideias e suaposicao institucional estavam mais consolidadas. Quatro dos cin-

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    A critica de Boas, no entanto, nao era tanto contra a teor iada evolucao quanta com relacao ao seu metodo. Para ele, antes desupor que os fenornenos aparentemente semelhantes pudessemser atribuidos as mesmas causas - 0 que nao ficava de modoalgum provado -, era preciso perguntar, para cada caso, se elesnao teriam se desenvolvido independentemente, ou se nao te-r iam sido transmitidos de urn povo a outro. Aocontrario do me-todo dedutivo dos evolucionistas, Boas defendia 0metodo da in-ducao empirica, evitando amarrar os fenomenos em uma cami-sa-de-forca teorica. 0 novo "metodo historico', por ele defendi-do em oposicao ao comparativo, exigia que selimitasse a compa-racao a urn territorio restrito e bern definido. A precondicao parao estabelecimento de grandes generalizacoes teoricas e a busca deleis gerais seria, portanto, 0 estudo de culturas tomadas indivi-dualmente e de regioes culturais delimitadas, Apenas apos esselongo e arduo trabalho - ainda todo por ser feito -, e que sepoderia avancar em terreno rnais firme.Boas criticava tambern, nesse texto, 0determinismo geogra-fico, afirmando que 0meio ambiente exercia urn efeito limitadosobre a cultura humana - a grande diversidade cultural existen-te entre povos que vivem sob as mesmas condicoes geograficasreforca essa tese.

    Embora 0 texto seja hoje lido como uma critica dirigida aauto res evolucionistas classicos, como Lewis Henry Morgan(1818-1881) e Edward Burnett Tylor (1832-1917),0 alvo maisproximo e direto era seu contemporaneo norte-americano Da-niel G. Brinton (1837-1899), entao expoente do metodo evolu-cionista nos Estados Unidos. Boas cri ticava indiretamente umaconferencia que Brinton fizera no encontro de 1895 da AAAS , an-tecipando tambem as criticas que este the faria com relacao asideias apresentadas em seu I nd ia nis ch e S ag en v on d er N or d- Pa ci -fi sc he n K us te A m er ik as (Lendas indigenas da costa americana doPacifico Norte), publicado no mesmo ano. Alias, em relacao aTylor,deve-se observar que ele ajudou Boas no inicio da carreira,

    apoiando financeiramente suas pesquisas entre as tribos cana-denses, por intermedio da British Association for the Advance-ment of Science. Boas manteria uma relacao cordial com Tylor,escrevendo-lhe com frequencia evisitando-o em Oxford durantesuas viagens a Europa.

    Os textos 2, 3 e 5- respectivamente, "Os metodos da etno-logia" (1920), "Alguns problemas de metodologia nas cienciassociais" (1930) e "Os objetivos da pesquisa antropologica" (1932)- sao fundamentais para melhor compreender 0metodo defen-dido por Boas para a antropologia. Ele ai repetia as criticas aometodo comparativo dos evolucionistas ja feitas no texto ante-r ior, embora agora ja nao atribuisse qualquer validade a ideia deevolucao culturalem si.

    Alern disso, Boas tambem critica 0metodo "difusionista"Ao contrario do evolucionismo, do qual tambem eram criticos,os auto res difusionistas colocavam todo 0 peso explicativo daquestao da diversidade cultural humana na ideia de difusao. Ouseja, ao inves de supor, como os evolucionistas, que a ocorrenciade elementos culturais semelhantes em duas regioes geografica-mente afastadas seria prova da existencia de urn unico e mesmocaminho evolutivo, os difusionistas pressupunham que deveriater ocorrido a difusao de elementos culturais entre esses mesmoslugares (por cornercio, guerra, viagens ou quaisquer outrosmeios).

    Alguns autores, chamados de "hiperdifusionistas", chega-ram mesmo a defender a existencia de urn unico grande centro-em geral, 0Egito antigo - a partir do qual a civilizacao se teriadifundido para todas as regioes do mundo. Ou seja, por outroscaminhos,o resultado dos difusionistas acabava sendo semelhan-te ao dos evolucionistas - e suas suposicoes tambem nao po-diam ser bern fundamentadas. Embora Boas reconhecesse cabal-mente a importancia geral do fenomeno da difusao, ele limitavasua pertinencia explicativa apenas a areas relativamente proxi-mas, onde sepudesse reconstituir com razoavel seguranca a his-toria das transmissoes culturais.

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    Nesses textos, aparece tambem, de forma mais desenvolvidaa critica de Boas a varies determinismos: geografico, racial, psico-logico (quando transposto dos individuos as culturas) e econo-mico. Nessa cri tica, vai-se definindo a importancia que ele atr i-buia ao conceito de cultura como elemento explicativo da diver-sidade humana. E preciso observar, no entanto, que a principalcontribuicao para a antropologia cultural nao foi como formali-zador de teorias; seu papel foi acima de tudo 0de cri tico de teo-rias entao consagradas, como 0evolucionismo e 0racismo. Comisso, abriu caminho para que outros antropologos - muitos de-les,seus alunos - desenvolvessem as implicacoes decorrentes dapercepcao da relatividade das formas culturais sob as quais oshomens tern vivido.

    A concepcao boasiana de cultura tern como fund amen tourn relativismo de fundo metodologico, baseado no reconheci-mento de que cada ser humano ve 0mundo sob a perspectiva dacultura em que cresceu - em uma expressao que se tornou fa-mosa, ele disse que estamos acorrentados aos "grilhoes da tradi-cao" 0 antropologo deveria procurar sempre relativizar suasproprias nocoes, fruto da posicao contingente da civilizacao oci-dental e de seus valores.

    Mas 0 relativismo cultural nao era, para Boas, apenas urninstrumento metodologico, A percepcao do valor relat ivo de to-das as culturas - a palavra aparece agora no plural, e nao nosingular, como no caso dos evolucionistas - servia tam bern paraajudar a lidar com as dificeis questoes colocadas para a human i-dade pela diversidade cultural. E com isso em mente que pode-mos apreciar plenamente a forca de "Raca e progresso" (1931).

    Essetexto reproduz a conferencia pronunciada por Boas em15 de junho de 1931 como presidente da AAA S . E uma vigorosacrit ica asteorias racistas, que na epoca dominavam nao so 0sen-so comum, como tambem boa parte do ambiente acadernico. Etambern urn exemplo da intensa participacao de Boas na cenapublica norte-americana em relacao as questoes sociais. Boas re-

    cusava qualquer valor cientifico a suposicao de que existem dife-rencas raciais significativas entre os homens. Segundo ele, a va-riacao se daria entre diferentes linhagens familiares de uma mes-rna populacao, e nao entre supostas "racas' , construidas a part irde elementos puramente superficiais, como cor da pele, forma dacabeca ou textura dos cabelos. Haveria uma enorme variabilida-de genetica, mesmo em uma populacao considerada "racialmen-te homogenea", dai 0 absurdo cientifico de se pensar em "racaspuras". Traces ou caracteristicas que habitualmente se associa-yam a uma determinada raca estariam, na verdade, presentes emvarias outras.

    Segundo Boas, para se compreender as diferencas observa-veis entre populacoes de origens diferentes, era importante con-siderar nao suas supostas caracteristicas "raciais" e sim 0efeito deoutras variaveis, como 0meio ambiente e especialmente as con-dicoes sociais em que vivem essas populacoes. Nao sepodem abs-trair essas variaveis da analise antropologica. Era nesse sentidoque ele rejeitava tambem a pretensa validade cientifica dos testesde inteligencia, entao usados para "provar" a inferioridade daspessoas "de cor" em relacao aos brancos.

    Boas terminava a conferencia com urn desafio aberto ao an-tropologo escoces sir Arthur Keith (1866-1955), urn dos cientis-tas britanicos rna is importantes e reconhecidos de seu tempo.Keith fora presidente do Royal Anthropological Institute e da Bri-tish Association for the Advancement of Science. No discurso deposse como reitor da universidade de Aberdeen, em 1930, Keithdesenvolveu a tese de que 0nacionalismo era urn poderoso fatorde diferenciacao na evolucao das racas humanas, interpretandoos preconceitos racial e nacional como inatos. Em urn contextointernacional crescentemente racista e belicista, Boas desafiavaKeith a provar, nao apenas que a antipatia racial seria "implanta-da pela natureza", e nao efeito de causas sociais , como tamberna afirrnacao de que as guerras teriam uma funcao positiva deselecao.

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    Chamo tambern a atencao para a importancia que essasideias t iveram sobre urn dos principais interpretes do Brasil . Noprefacio a prime ira edicao de Casa-grande & senzala (1933), Gil-berto Freyre relembrava Boas, que conheceu quando estudara emColumbia no inicio da decada de 1920: "0Professor Franz Boase a figura de mestre de que me ficou ate hoje maior impressao"(p.lvii). Freyre contava como as ideias de Boas haviam-no ajuda-do a pensar de forma diferente sobre urn dos grandes problemasnacionais, na perspectiva de sua geracao: a questao da mestica-gem." Segue-se urn trecho famoso:

    Essa historia de raca,Racas mas, racas boas-Dizo Boas-

    E coisa que passouCom 0 franciu GobineauPois 0mal do mestico

    Nao esta nisso.

    Vi uma vez ,depo is de mais de tres anos macicos de ausenc ia doBrasil, urn banda de marinhei ros nac iona is - mulatos e cafuzos- descendo nao me lembro se d o sao Paulo ou do Minas [naviosda Marinha de Guerra brasi leira 1 pela neve mole de Brooklyn.Deram-me a impressao de caricaturas de homens. E veio-me alernbranca a frase de urn livro de viajante americano que acabarade ler sobre 0 Brasil: "the fearfully mongrel aspect of much of thepopulation,:8 A miscigenacao resultava naquilo. Faltou-me quemme dissesse entao, como em 1929 Roquette-Pinto aos arianis tasdo Congresso Brasileiro de Eugenia, que nao eram simplesmentemulatos ou cafuzos os individuos que eu julgava representarem 0Brasil, mas cafuzos e mulatos doentes.Foi 0 estudo de Antropologia sob a orientacao do Professor

    Boas que primeiro me revelou 0 negro e 0mulato no seu justovalor - separados dos traces de raca os efeitos do ambiente ouda experiencia cultural. Aprendi a considerar fundamental a dife-renca entre ra

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    22 Antropologia cultural Apresentacao 23

    Os textos aqui reunidos foram originalmente publicados como:"The limitations of the comparative method of anthropology':

    Science, N.S., volA (1896), p.901-8."The methods of ethnology", Amer ic an An th ropo log is t , N.S.,

    vo1.22 (1920), p.311-22."Some problems of methodology in the social sciences", Leonard

    D.White (org.). Th e N ew So ci al S c ie n ce , Chicago, Universityof Chicago Press, 1930, p.84-98."Race and progress", Science, N.S., vo1.74 (1931), p.1-8."The aims of anthropological research", Science, N.S., vo1.76

    (1932), p.605-13.

    7 Sobre a inf luencia de Boas sobre Gilberto Freyre, ver asconsidcracoes deRicardo Benzaquen de Araujo emGuerra epaz: Casa-grande & senzala ea obrade Gilberto Freyre nos anos 30, Rio de Janeiro, Ed. 34,1994.

    8 "0 aspecto terrivelmente cruzado da maioria da populacao," A frase e deCharles Samuel Stewart (1795-1870) , capelao da marinha dos Estados Unidos,em seu livro Brazil and La Plata: The Personal Record ofa Cruise, publicado em1856.

    9 Casa-grande & senzala, 18a ed. , Rio de Jane iro , Jose Olympio, 1977 ,p.lvii -iii.10 "Casa-grande & senzala", poema publicado em 1949(Mafua do malun-

    go), Poesia completa eprosa, Rio de Janeiro, Aguilar, 1974, p.397.

    Notas1 "Significado etnologico das doutrinas esotericas", traduzido e apresenta-

    do por Margarida Maria Moura e publicado emCadernos de Campo: Revista dosAlunos de Pos-graduacao em Antropologia da USP, ano IV, n.4, 1994, p. 131-3.

    2 A producao acadernica brasile ira sobre Boas tambern e pequena. Algu-mas excccoes sao os t raba lhos de Ka tia Maria Pere ira de Alme ida, Por umaantropologia historica: arte primitiva e colerao etnografica em Franz Boas, disser-tacao de mest rado em histo ria, puc -Rio, 1995 , 183p. , e "Por uma sernant ic aprofunda: arte, cultura ehistor ia no pensamento de Franz Boas",Mana 4/2, out.1998, p.7-34; e de Margarida Maria Moura, Celebracao de Boas. 0nascimento daantropologia cultural na obra de Franz Boas, tese de livre-docencia em antropo-logia, uSP, 2000, 291p.

    3 Arte primitiva, Lisboa, Fenda Edicoes, 1996.4 Para informacoes sobre a vida e a obra de Boas, consultei principalmente

    os livros de Douglas Cole, Franz Boas: The Early Years,1858-1906 (Seattle, TheUniversity of Seattle Press, 1999; e de George Stocking, [r., Race, Culture andEvolution, Nova York, The Free Press, 1968, The Ethnographer's Magic, Madison,University of Wisconsin Press, 1992, eA Franz Boas Reader, Chicago e Londres,The University of Chicago Press, 1974.

    5 Cf. Cole, Herbert, "The value of a person lies in his Herzensbildung':Franz Boas'Baffin Island letter-diary, 1883-1884", in George Stocking, Jr. (org.),History ofAnthropology, vol. 1,Observers Observed, Madison, University ofWis-consin Press, 1983, p.33.

    6 Cf. An anthropologist at Work: Writings of Ruth Benedict by MargaretMead, Boston, The Riverside Press, 1959, p.422.

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    As lirnitacoes do rnetodo comparativoda antropologia'

    1896

    A antropologia modern a descobriu 0fato de que a sociedade hu-mana cresceu e sedesenvolveu de tal maneira por toda parte, quesuas formas, opinioes e acoes tern muitos traces fundamentaisem com urn. Essa importante descoberta implica a existencia deleis que governam 0 desenvolvimento da sociedade e que saoaplicaveis tanto a nossa quanta associedades de tempos passadose de terras distantes; que seu conhecimento sera urn meio decompreender as causas que favorecem e retardam a civilizacao; eque, guiados por esse conhecimento, podemos ter a esperanca deorientar nossas acoes de tal modo, que delas advenha 0maiorbeneficio para a humanidade. Desde que essa descoberta foi cla-ramente formulada, a antropologia comecou a receber 0genero-so quinhao de interesse publico que the havia sido negado en-quanta se acreditou que ela nao poderia fazer mais do que regis-trar curiosos costumes e crencas de povos estranhos; ou, na me-lhor das hipoteses, retracar suas relacoes e, dessa forma, elucidaras antigas migracoes das racas e as afinidades entre os povos.Embora os primeiros investigadores tenham concentradosua atencao nesse problema puramente historico, a tendenciaagora mudou completamente; assim, ha ate mesmo antropologosque declaram que tais investigacoes pertencem ao historiador e

    1 Trabalho lido no encontro da American Associa tion for the Advancementof Science em Buffalo, 1896. [N.T.]

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    que os estudos antropologicos devem limitar-se as pesquisas so-bre as leis que governam 0desenvolvimento da sociedade.

    Uma alteracao radical de metodo tern acompanhado essamudanca de pontos de vista. Enquanto, anteriormente, identida-des ou similaridades culturais eram consideradas provas incon-troversas de conexao historica ou mesmo de origem comum, anova escola se recusa a considera-las como tal, interpretando-ascomo result ado do funcionamento uniforme da mente hum ana.omais pronunciado adepto dessavisao em nosso pais e0dr. D.G.Brinton, e, na Alemanha, a maioria dos seguidores de Bastian,que a esse respeito van muito alem do proprio mestre. Outros,embora nao neguem a ocorrencia de conexoes historicas, consi-deram seus resultados e sua importancia teorica insignificantes,quando comparados ao trabalho das leis uniformes que gover-nam a mente humana. Tal e a visao da grande maioria dos antro-pologos vivos.

    Esse moderno ponto de vista esta fundamentado na obser-vacao de que os mesmos fenomenos etnicos ocorrem entre osmais diversos povos, ou, como diz Bastian, na espantosa monoto-nia das ideias fundamentais da humanidade em todo 0planeta.Asnocoes metafisicas do homem podem ser reduzidas a poucostipos que tern distribuicao universal; 0mesmo ocorre com rela-cao as formas de sociedade, leis e invencoes, Alem disso, as ideiasmais complicadas e aparentemente ilogicas e os costumes maiscuriosos e complexos aparecem entre algumas poucas tribos aquie ali , de tal mane ira que fica excluida a suposicao de uma origemhistorica comum. Quando seestuda a cultura de uma tribo qual-quer, podem ser encontrados traces analogos mais ou menosproximos de traces singulares de tal cultura numa grande diver-sidade de povos. Exemplos dessas analogias tern sido amplamen-te colecionados por Tylor, Spencer, Bastian, Andree, Post e muitosoutros, sendo portanto desnecessario dar aqui qualquer provadetalhada desse fato. A ideia de uma vida futura; urn mesmo xa-manismo subjacente; invencoes tais como 0 fogo e 0arco; certas

    caracteristicas elementares de estrutura gramatical - sao ele-mentos que sugerem 0 tipo de fenomenos aos quais me refiro.Dessas observacoes deduz-se que, quando encontramos traces decultura singulares analogos entre povos distantes, pressupoe-se,nao que tenha havido uma fonte historica comurn, mas que elesse originaram independentemente.

    A descoberta dessas ideias universais, contudo, e apenas 0corneco do trabalho do antropologo. A indagacao cientifica pre-cisa responder a duas questoes em relacao a elas: primeiro, quaissao suas origens? Segundo, como elas se afirmaram em variasculturas?

    A segunda questao e a mais facil de responder. As ideias naoexistem de forma identica por toda parte: elas variam. Tem-seacumulado material suficiente para mostrar que as causas dessasvariacoes sao tanto externas, isto e, baseadas no ambiente - to-man do 0termo ambiente em seu sentido mais amplo -, quantainternas, isto e,fundadas sobre condicoes psicologicas. A influen-cia dos fatores externos e intern os sobre ideias elementares cor-porifica urn grupo de leis que governa 0desenvolvimento da cul-tura. Portanto, nossos esforcos precisam ser direcionados no sen-tido de mostrar como tais fenomenos modificam essas ideias ele-mentares.oprimeiro metodo que seoferece, e que tern sido geralmen-te adotado pelos antropologos modernos, e isolar e classif icarcausas, agrupando as variantes de certos fenornenos etnologicosde acordo com ascondicoes extern assob as quais vivem ospovosentre os quais elas sao encontradas, ou de acordo com causasinternas que influenciam as mentes desses povos; ou, inversa-mente, agrupando essas variantes de acordo com suas similarida-des. Podem-se encontrar, assim, condicoes correlatas de vida.

    Por esse metoda comecramos a reconhecer, mesmo que ain-da com conhecimento imperfeito dos fatos, que causas podem teroperado na formacao da cultura humana. Friedrich Ratzel e W.J.McGee investigaram a influencia do ambiente geografico sobre

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    28 As lirnitacoes do metodo comparativo 29ntropologia cuItural

    uma base mais ampla de fatos do que Ritter e Guyot foram capa-zes de fazer em seu tempo. Os sociologos tern feito importantesestudos sobre os efeitos da densidade populacional e de outrascausas sociais simples. Desse modo, a influencia de fatores exter-nos sobre 0desenvolvimento da sociedade esta setornando maisclara.

    Da mesma maneira, tambem estao sendo estudados os efei-tos dos fatores psiquicos. Stoll tentou isolar 0fenomeno da suges-tao e do hipnotismo e estudar os efeitos de sua presen

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    desenvolvimentos culturais tao frequentemente levam aos mes-mos resultados? E preciso compreender com clareza, portanto,que, quando compara fenomenos culturais similares de variaspartes do mundo, a fim de descobrir a historia uniforme de seudesenvolvimento, a pesquisa antropologica supoe que 0mesmofenomeno etnologico tenha-se desenvolvido em todos os lugaresda mesma maneira. Aqui reside a falha no argumento do novometodo, pois essa prova nao pode ser dada. Ate 0 exame maissuperficial mostra que os mesmos fenomenos podem se desen-volver por uma multiplicidade de caminhos.

    Darei alguns exemplos. Tribos primitivas sao quase univer-salmente divididas em clas que possuem totens. Nao pode haverduvida de que essa forma de organizacao social surgiu repetidasvezes de modo independente. Certamente justifica-se a conclu-sao de que as condicoes psiquicas do homem favorecem a exis-tencia de uma organizacao toternica da sociedade, mas dai naodecorre que toda sociedade totemica tenha se desenvolvido emtodos os lugares da mesma maneira. 0 dr. Washington Matthewsacredita que os totens dos Navajo ten ham se originado pela asso-ciacao de clas independentes. 0 capitao Bourke presume queocorrencias similares deram origem aos clas dos Apache; e 0dr.Fewkes chegou a mesma conclusao com relacao a algumas tribosPueblo. Por outro lado, temos prova de que os clas podem seoriginar por divisao. Eu mostrei que tais eventos ocorreram entreos indios da costa norte do Pacifico. Associacao de pequenas tri-bos, por urn lado, e desintegracao de tribos que aumentaram detamanho, por outro, tern levado a resultados que em tudo pare-cern identicos.

    Para dar outro exemplo: investigacoes recentes sobre arteprimitiva tern mostrado que os desenhos geometricos origin a-ram-se algumas vezes de formas naturalistas que foram gradual-mente convencionalizadas, outras vezes, a partir de motivos tee-nicos, e ainda em outros casos, cram geometricos desde a origem,ou que derivaram de simbolos. Asmesmas formas sedesenvolve-

    ram a partir de todas essas fontes. Com base em desenhos repre-sentando diversos objetos surgiram, no curso do tempo, gregas,meandros, cruzes etc. Portanto, a ocorrencia frequente dessasformas nao prova nem uma origem comum, nem que elas te-nham sempre sedesenvolvido de acordo com asmesmas leis psi-quicas. Pelo contrario, 0mesmo resultado pode ter sido alcanca-do por quatro linhas diferentes de desenvolvimento e de urn nu-mero infinito de pontos de partida.

    Mais urn exemplo pode ser oportuno. 0 uso de mascaras eencontrado num grande numero de povos. A origem do costumenao e absolutamente clara em todos os casos, mas podem-se dis-tinguir com facilidade algumas formas tipicas de uso. As masca-ras sao usadas para enganar os espiri tos quanto a identidade da-quele que as usa. 0 espir ito da doenca que pretende atacar a pes-soa nao a reconhece quando ela esta de mascara, e esta serve,assim, como protecao. Em outros casos a mascara representa urnespirito personificado pelo mascarado, que, dessa forma, afugen-ta outros espiritos hostis. Outras mascaras, ainda, sao comemo-rativas. 0 mascarado encarna uma pessoa morta cuja memoriadeve ser relembrada. Mascaras tambem sao empregadas em re-presentacoes teatrais para ilustrar incidentes mitologicos.'

    Esses poucos dados bastam para mostrar que 0mesmo fe-nome no etnico pode se desenvolver a partir de diferentes fontes.Quanto mais simples 0 fato observado, mais provavel e que elepossa ter-se desenvolvido de uma fonte aqui e de outra ali .

    Desse modo, reconhecemos que a suposicao fundamentaltao freqtientemente formulada pelos antropologos modernosnao pode ser aceita como verdade em todos oscasos. Nao se podedizer que a ocorrencia do mesmo fenomeno sempre se deve asmesmas causas, nem que elaprove que a mente humana obedeceasmesmas leisem todos os lugares. Temos que exigir que ascau-

    2 Ver Richard Andree. Ethnogr aphi s ch e Pa r a ll e le n und Ve r g le i ch e .Neue Folge(Leipzig, 1889), p.107ss.

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    sas a partir das quais 0fenomeno se desenvolveu sejam investiga-das, e que as comparacoes se restr injam aqueles fenomenos quese provem ser efeitos das mesmas causas. Devemos insistir paraque essa investigacao seja preliminar a todos os estudos compara-tivos mais amplos. Nas pesquisas sobre sociedades tribais, aque-las que se desenvolveram por associacao precisam ser tratadasseparadamente das que se desenvolveram por desintegracao. De-senhos geornetricos originados de representacoes convencionali-zadas de objetos naturais precisam ser tratados a parte com rela-cao aqueles que se originaram de motivos tecnicos. Em suma,antes de setecerem comparacoes mais amplas, e preciso compro-var a comparabilidade do material.

    Os estudos comparativos a que me refiro tentam explicarcostumes e ideias de notavel similaridade encontradas aqui e ali.Mas elestambem tern 0plano mais ambicioso de descobrir asleise a historia da evolucao da sociedade hum ana. 0 fato de quemuitos aspectos fundamentais da cultura sejam universais - ouque pelo menos ocorram em muitos lugares isolados - quandointerpretados segundo a suposicao de que os mesmos aspectosdevem ter se desenvolvido sempre a part ir das mesmas causas,leva a conclusao de que existe urn grande sistema pelo qual ahumanidade se desenvolveu em todos os lugares, e que todas asvariacoes observadas nao passam de detalhes menores dessagrande evolucao uniforme. E claro que essa teoria tern como baselogica a suposicao de que os mesmos fenomenos devem-se sem-pre as mesmas causas. Para dar urn exemplo: ha muitos tipos deestruturas familiares. Pode-se provar que familias patrilinearestern freqiientemente se desenvolvido a partir de familias matrili-neares. Por conseguinte, afirma-se que todas as familias patrili-neares desenvolveram-se de familias matrilineares. Senao supu-sermos que os mesmos fenomenos sedesenvolveram em todos oslugares sempre a partir das mesmas causas, poderemos igual-mente concluir que as familias patrilineares, em alguns casos, de-rivaram de instituicoes matri lineares; e, em outros casos, de ou-

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    t ros caminhos. Para dar mais urn exemplo: muitas concepcoessobre a vida futura evidentemente se desenvolveram de sonhos ealucinacoes, Por conseguinte, afirma-se que todas asnocoes dessetipo tiveram a mesma origem. Isso so seria verdade se nenhumaoutra causa pudesse ter levado as mesmas ideias.

    Vimos que os fatos nao favoreceram absolutamente a supo-sicao da qual aqui falamos; muito pelo contrario, eles apontam nadirecao oposta. Dessa mane ira, devemos tambem considerar quetodas as engenhosas tentativas de construcao de urn grande siste-ma da evolucao da sociedade tern valor muito duvidoso, a menosque seprove tambem que osmesmos fenomenos tiveram semprea mesma origem. Ate que isso seja feito, 0pressuposto mais acei-ravel e que 0desenvolvimento historico pode ter seguido cursosvariados.

    E born reafirmar, nesse momento, urn dos objetivos princi-pais da pesquisa antropologica. Concordamos que existam certasleis governando 0desenvolvimento da cultura humana enos em-penhamos para descobri-las. 0 objetivo de nossa investigacao edescobrir os processos pelos quais certos estagios culturais se de-senvolveram. Os costumes e as crencas, em simesmos, nao cons-tituem a finalidade ultima da pesquisa. Queremos saber as razoespelas quais tais costumes e crencas existem - em outras palavras,desejamos descobrir a historia de seu desenvolvimento. 0 meto-do atualmente mais aplicado em investigacoes dessa naturezacompara asvariacoes sob as quais os costumes e ascrencas ocor-rem e se esforca por encontrar a causa psicologica comum subja-cente a todos eles. Afirmei que esse metodo esta sujeito a umaobjecao fundamental.

    Temos outro metodo que em muitos aspectos e bern maisseguro. 0 estudo detalhado de costumes em sua relacao com acultura total da tribo que os pratica, em conexao com uma inves-tigacao de sua distribuicao geografica entre tribos vizinhas, pro-picia-nos quase sempre urn meio de determinar com considera-vel precisao as causas historicas que levaram it formacao dos cos-

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    tumes em questao e os processos psicologicos que atuaram emseu desenvolvimento. Os resultados das investigacoes conduzidaspor esse rnetodo podem ser triplices. Eles podem revelar ascon-dicoes ambientais que criaram ou modificaram os elementos cul-turais; esclarecer fatores psicologicos que atuaram na configura-cao da cultura; ou nos mostrar os efeitos que as conexoes histori-cas tiveram sobre 0desenvolvimento da cultura.

    Nesse metodo, temos urn meio de reconstruir a historia dodesenvolvimento das ideias com uma precisao muito maior doque aquela permitida pelas generalizacoes do metodo comparati-vo. Este precisa sempre proceder a partir de urn modo hipoteticode desenvolvimento, cuja probabilidade pode ser avaliada, commaior ou menor precisao, por meio de dados observados. Mas ateagora ainda nao vi qualquer tentativa mais ampla de provar acorrecao de uma teoria testando-a por desenvolvimentos com cu-jas historias estamos familiarizados. Amarrar fenomenos na cami-sa-de-forca de uma teor ia e 0oposto do processo indutivo, peloqual se podem derivar as relacoes reais de fenomenos definidos.

    Este ultimo e 0muito ridicularizado metodo historico. De-certo sua maneira de proceder nao e rna is ados primeiros tem-pos' quando similaridades superficiais entre culturas eram consi-deradas provas de relacionamento entre elas, embora 0metodoreconheca devidamente os resultados obtidos pelos estudos com-parativos. Sua aplicacao se baseia, em primeiro lugar, num terri-torio geografico pequeno e bern definido, e suas comparacoesnao sao estendidas alem dos limites da area cultural que forma abase de estudo. Apenas quando seobtiverem resultados definidoscom relacao a essa area, sera ltcito estender 0horizonte alem des-ses limites. No entanto, e preciso tomar 0maximo de cuidadopara nao proceder muito apressadamente, pois do contrario aproposicao fundamental que formulei anteriormente poderia serignorada - isto e, que, quando encontramos analogia de tracessingulares de cultura entre povos distantes, nao devemos suporque tenha havido uma causa historica comum, mas que eles te-

    nham seoriginado independentemente. Desse modo, a investiga-yao precisa procurar sempre a continuidade de distribuicaocomo uma das condicoes essenciais para provar a conexao histo-rica, e a suposicao de elos perdidos deve ser aplicada 0mais par-cimoniosamente possivel.

    Essa nitida distincao entre 0novo e 0antigo metodo histo-rico tern sido frequentemente ignorada pelos defensores apaixo-nados do metodo comparativo. Eles nao consideram as diferen-yas entre 0 uso indiscriminado de similaridades culturais paraprovar uma conexao historic a e 0estudo lento, cuidadoso e deta-lhado de fenornenos locais. Ja nao acreditamos mais que seme-lhancas superficiais entre culturas da America Central e da AsiaOriental sao prova satisfatoria e suficiente de uma conexao histo-rica. Por outro lado, nenhum observador imparcial negara que hafortes razoes para se acreditar que urn numero limitado de ele-mentos culturais encontrados no Alasca e na Siberia tern umaorigem comum. Assimilaridades de invencoes, costumes e cren-cas, somadas a continuidade de sua distribuicao numa area limi-tada, sao provas satisfatorias de que essa opiniao esta correta. Masnao e possivel estender essa area com seguranca alern dos limitesdo rio Columbia, na America do Norte, e do norte do Iapao, naAsia. Esse metodo de pesquisa antropologica e representado emnosso pais por EW. Putnam e Otis T. Mason; na Inglaterra, porE.B.Tylor; na Alemanha, por Friedrich Ratzel e seus seguidores.

    Parece necessario dizer aqui algo em relacao a uma objecaoa meus argumentos, que sera levantada por pesquisadores quedefendem a similaridade de ambiente geografico como causa su-ficiente para a similaridade cultural - 0 que valeria dizer, porexemplo, que as condicoes geograficas das planicies da bacia doMississipi tornam inevitavel 0desenvolvimento de uma determi-nada cultura. Horatio Hale chega mesmo a ponto de acreditarque as similaridades de formas de linguagem podem ser atribui-das a causas ambientais. 0 meio ambiente exerce urn efeito l imi-tado sobre a cultura human a, mas nao vejo fatos que possam

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    sustentar a visao de que ele e 0modelador primario da cultura.Vma rapida revisao de povos e tribos do nosso planeta mostraque os povos rna is diversos em termos de cultura e linguagemvivem sob as mesmas condicoes geograficas, como se pode com-provar na etnografia da Africa Oriental ou da Nova Guine. Emambas as regioes encontra-se uma grande diversidade de costu-mes em areas pequenas.

    Muito mais importante e que nao ha qualquer dado obser-vado em apoio a essa hipotese que nao seja muito melhor expli-cado pelos fatos bern conhecidos da difusao cultural , pois tanto aarqueologia quanta a etnografia nos ensinam que 0intercambioentre tribos vizinhas sempre existiu e estendeu-se sobre areasimensas. No Velho Mundo, produtos do Baltico chegaram aoMe-diterraneo, e artesanato do Mediterraneo Oriental atingiu a Sue-cia. Na America do Norte, conchas marinhas foram encontradasnas partes mais interiores do continente, e obsidianas do oesteforam levadas para Ohio. Casamentos intertribais, guerra, escra-vidao e comercio tern sido algumas das muitas fontes de constan-te introducao de elementos culturais estrangeiros, de maneiraque uma assimilacao cultural deve ter ocorrido sobre areas conti-nuas. Desse modo, parece-me que, onde nao sepode comprovaruma influencia imediata do meio ambiente sobre tribos vizinhas,a suposicao deve ser sempre em favor da conexao historica entreelas. Houve urn tempo de isolamento durante 0qual os principaistraces de diversas culturas se desenvolveram em conformidadecom a cultura anterior e 0meio ambiente das tribos. Mas os esta-gios culturais que representam esse periodo foram encobertospor tantas coisas novas que se devem ao contato com tribos es-trangeiras, que elesnao podem ser descobertos sem 0mais minu-cioso isolamento de tais elementos alienigenas.

    Os resultados imediatos do metodo historico sao, assim,historias das culturas de diversas tribos tomadas como objeto deestudo. Concordo plenamente com os antropologos que reivin-dicam nao ser este 0proposito ultimo de nossa ciencia, porque as

    leis gerais, embora implicit as em tal descricao, nao podem serclaramente formuladas, nem seu valor relativo apreciado, semuma comparacao completa dos modos pelos quais elas setornammanifestas em diferentes culturas. Mas insisto em que a aplicacaodesse metodo e a condicao indispensavel de urn progresso solido.o problema psicologico esta contido nos resultados da investiga-yao histori ca.Quando esclarecemos a historia de uma unica cul-tura e compreendemos os efeitos do meio e das condicoes psico-logicas que nela se refletem, damos urn passo adiante, pois pode-mos entao investigar 0quanto essas ou outras causas contribui-ram para 0desenvolvimento de outras culturas. Assim, quandocomparamos historias de desenvolvimento, podemos descobrirleis gerais. Esse metodo e muito mais seguro do que 0comparati-vo, tal como elee usualmente praticado, porque, em lugar de umahipotese sobre 0modo de desenvolvimento, a historia real formaa base de nossas deducoes.

    A investigacao historica deve ser 0 teste critico demandadopela ciencia antes que ela admit a os fatos como evidencias, Acomparabilidade do material coletado precisa ser testada por essemeio, e cum pre exigir a uniformidade dos processos como provade comparabilidade. Alern disso, quando sepode comprovar queha uma conexao historica entre doisfenomenos, estes nao devemser aceitos como evidencias independentes.

    Em alguns poucos casos, os resultados imediatos desse me-todo sao de escopo tao amplo que equivalem aos melhores resul-tados obtidos pelos estudos comparativos. Alguns fenomenostern uma distribuicao tao extensa, que a descoberta de sua ocor-rencia em grandes areas continuas prova de imediato que certosaspectos da cultura dessas areas espalharam-se a part ir de umamesma fonte. Assim foram esclarecidos vastos periodos da pre-historia da humanidade. Quando Edward S.Morse demonstrouque certas maneiras de atirar flechas sao peculiares a continentesinteiros, tornou-se imediatamente claro que a pratica comum en-contrada numa vasta area certamente deve ter t ido uma origem

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    comurn. Quando os polinesios empregam urn metodo de fazerfogo que consiste em esfregar urn graveto num suleo, enquantoquase todos os outros povos usam a broca de fogo, isso mostraque suas tecnicas de producao do fogo tern uma unica origem.Quando sabemos que 0ordalio e encontrado em certas formaspeculiares por toda a Africa, enquanto nas partes do mundo ha-bitado distantes da Africa nao e encontrado em absoluto, ou ape-nas em formas rudimentares, isso mostra que a ideia, tal como epraticada na Africa, teve uma origem unica,

    A grande e importante funcao do metodo historico da an-tropologia parece-nos residir, portanto, em sua habil idade paradescobrir os processos que, em casos definidos, levam ao desen-volvimento de certos costumes. Se a antropologia deseja estabe-lecer as leis que governam 0desenvolvimento da cultura, ela naopode se limitar a comparar apenas os resultados desse desenvol-vimento; sempre que possivel, deve comparar os processos dedesenvolvimento, que podem ser descobertos por interrnedio deestudos das culturas de pequenas areas geograficas.

    Vimos assim que 0metodo comparativo somente pode ter aesperanya de atingir os efeitos pelos quais tern se empenhadoquando basear suas investigacoes nos resultados historicos depesquisas dedicadas a esclarecer as complexas relacoes de cadacultura individual . 0 metodo comparativo e 0metodo historico,seposso usar esses termos, tern lutado pela supremacia ha muitotempo, mas podemos esperar que cada urn deles logo encontresua funcao e seu lugar apropriados. 0 metodo historico atingiuuma base mais solida ao abandonar 0principio enganoso de su-por conexoes onde quer que se encontrem similaridades cultu-rais. 0 metoda comparativo, nao obstante tudo 0 que se vernescrevendo e dizendo em seu louvor, tern sido notavelmente este-ril com relacao a resultados definitivos. Acredito que ele nao pro-duzira frutos enquanto nao renunciarmos ao vao proposito deconstruir uma historia sistematica uniforme da evolucao da cul-

    tura, e enquanto nao comecarmos a fazer nossas comparacoessobre bases rnaisamp las e solidas, que me aventurei a esbocar, Ateagora temos nos divert ido demais com devaneios mais ou menosengenhosos. 0 trabalho solido ainda esta todo a nossa frente.

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    Os rnetodos da etnologia1920

    I!

    Durante os ultimos dez anos os metodos de pesquisa sobre 0desenvolvimento historico da civilizacao tern passado por mu-dancas notaveis, Durante a segunda metade do seculo passado, 0pensamento evolucionista exerceu urn dominio quase absoluto, epesquisadores como Spencer, Morgan, Tylor e Lubbock, paramencionar apenas alguns, estiveram encantados pela ideia deuma evolucao geral e uniforme da cultura da qual participariatodo 0genero humano. Desenvolvimentos rnais recentes em par-te remontam a influencia de Ratzel, que, em sua formacao degeografo, foi marcado pela importancia da difusao e das migra-coes, Estudou-se 0problema da difusao em detalhe, particular-mente na America do Norte, mas 0metodo foi aplicado numsentido muito mais vasto par Roy e Graebner, e finalmente uti li-zado de maneira ainda mais ampla por Ell iot Smith e Rivers. Des-semodo, atualmente, ao menos entre certos grupos de pesquisa-dores na Inglaterra e na Alemanha, a pesquisa etnologica baseia-se mais nos conceitos de migracao e disserninacao do que no deevolucao,

    Urn estudo critico dessas duas linhas de investigacao mostraque cada uma delas apoia-se na aplicacao de uma hipotese funda-mental. 0 ponto devista evolucionista pressupoe que 0curso dasmudancas historicas na vida cultural da humanidade segue leisdefinidas, aplicaveis em toda parte, 0que faria com que osdesen-volvimentos culturais, em suas linhas basicas, fossem os mesmos

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    entre todas as racas e povos. Essa ideia e claramente expressa porTylor nas paginas introdutorias de seu classico Primitive Culture.Seconcordarmos que sedeve provar, antes de aceita-Ia, a hipotesede uma evolucao uniforme, toda a estrutura perde sua funda-mentacao. E verdade que ha indicacoes de paralelismo de desen-volvimento em diferentes partes do mundo, e que costumes simi-lares sao encontrados nas regioes mais diferentes e distantes. Aocorrencia dessas similaridades - tao irregularmente distribui-das, que nao podem ser prontamente explicadas com base nadifusao - e urn dos alicerces da hipotese evolucionista. Foi tam-bern urn dos pilares do tratamento psicologizante que Bastiandeu aos fen6menos culturais. Por outro lado, podemos reconhe-cer que a hipotese implica a ideia de que nossa moderna civil iza-cao ocidental europeia representa 0 desenvolvimento culturalmais elevado, em direcao ao qual tenderiam todos osoutros t iposculturais mais primitivos. Desse modo, construimos retrospecti-vamente urn desenvolvimento ortogenetico em direcao it nossapropria civilizacao moderna. Mas se admitimos que e possivelexistirem diversos tipos definitivos e coexistentes de civilizacao,fica evidente que nao se pode manter a hipotese de uma unicalinha geral de desenvolvimento.

    A tendencia moderna de negar a existencia de urn esquemaevolucionario geral que representaria a historia do desenvolvi-mento cultural em todo 0mundo seopoe a essas proposicoes. Ahipotese de que existem causas internas que dao origem a desen-volvimentos similares em partes remotas do globo e rejeitada, eem seu lugar prefere-se supor que a identidade de desenvolvi-mento em duas partes diferentes do planeta sempre deve ser atr i-buida itmigracao e it difusao. Para isso, seria necessario haver urncontato historico para areas enormemente vastas. Essa teo ria re-quer urn alto grau de estabilidade de traces culturais, tal comosao aparentemente observados em varias tribos primitivas. Alemdisso, ela baseia-se na suposta coexistencia de varies traces cultu-rais dist intos e mutua mente independentes que reaparecem nas

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    mesmas cornbinacoes em partes distantes do mundo. Nesse sen-t ido, a modern a investigacao retoma de outra maneira a teoria deGerland sobre a persistencia de varies traces culturais que foramdesenvolvidos num centro e sao levados pelo homem, em suasmigracoes, de continente para continente.

    Parece-me que, se os fundamentos hipotet icos dessas duasformas opostas de pesquisa etnologica sao, em linhas gerais, for-muladas do modo que tentei aqui esbocar, torna-se claro desdelogo que a validade dessas suposicoes nao vern sendo demonstra-da, e que uma e outra tern sido selecionadas de modo arbitrario,com 0proposito de se obter urn quadro consistente do desenvol-vimento cultural . Esses metodos sao essencialmente formas declassificacao dos fen6menos estat icos da cultura segundo doisprincipios distintos; interpretam-se essas classificacoes como seelas fossem dot adas de significacao historica, sem se fazer, contu-do, qualquer tentat iva de provar que essa interpretacao e justif i-cada. Para dar urn exemplo: observamos que na maior parte domundo ha semelhancas entre motivos decorativos que podem serfigurativos ou mais ou menos geometricos, Segundo 0ponto devista evolucionista, isso e explicado por meio de uma ordenacaodos motivos decorativos segundo a qual os mais figurativos estaocolocados no inicio, enquanto os outros se dispoem de modo ademonstrar uma transicao gradual dos figurativos para os geo-metricos, Essa ordem e entao interpretada como se os motivosgeometricos se originassem dos figurativos, que, por sua vez, te-riam gradualmente se degenerado. Tal metodo e seguido, porexemplo, por Putnam, Stolpe, Balfour, Haddon, Verworn e, emseus primeiros escri tos, por Von den Stein en. Embora eu nao ne-gue que esse desenvolvimento possa ter ocorrido, seria ternerariogeneralizar e alegar que em todos os casos a classificacao feitasegundo 0mesmo principio representa urn desenvolvimento his-torico. A ordem tambem poderia ser invertida e comecar de urnmotivo geometrico simples que, pela adicao de novos traces, se

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    tivesse desenvolvido num motivo figurativo; e poderiamos igual-mente alegar que tal ordem representa uma sequencia historica.Ambas as possibilidades foram consideradas por Holmes ja em1885. Nenhuma delas pode ser aceita sem comprovacao historicaconcreta.

    A atitude oposta, a de explicar a origem por meio da difusao,e i lustrada pela tentat iva de Heinrich Schurtz em conectar as ar-tes decorativas do Noroeste norte-americano com as da Melane-sia. 0 simples fato de que, nessas areas, ocorram elementos quepodem ser interpretados como olhos, induzem-no a supor queambas tern uma origem comum, sem admitir a possibilidade deque, nas duas, 0padrao - cada urn dos quais exibindo caracte-r isticas bastante distintas - possa ter sedesenvolvido a partir defontes independentes. Nessa tentativa, Schurtz seguiu Ratzel, queja havia buscado estabelecer conexoes entre a Melanesia e 0No-roeste da America do Norte com base em outras caracterist icasculturais.

    Embora as pesquisas etnograficas apoiadas nessas duas hi-poteses fundamentais pareyam caracterizar a tendencia geral dopensamento europeu, urn metodo diverso vern sendo seguidoatualmente pela maioria dos antropologos norte-americanos. Adiferenca entre os do is caminhos de estudo do homem talvezpossa ser mais bern resumida na afirrnacao de que os pesquisado-res norte-americanos estao sobretudo interessados nos fenome-nos dinamicos da mudanca cultural; que tentam elucidar a histo-ria da cultura pela aplicacao dos resultados de suas investigacoes:e que relegam a solucao da questao final- sobre a importanciarelat iva do paralel ismo do desenvolvimento cultural em areasdistantes em oposicao a difusao em escala mundial e a estabilida-de de tracos culturais por longos periodos de tempo - a umaepoca futura, em que as condicoes reais de mudanca cultural se-jam mais bern conhecidas. Os metodos etnologicos norte-ameri-canos sao analogos aos da arqueologia europeia, em particular aescandinava, e aos das pesquisas sobre a pre-historia no Mediter-ranee oriental.

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    Para urn observador distante, pode parecer que os pesquisa-dores norte-americanos estao engajados numa massa de pesqui-sas detalhadas, mas nao se dedicam a solucao dos problemas de-finitivos de uma historia filosofica da civilizacao humana. Pensoque tal interpretacao da atitude desses estudiosos seria injusta,pois as questoes definitivas nos sao tao caras quanta aos outrospesquisadores. Apenas nao temos a esperanca de estarmos aptosa resolver urn problema historico complexo com uma formula.

    Antes de mais nada, todo 0problema da historia cultural seapresenta para nos como urn problema historico. Para entender ahistoria e preciso conhecer, nao apenas como as coisas sao, mascomo elas vieram a ser assim. No dominio da etnologia - emque, para a maior parte do mundo, nenhum fato historico estadisponivel, exceto aqueles que podem ser revelados pelo estudoarqueologico -, todas asevidencias de mudanca podem ser infe-ridas apenas por metodos indiretos. Suas caracteristicas saoexemplificadas pelas pesquisas dos estudiosos da filologia com-parativa.O metodo baseia-se na cornparacao de fenornenos esta-ticos, combinada com 0 estudo de sua distribuicao. 0 que podeser obtido com a utilizacao desse metodo esta bern ilustrado pelasinvestigacoes de Lowie sobre as sociedades guerreiras dos indiosdas planicies, ou pela investigacao da moderna mitologia norte-americana. Sem duvida e verdade que nunca podemos esperarobter dados incontestaveis com relacao a sequencia cronologicados eventos; entretanto, podem-se determinar alguns esbocos ge-rais amplos com urn alto grau de probabilidade e mesmo de cer-teza.

    Tao logo esses metodos sao aplicados, a sociedade primitivaperde a aparencia de absoluta estabilidade transmitida ao pesqui-sador que ve determin ado povo apenas num dado momento. To-das as formas culturais aparecem, com maior frequencia, numestado de fluxo constante e sujeitas a modificacoes fundamentais.

    E compreensivel que, em nossas investigacoes, 0problemada disserninacao assuma uma posicao proeminente. E muito

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    mais facil provar a disseminacao do que acompanhar os desen-volvimentos produzidos por forcas interiores, e os dados paraesse estudo sao obtidos com maior dificuldade. Contudo, elespodem ser observados em qualquer fenomeno de aculturacao noqual elementos estrangeiros sao remodelados segundo os padroesque prevalecem em seu novo ambiente; podem tambem ser en-contrados nos desenvolvimentos locais peculiares de ideias e ati-vidades amplamente disseminadas. Nao se tern levado a cabocom firmeza 0estudo do desenvolvimento interno, nao porquenao seja importante de urn ponto de vista teorico, mas principal-mente pelas dificuldades metodologicas a ele inerentes. Talvezdeva-se reconhecer que, em anos recentes, esseproblema atraiu aatencao, como fica manifesto nas investigacoes sobre os proces-sos de aculturacao e de interdependencia de atividades culturaisque estao atraindo a atencao de muitos investigadores.

    A finalidade ultima dessas pesquisas enfatiza a importanciade urn aspecto comum a todos os fenomenos historicos. Enquan-to nas ciencias natura is estamos acostumados a considerar urndado numero de causas e estudar seus efeitos, nos eventos histo-ricos somos compelidos a considerar cada fenomeno, nao apenascomo efeito, mas tambern como causa. Isso vale ate mesmo naaplicacao particular das leis da natureza fisica - como, porexemplo, no estudo da astronomia, em que a posicao de certoscorpos celestes num dado momenta pode ser considerada efeitoda gravitacao, enquanto, e ao mesmo tempo, seu arranjo particu-lar no espa

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    Urn exemplo claro do contraste entre osdoispontos devistae fornecido pela comparacao entre 0tratamento dado a civiliza-cao Zuni por Frank Hamilton Cushing, par urn lado, e por pes-quisadores modernos, particularmente Elsie Clews Parsons, Les-l ie Spier , Ruth Benedict e Ruth Bunzel , por outro. Cushing acre-ditava ser possivel explicar a cultura Zuni inteiramente a partir dareacao da mente Zuni a seu ambiente geografico, e que a totalida-de da cultura Zuni pudesse ser explicada como urn desenvolvi-mento necessario da posicao que esse povo ocupava. Os profun-dos insights de Cushing sobre a mente indigena e seu conheci-mento completo da vida mais intima desse povo conferiramgrande plausibilidade a suas interpretacoes. Por outro lado, osestudos da dra. Parsons provaram de maneira conclusiva a pro-funda influencia que asideias dos espanh6is t iveram sobre a cul-tura Zuni e,junto com as investigacoes do professor Kroeber, nosdao urn dos melhores exemplos de aculturacao de que temos no-ticia. A explicacao psicol6gica e inteiramente equivocada, naoobstante sua plausibilidade, e 0estudo hist6rico nos mostra urnquadro inteiramente diferente, no qual a condicao atual foi oca-sionada por uma combinacao (mica de antigos elementos (queem si mesmos sao sem duvida complexos) e influencias euro-peias.

    Estudos da dinamica da vida primitiva tambem demons-tram que uma suposicao de estabilidade de longa duracao, talcomo a afirmada por Elliot Smith, nao tern qualquer fundamentonos fatos. Onde quer que as condicoes primitivas tenham sidoestudadas em detalhe, pode-se provar que elas estao num estadode fluxo, e parece que ha urn estri to paralel ismo entre a hist6riada linguagem e a hist6ria do desenvolvimento cultural geral . Pe-dodos de estabilidade sao seguidos por periodos de rapida mu-danca. E altamente improvavel que setenha preservado inaltera-do por milhares de anos qualquer costume de urn povo primitivo.Alem disso, os fen6menos de aculturacao provam que sao bas-tante raras as transferencias de costumes de uma regiao para ou-

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    tra, sem que haja mudancas concomitantes produzidas pela acul-turacao. Portanto, e bern improvavel que antigos costumes medi-terraneos possam ser encontrados hoje em dia praticamente inal-terados em diferentes partes do planeta, como exige a teor ia deElliot Smith.

    Embora, em geral, 0carater hist6rico singular do desenvol-vimento cultural em cada area persista como urn elemento dedestaque na hist6ria do desenvolvimento cultural , podemos aomesmo tempo reconhecer que ocorrem certos paralelismos tipi-cos. No entanto, nao estamos muito inclinados a procurar essassimilaridades em' costumes detalhados, mas sim a buscar certascondicoes dinamicas que devem ser atr ibuidas a causas sociais epsicol6gicas passiveis de produzir resultados similares. 0 aspectoda relacao entre suprimento de alimentos e populacao, a que mereferi anteriormente, pode servir como exemplo. Outro tipo efornecido por aqueles casos em que urn dado problema enfrenta-do pelo homem pode ser resolvido apenas por urn numero limi-tado de metodos. Quando, por exemplo, descobrimos que 0casa-mento e uma instituicao universal, podemos reconhecer que ele epossivel apenas entre alguns homens e algumas mulheres, algunshomens e uma mulher, algumas mulheres e urn homem ou urnhomem e uma mulher. Na realidade, essas formas sao encontra-das por toda parte, e, desse modo, nao surpreende que formasanalogas possam ter sido adotadas de modo total mente inde-pendente em diferentes partes do mundo. Tambem nao parecesurpreendente - consideradas tanto as condicoes econ6micasgerais da humanidade quanto ascaracteristicas do instinto sexualnos animais superiores - que sejam raros oscasamentos grupaise poliandricos, falando em termos comparativos. Ponderacoes si-milares tambem podem ser feitas em relacao as opinioes filos6fi-cas sustentadas pela humanidade. Em suma, seprocuramos leis,elas estao relacionadas aos efeitos de condicoes fisiol6gicas, psi-col6gicas e sociais, e nao a sequencias de realizacoes culturais.

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    Em alguns casos, uma sequencia regular dessas realizacoespode acompanhar 0desenvolvimento do estagio psicologico ousocial. Isso e ilustrado pela sucessao de inventos industriais noVelho Mundo e na America do Norte, que considero in de-pendentes. Urn periodo de coleta de alimentos e do uso da pedrafoi seguido pela invencao da agricultura, da ceramica e,finalmen-te, do uso de metais. Obviamente essa ordem se baseia na cres-cente quantidade de tempo dada pela humanidade para 0uso deprodutos naturais, instrumentos e utensilios, e para as variacoesque com ele se desenvolveram. Embora nesse caso parec;a existirparalelismo nos dois continentes, seria vao ten tar levar a cabouma ordenacao detalhada. Na realidade, isso nao se aplica a ou-tras invencoes, A domesticacao de animais, que no Velho Mundofoi uma realizacao antiga, foi muito tardia no Novo Mundo, ondeanimais dornesticados, exceto 0cachorro, quase nao exist iam naepoca do descobrimento. Urn timido inicio havia ocorrido noPeru com a domesticacao da lhama, e passaros eram capturadosem diversas partes do continente.

    Consideracao similar pode ser feita com relacao ao desen-volvimento do racionalismo. Uma das caracteristicas fundamen-tais da humanidade parece ser a passagem gradual, para objeto darazao, de atividades que se desenvolveram inconscientemente.Podemos observar esse processo por toda parte. Ele talvez apare-ca rnais claramente na historia da ciencia, que estendeu gradual-mente 0escopo de suas investigacoes sobre urn campo cada vezmais amplo, trazendo a consciencia humana atividades queeram executadas automaticamente na vida do individuo e dasociedade.

    Nao me referi ate agora a outro aspecto da etnologia moder-na que esta conectado com 0 desenvolvimento da psicanalise.Sigmund Freud tentou mostrar que 0pensamento primitivo e emvaries aspectos analogo as formas de atividade psiquica indivi-dual que ele explorou com seus metodos psicanaliticos. Suas ten-tativas sao em muitos aspectos similares a interpretacao da mito-

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    logia feita por simbolistas como Stucken. Rivers apoderou-se dasugestao de Freud, bern como das interpretacoes de Graebner eEll iot Smith; por conseguinte, encontramos em seus escritos re-centes uma peculiar aplicacao desconexa da atitude psicologizan-te e da teoria da antiga transmissao.

    Embora acredite que algumas das ideias subjacentes aos es-tudos psicanaliticos de Freud possam ser aplicadas de modo pro-flcuo aos problemas etnologicos, nao me parece que a utilizacaounilateral desse metodo fara avancar nossa compreensao do de-senvolvimento da sociedade humana. Sem duvida e verdade quese tern subestimado completamente a influencia de impressoesrecebidas durante os primeiros anos de vida; que 0 cornporta-mento social do homem depende em grande medida dos primei-ros habitos que seestabeleceram antes da epoca em que a memo-ria a ela conectada comecou a operar; e que muitos traces consi-derados por assim dizer raciais ou hereditarios sao antes resulta-do da exposicao precoce a certos tipos de condicoes sociais. Amaioria desses habitos nao atinge a consciencia, e portanto saodificilmente alterados. Muito da diferenca no comportamentoentre homens e mulheres adultos pode remontar a essa causa. Se,no entanto, tentamos aplicar a teoria completa da influencia dedesejos reprimidos as atividades do homem que vive sob diferen-tes formacoes sociais, creio que estendemos alem de seus limiteslegitimos asinferencias que sepodem fazer a partir da observacaoda psicologia normal e anormal dos individuos. Muitos outrosfatores sao de maior importancia.

    Para dar urn exemplo: osfenomenos da linguagem mostramclaramente que condicoes bastante diferentes daquelas para asquais a psicanalise dirige sua atencao determinam 0 comporta-mento mental do homem. Os conceitos gerais subjacentes a lin-guagem sao totalmente desconhecidos da maioria das pessoas.Eles nao atingem a consciencia ate que secomece 0estudo cien-tifico da gramatica. Apesar disso, as categorias da linguagem noscompelem aver 0mundo arranjado em certos grupos conceituais

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    determinados, que, pela nossa falta de conhecimento dos proces-sos linguisticos, sao tornados como categorias objetivas e,portan-to, se impoem a forma de nossos pensamentos. Nao sesabe qualpode ser a origem dessas categorias, mas parece totalmente certoque elas nao tern nada em comum com os fenomenos qse saoobjeto do estudo psicanalitico.

    A aplicabilidade da teo ria psicanalitica do simbolismo tam-bern esta sujeita aos maio res questionamentos. Devemos lembrarque a interpretacao simbolica ocupou uma posicao proeminente .na fi losofia de todas as epocas, Ela esta presente nao apenas "navida primitiva: a historia da fi losofia e da teologia abundam emexemplos de urn alto desenvolvimento do simbolismo, cujo tipodepende da ati tude mental do filosofo que a desenvolve. Os teo-logos que interpretaram a Biblia com base no simbolismo religio-so estavam tao certos da correcao de suas opinioes quanta ospsicanalistas a respeito de suas interpretacoes sobre a conduta e0pensamento baseados no simbolismo sexual. Os resultados deuma interpretacao simbolica dependem primeiramente da atitu-de subjetiva do investigador, que ordena os fenornenos de acordocom seu conceito dominante. Para se provar a aplicabil idade dosimbolismo da psicanalise, seria necessario demonstrar que umainterpretacao simbolica feita a partir de pontos de vista comple-tamente diferentes nao teria a mesma plausibilidade, e que se-riam inadequadas as explanacoes que excluem 0significado sim-bolico ou que 0reduzem ao minimo.

    Desse modo, embora possamos dar boas-vindas a aplicacaode cada progresso no rnetodo da investigacao psicanali tica, naodevemos aceitar como urn avanco no metodo etnol6gico a meratransferencia de urn metodo recente e unilateral de investigacaopsicologica do individuo para fenomenos sociais, cujas origenspodemos demonstrar serem historicamente determinadas e esta-rem sujeitas a influencias que nao sao de modo algum compara-veis aquelas que controlam a psicologia individual.