[flora kidd] horas íntimas

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Horas Íntimas (Personal Affair) Flora Kidd Julia Especial n° 02 O SHEIK DO OÁSIS NEGRO Título original: "THE DARK OÁSIS Publicado originalmente em 1980 pela Mill & Boon Ltd., Londres, Inglaterra Copyright: MARGARET PARGETER Tradução: T. MOREIRA HORAS ÍNTIMAS Titulo original: "PERSONAL AFFAIR' Publicado originalmente em 1981 pela Mills <& Boon Ltd., Londres, Inglaterra Copyright: FLORA KIDD Tradução: SUZY MAY ELSTON Copyright dos dois títulos para a língua portuguesa: 1982

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A noite estava calma e escura. No velho chalé de madeira, Margret via da janela de seu quarto o nevoeiro que se aproximava. Vinha do mar aberto e se espalhava pelo estreito canal que separava a Ponta do Lindley da Ilha do Porco. Também não se ouviam os ruídos habituais da noite. De repente escutou um barulho distante, que parecia o de um motor, vindo do mar. Mas essa não era uma noite própria para se entrar pelo canal, que era cheio de rochedos. Depois tudo ficou em silêncio. Reparou que já era uma e quinze da madrugada. Deu corda no despertador,afofou o travesseiro,deitou-se e apagou a luz de cabeceira. Imediatamente tornou a ouvir o barulho,e agora podia reconhecer que era mesmo o de um motor de uma embarcação. Voltou a espiar pela janela, na direção de onde vinha o ruído. O som do motor,que era bem alto,lentamente começou a diminuir de intensidade,indicando que iria parar. A moça se esforçava por enxergar através do nevoeiro e conseguiu distinguir duas luzinhas,uma verde e o...

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Horas Íntimas(Personal Affair)

Flora Kidd

Julia Especial n° 02

O SHEIK DO OÁSIS NEGROTítulo original: "THE DARK OÁSISPublicado originalmente em 1980 pela Mill & Boon Ltd., Londres, InglaterraCopyright: MARGARET PARGETERTradução: T. MOREIRA

HORAS ÍNTIMASTitulo original: "PERSONAL AFFAIR'Publicado originalmente em 1981 pela Mills <& Boon Ltd., Londres, InglaterraCopyright: FLORA KIDD Tradução: SUZY MAY ELSTON

Copyright dos dois títulos para a língua portuguesa: 1982ABRIL S.A. CULTURAL E INDUSTRIAL — São PauloComposto e impresso em oficinas própriasIlustração da capa: MÍRIAM R.C. ARAÚJO

Digitalização e Revisão: Nelma

CAPÍTULO I

A noite estava calma e escura. No velho chalé de madeira, Margret via da janela de seu quarto o nevoeiro que se aproximava. Vinha do mar aberto e se espalhava pelo estreito canal que separava a Ponta do Lindley da Ilha do Porco. Também não se ouviam os ruídos habituais da noite.

De repente escutou um barulho distante, que parecia o de um motor, vindo do mar. Mas essa não era uma noite própria para se entrar pelo canal, que era cheio de rochedos. Depois tudo ficou em silêncio. Reparou que já era uma e quinze da madrugada. Deu corda no despertador, afofou o travesseiro, deitou-se e apagou a luz de cabeceira.

Imediatamente tornou a ouvir o barulho, e agora podia reconhecer que era mesmo o de um motor de uma embarcação.

Voltou a espiar pela janela, na direção de onde vinha o ruído. O som do motor, que era bem alto, lentamente começou a diminuir de intensidade, indicando que iria parar. A moça se esforçava por enxergar através do nevoeiro e conseguiu distinguir duas luzinhas, uma verde e outra vermelha, provavelmente as luzes de navegação do barco. O motor foi desligado e tudo ficou silencioso outra vez. As luzinhas se apagaram e uma claridade mais difusa apareceu no que devia ser a janela de uma cabina. Mas acabou desaparecendo quando a neblina ficou mais espessa.

Margret sentiu frio por causa do ar úmido que entrava pela janela e acabou voltando para a cama. Mas não conseguiu dormir, pois estava preocupada com o barco ancorado ali no canal. Os caseiros haviam dito que poucas embarcações aportavam ali, porque a entrada do canal era muito perigosa. Isso demonstrava que quem havia entrado à noite, daquele jeito, devia conhecer muito bem o lugar. Ma por que escolhera justamente aquela hora? Margret começou a lembrar-se de todas as histórias que havia escutado sobre o desembarque de drogas naquela região. Não conseguiu se acalmar e voltou à janela.

Sentiu o sangue gelar nas veias ao enxergar uma luz na praia em frente. Alguém andava por ali, segurando uma lanterna. Certamente viera num bote e agora se aproximava da casa. Margret se apavorou, pois, além dela e das crianças, Heather e Jamie, e dos caseiros, não havia mais ninguém na casa. Resolveu descer a escada até o hall de entrada. Passou a tranca na porta da frente. Não seria nada bom se a casa fosse assaltada enquanto ela estivesse tomando conta, pois ali existiam muitas peças antigas e valiosas.

Ia atravessando a sala, para trancar também a porta dos fundos, quando escutou um ruído na cozinha. Ficou imóvel, no escuro, prendendo a respiração e prestando atenção. Ouviu quando alguém abriu a janela, que ela havia deixado entreaberta. E depois o barulho de uma pessoa pulando para dentro do aposento. Repentinamente a cozinha se iluminou e a,porta da geladeira foi aberta. Margret soltou a respiração, reuniu toda a sua coragem e perguntou:

— Quem está aí?

Houve um momento de silêncio e fecharam a geladeira. Um vulto apareceu na porta da sala e acendeu a luz. Ela viu então um homem alto, com uma capa impermeável amarela.

Gotas de chuva brilhavam na capa e nos cabelos. O rosto, de onde sobressaía um queixo quadrado, tinha a pele muito queimada pelo sol, o que contrastava com os olhos muito azuis.

O homem estava tão surpreso em ver Margret quanto ela em encontrá-lo ali. Mas a expressão dele se suavizou e um sorriso apareceu no canto dos lábios.

— Muito gentil de sua parte ter descido para me receber.

— Não desci por isso — retrucou Margret, sentindo-se envergonhada por estar vestindo apenas uma camisola curtinha. Cruzou os braços em frente ao corpo e continuou: — Vim ver quem estava invadindo a casa.

O rapaz levantou as sobrancelhas, que estranhamente eram muito mais escuras que o cabelo, e vagarosamente examinou a moça, dos pés à cabeça. Quando terminou a inspeção, Margret tremia de raiva enquanto os olhos azuis a encaravam com desprezo.

— Não invadi nada — disse apenas.

— Não bateu na porta — retrucou ela. — Abriu a janela e entrou. Para mim isso é uma invasão.

— A janela estava entreaberta — explicou o rapaz. E, depois de dar mais uma olhada para a moça, virou as costas e voltou para a cozinha.

— O que está querendo? — perguntou ela, seguindo-o e vendo que ele abria novamente a geladeira.

— Neste instante quero alguma coisa para comer — respondeu secamente, observando o que havia na geladeira.

— Ei, não pode fazer isso... vou chamar a polícia! — exclamou, apanhando o telefone.

Para um homem de porte atlético ele se moveu com muita rapidez, apertando o braço da moça.

— Calminha... se fizer isso, vai se dar mal.

— Não está querendo dizer que é você quem vai ficar em má situação? — retrucou ela com raiva, puxando o braço. — Acha que pode ir entrando desse jeito e mexendo na geladeira como se a casa fosse sua? Olhe, podemos fazer um trato. Se for embora prometo que não chamo a polícia nem conto a ninguém o que aconteceu. Venha por aqui. — E, atravessando a sala, abriu a porta da frente. — Saia! — ordenou firmemente.

O rapaz continuou parado, olhando-a. Começou a andar vagarosamente e passou por ela, que fez o possível para não se afastar, apesar do tremor nas pernas. Ele levantou um braço e Margret, sem querer, deu um grito, erguendo também um braço, como para se defender. Mas o rapaz não a tocou. Simplesmente agarrou a porta e bateu-a com força; a pancada ecoou por toda a casa. Sabendo como Heather tinha o sono leve, Margret logo desconfiou que a menina devia ter acordado.

— Por que fez isso? — reclamou a moça, tentando ainda se manter calma. — Deve ter acordado todo mundo e perdido a chance de escapar.

— Isso se houver mais alguém para acordar... Duvido que existam outras pessoas aqui, além de você — desafiou o rapaz.

— E se não houver mais ninguém, o que vai fazer? — indagou ela, respondendo à provocação e esperando que, se não demonstrasse medo, ele acabasse indo embora.

— Exatamente o que vim fazer: comer alguma coisa e dormir — retrucou ele calmamente. — Mas primeiro quero descobrir por que uma mulher estranha está sozinha na casa de minha tia Marion!

— Sua tia? — Margret sorriu com ironia, demonstrando toda a sua dúvida. — Acho que você está indo longe demais. Esta casa pertence a uma certa sra. Lindley.

— Exatamente, Marion Lindley, que por acaso é minha tia, viúva de meu tio Earl Lindley. Sou Carl Lindley.

Margret esperava que ele não percebesse como seu coração disparara. Cruzou os braços novamente, tentando ignorar o olhar frio que examinava seu corpo.

— Muito espertinho! Mas acontece ,que Carl Lindley não está aqui, está na América do Sul.

— Quem lhe disse isso?

— Meu patrão.

— E quem é ele?

— Gregory Lindley, primo de Carl Lindley.

Ele a encarou, pensativo.

— Então trabalha para Greg... — murmurou. — E o que faz?

— Tomo conta das crianças e cuido da casa para ele... desde a morte de sua esposa, no ano passado — respondeu Margret.

— É verdade... Tia Marion me contou que Liza havia falecido — disse, ainda encarando a moça.

O fato de ele saber o nome da esposa de Greg e o modo despreocupado com que se referia a Marion fez com que Margret começasse a confiar nele. Nisso percebeu um movimento na escada. Heather e Jamie, de pijamas, vinham descendo, e nas mãos do garoto estava uma velha pistola, que, com alguns sabres antigos, adornava a parede do hall.

O homem que dizia ser Carl Lindley virou-se. Seu rosto se abriu num sorriso e ele se dirigiu para a escada.

— Olá, crianças — disse, amistoso.

Elas pararam e ficaram olhando para ele. Heather, que tinha nove anos, agarrava Jamie, de seis, pelas mãos, e com tanta força que ele não conseguia se livrar.

— Largue — reclamou o menino, baixinho. — Não sou bebê!

A irmã acabou largando e ele usou a mão esquerda para ajudar a segurar a pistola e apontá-la para a cabeça do estranho.

— Se machucar Margret, eu dou um tiro! — ameaçou, sério.

— Mas eu não vou fazer nada a ela, filho — disse o rapaz calmamente. — Nem a você, nem à sua irmã. Eu sou Carl Lindley, primo de seu pai.

— Como é que pode ser ele? — indagou Heather, passando pelo irmão e descendo até o hall. — Ele está lá longe, na América do Sul. Eu escutei quando papai contou a

Margret.

— Eu estava no Peru, é verdade — disse o homem. — Mas vim passar as férias aqui.

— E como foi que chegou? — perguntou Jamie.

— Num veleiro. Eu pedi emprestado a um amigo e saí de Camden hoje cedo.

— E onde está o barco agora? — perguntou Jamie novamente, baixando a pistola.

— No canal, aí em frente da casa.

— Ele é mesmo primo do papai? — cochichou Heather para Margret.

— Eu não sei... Como posso ter certeza?

Heather virou-se para o homem com uma expressão de importância e perguntou corajosamente:

— Você tem alguma carteira de identidade?

— Será que a carteira de motorista serve? — indagou ele, querendo esconder um sorriso.

— Será que serve, Margret? — perguntou a menina de repente, perdendo a autoconfiança.

— Acho que sim — resmungou a moça.

O homem enfiou a mão no bolso da capa e tirou uma carteira de couro, que abriu e estendeu a menina. Margret deu uma espiada no documento, notando que o nome era mesmo Carl Lindley e que havia também um endereço em Filadélfia.

— Tem mesmo o nome certo — cochichou Heather.

— Como é que posso saber se esta carteira é verdadeira? — quis saber Margret, encarando o homem. — Você poderia tê-la roubado!

Ele soltou um sonoro palavrão, sem se incomodar com a presença, das crianças ou com a sensibilidade de Margret.

— Ei, o que está havendo? — inquiriu, olhando-a severamente. — E eu, como posso saber se são mesmo quem dizem ser? Como posso ter certeza de que as crianças são mesmo filhas de Greg e que você trabalha para ele? Será que não são uns impostores, que resolveram invadir a casa sabendo que não havia ninguém aqui? E vocês, têm algum jeito de se identificar?

Todos ficaram olhando para ele, apavorados com a demonstração de raiva. Jamie deixou cair a pistola. O estranho apanhou a arma, abriu-a e depois fechou novamente. Virou-se e examinou o rosto pálido do garoto que o olhava com olhos arregalados.

— Acho que você é mesmo filho de Greg — resmungou o homem.

— É bem parecido com ele. — Abaixou-se e sorriu amistosamente para Jamie. — Sabe de quem era esta pistola?

O menino sacudiu a cabeça, balançando os cabelos castanhos.

— Não, não sei.

— Pertencia a meu bisavô, que a usou na Guerra Civil e que também se chamava Carl Lindley — explicou, virando a pistola nos dedos como um vaqueiro do Oeste. Jamie olhava, fascinado.

— E ele atirou em alguém com ela? — indagou Heather, também interessada.

— Deve ter atirado — respondeu o rapaz, ficando em pé e guardando a arma no bolso da capa. — E, se são mesmo filhos de Greg, o homem que usava esta pistola era tataravô de vocês.

Jamie desviou os olhos para a irmã e depois encarou Margret como se implorasse, e ela percebeu que tinha que capitular.

— O sr. Lindley nos trouxe aqui para passarmos duas semanas — explicou secamente.

— E onde ele está agora? — perguntou o rapaz.

— Em Chicago, e deve voltar no fim da semana. — Margret tomou fôlego e o encarou. Mesmo erguendo todo o corpo, ainda tinha que olhar para cima. — Desculpe-me por ter duvidado, mas isso não teria acontecido se tivesse chegado aqui de um modo mais convencional, batendo na porta. — Não pôde evitar essa agressão e viu que ele sorria. — Mas como também tem dúvida sobre nós, sugiro que telefone para seu primo agora mesmo. Ele deixou um número, para ligarmos se aparecesse algum problema. Está na capa da lista telefônica — disse, apontando para a prateleira.

O olhar do homem seguiu o braço estendido da moça, obrigando-a a abaixá-lo depressa. Ele tinha um modo de olhar que a deixava perturbada e inibida por estar com tão pouca roupa. Margret se culpava por não ter tido a idéia de vestir um roupão.

— Bravo! -— disse ele cheio de ironia, — Essa conclusão deve ter-lhe custado um grande esforço. — Deu um leve sorriso e Margret reparou que um lado daquele rosto era marcado por uma cicatriz.

— Nunca é fácil rever uma posição. Aceito suas desculpas e também lhe peço que me perdoe. Nunca teria entrado sem avisar se soubesse que vocês estavam aqui.

— Mas a sra. Lindley disse que Greg podia usar a casa, e que poderíamos ficar aqui.

— Acredito. Não a encontrei desde que cheguei do Peru. Tia Marion está na Europa e eu não tive mais contato com Greg desde que fugiu com Liza.

— Eles fugiram? — exclamou Margret.

— Não é assim que se fala quando um casal foge e se casa em segredo? — retrucou ele secamente.

— Mas a gente pode ficar aqui? — indagou Heather, preocupada, puxando a mão de Margret para chamar-lhe a atenção.

— Claro que podem — disse o homem. — A não ser que não queiram a minha companhia por alguns dias.

— A sua? — perguntou Jamie, dobrando a cabeça para trás para poder olhar o rosto do rapaz.

— Isso mesmo.

— Você me leva para dar uma volta no seu barco? — continuou o garoto.

— Claro, se o tempo estiver bom.

— E eu também — interveio Heather, aproximando-se.

— Também. — Carl olhou para Margret. — Se quiser nos acompanhar...

Aqueles olhos azuis perturbavam-na terrivelmente. Como conseguiria ficar naquela casa com ele? Mas para onde iria com as crianças? Controlou-se e respondeu:

— Como você disse, vai depender do tempo.

— Estou cansado... — resmungou Jamie, bocejando. — Quero ir para a cama.

— Está bem, faça isso... Mas antes diga-me: qual é seu nome?

— Ele é Jamie e eu sou Heather — anunciou a menina, sentindo-se importante novamente. — Sei tudo sobre você. Papai me contou que costumavam passar as férias nesta casa, e que sempre iam velejar. Também pegavam mariscos?

— Claro!

— É isso que Jamie e eu vamos fazer amanhã cedo, quando a maré estiver baixa.

— Então por que não vai também para a cama? Senão amanhã não vai conseguir se levantar cedo para pegar os mariscos — sugeriu Carl Lindley.

— Está bem. — Heather sorriu para ele. — Fiquei contente porque você veio. Como é que eu e Jamie vamos chamá-lo?

— Carl está bem. Até amanhã — disse ele com firmeza, conduzindo-os à escada.

As crianças obedeceram sem discutir. Margret ia segui-las, pois não queria ficar a sós com Carl mais do que o necessário, mas de repente lembrou-se de uma coisa.

— Em que quarto vai dormir? — perguntou, sem olhar para ele.

— Aquele quarto da frente, de teto mais baixo, costumava ser o meu.

— Oh, é nele que estou dormindo! — exclamou Margret. — E as crianças estão no quarto vizinho. — Ele se aproximou e ela subiu o primeiro degrau. — Mas posso passar para um dos outros quartos, se você quiser — acrescentou depressa, com medo do brilho estranho daqueles olhos azuis.

— Ou então podíamos compartilhar aquele... — sugeriu Carl baixinho, pondo também o pé no primeiro degrau, obrigando a moça a subir mais um pouco.

— Sr. Lindley, não sei o que está pensando de mim, mas eu apenas cuido da casa e das crianças para seu primo — disse ela, ofendida.

— Só sei que é uma garota muito atraente. E percebo por que ele a contratou... Deve achar muito agradável tê-la sempre perto. Divide aquele quarto da frente com Greg, quando está em casa?

— Não, eu não faço isso! — retrucou a moça, indignada.

— Então está esperando primeiro se casar com ele? — resmungou Carl de um jeito desagradável.

— E se estiver? — desafiou ela. o queixo erguido. — O que é que tem com isso?

Ele franziu a testa ao encará-la, mas por fim acabou sorrindo. Um sorriso meio cínico, mas estranhamente atraente.

— Talvez tenha algo a ver comigo... — retrucou, enigmático. — Chegou a conhecer Liza?

— Não.

— Sabe como foi que ela morreu?

— Acho que houve um acidente. Ela caiu e bateu a cabeça. Depois entrou em coma e viveu assim alguns meses. Foi uma época muito difícil — comentou com voz baixa, lembrando do tempo em que sentia pena de Greg, enquanto a esposa estava entre a vida e a morte.

— Deve ter sido. — A voz dele pareceu estranha aos ouvidos de Margret, que o olhou, curiosa. Carl fitava o vazio, com uma expressão séria. — E por que Greg voltou para os Estados Unidos? — indagou, voltando o olhar para ela. — Você sabe?

— Tinha entrevistas marcadas em várias universidades. Está pretendendo lecionar psicologia. Ele fez a pós-graduação na Inglaterra.

— Sei, sei... — Olhou-a outra vez com interesse e ela sentiu necessidade de fugir escada acima e se trancar no quarto. — Há quanto tempo trabalha para ele?

— Desde que... — Interrompeu-se sem saber quanto devia contar a ele sobre a vida particular de Greg.

— Antes ou depois de Liza tê-lo deixado? — indagou ele.

— Depois. Ele pôs um anúncio no jornal e eu respondi — disse ela secamente.

— Está apaixonada por ele? — A pergunta inesperada a assustou.

— Não preciso responder a essa pergunta — retrucou. — E... e... não gosto do modo como olha para mim — deixou escapar enquanto subia mais alguns degraus.

Carl levantou as sobrancelhas com um ar irônico, mas não foi atrás dela desta vez.

— É uma pena, pois você é muito bonita... especialmente com essa camisola. Na verdade, não é o tipo de babá que eu imaginaria trabalhar para Greg, que está sempre com o nariz metido nos livros. Está bem... está bem... — acrescentou, com a voz meio cansada, ao ver que ela fugia mais para cima. — Não olho mais para você, pronto. — Passou a mão pelo cabelo. — Como Jamie, eu também estou exausto e quero ir para a cama. Não precisa desocupar seu quarto. Dormirei em qualquer outro.

— As camas não estão arrumadas. Quer que eu...

— Não, não precisa arrumar nada para mim, eu mesmo dou um jeito. Boa noite.

Uma vez na cama, Margret ajeitou o travesseiro, fechou os olhos, mas não conseguiu dormir. Continuava escutando Carl Lindley andando pela casa. Aquela chegada inesperada havia perturbado a moça mais do que queria admitir. Depois de três semanas de absoluta tranqüilidade naquela recanto da costa do Maine, estava aborrecida por ter que dividir a casa com ele.

Margret havia adorado o lugar assim que o vira, numa tarde luminosa de julho,

quando o vento formava pequenas ondas na água do canal. Rodeada de cedros antigos, o telhado pontiagudo e as janelas brancas davam à casa a impressão de ter saído de um conto de fadas, onde Margret nunca sonhara morar.

— Tem certeza de que podemos ficar aqui? — havia indagado a Greg.

— Claro! Ela agora pertence a minha tia Marion, viúva de Earl, que a herdou de meu avô. Desde o século XVI a família é dona deste pedaço de terra, doado por um rei da Inglaterra. Moravam todos aqui, até que decidiram se mudar para Boston. Já faz alguns anos que é usada só nas férias.

— Mas sua tia não virá para cá?

— Não nesta temporada.

— E os filhos dela? Também não virão?

— Ela não tem filhos e eu duvido que Carl possa vir, pois ouvi dizer que está em algum lugar da América do Sul.

— Carl?

— É meu único primo, filho do irmão gêmeo de tio Earl.

Margret se virava na cama, preocupada. Greg estava errado, pois o primo, com o qual não mantivera contato desde que fugira com Liza, havia aparecido.

Greg e Liza deviam estar muito apaixonados para fugirem daquele jeito, pensava Margret, sonolenta. Mas o interessante era que, quando Greg tocara no assunto de seu casamento, não dera a impressão de ter sido uma relação amorosa e romântica. Na verdade, fora uma batalha, e Liza, uma mulher preocupada e instável, ressentia-se tanto do fato de ser mãe que por fim abandonara o marido e os dois filhos para viver com outro homem.

Margret adormeceu pensando naquilo e só acordou na manhã seguinte quando o despertador tocou. Virou-se, travou o relógio e, recostando-se no travesseiro, começou a lembrar-se do que planejara fazer nesse dia.

Iria pegar mariscos com Heather e Jamie. Olhou novamente para o relógio e franziu a testa. Normalmente, a essa hora, Jamie já estava ali no quarto, tentando acordá-la. A casa parecia muito quieta. Só lá fora se ouviam os gritos das gaivotas e o canto dos pássaros.

Será que as crianças ainda estavam dormindo? Ou já teriam ido para a praia? Margret saiu da cama e chegou à janela. A neblina se afastava da ilha e, nas águas calmas bem em frente à casa, a forma esguia de um veleiro parecia admirar seu próprio reflexo.

Tirou a camisola, vestiu um short azul, uma camiseta vermelha e calçou sandálias. Escovou os longos cabelos castanhos e os enrolou num coque. O penteado fazia com que parecesse mais velha, mais séria, mas era assim mesmo que queria parecer: menos bonita do que era na.verdade. Se Carl Lindley estivesse em casa, não queria que a olhasse como na noite passada. Não queria que ele começasse a analisá-la demais.

Na cozinha, Heather punha a mesa enquanto Jamie observava Carl, que derretia gordura numa frigideira.

— Carl vai fazer panquecas de amora para a gente — avisou o garoto.

— Mas você não gosta de panquecas de amora! Não quis comer as que eu fiz ontem

e tive que jogar tudo fora — disse Margret, pegando a chaleira e levando para a pia.

— Gostamos sim, mas não das suas — explicou Heather. — As de Carl são melhores porque ele aprendeu a fazer com tia Marion.

— Muito bem! — Margret não achou outras palavras para demonstrar seu ressentimento pelo fato de as crianças terem transferido sua preferência tão rapidamente para Carl. Devia ser a voz do sangue! Ao colocar a chaleira no fogo deu uma olhada para Carl e surpreendeu-o olhando para ela com ironia.

— Não leve isso tão a sério — disse sorrindo. — Qualquer hora você volta a ser a cozinheira. Vai fazer café?

— Não tomo café pela manhã — retrucou ela. — Prefiro chá.

— Eu já desconfiava — foi o único comentário, enquanto tirava mais uma panqueca bem redondinha da frigideira e a colocava num prato, junto com as outras.

— Depois do café, Carl vai com a gente mostrar como é que se pegam mariscos — disse Heather, mostrando que estava disposta a organizar as coisas. — Você não precisa vir, Margret. Ele cuida de nós.

— E depois de catar bastantes mariscos, vamos até o barco dele — informou Jamie.

— Só se não estiver ventando muito — disse Margret, desanimada.

— A previsão do tempo é boa para os próximos dias — acrescentou Carl. — Talvez a gente possa fazer um passeio até as ilhas mais próximas.

— Oh, sim! Por favor! — gritou a menina, pulando de alegria. — Oba, eu gostaria demais...

— Mas eu não sei velejar — disse Margret preocupada, sentindo que as crianças escapavam de seu controle.

— Pode aprender — comentou Carl. — Agora, por que não se sentam e comem logo essas panquecas? O tempo está passando e a maré baixa não vai esperar...

Pela primeira vez as crianças obedeceram sem discutir e sem reclamar dos lugares à mesa. Enquanto servia laranjada a elas, o ressentimento de Margret ia crescendo, por constatar que Carl havia roubado sua liderança com tanta facilidade.

Quando acabou de preparar seu chá e se sentou, Carl também havia acabado de fazer as panquecas e se sentara.

— Suas panquecas são maravilhosas! — comentou Heather. — Espero que fique com a gente bastante tempo. Carl.

— Obrigado pelo elogio! Você e Jamie já terminaram?

— Já, obrigada.

— Então podem ir pegando os baldes e descer para a praia. Vou para lá assim que terminar de comer — disse Carl. — E não se esqueçam das botas, que não queremos tênis sujos nem lama dentro de casa depois, está certo?

— Certo — afirmaram os dois, e foram saindo para a varanda.

A porta da varanda bateu e Margret escutou as vozes das crianças quando passavam

sob a janela da cozinha, a caminho da praia.

— Vai mesmo pegar mariscos com elas? — perguntou, levantando-se. — Se não for, eu vou. Jamie ainda precisa ser vigiado, não sabe nadar.

— Não se preocupe. — Carl também se levantou, mas deu um passo em direção a ela. — Há ainda uma coisa que está me confundindo. — Parou em frente a Margret, que se preparou para fugir. Mas ele foi mais rápido: estendeu o braço e tirou-lhe os óculos.

— Dê-me isso! — gritou ela, zangada.

— Ainda não. — Segurando os óculos fora do alcance da moça. observou-lhe o rosto com atenção. — O penteado e estes óculos fazem você parecer muito mais velha do que ontem à noite — caçoou. Baixou os óculos e olhou para eles com curiosidade. — É por isso que os usa? Para parecer mais velha?

— Por favor, devolva-me os óculos. Não enxergo bem sem eles.

— Ontem à noite você via muito bem — retrucou ele. — Nunca pensou em usar lentes de contato?

— Não, nunca pensei — disse ela entre dentes.

Carl encarou a moça mais uma vez, o rosto se abrindo num sorriso.

— Sem eles eu daria a você uns vinte e quatro anos — comentou. — E, com o cabelo solto, parece mais moça ainda. Será que cheguei perto?

Ele havia acertado a idade, mas Margret não queria dar-lhe essa satisfação.

— Tenho trinta anos — afirmou, encarando o rapaz.

— Ora, deixe disso! — caçoou ele.

— Será que agora pode fazer o favor de devolver meus óculos? — Estendeu a mão, mas ele não os entregou.

— Greg já viu você sem eles?

— Não, pelo menos acho que não.

— Ou de cabelos soltos?

— Eu não estou entendendo aonde quer chegar com esse... esse interrogatório — retrucou Margret. — Por favor, dê-me os óculos, preciso deles.

— Mas são feitos de vidro comum, não ajudam ninguém a enxergar melhor. São óculos de teatro, apenas isso, do tipo que uma atriz usa quando o papel assim o exige.

— Por favor, devolva-os — insistiu ela, séria.

— Depois — provocou ele. — Talvez quando eu for embora. — E, para desespero de Margret, Carl enfiou os óculos no bolso da camisa. — E agora, o cabelo — disse, aproximando-se.

— Não toque em mim! — explodiu ela, dando um passo atrás. — Se fizer isso eu... eu grito!

— Ora, que falta de originalidade... — troçou ele, ainda se aproximando. — Se gritar,

ninguém vai escutar, só eu.

— As crianças talvez escutem. Eu consigo gritar muito alto!

— É, talvez elas escutem — concordou Carl, cada vez mais perto. Margret encostou-se na pia e ele chegou tão perto que ela sentiu o calor que emanava daquele corpo. — Mas grite se quiser. Sei de um jeito especial para silenciá-la — sussurrou.

Novamente se moveu com agilidade e, estendendo as mãos alcançou o coque. Margret tomou fôlego e abriu a boca para gritar. Imediatamente Carl baixou a cabeça e cobriu os lábios da moça com os seus.

Margret lutou em vão para se libertar daquele beijo. Virou a cabeça, empurrou-o com força e até mesmo chutou as canelas do rapaz. Mas não conseguiu nada e, quando ele por fim conseguiu soltar-lhe os cabelos, passou-lhe os braços pelos ombros e abraçou-a com força.

Assim apertada contra aquele peito rijo, Margret decidiu não se entregar ao prazer que os lábios de Carl começavam a provocar nela. Mas isso era muito difícil, pois tinha que admitir que estava gostando do cheiro daquela pele queimada pelo sol e pelo sal do mar. A qualquer momento iria sucumbir ao desejo de afagar aqueles cabelos e ceder à paixão daqueles lábios.

— Carl, você não vem com a gente? — Era a voz de Heather e vinha da varanda dos fundos. Foi como um jato de água fria, serenando os ânimos e fazendo com que os dois voltassem à realidade. Carl levantou a cabeça e se afastou. Mas os olhos, agora de um azul bem escuro, ainda prendiam os de Margret, que, assustada, olhava para ele com as mãos sobre os lábios.

— Já vou indo... — respondeu ele, e a porta da varanda se fechou. Houve um minuto de silêncio enquanto Carl e Margret continuavam se encarando; depois, ele deu um sorriso meio irônico. — Isso foi muito interessante — comentou, baixando os olhos. — Você não é tão fria como quer aparentar. Precisamos experimentar isso mais uma vez, qualquer hora dessas. Até depois!

CAPÍTULO II

Sozinha em casa, Margret usou a energia resultante daquela explosão de emoções para fazer a arrumação, enquanto as crianças estavam fora. Depois de trocar as roupas de cama, encher a máquina de lavar, varrer e tirar o pó da casa toda, ficou mais calma. Não estava mais com vontade de arrumar as malas e sair da casa dos Lindley para nunca mais voltar. Queria ficar.

De qualquer modo, o orgulho a impedia de fugir só porque um rude ex-soldado havia percebido seu disfarce e a beijara.

Mesmo assim estava preocupada. Olhava para a água brilhante do canal e para o contorno escuro da ilha, mais ao longe. De algum modo, tinha que reaver seus óculos antes da chegada de Greg.

Ela nunca teria pensado em se disfarçar se não tivesse tanta necessidade de encontrar um emprego. Tinha experiência em teatro e trabalhara durante dois anos nos palcos, em diversas companhias, em papéis pequenos, e às vezes era obrigada a ajudar nos figurinos e na burocracia do teatro. Para aumentar um pouco sua renda, havia posado para fotos de propaganda, feito algumas pontas em televisão e trabalhado também como demonstradora. Fora garçonete e vendera entradas para cinema.

Por fim, há dezoito meses, sua grande oportunidade havia aparecido. Fizera um teste para um papel de destaque numa nova peça e fora aprovada. Depois de semanas de ensaios exaustivos, a peça havia estreado, mas ficara apenas uma semana em cartaz. Mais uma vez Margret estava desempregada e fora então que fizera um balanço sério de sua vida. Chegara à conclusão de que nunca seria uma atriz de sucesso e que nem conseguiria se manter vivendo desse tipo de profissão.

Respondera ao primeiro anúncio que vira num jornal de Londres, que não exigia especialização. Dizia apenas: "Governanta para duas crianças. Precisa morar no emprego e também cuidar da casa. Prefere-se senhora bem-educada, de trinta a quarenta anos".

Margret ligara imediatamente, descobrindo que era uma agência que cuidava dos interesses de famílias estrangeiras ou de famílias inglesas que viviam no exterior. Sua primeira entrevista fora com uma senhora de olhos vivos, uma das sócias da firma.

— Parece ser eficiente, senhorita — dissera ela a Margret. — E fala muito bem, por certo por causa do teatro. Tem experiência com crianças?

— Tenho dois irmãos pequenos e muitas vezes cuidei deles para minha madrasta.

— E sabe cuidar de uma casa? Você gosta desse tipo de serviço? Fazer compras, mexer com orçamento doméstico, lavar, cozinhar, etc?

— Posso fazer tudo isso. Durante algum tempo, antes de meu pai se casar de novo, tomei conta da casa para ele.

A sra. Kerridge havia então analisado Margret com olhos críticos, observando depois a lista de especificações que o cargo exigia.

— Qual é a sua idade?

— Tenho vinte e dois anos, quase vinte e três.

— Parece que não prestou muita atenção ao anúncio. Ele pedia uma senhora de trinta a quarenta anos — dissera a entrevistadora com voz seca. — Vou marcar uma entrevista com o dr. Lindley e a senhorita. Mas acho que teria mais chances se não parecesse tão jovem nem tão bonita.

O encontro havia sido marcado e na semana seguinte uma mulher esbelta, com cabelo castanho escuro preso num coque atrás da cabeça, vestindo um simples conjunto marrom de saia e casaquinho e usando óculos de aros grossos viajou até a Cidade Universitária de Desham, na costa sul, e se apresentou na casa onde o dr. Gregory Lindley morava.

Margret logo percebera que o simpático americano de olhos tristes estava tão desesperado em arranjar alguém que cuidasse da casa e dos filhos quanto ela em arranjar um emprego. Por isso, em apenas meia hora haviam combinado o salário e as condições de trabalho. Ele nem prestara muita atenção na aparência da moça e tampouco perguntara sua idade. Na ocasião ficara aliviada pela falta de interesse demonstrado pelo patrão, mas agora pensava se seu disfarce havia mesmo sido eficiente. Ou se ele, de tanta preocupação, nem se importara em examiná-la melhor ou em lhe fazer mais perguntas.

Estava com a família há dois meses quando chegou a notícia de que Liza Lindley havia se ferido seriamente num acidente de carro, e Margret percebeu que Greg ficara aliviado por tê-la ali, naquela hora difícil. Quatro meses depois Liza morria, e o cargo de Margret como governanta passara a ser permanente. Ela estava satisfeita com o emprego, pois percebia muito bem a necessidade que as crianças sentiam de uma presença estável. Além disso, ficara cativada por Heather e Jamie. Liza havia sido uma pessoa frívola e caprichosa, e Greg, apesar de atencioso e gentil, era o típico professor, muito eficiente em suas aulas e pesquisas, mas muito vago e pouco prático nas questões do dia-a-dia.

O disfarce simples que usara durante a entrevista fora fácil de manter, e as crianças pareciam não reparar na diferença, se ela usava ou não óculos, ou se estava de cabelo solto ou preso. Por isso mesmo ficara mais descuidada naquela temporada de férias na Ponta do Lindley, enquanto Greg estava ausente.

Mas agora estava preocupada. Mesmo que tivesse recuperado os óculos, tinha quase certeza de que Carl iria contar ao primo que ela usara recursos pouco honestos para arranjar o emprego e tinha certeza de que Greg ficaria sentido. Talvez fosse capaz até de despedi-la.

Margret saiu para a varanda. A maré vinha subindo lentamente, ocupando a praia. O nevoeiro havia desaparecido e por trás da Ilha do Porco divisavam-se as outras ilhas, como esmeraldas no azul do mar. No canal em frente, o barco ancorado dava voltas sobre si mesmo, os metais brilhando ao sol. Como sempre, estava tudo muito quieto, embora às vezes um grito de gaivota quebrasse o silêncio. Quieto demais, pensou Margret, pois não se ouviam as vozes das crianças nem de Carl.

Margret encobriu os olhos com as mãos e os procurou pela praia, sem conseguir distinguir as formas das crianças e do rapaz. Claro, a maré já cobrira o lugar onde havia mariscos e eles já deviam ter se afastado. Será que tinham ido para o barco? Desceu até a praia, e reparou que o bote de borracha, no qual Carl chegara, ainda estava ali, sobre algumas pedras, os remos guardados e a corda amarrada em uma rocha.

Para onde haviam ido então? De repente, arrependeu-se de tê-los deixado sair sem ela. Correu pelo caminho estreito que levava à estrada, ao mesmo tempo em que prendia novamente o cabelo. Cinco minutos mais tarde, afogueada por correr ao sol, chegava à casa onde moravam Nelson e Millie White.

No estilo que Margret agora sabia ser tradicional da Nova Inglaterra, a casa era de madeira, construída no alto de uma colina, e tinha uma magnífica vista para o mar. Era pintada de branco e no jardim cresciam flores de todas as cores, formando manchas coloridas. Não havia ninguém na varanda da frente e ninguém veio atender quando Margret bateu à porta. Ela deu a volta até os fundos, onde ficava a horta. No meio das fileiras de repolhos e outras verduras, descobriu Millie, acocorada como se procurasse por alguma coisa.

Baixa e gordinha, Millie, usando um vestido sem mangas e um chapéu de abas largas, levantou os olhos quando ouviu que Margret a chamava.

— Nossa, você fica muito diferente sem os óculos! Eu quase não a reconheci. Quebraram?

— Bem... não... — Margret cobriu os olhos com as mãos, sem jeito. — Por acaso você viu as crianças?

— Claro. — Millie pegou uma cesta cheia de ervilhas e levantou-se, dirigindo-se para a casa. — Passaram por aqui há meia hora, junto com Carl. Meu Deus, fiquei surpresa em vê-lo! Disse que você pensou que fosse um ladrão — continuou Millie, caindo na risada. — Não faria nada mal a ele encontrar alguém que o enfrentasse, como ele contou que você fez. Sempre gostou de dar uma de mandão...

— E onde eles estão agora?

— Nelson os levou à cidade para vender os mariscos que apanharam de manhã.

— Vender?

— Claro, os mariscos estão bem cotados nesta temporada!

— Mas Heather e Jamie não conseguiriam pegar o suficiente! — exclamou Margret enquanto davam a volta na casa e chegavam à varanda da frente.

— Sozinhos não, mas tiveram ajuda, e muito boa — comentou Millie enquanto subiam as escadas de madeira. — Carl sempre foi um grande apanhador de mariscos e é muito vivo na hora de vendê-los. Eu não me surpreenderia se chegassem aqui com um bom punhado de dinheiro.

— Ele não deveria ter levado as crianças para vender os mariscos — objetou Margret. — Acho que Greg... que o pai delas não vai gostar.

— Bem, e o que você queria que elas fizessem com tudo aquilo? — retrucou Millie. — Eu acho que Carl tem razão em encorajá-las a vender o produto do seu trabalho. As crianças precisam aprender, senão não conseguirão sobreviver neste mundo...

— Ainda assim, acho que o pai delas não aprovaria que crianças tão novas vendessem o produto do seu trabalho — insistiu Margret sem se zangar, pois não era a primeira vez que escutava as teorias da outra sobre as virtudes do trabalho duro e da livre iniciativa.

— Acho que você tem razão, ele não aprovaria mesmo — retrucou Millie, largando a cesta de ervilhas e sentando-se numa cadeira de balanço. — Ele sempre foi um sonhador, enquanto Carl era o trabalhador. Descanse também enquanto pode — convidou ela, indicando outra cadeira para Margret. — Nossa, como hoje está quente! Ainda bem que Carl trouxe o bom tempo com ele!

— Já o conhece há muito tempo? — perguntou a moça, sentando-se na beirada da velha cadeira.

— Praticamente desde que nasceu, quando o tio o trouxe para cá numa temporada de verão. Earl e Marion Lindley não tinham filhos, e, quando os pais do garoto morreram, num acidente, adotaram Carl como filho. Meu Deus, como o tempo voa! Ele tinha dois anos quando veio aqui pela primeira vez! Lá se vão trinta e dois anos. Eu tinha dez e agora estou com quarenta e dois, quase avó pela segunda vez, e ele ainda nem se casou!

— E do que ele vive?

— É engenheiro, trabalha para uma grande companhia que constrói pontes e barragens. Era isso que ele estava fazendo no Peru, como andou me contanto. Vai voltar para lá para terminar o serviço. — Millie lançou a Margret um olhar inquisitivo. — Será que Greg vai voltar enquanto Carl estiver aqui?

— Deve estar de volta na sexta.

— Você deve ter contado a Carl sobre a morte da esposa de Greg. O que foi que ele disse? — indagou Millie, curiosa.

— Ele já sabia.

— Foi Carl quem a trouxe para cá, você sabe. Ela era enfermeira no hospital onde ele ficou internado depois da guerra. — Millie enxugou a testa. — Ele parecia gostar muito de Liza e acho que deve ter levado um choque quando ela fugiu com Greg. Chegou a conhecê-la?

— Não. — Margret sentia-se pouco à vontade. Não queria se envolver nos assuntos particulares da vida do patrão. — Quanto tempo você acha que eles vão se demorar na cidade?

— Só Deus sabe. Tudo vai depender do tempo que Nelson ficar por lá batendo papo. Por que você não aproveita e toma um banho de sol?

— Acho que vou fazer isso mesmo.

De volta à casa, Margret pôs um biquíni preto, pegou um livro e foi se deitar numa espreguiçadeira. Passou bronzeador pelo corpo e tentou se concentrar na leitura, mas não conseguiu. Estava muito mais interessada no que Millie havia contado sobre Carl e Liza.

Já estava sentindo a frente do corpo queimando e resolveu se deitar de bruços, a cabeça apoiada nos braços. Então Carl gostava muito de Liza... Margret sorriu ao lembrar-se das palavras de Millie. O termo "gostar muito" não se aplicava ao homem rude que conhecera na véspera, invadindo a casa. Quando ele amasse alguém, se é que isso aconteceria, seria de um modo violento e integral, e ela não conseguia imaginar que ele pudesse desistir assim tão facilmente de alguém que amasse. Também não podia imaginar mulher alguma querendo escapar de um homem que a abraçasse como Carl fizera com ela naquela manhã.

Embalada pelo calor do sol e pelo barulho das ondas na praia, Margret acabou cochilando, mas acordou ao sentir algo passando de leve por suas costas. Abriu os olhos e não se mexeu, tentando descobrir o que seria, e quando aconteceu novamente reconheceu que a ponta do dedo de alguém descia por suas costas levemente.

Pensando ser Jamie, que às vezes brincava assim com ela, Margret estendeu o braço, procurando alcançar a mão da criança, mas em vez do pulso fino do garoto encontrou

o punho de um homem. Largou-o imediatamente e virou-se. Carl estava sentado numa outra cadeira de praia, os cotovelos apoiados nos joelhos, o queixo entre as mãos, olhando para ela com ar divertido.

— Onde estão as crianças? — indagou Margret, aborrecida por ele a ter observado enquanto dormia e tê-la tocado novamente.

— Estão na praia — respondeu ele calmamente, mas não havia nada de calmo no modo como olhava para ela.

— Você devia ter vindo me perguntar se podia levá-los para a cidade — disse ela secamente, resolvida a colocar uma barreira entre os dois, porque nesse novo encontro estava se sentindo muito estranha. Ou será que estava tendo uma ameaça de insolação? Não conseguia controlar suas emoções, e teve vontade de demonstrar que estava contente por vê-lo novamente, de estender as mãos e tocá-lo e até mesmo pedir que a beijasse outra vez.

— E arriscar que você dissesse não? — indagou ele, sacudindo a cabeça. Os cabelos loiros brilhavam ao sol. — Não é assim que eu trabalho — disse baixinho, aproximando-se mais, colocando as mãos na cadeira, ao lado dos quadris da moça, quase a tocá-la. — Quando me decido a fazer alguma coisa, vou e faço — murmurou.

— Já reparei nisso — comentou ela, trêmula, tentando se afastar o mais possível porque havia tentação nos olhos e nos lábios dele. — Mas parece que se esqueceu que Heather e Jamie estão sob minha responsabilidade na ausência do pai. Eu preciso saber onde e com quem eles estão.

— Mas não confia em mim? — indagou ele maliciosamente, chegando mais perto.

— Não, não confio — disse ela num sussurro, sem conseguir desprender os olhos dos lábios dele. As mãos de Carl por fim a seguraram pela cintura e ela estremeceu de emoção.

— Já faz muito tempo que não encontro alguém como você — disse ele num murmúrio pouco mais audível que o das ondas. — E não vou lutar contra o impulso de beijá-la novamente.

— Não! — gaguejou ela, ao sentir que ele a puxava para si. — Gostaria que me largasse — acrescentou com mais ênfase, virando a cabeça. Mas ele a beijou de leve, provocador.

Aquele beijo foi um tormento. Prometia muito mas não dava nada, fazendo com que ela se sentisse roubada. Margret ergueu uma das mãos e deu um tapa de leve no rosto de Carl, apenas para sentir que ele lhe agarrava a mão com força.

— Como... como se atreve! — queixou-se, sem conseguir pensar em mais nada para dizer. E ficou indignada ao perceber que ele ria. Com esforço conseguiu se levantar e se afastar. — Se achou engraçado o que fez, deve ter um senso de humor bem estranho! — explodiu ela.

— Eu estava rindo do que você disse — retrucou ele, levantando-se também. — "Como se atreve!" — repetiu, caçoando. — Não pensei que as mulheres ainda dissessem uma coisa dessas nos dias de hoje. Parecia um trecho de uma peça da era vitoriana, como quando você disse que ia gritar se eu a tocasse. Nada disso combina com o modo como está vestida, e duvido que tenha falado sério.

— Sim, falei — replicou ela, colocando-se por trás de uma das cadeiras de praia,

criando uma barreira entre os dois. — Não gosto de homens que ficam avançando em cima de mulheres que mal conhecem, e gostaria muito que você não tivesse aparecido. Se... se eu não tivesse prometido a Greg que ficaria com as crianças até que ele voltasse, iria embora hoje cedo para não continuar nessa casa com você!

No silêncio que se seguiu, Margret escutou perfeitamente as vozes das crianças e o ruído de um carro que se aproximava.

— Eu não fazia idéia de que a havia impressionado tanto! — comentou Carl, irônico, olhando para o veículo que parava na frente da casa. As portas se abriram e dele saíram um homem e uma mulher.

— Eu estava mesmo estranhando que Laura ainda não tivesse aparecido por aqui para saber quem havia chegado — disse Carl, aborrecido. Virou-se para Margret, piscando os olhos com malícia. — Uma vez mais tenho que adiar algo agradável, que é conhecer você, mas vou ficar esperando, ansioso, nosso próximo encontro. Tenho a impressão de que vai ser ainda mais interessante.

Foi se afastando pelo deck, chamando pelo casal que havia descido do carro. A mulher veio correndo, os braços estendidos, e os dois se abraçaram. Sentindo-se trêmula e confusa, Margret desceu até a praia, onde Heather e Jamie cavavam canais para esperar a maré que subia.

— Já passou da hora do almoço. Vocês não querem ir para casa comer um sanduíche e tomar um copo de leite?

— Nós já almoçamos — replicou Heather. — Comemos com Carl na lanchonete na cidade.

— E o que comeram? — indagou Margret, pois Greg era muito exigente com a dieta das crianças.

— Cachorro-quente e refrigerante — retrucou a menina, com um olhar de desafio.

— Vocês sabem que seu pai não quer que comam essas coisas — observou Margret meio exasperada. — Oh, bem sabia que não devia tê-los deixado sair de perto de mim! E os dois não deviam ter ido à cidade sem me avisar. Vocês têm que pedir permissão sempre que quiserem ir a algum lugar com um estranho.

— Carl não é um estranho — ponderou Jamie. — É nosso primo. — Levantou-se e estendeu a mãozinha suja de areia para Margret, olhando triste para ela. — Não fique zangada com a gente, Margret. Nós nos divertimos muito com Carl e ganhamos dinheiro vendendo nossos mariscos.

Margret olhou para ele e depois para Heather, sentindo-se derrotada. Estava mais do que claro que Carl, nas poucas horas de convivência com as crianças, as havia conquistado completamente. Não ligariam para qualquer palavra que ela pudesse dizer contra Carl, mas ainda fez uma tentativa.

— E isso é outra coisa que o pai de vocês por certo não aprovaria... — Mas a voz de Carl a interrompeu e distraiu as crianças.

— Heather, Jamie, venham até aqui. Há alguém querendo conhecer vocês!

Os dois obedeceram imediatamente, correndo até o deck, atendendo ao chamado dele com muito mais rapidez do que costumavam atendê-la. Ou mesmo aos pedidos gentis e baseados na psicologia que o pai usava. Carl era como um mágico, pensou Margret ao

seguir as crianças, e até mesmo ela estava começando a sucumbir à estranha magia daquele homem.

Subiu ao deck a tempo de escutar Carl apresentando as crianças à mulher, Laura Spencer, e ao jovem, Brett Spencer.

— Mas Greg não está aqui? — perguntou Laura, olhando à volta. Alta e muito bonita, usava calças brancas e uma blusa verde sem mangas. O cabelo claro era ondulado, mas de um loiro artificial. Margret nem se dava conta de como era uma figura atraente naquele biquíni, com os cabelos castanhos soltos até os ombros emoldurando o rosto bronzeado pelo sol. Parou perto de Heather.

— Não, mas vai chegar na sexta-feira — disse Carl. — E esta é Margret Randall, que toma conta da casa e das crianças para Greg.

Laura lançou a Margret um olhar gelado, fez um cumprimento seco com a cabeça e, virando as costas imediatamente, pôs a mão no braço de Carl e foi se afastando com ele, como se quisesse conversar a sós com o rapaz.

Margret sentiu o rosto queimando de raiva por ter sido desprezada pela mulher. Virou-se para correr até a casa quando foi barrada por Brett Spencer.

— É um prazer conhecê-la — disse ele, estendendo-lhe as mãos. Tinha mais ou menos a mesma idade de Margret e usava o uniforme típico dos jovens: camiseta com o nome da universidade onde estudava e jeans. Os cabelos meio compridos estavam presos por uma banda colorida. O sorriso era amistoso e os olhos acinzentados brilharam ao admirar a moça. — Há quanto tempo está aqui? — perguntou depois de se apertarem as mãos.

— Mais ou menos três semanas.

— Bem que eu gostaria de ter sabido disso antes. Teria vindo procurá-la. Não há muita gente como você por aqui nesta temporada. A não ser pelos Whites, nós somos os vizinhos mais próximos, isto é, quando estamos aqui... Nossa casa fica a uns dois quilômetros ao longo da praia, na direção da cidade, e, como os Lindleys, nossa família sempre passa as férias aqui. Laura e Jack, meu irmão mais velho, eram da turma de Carl e Greg, mas eu faço parte de uma geração mais jovem.

— Fico contente em conhecer você — disse Margret, esforçando-se para ser gentil, apesar de ainda estar magoada com a grosseria de Laura. — Quer beber alguma coisa? Temos limonada, chá gelado... ou cerveja, se você preferir.

Carl e Brett quiseram cerveja, Laura preferiu chá gelado e as crianças pediram limonada. Satisfeita em poder escapar, Margret subiu correndo para o quarto, onde enfiou um vestido comprido, que deixava apenas seus braços à mostra. Enrolou o cabelo em coque mais uma vez e, pensando no que Carl teria feito com seus óculos, desceu novamente. Não gostara do modo como Laura olhara para ela quando estava apenas de biquíni.

Encontrou Brett no hall.

— Achei que podia dar uma ajudazinha com as bebidas, abrir as cervejas, coisas assim — disse ele, amistoso. — E também não agüento quando Laura representa. — Abriu um sorriso quando Margret o olhou espantada. — Está acabando de afirmar como está triste por saber da morte de Liza.

— E isso não é sincero?

— Acontece que eu sei que ela detestava Liza.

Apesar de querer saber por que Laura, tão segura de si e tão superior, detestava tanto a esposa de Greg, Margret não perguntou nada a Brett. Foi indo para a cozinha, seguida pelo rapaz, que ficou encostado na mesa enquanto ela pegava a limonada e a cerveja da geladeira.

— Ela também não gostou de você, não é? — continuou Brett. — Deve ter reparado como foi grosseira... Ela esperava encontrar Carl ou Greg sozinhos e levou um choque quando você apareceu. Foi mais ou menos a repetição de uma cena acontecida aqui mesmo há uns dez anos, quando Carl veio convalescer dos ferimentos do Vietnã e trouxe com ele a namorada, uma enfermeira chamada Liza.

— Mas sua irmã não pode supor que exista algo entre Carl e mim! — exclamou Margret, virando-se para encarar o rapaz. — Eu o conheci ontem!

— Isso não vai mudar o pensamento de Laura. Ela sabe que Carl trabalha rápido e sempre foi possessiva em relação a ele e a Greg. Os três se conhecem desde crianças e passavam as férias aqui. Escrevia sempre para Carl quando ele estava na guerra. Foi para o colégio e para a universidade junto com Greg... os dois estão no mesmo ramo, psicologia educacional. O problema é que ela nunca conseguiu decidir de qual dos dois gosta mais e por isso os perdeu para Liza há dez anos!

— Mas Liza só se casou com um deles — lembrou Margret enquanto preparava o chá gelado.

— Certo, mas, depois que Liza foi embora com Greg, Carl sumiu, foi para o exterior, provavelmente para se curar do desapontamento, para tristeza de minha irmã. — Brett caiu na risada. — Oh, Margret. nem queira saber... Foi uma verdadeira confusão naquelas férias, com Carl e Greg atrás de Liza, e Laura esquecida num canto. Foi como aquela confusão da célebre peça de Shakespeare, Sonho de uma Noite de Verão, você conhece?

— Sim, conheço. — Sabia de cor vários trechos, pois chegara a fazer o papel de Titânia numa representação na escola.

— Vou ver essa peça hoje, num teatro a céu aberto. Quer ir comigo?

— Existe algum teatro aqui perto?

— Em Camden... a uns cem quilômetros daqui. Só funciona no verão, mas apresenta peças muito boas.

— Eu adoraria ir! — afirmou Margret animada, os olhos brilhando. — Mas como poderei? Alguém tem que ficar com Heather e Jamie.

— Se você quiser, peço a Laura para ficar de olho neles. — Os olhos de Brett cintilaram novamente. — Assim terá uma oportunidade de ficar a sós com Carl...

E eu terei uma oportunidade de escapar dele durante algum tempo, pensou Margret enquanto terminava de colocar a limonada nos copos.

— Que tal? Quer que eu faça a sugestão quando levarmos as bebidas lá para fora? — indagou Brett.

— Eu não sei... Não gosto de largar as crianças, mas já faz um século que não vou a um teatro!

— Olhe, pense assim: você não estaria deixando as crianças com estranhos. Laura

conhece Greg muito bem e ele também a conhece, por isso acho que não faria objeções — insistiu o rapaz.

— Está bem, então fale com ela — disse Margret.

Como um milagre, a atitude de Laura para com ela mudou assim que Brett comunicou, despreocupado, que gostaria de levar Margret ao teatro naquela noite, mas que havia o problema das crianças.

— Não é problema, não — afirmou Laura sorrindo. — Eu gostaria de ficar com elas. Podem vir jantar comigo. E você também, Carl. Sei que mamãe vai ficar contente em vê-lo novamente e em conhecer os filhos de Greg. Por que a gente não vai caminhando pela praia, como nos velhos tempos? Esses dois... — abanou as mãos na direção de Brett e Margret, como uma tia indulgente dando permissão para saírem — podem ir quando quiserem. Camden fica longe...

Por um instante Margret pensou que Carl fosse fazer qualquer objeção, porque franziu a testa e olhou feio para ela. Depois sacudiu os ombros.

— Tudo bem — resmungou. Depois, virando-se para Laura, continuou: — Então vamos andando?

O sol estava se pondo e colorindo o mar de dourado quando o carro de Brett desceu uma colina e entrou em Camden por uma avenida ladeada de árvores frondosas que sombreavam elegantes casas de veraneio. Jantaram num restaurante especializado em frutos do mar, de frente para o porto repleto de veleiros de diversos tamanhos. Depois se dirigiram para o teatro aberto, um semicírculo de grama onde os bancos eram lajes de pedra.

Logo os espectadores estavam envolvidos na magia do texto do grande dramaturgo, e Margret se identificava com os vários personagens da peça.

Primeiro foi Titânia, rainha das fadas, entristecida com o marido, Oberon, por causa de sua mais recente infidelidade. Depois foi Helena, uma jovem grega, que suspirava pelo amor de Demétrius, e por fim foi Hermia, amarga e maldosa, fazendo todos sofrerem ao descobrir que seu amante Lisandra não a amava mais, pois se apaixonara por Helena, que agora também era amada por Demétrius.

— Está percebendo o que eu quis dizer quando comparei o drama que aconteceu na casa dos Lindleys há dez anos com esta peça? — indagou Brett enquanto voltavam pela estrada que margeava a costa.

— Acho que estou entendendo — concordou Margret, olhando o mar prateado pela lua. — Mas o drama na vida real não acabou bem. O casamento de Greg com Liza foi um inferno, de acordo com as palavras dele. Ia pedir o divórcio alegando adultério quando ela se feriu naquele acidente.

— Nesse caso você pode dizer que ele pagou um preço muito alto por fugir com a namorada do primo — comentou Brett. — Se é que foi isso que aconteceu! Poderia muito bem ter sido o contrário, Liza roubando Greg de Laura... Quem é que vai saber?

Brett deixou-a na porta da casa e Margret ficou ali, saboreando a beleza da noite. Não havia nevoeiro encobrindo o luar, o único ruído era o dos grilos. O mar estava tão manso que não se ouvia sequer o barulho das ondas. Por fim a moça virou-se e entrou na casa.

Havia luz nas janelas da sala, mas ela não encontrou ninguém ali, nem na cozinha. Apagou as luzes e subiu, dando antes uma espiada no quarto das crianças. As camas estavam feitas e vazias. Onde estariam elas?

Com a consciência pesada por tê-las deixado, Margret foi pé ante pé até o quarto onde Carl dormia. Mais uma vez encontrou a cama vazia, mas um raio de luar brilhava num objeto em cima da cômoda. Eram seus óculos. Alcançou-os devagarinho e já ia saindo quando a porta se fechou de repente, cortando a luz que vinha do corredor. Meio assustada, Margret se dirigiu pela fresta de luz debaixo da porta e ia estendendo a mão para o trinco quando tocou a roupa de uma pessoa. Soltou um grito abafado e começou a lutar como louca ao sentir que dois braços a apertavam com força e ao perceber de quem eram.

— Seu atrevido! Por que me assustou assim? — gritava com raiva. — Largue-me, oh... largue-me!

— Ainda não — sussurrou ele, segurando-lhe o queixo com uma das mãos enquanto a prendia com a outra.

— O que pensa que está fazendo? — disse zangada, ainda lutando para se soltar.

— Estou dando as boas vindas a você — respondeu Carl baixinho, mas segurando-a com tanta força que ela não conseguia se mexer. — Ou então estou tentando destruir sua resistência, acabar com toda a sua hostilidade — acrescentou, rindo. — Agora vai ganhar o que merece.

E os lábios dele se colaram aos dela, quentes e exigentes, e estranhamente Margret sentiu que toda a revolta a abandonava, descobrindo algo que havia procurado a vida toda: força, carinho e também um desejo enorme. Percebeu que correspondia aos anseios dele. No começo apenas uma pequena chama crescia e crescia, espalhando-se por todo o seu ser, derretendo toda a sua resistência. Depois abraçou-o também, como se seus braços tivessem esse direito, e com um longo suspiro deixou que sua paixão se confundisse com a dele.

Na escuridão, boca a boca, os dois se agarravam, as mãos se acariciando, sem ligar à passagem do tempo. O desejo pulsava como uma torrente, fazendo com que eles balançassem, abraçados. Foi somente quando escutou as molas do colchão gemendo sob seu peso que Margret conseguiu se afastar um pouco de Carl, apesar de querer continuar abraçada é ele.

— Não — sussurrou, dando um passo atrás na beira do precipício da tentação.

— Por que não? — indagou. Estavam sentados lado a lado na cama e Margret sentiu a mão dele em seu pescoço, descendo pela blusa aberta, em direção aos seios. — Não foi para isso que veio aqui?

— Vim ver se você estava.

— E então? Eu estou, e temos o resto da noite para nos conhecermos melhor. — Margret segurou-lhe as mãos, impedindo novas explorações.

— Vim apenas perguntar onde estão as crianças — respondeu, sem fôlego. — Vi meus óculos e... oh, onde estão eles? — Deu um salto e levantou-se. — Devo tê-los deixado cair. — No escuro, caminhou em direção à porta e de repente ouviu o ruído de algo se quebrando sob seus pés. — Por favor, acenda a luz — pediu baixinho.

A lâmpada de cabeceira foi acesa e a luz brilhou nos cacos de vidro sob o pé direito de Margret.

— Veja só o que você fez — choramingou ela, abaixando-se para pegar o que restara dos óculos. — Estão em pedaços! — Levantou o rosto e olhou acusadoramente para ele, ainda deitado na cama, os cabelos e os pêlos do braço brilhando à luz da lâmpada.

— Não fui eu quem os quebrou, foi você quem pisou neles — retrucou Carl. — Que isso lhe sirva de lição, para não ir entrando no quarto dos outros sem ser convidada!

— Não foi isso que fiz! — respondeu Margret furiosa. — O que você fez com as crianças?

— Não fiz nada! Estão dormindo na casa dos Spencers.

— Você não tinha o direito de deixá-las lá sem falar comigo!

— Você as deixou sob minha responsabilidade e a de Laura — replicou ele, tentando acalmá-la. — Elas estavam se divertindo a valer com os filhos de Jack Spencer, que têm a mesma idade e estão passando férias com a avó. Vão voltar amanhã cedo e nós vamos velejar.

— Nós?

— Heather, Jamie e eu. Prometi levá-los à Ilha do Alto. — Lançou a ela um olhar de esguelha. — Quer ir também?

— Eu... bem... não posso deixá-las sozinhas, afinal sou paga para cuidar delas — disse, indecisa.

— Ótimo, então está tudo combinado. Embarcaremos de manhã e sairemos assim que a maré subir o suficiente para que a gente possa passar sem perigo pelos recifes na boca do canal.

— Mas temos que estar de volta na sexta-feira, antes que Greg chegue! — disse, e, lembrando-se dos óculos quebrados, continuou:

— Oh, meu Deus! O que vou fazer? Assim que ele me vir sem os óculos vai descobrir que o enganei para arranjar o emprego.

Saindo da cama, Carl se aproximou e pegou os restos dos óculos da mão da moça.

— Mas afinal por que foi que resolveu usá-los? Por que pretendeu ficar diferente do que é na verdade?

Na luz difusa, os olhos dele, sob as pestanas claras, estavam mais azuis ainda. Carl não era bonito como Greg, tinha os traços mais rudes que o primo, o nariz maior, o queixo mais quadrado, e a cicatriz perto do lábio dava uma expressão irônica a seu rosto, como se ele estivesse sempre caçoando das outras pessoas. Mas os olhos eram lindos, grandes e bem-feitos sob as espessas sobrancelhas, de um azul que variava do claro ao escuro, conforme o humor de Carl.

— Eu precisava desesperadamente do emprego — explicou Margret. — A peça em que trabalhava saiu de cartaz uma semana depois da estréia...

— Então você é atriz?

— Era. — Os lábios da moça se abriram num sorriso triste. — Levei três anos para chegar à conclusão de que nunca seria uma grande artista, e cansei de passar necessidades. Por isso resolvi procurar algo diferente. Greg estava tendo muita dificuldade em arranjar alguém que cuidasse da casa e dos filhos, depois que Liza foi embora. Eu me

candidatei ao cargo, mas a dona da agência me avisou que ele queria uma pessoa mais velha, por isso... — Interrompeu-se, sacudindo os ombros.

— Por isso você representou um papel — terminou Carl por ela. — Não foi muito convincente...

— Serviu para que eu conseguisse o emprego, e Greg nunca perguntou minha idade — retrucou, mais animada.

— E por que haveria de perguntar? Você estava fazendo o que ele precisava, cuidando dos filhos dele, tomando conta da casa, agindo como uma esposa agiria, mas sem exigir tudo o que uma esposa exige, principalmente o que Liza exigia... Por que ele iria querer estragar as coisas, se estavam caminhando tão bem?

— Você está sendo deliberadamente desagradável — disse Margret, aborrecida. — Está com ciúme de Greg e revoltado porque... bem, porque ele tirou Liza de você.

— Greg fez isso? — Carl levantou as sobrancelhas e riu, mas seus olhos brilharam de ironia quando acrescentou: — Você andou espionando minha vida...

— Como? O que disse?

— Que andou ouvindo mexericos. É verdade que Liza era minha garota e que a trouxe para cá. Eu gostava dela, era uma boa companhia para alguém que estava se recuperando dos ferimentos da guerra... Mas não agi do modo como ela queria, e Greg sim. — Analisou os óculos quebrados em suas mãos. — E agora, o que vai fazer quando Greg descobrir que você o enganou?

— Talvez ele me despeça.

— E se isso acontecer, o que vai fazer?

— Não tenho certeza. Vai ser difícil encontrar emprego aqui.

— É verdade, já que você é estrangeira. Vai voltar para a Inglaterra?

— Acho que vou ter que fazer isso.

— Ou então voltar a representar...

— Não! Oh, eu adoro o teatro, gosto de assistir a peças e filmes, me identifico com os personagens. Mas já vi que não dou para a coisa. Prefiro ser eu mesma durante todo o tempo.

— Sempre pensei que os atores de teatro nunca conseguissem se ver livres dele. Acabam viciados.

— Eu nunca fui assim. Por isso é que acho que não tenho talento.

— Então por que resolveu seguir essa carreira?

— Quando saí da escola, com dezesseis anos, era uma garota muito infeliz. Meu pai acabara de se casar novamente e eu tinha ciúmes de minha madrasta. Ela ria quando eu dizia que queria ser uma grande atriz, e quis provar que poderia mesmo ser.

— Uma Cinderela moderna?

— Nada disso. Não fiquei em casa esperando ser salva por um príncipe encantado que se casasse comigo!

— Então não encara o casamento como uma solução? Mesmo que Greg a mande embora e você precise voltar para a Inglaterra?

— Eu nunca me casaria apenas porque fiquei desempregada. Aliás, nunca me casaria... a não ser que estivesse apaixonada — afirmou com veemência.

— A não ser que estivesse apaixonada... — repetiu Carl. — Está esperando pelo homem certo, então? — Novamente falava com ironia. — Será que vai reconhecê-lo, quando aparecer?

— Claro que vou, e posso afirmar desde já que não vai se parecer em nada com você — disse, zangada, perturbada pelas provocações do rapaz. Virou-se e abriu a porta. — Já é tarde, tenho que ir dormir.

— Não se interessaria em dividir esta cama comigo? — E Carl estava de novo à sua frente, movendo-se com a agilidade de um gato, as mãos estendidas para a cintura da moça, os olhos brilhando, os lábios se abrindo de um modo sensual. Irritada, Margret percebeu que seu coração disparava. — Apesar de tudo o que disse, querida, sei que você corresponde a meus desejos... — disse com doçura. — E acho que faríamos um ótimo par!

— Bem, eu não acho, e não estou nem um pouco interessada em dividir uma cama com você! Nem hoje, nem nunca! — Passou por ele, escapou para o corredor e conseguiu bater a porta antes que Carl impedisse.

Chegou a seu quarto e passou a chave na porta. Não tinha um pingo de confiança em Carl Lindley. Era atrevido o bastante para segui-la e continuar fazendo propostas indecorosas. Dividir a cama com ele, ora, sim senhor!

Mas, apesar de tudo, seu coração disparava à idéia de fazer amor com Carl naquele quarto banhado de luar. Sentia a pele queimar e quase perdeu o fôlego ao se lembrar das carícias dele. Nunca havia se sentido assim, nunca havia sentido tamanho desejo! Isso não podia estar acontecendo com ela, não era possível que estivesse apaixonada por um homem que acabara de conhecer! Tinha que pensar em outra coisa, em Greg, e no que diria quando voltasse e a visse sem os óculos. Por diversas vezes imaginou a cena, pensando no que responderia quando ele exigisse explicações, até que, exausta, acabou dormindo.

Teve pesadelos e acordou suando, enrolada nos lençóis, com alguém batendo com força na porta do quarto. Havia dormido demais.

— Margret! — A voz de Carl soava áspera. — Acorde! Já passa das dez e as crianças chegaram! Estão loucas para sair de barco, e, se não se levantar logo, vamos embora sem você.

Margret se soltou do lençol e correu para a porta, destrancando-a e abrindo-a, sentindo uma perigosa alegria ao ver Carl ali, à sua frente. Só que ele não estava tão alegre assim. O rosto zangado e os olhos furiosos demonstravam bem isso.

— Não precisava ter trancado a porta — disse, tenso. — Não ia violentar você!

Margret levantou o queixo, decidida.

— Já que afirmou que quando quer uma coisa costuma lutar por ela, achei melhor fazer isso — retrucou. — Você não pode levar as crianças no veleiro sem que eu vá junto.

— Está bem. Mas trate de se apressar e ficar pronta dentro quinze minutos! As crianças já estão esperando há algum tempo! E eu também.

— Mas...

— Vejo você na praia.

— Mas eu não... eu não tenho... — gaguejou Margret.

— Então iremos sem você — afirmou, e desapareceu escada abaixo.

Millie estava certa, pensou Margret, furiosa. Carl era prepotente mas ela não podia deixar que saísse sozinho com as crianças. Greg não gostaria nada daquilo, tinha certeza.

Carl estava prestes a empurrar o bote na água quando ela chegou à praia, quase sem fôlego. Ele mandou que se sentasse na proa, Margret, fingindo estar acostumada a andar de barco, escondeu o medo que sentia e obedeceu.

Enquanto o barco atravessava as ondas, ela pensava que aquela era uma experiência talvez única em sua vida: sair velejando até ilhas distantes. Seria uma aventura, e Margret sentiu-se mais animada, com vontade de cantar, mesmo sem saber por quê.

CAPÍTULO III

A enseada era como uma piscina de águas claras, circundada por rochas de granito rosa e cinza, algumas cobertas por uma vegetação amarelada. Aqui e ali apareciam pequenos trechos de areia branca, e, ao fundo, algumas árvores de grande porte, pinheiros e cedros, onde os passarinhos cantavam no ar morno da manhã.

Quando se debruçava sobre as cordas de proteção, na amurada do veleiro, Margret podia enxergar o fundo do mar, a areia clara cheia de conchas e pedras e cardumes de pequenos peixes que se moviam com rapidez.

Depois de três dias velejando pelas ilhas, a moça já conhecia muita coisa sobre elas. Sabia que há mais de quatrocentos anos haviam servido de abrigo a vários pescadores que vinham regularmente do outro lado do Atlântico nos seus pequenos barcos. Vinham da Inglaterra, França, Espanha e Portugal, pescar nas zonas mais produtivas daquela região, e aos poucos foram fundando povoados. Mais tarde vieram os exploradores, como Samuel Champlain, cujos homens haviam dado o nome de Ilha do Alto àquela que era a mais alta que todas as outras.

Depois de se certificar de que Jamie estava seguro e satisfeito, pescando no deck da frente com a vara que Carl lhe dera, Margret dirigiu-se à cabina e se estendeu num dos bancos, para tomar sol nas pernas. Apoiou a cabeça nos braços e fechou os olhos. Já era domingo e Greg deveria estar em casa há um dia e meio.

Quando, na tarde de sexta-feira, percebera que Carl não tinha menor intenção de voltar para o continente, havia ficado desesperada.

— Mas temos que voltar. Temos que estar em casa quando ele chegar — reclamara. — Greg vai ficar preocupado quando não nos encontrar!

— Não, não vai — respondera Carl, imperturbável. — Laura estará lá e vai contar a ele para onde fomos.

Nessa ocasião estavam ancorados em outra enseada, na Ilha do Veado, perto da costa e protegidos do vento. Na verdade não estavam muito distantes da Ponta do Lindley, mas como não havia caminho por terra Margret e as crianças não podiam voltar para casa. Ela então indagara a que horas levantariam âncora e Carl explicara que pernoitariam ali, pois estava interessado nas conchas e na vida marinha daquela ilhota rochosa.

— Então voltamos amanhã, logo cedo — insistira Margret. Mas ele não respondera; apenas saíra andando pela praia com as crianças — Temos que voltar amanhã cedo, está me ouvindo? — dissera irritada com aquela atitude displicente.

— Já ouvi — respondera Carl, virando-se para encará-la, com um riso irônico nos lábios. — Só que não vou voltar amanhã cedo apenas porque Greg vai chegar. Vim aqui para velejar pelas ilhas, e é isso que vou fazer. Amanhã iremos até a Ilha do Alto e lá passaremos a noite. Provavelmente voltaremos à Ponta do Lindley na segunda-feira. Tenho que devolver este barco ao dono na quarta ou na quinta, em Camden, e por isso devo sair da casa na terça, no máximo.

— Você não nos devia ter trazido se não pretendia voltar hoje!

— Mas eu queria trazê-los... e principalmente você — explicara ele suavemente, aproximando-se. — Gosto de tê-la junto a mim, mesmo quando quer se fingir de inocente, como agora.

— Não estou fingindo nada! — gritara ela.

— Não? — Levantara as sobrancelhas com ironia. — Acho que está. Já a segurei em meus braços e senti a paixão que corre por baixo dessa aparência calma e comportada. Você não é uma babá dos tempos antigos, é uma moça moderna, com instintos e desejos normais a uma mulher, e anda querendo satisfazê-los. Margret, você está no ponto para ser apanhada.

— Eu... Oh, eu odeio você!

— Porque descobri seu disfarce? Bem, ódio é melhor que indiferença. Significa que está reparando em mim...

Margret se afastara dele e fora ter com as crianças, que haviam encontrado algumas conchas diferentes num trecho da praia.

Não dissera mais nada sobre a volta e procurara ignorar Carl, mas isso era muito difícil dentro de um barco relativamente pequeno. Com as crianças dormindo nos beliches da cabina da proa, não havia outro lugar para ficar a não ser no compartimento principal, junto com ele. Os dois dormiam em beliches separados.

— Quanto tempo acha que vai agüentar? — Carl acabara por perguntar.

— Agüentar o quê? — Tinha tentado parecer indiferente, mas seu coração começara a bater mais depressa.

— A guerra fria — caçoara ele.

— Será que precisamos conversar? — indagara ela calmamente. — Acontece que estou lendo um livro muito interessante e...

— Tão interessante que faz dez minutos que não vira uma página! — comentara Carl, rindo.

— É uma pena que você não tenha nada melhor para fazer do que ficar sentado aí, olhando enquanto leio — retrucara ela, zangada.

— Não existe nada melhor do que ficar sentado olhando para você, a não ser beijá-la... — Tirara o livro das mãos da moça e o jogara para um lado. Houve um instante de silêncio enquanto os dois se encaravam.

Vagarosamente se dobrara para beijá-la e ela não o evitara. Os lábios dele tinham o gosto do sal do vento marinho e seu toque fora terno e sedutor, despertando nela uma resposta imediata e incontrolável. Assim que percebeu que seu corpo correspondia, procurou se afastar dele, com medo daquelas sensações novas.

— Ainda me odeia? — indagara Carl baixinho, recostando-se nas almofadas do beliche.

— Sim. — Seus olhos o enfrentaram, desviando-se logo a seguir.

— Não... — corrigira, lembrando-se de que ele dissera que preferia o ódio à indiferença. Depois, cobrindo o rosto afogueado com as mãos, havia desabafado: — Oh, eu não sei! Nunca conheci alguém como você e não sei se devo ou não levar a sério o que diz!

— E para que tentar? Aceite cada momento do jeito que vem. Seja você mesma e faça o que tem vontade, em vez de pensar nos motivos que eu possa ter. Não fico analisando por que quero fazer amor com você ou por que a beijei ainda agora. Tive vontade

e pronto!

Novamente Margret começara a sentir aquele imenso desejo de ser abraçada, beijada e acariciada por ele. Espantada por tais sentimentos havia desviado o olhar, as mãos cruzadas nervosamente sobre o colo tentando controlar o que sentia.

— Eu gostaria de dormir — murmurara.

— Comigo?

— Não! Não foi isso o que eu quis dizer. — Margret percebera ironia nos olhos e no sorriso de Carl e acabara explodindo: — É isso que detesto em você! Sempre torce o que digo. Apenas afirmei que estou cansada e que gostaria de ir para a cama, mas que não posso porque você está sentado nela.

Carl continuara parado ali, a cabeça encostada na grade do beliche olhando para ela curiosamente, o cabelo claro contrastando com madeira escura.

— Se a gente fizesse amor eu seria seu primeiro homem, não é verdade? — indagara ele baixinho.

— Mas nós não vamos... — retrucara, zangada e na defensiva apesar de sentir que o coração disparava só em pensar em fazer amor com Carl. — É verdade, seria o primeiro — concordou, mudando de tom.

— E preferia se casar antes de dormir com alguém, não é isso?

— E existe algo errado em pensar assim?

— Não, na verdade não. Se eu fosse o tipo de homem que pensa em se casar, acho que iria preferir uma mulher que ainda não tivesse esse tipo de experiência.

— Mas você não pensa em se casar, não é?

— Já percebeu, então... — respondera com um sorriso enigmático, levantando-se para que ela pudesse ocupar o beliche. — Durma bem — disse ao sair da cabina, deixando-a com a cabeça cheia de pensamentos desencontrados.

A noite transcorrera com calma e no dia seguinte haviam velejado por um canal, em direção ao mar aberto, o vento estufando as duas velas do barco, a água cintilando ao sol e gorgolejando por baixo do casco. O veleiro se aproximava da praia enquanto gaivotas brancas e cinzentas levantavam vôo. E em todos os lugares ao longo da costa viam-se as bóias coloridas das redes de pesca.

Por fim aportaram naquela minúscula enseada, que acomodava apenas um barco, e logo desembarcaram para explorar os arredores. Fizeram um churrasco na pequena praia, e mais tarde ficaram sentados no deck, admirando o belo pôr-do-sol.

Tinha sido um dia perfeito, Margret não poderia negar. Mesmo sem querer, havia ficado mais à vontade, aproveitando cada momento, aprendendo com Carl a velejar, conhecendo a história das ilhas, encontrando um novo e profundo prazer em partilhar com ele o tempo.

Mas, ao anoitecer, lembrando-se da noite anterior, ela resolvera colocar Jamie para dormir com Carl, e levara suas coisas para a cabina menor. Assim que as crianças se acomodaram, deu boa-noite ao rapaz e foi para a cama, fechando a porta entre as duas

peças.

Só que não conseguira afastá-lo de seus pensamentos um instante sequer. Nem mesmo ali, deitada ao sol, os olhos fechados, sentindo o calor no corpo. Desejava que ele voltasse logo. Carl havia ido até a praia com Heather, dar mais uma volta pela floresta, e Margret fazia companhia a Jamie, que preferira ficar no barco pescando.

De repente ouviu o som de um corpo que caía na água, seguido pelos gritos de Jamie. Margret ergueu-se, mas não conseguiu ver o garoto.

— Margret! Marg... — E o resto da palavra sumiu num terrível gargarejo. Apavorada, a moça debruçou-se pela amurada e viu o menino se debatendo na água, por uma sinistra corrente para perto de alguns rochedos na entrada da enseada. O salva-vidas laranja, que Carl sempre insistia que usasse, era apenas uma mancha colorida contra o azul do mar.

— Jamie, bata as pernas e tente nadar para cá! — gritou Margret, mas duvidava que ele tivesse ouvido. Não podia chegar até o garoto no barco de borracha, pois Carl o usara para ir à praia. Havia um único modo de salvá-lo: pular na água.

Correu à cabina, agarrou seu salva-vidas, vestiu-o num instante, pegou o apito usado no nevoeiro e apitou três vezes, um sinal combinado com Carl para qualquer emergência. Depois tirou os tênis e os jeans, prendeu a respiração e saltou.

A água estava muito mais gelada do que imaginara, e ela acabou se engasgando. Tossindo muito, lutou para voltar à superfície, mas percebeu que tinha que continuar se movimentando para evitar ficar congelada e inútil. Começou a nadar rapidamente em direção ao salva-vidas laranja que indicava a localização de Jamie.

A corrente forte alcançou-a e ela chegou perto da criança, que havia parado de bater as pernas e apenas boiava, imóvel, amparada pelo salva-vidas. O menino tinha os olhos fechados e os lábios azulados. Parecia amortecido pelo frio. Margret falou com ele, mas não obteve resposta. Apavorada, agarrou-o firmemente e começou a nadar em direção ao barco, esperando ter força bastante para vencer a correnteza.

Devagar, mas inexoravelmente, os dois foram levados em direção aos recifes, onde a água espumava e as ondas se quebravam com estrondo. Margret sentia que a força da correnteza tolhia suas pernas percebeu que iam ser levados mar afora. Quis gritar por Carl, mas como ele ia ouvir, se estava dentro da floresta? Carl, Carl, venha depressa, repetia para si mesma como numa prece.

Vagamente, como num sonho, escutou a voz dele e tentou olhar para trás, mas uma onda forte quase a fez engasgar-se novamente. Então uma silhueta escura apareceu ao longe: o barco de borracha voava sobre as águas. Margret viu o rosto pálido de Heather olhando para ela e o menino.

— Vou pegar Jamie — disse Carl com calma, como se o fato de salvar alguém que se afogava fosse coisa corriqueira. — Você se segura no bote.

Estendeu os braços e segurou o corpo do menino. Margret agarrou-se com força na corda dependurada ao lado do barquinho.

— E agora você. — Ela foi içada e caiu dentro do bote, arquejando. — O que aconteceu? — indagou Carl, começando a remar com força.

— Não sei — gemeu ela, tremendo de frio e de emoção. — Não sei — repetiu, olhando para o menino deitado, imóvel, junto de Heather. — Espero que ele esteja passando bem... Greg nunca iria me perdoar...

— Jamie respira normalmente, mas está gelado e meio em choque — disse Carl. — Assim que estivermos a bordo vamos colocá-lo e seu saco de dormir e fazer o mesmo com você.

Por fim chegaram ao veleiro. Heather subiu primeiro, depois Margret, que segurou Jamie. Na cabina, Carl despiu o garoto e o esfregou com força com uma toalha felpuda, estimulando-o e fazendo com que acabasse rindo, tentando qualquer coisa para tirar dos olhos de Jamie aquele ar apavorado.

Margret foi para sua cabina, pretendendo também tirar as roupas encharcadas, mas a única coisa que conseguiu fazer foi sentar-se na beira do beliche, apavorada, tremendo. Ainda estava assim quando Carl apareceu, e, ao vê-la daquele jeito, ele saiu novamente, voltando logo depois com outra toalha. Fechou a porta e disse, zangado:

— Tire essa roupa que vou esfregar você.

— Não — objetou Margret, meio sem forças, enquanto ele se sentava ao lado dela.

— Sim — retrucou o rapaz. — Não vai ganhar nada dando uma de puritana agora. — Ele mesmo se encarregou de desabotoar a blusa da moça, tirar a peça de roupa molhada e passar a toalha pelos ombros dela. — Sabe que se arriscou demais, pulando na água daquele jeito? — disse ele enquanto começava a esfregar a toalha com força, mas de modo completamente impessoal. — A água nunca fica quente, nem mesmo no auge do verão, por causa das correntes marítimas que vêm do norte. Margret, pare de chorar! — E ele a abraçou, apertando-lhe os ombros trêmulos. — Já passou todo o perigo — disse, encostando o rosto no da moça. — Não chore, está tudo bem.

— Não... não consigo... — soluçava ela. — Jamie podia ter morrido! Oh, o que Greg vai dizer quando souber? Eu devia ter ficado vigiando... Oh, nunca faço nada direito! Não sei nem tomar conta de um menininho! Foi tudo culpa minha, ele podia ter morrido afogado!

— E você também podia! — retrucou ele, rápido. — Mas não aconteceu nada a nenhum dos dois. E, se alguém tem que levar a culpa, sou eu.

— Você? — A surpresa agiu como uma bofetada no rosto da moça, impedindo que ela tivesse um ataque de nervos. Margret ergueu os olhos e continuou: — Não estou entendendo...

— Não havia jeito de Jamie ter caído do barco a não ser que tivesse passado por baixo das cordas de segurança da amurada, o que ele não fez. Acabou de me contar que se cansou de pescar na proa e decidiu tentar a sorte no costado do veleiro. Ficou pescando ali, achou que um peixe tivesse mordido a isca e se inclinou para ver melhor, acabando por cair exatamente pelo lugar onde eu e Heather havíamos descido para ir a terra. Agora, se eu tivesse recolocado as cordas, como deveria ter feito, ele não teria caído.

— Mas eu devia ter reparado que as cordas não estavam esticadas! — insistia Margret. Havia parado de tremer, mas não queria sair da cabina. — Foi culpa minha!

— Então vamos dividir a culpa, está bem? Nenhum de nós é perfeito. Está se sentindo melhor agora?

— Estou, obrigada. Desculpe-me por ter perdido o controle.

A calma com que Carl encarava as coisas ajudava-a a se acalmar também. Sabia que devia se afastar dele, mas, agora que saía do estado de choque, começava a ficar sonolenta. Encostou a cabeça nos ombros dele, sentindo o calor que emanava daquele corpo e das mãos que a seguravam. Pensou em se afastar, mas de repente não se importou

mais em estar praticamente nua junto a ele. Queria ficar ali, apenas isso, deitar-se no beliche e dormir amparada pelos braços dele. Nunca havia se sentido tão unida a alguém, nunca havia desejado tanto estar com alguém como queria estar agora com Carl.

Sem pensar, obedecendo a um instinto primitivo, tombou a cabeça para olhar para ele, os lábios entreabertos como num convite. Carl encarou-a longamente, os olhos azuis escurecendo. Resmungou alguma coisa e segurou os cabelos molhados da moça, tomando-lhe os lábios com violência, expressando o desejo de também unir-se a ela.

— Margret, Jamie quer que você leia uma história para ele!

Era Heather, que sacudiu o trinco da porta com força.

Margret se afastou de Carl e enrolou-se na toalha.

— Está bem, vou assim que acabar de me vestir — avisou à menina. Virou-se para Carl e disse baixinho: — Estou bem agora, pode deixar.

— Há horas em que eu desejaria ter deixado Heather e Jamie em casa. E esta é uma delas — comentou, levantando-se. — Você não precisa ler para Jamie, deixe que eu faça isso. Entre no seu saco dormir e se aqueça bem. Mais tarde seguiremos para a Ponta Lindley. O vento está bom e a volta vai ser rápida.

Pela primeira vez Margret não discutiu. Obedeceu e se enfiou no saco de dormir, adormecendo quase imediatamente. Acordou bem mais tarde, sentindo o veleiro jogando e uma desagradável sensação de enjôo. Estavam a caminho. Continuou deitada mais um pouco relutando em sair do aconchego do saco de dormir, pensando em Carl imaginando o que teria acontecido se Heather não os houvesse interrompido, preocupada com sua própria fraqueza.

O que estava acontecendo com ela? Por que quase o convidara a beijá-la e a abraçá-la? Dias antes dissera que o odiava e, na véspera rejeitara a sugestão de dormirem juntos. Devia estar ficando louca, e continuar ali deitada, pensando no que poderia ter sucedido se a menina não tivesse aparecido, não a ajudava em nada.

Saiu do saco de dormir e se vestiu com dificuldade, segurando-se para evitar bater contra os beliches. Assim que terminou de enfiar um jeans limpo e uma camisa, saiu e passou pela cabina principal. Jamie estava enrolado no saco de dormir, no beliche de baixo, e Carl havia colocado as grades para que ele não caísse com o balanço do barco. Lá em cima, Heather segurava o timão com uma expressão de satisfação estampada no rosto gorducho. Atrás dela, Carl, de olho no que a menina fazia.

O tempo havia mudado. Nuvens cinzentas vinham de sudoeste, quase encobrindo o sol, que agora parecia um disco amarelado. O vento ficava mais forte a cada instante, encrespando o mar. Com as velas brancas estufadas, o veleiro quase voava, a espuma espirrando pela proa.

— Ainda estamos longe? — indagou Margret, equilibrando-se no último degrau da escadinha, procurando se proteger do vento.

Como resposta Carl apontou na direção da proa e, olhando para lá, Margret distinguiu a silhueta familiar da Ilha do Porco.

— Daqui a uma hora estaremos lá — disse Carl. — Se quer ficar aqui, vai precisar de um agasalho e do impermeável. Já não está tão quente e às vezes os borrifos d'água chegam até aqui.

Margret sentiu vontade de juntar-se a eles e aproveitar mais um pouco a sensação de aventura, mas Jamie a chamou, dizendo que estava se sentindo mal. Ela foi acudi-lo, deixando de lado o prazer de ficar junto a Carl. O garoto acabou vomitando a água do mar num balde, e Margret também se sentiu enjoada. Subiu para a coberta por alguns minutos, para respirar o ar fresco. Tanto Carl quanto Heather pareciam estar se divertindo imensamente na direção do barco, e pela primeira vez Margret reparou, ao olhar para os dois, que a garota era muito mais parecida com Carl que com o pai. Heather tinha dele o mesmo tom da pele e dos cabelos, a mesma autoconfiança e coragem, a mesma maneira prática de encarar a vida. Heather podia ser filha de Carl!

Espantou-se tanto com esse pensamento que teve que descer novamente à cabina. Heather podia ser filha de Carl! Liza havia sido namorada dele, provavelmente também sua amante. Margret sentou-se ao lado de Jamie, segurando a mão do garoto, sentindo enjôos. Mas desta vez não era por causa do mar. Era ciúme, ciúme de uma mulher que nem conhecera e que estava morta. Uma mulher que fora namorada de Carl e que certamente o conhecera muito intimamente.

Mas então por que Liza fugira com Greg? Por que tinha se casado com ele? Será que havia descoberto que Carl não era apegado ao casamento e quisera arranjar um pai para a criança que ia nascer? Será que Liza contara a Carl que estava grávida e ele a abandonara? Margret sacudiu a cabeça, querendo expulsar aqueles pensamentos desagradáveis, preferindo nunca ter pensado naquilo.

Percebeu que já não iam tão depressa e que o veleiro não balançava tanto. Viu, por uma das escotilhas, que passavam pelo amontoado de recifes à frente da Ilha do Porco. Escutou quando o motor foi ligado e então Carl a chamou para pegar o timão e pilotar o barco, enquanto baixava as velas. Logo o barco estava passando pelo canal e chegando a enseada.

— Eu estou vendo o papai! — gritou Heather animada, abanando o braço. — Olhe, Margret, veja... Ele está lá no deck.

Margret olhou para a velha casa acinzentada, entre as macieiras. Lá estavam Greg e mais alguém, uma pessoa alta e loira, Laura Spencer.

— Está pronta para desembarcar? — indagou Carl.

— Ainda não arrumei minha sacola — respondeu ela, apressada. — Vou fazer isso agora.

— Se a mochila de Heather estiver pronta, eu a levarei junto com Jamie para terra. Depois volto para apanhar você.

— Está bem, pegue aqui — disse ela, estendendo a mochila. — Eu não demoro.

— Com esse vento, fica mais fácil remar com pouca gente no bote. Mas não tenha medo, volto logo.

Agora que o cruzeiro havia acabado, Margret desejava que tivesse durado mais. Pensava nisso enquanto enfiava a roupa molhada dentro da sacola e enrolava o saco de dormir. No fundo, desejava ficar no barco e velejar com Carl ao longo da costa.

Deus, o que era isso agora? No que estava pensando? Não podia ficar com ele, não apenas porque tinha que desembarcar e cuidar das crianças para Greg, mas porque não era seguro ir embora com Carl. Só com .algumas palavras sussurradas e algumas carícias provocantes ele havia conseguido enfeitiçá-la, transformá-la da pessoa introvertida e controlada que era em uma mulher impulsiva, dirigida apenas por instintos e emoções. Devia

sentir-se feliz porque Carl ia embora no dia seguinte. Devia estar feliz por estar saindo de sua vida para sempre!

Margret teve a impressão de que ele demorava demais em voltar para pegá-la. Por diversas vezes subiu até a coberta para olhar as águas. Havia descido para apanhar a sacola quando escutou o bote bater no costado do veleiro, e então subiu depressa. Carl embarcou, amarrou o bote e chegou perto dela, um ar maroto nos olhos azuis, os lábios se abrindo naquele sorriso meio cínico.

— Enfim sós! — disse ele. — E se eu levantasse âncora e saísse velejando agora mesmo? Existe um pequeno porto não muito longe onde poderíamos passar a noite, e então amanhã desceríamos a costa juntos. Que tal irmos velejando até o fim do mundo?

A sugestão que Carl lhe fazia era tão parecida com o que acabara de sonhar que Margret apenas pôde ficar olhando para ele, espantada. Depois, pensando que estivesse rindo dela, resmungou:

— Ora, não brinque comigo!

— Não estou brincando, Margret — respondeu ele, encarando-a.

— Falo sério. Venha comigo hoje, amanhã estaremos em Camden e depois voaremos para o Peru.

— Para o Peru? — Sobressaltou-se. — E o que eu faria lá?

— Ia viver comigo, ora!

— Agora sei que você está maluco! — retrucou Margret. — Nós nos conhecemos há apenas seis dias e está me pedindo para... para... — Interrompeu-se, sem conseguir dizer o que pensava.

— Fugir comigo? — Completou ele, sorrindo. — É disso mesmo que estou falando. Deve estar no sangue da família. — Pôs as mãos na cintura da moça e a puxou para si. — Como é, posso levantar âncora? Vamos?

— Não. Eu não posso ir sem falar com Greg. Tenho que explicar a ele o que aconteceu com Jamie — disse ela depressa, com medo do impulso que surgia e gritava bem alto: vá, vá com ele!

— Heather já contou. Eu não pude impedir que ela o fizesse. Acho que é muito esperta para a idade que tem — disse ele, tenso.

— Ela se parece com você — comentou Margret, aumentando ainda mais a barreira que se estabelecera entre eles. — Em muitas coisas — completou.

Carl olhou-a de esguelha.

— O que está querendo dizer? — A voz dele soava ameaçadora, dando a impressão de que não gostava de ser comparado com a jovem prima.

— Que ela podia ser sua filha! Parece-se muito mais com você que com Greg — disse calmamente, pois imaginava que esse era um modo de aumentar suas próprias resistências. Devia se preocupar com os aspectos negativos do rapaz, como fizera quando se conheceram; devia manter viva sua antipatia por ele. Virou-se novamente e desceu até a cabina para pegar suas coisas e prender o cabelo no coque habitual, esperando o encontro com Greg.

Ao se virar para subir as escadinhas, encontrou Carl no meio do caminho, barrando-lhe a passagem.

— Já percebi o que quis dizer — disse ele tenso, os olhos brilhando de raiva. — Está sugerindo que eu, depois de engravidar Liza, dei-lhe o fora, recusei-me a assumir a responsabilidade e por isso ela apelou para Greg. — Desceu o resto dos degraus. — Está com ciúmes dela? — provocou.

— Não, não estou!

— Então por que se preocupa com isso? Por que me agride desse jeito?

— E foi uma agressão?

— Claro! Eu não ando por aí engravidando mulheres para depois fugir delas — disse por entre dentes. — Também acho Heather parecida comigo. Mas não porque seja pai dela e sim porque se parece com o avô, pai de Greg e irmão de meu pai. São traços de família. A maioria dos Lindleys são altos, fortes e loiros. De qualquer modo, Heather não podia ser minha filha. Nasceu mais de um ano depois do casamento de Greg e é mesmo filha dele. Meu caso com Liza já estava terminado quando eles fugiram. — Aproximou-se mais, o rosto quase junto ao de Margret. — Peça desculpas — sugeriu ele de modo ameaçador.

— Se eu fizer isso você me leva logo para terra?

— Não vai viajar comigo?

— Não, não posso. Preciso ver Greg — replicou, firme. — Sinto muito ter dito o que disse sobre Heather ser sua filha. Foi uma coisa mesquinha e desagradável. E agora, por favor, leve-me para casa.

— Não antes disto...

Ela tentou fugir, mas não conseguiu e deixou que ele a abraçasse e a beijasse. Novamente se sentiu perdida, com os sentidos em alvoroço, e durante alguns momentos se esqueceu de tudo o mais. Devagar, Carl levantou a cabeça e pediu, ainda abraçando-a com força:

— Venha, Margret. Venha comigo para o Peru, nós nos divertiríamos muito!

— Por quanto tempo? — perguntou ela, estremecendo, quase capitulando à vontade dele.

— Por quanto tempo quisermos!

— Não posso responder já, preciso primeiro ver Greg.

— Está bem — disse Carl, soltando-a e encarando-a com um ar pensativo. Pegou a sacola e foi saindo. — Vamos, então. Vou levar você.

Greg estava esperando quando o bote chegou à praia.

— Margret, você está bem? — indagou, os olhos escuros demonstrando preocupação enquanto ajudava a moça a desembarcar. — Carl contou que você pulou na água para salvar Jamie, e que por sua causa ele não foi levado para o mar alto.

— Agora já estou bem, obrigada — disse ela. Estava contente em vê-lo, mas não se sentia nervosa e, estranhamente, nem muito preocupada sobre o que ele poderia dizer quando reparasse que ela parecia diferente.

— Você perdeu os óculos quando mergulhou? — perguntou Greg, franzindo as sobrancelhas como se estranhasse alguma coisa.

— Não, bem... eu... eu os quebrei.

— Você está muito diferente sem eles — disse, olhando para ela como se a visse pela primeira vez. — Muito diferente. Consegue enxergar bem?

— Sim. E posso explicar tudo, sabe...

— Mais tarde, mais tarde — interrompeu ele. — Tenho uma porção de coisas para lhe contar, mas agora preciso ajudar Carl a puxar o bote. Acho que você gostaria de tomar um banho e trocar de roupa. Laura está lá em casa, cuidando de Heather e Jamie. Você já a conhece, não é?

— Sim, já me encontrei com ela.

Greg continuava o mesmo, pensou Margret enquanto caminhava em direção à casa. Sempre procurava evitar qualquer coisa que lhe pudesse criar dificuldades, adiando explicações e decisões. Na verdade, não queria ouvir nenhuma explicação ou tomar qualquer decisão.

Dentro de casa, Laura estava acabando de descer a escada com um Jamie limpo e penteado, vestido com um conjunto de calça e camiseta azul. Os olhos cinzentos de Laura piscaram ao ver Margret, os jeans amassados, o agasalho todo amarfanhado e o cabelo em desalinho.

—- Você não está com uma aparência muito melhor que a de Heather e Jamie quando desembarcaram — comentou a mulher com olhos críticos, o cabelo loiro impecavelmente penteado, vestida num elegante conjunto branco de saia pregueada e casaquinho, com uma blusa azul-marinho por baixo. — Imagino que esteja cansada depois do episódio de hoje, e por isso vou livrá-la das crianças esta noite. Elas vão jantar conosco num restaurante da cidade. Carl também vai. Vai ser como nos velhos tempos, para ele, para Greg e para mim, e assim você poderá descansar bastante. — Virou-se para o alto da escada, chamado: — Como é, Heather, está pronta?

Também muito limpa e perfumada, com o cabelo loiro em duas tranças, Heather veio descendo, parecendo meio sem jeito no único vestido que possuía. Margret nunca conseguira persuadi-la a usar aquele vestidinho estampado de pequenas flores azuis, pois a garota sempre preferia jeans e camisetas.

O rosto de Laura se abriu num sorriso protetor ao olhar novamente para Margret.

— Foi muito bom você ter levado as crianças naquele cruzeiro — disse ela. — Significou muito para mim, pude conversar bastante com Greg. Retomamos nossa velha amizade e pudemos nos conhecer melhor. Até mais tarde...

Era natural que velhos amigos quisessem sair para jantar juntos, pensava Margret enquanto subia vagarosamente a escada. Mas não podia evitar a sensação de ter sido deliberadamente deixada de lado, embora o fato de ficar sozinha por algumas horas a fizesse pensar melhor sobre Carl e pesar bem sobre o convite para ir com ele ao Peru. Queria também chegar a uma conclusão sobre si mesma, uma mulher enfeitiçada pela magia daquele homem rude e que desejava muito ir com ele até os confins da terra! Mas tinha medo de seguir seus próprios desejos...

CAPÍTULO IV

— Já conversou com Greg? — perguntou Carl a Margret no dia seguinte. — Contou a ele que o enganou?

— Contei. Tinha de fazer isso, você sabe.

— E então? — Os olhos azuis do rapaz a examinaram com curiosidade.

— Achou que foi ele mesmo quem se enganou, e quer que eu continue aqui, cuidando da casa e das crianças.

— E o que resolveu?

— Resolvi ficar... pelo menos por enquanto — disse com simplicidade. — Além disso, não tenho escolha no momento. Não tenho dinheiro para voltar à Inglaterra e nenhum outro emprego.

— Você tem outra opção, e sabe muito bem qual é — retrucou Carl. — Pode ir para o Peru comigo.

— E fazer o quê? — explodiu ela. — Ser sua amante?

— Se quiser, pode colocar as coisas sob esse prisma — replicou, dando um passo em direção a ela. — Margret, vou perguntar pela última vez. Quer ir comigo amanhã?

— Eu... oh, eu acho que não posso — sussurrou ela desesperada, exatamente quando Heather entrava aos pulos na sala.

— Carl, vamos vender os mariscos? — pediu a menina, chegando perto e puxando o rapaz pela mão, em direção ao escritório. — Venha, peça a papai para nos levar à cidade no carro dele.

Carl resmungou um palavrão e lançou a Margret um olhar gelado antes mesmo de fazer o que a garota queria.

— Margret, cortei meu dedo numa concha! — Jamie entrou choramingando, batendo a porta de tela da varanda. — Está saindo sangue! — Estendia um dedinho sujo, onde aparecia uma gotinha de sangue. — Quero que ponha um curativo.

Engolindo as emoções do encontro com Carl, Margret levou o garoto à cozinha, lavou-lhe as mãos e aplicou um curativo no ferimento. Feliz outra vez, Jamie também foi falar com Greg. Ainda na cozinha, Margret escutou a voz das crianças e dos dois homens. Ouvi passos em direção à cozinha e Greg pôs a cabeça no vão da porta.

— Nós vamos até a cidade. Passaremos pela casa dos Spencers no caminho. Quer ir também?

— Não, obrigada. Tenho uma pilha de roupa para lavar.

— Está bem, até depois.

A tarde ia adiantada e Margret recolhia a roupa do varal quando Brett entrou pelo jardim.

— Vim me despedir. Vou embora amanhã, fazer uma excursão com uns amigos. E

depois vou direto para a escola. E como foi o cruzeiro?

— Foi ótimo, obrigada. Adorei passear naquelas ilhas todas — respondeu ela, levantando a cesta com as roupas e voltando em direção à casa.

— Foi uma pena vocês não terem ficado mais tempo — comentou ele, segurando a porta para que ela entrasse na cozinha.

— Por quê?

— Laura estava muito feliz tendo Greg apenas para ela! Você deveria ter visto o encontro dos dois na quinta-feira, depois de dez anos de separação!

— Ele voltou na quinta? — perguntou Margret, colocando a cesta em cima da mesa. — Mas deveria chegar só na sexta! Se eu soubesse não teria ido, nem deixado as crianças viajarem com Carl. Ele deve ter estranhado muito não ter nos encontrado aqui.

— Bem, se estranhou, não demonstrou. Nem mesmo teve tempo de sentir falta de vocês, pois Laura ficou aqui o tempo todo, cozinhando e saindo com ele. — Brett deu-lhe uma olhada curiosa. — o que vai fazer, agora que Greg arranjou emprego na universidade?

— Ele me pediu para continuar, mas ainda não resolvi.

— Este lugar é muito bom no verão, como vê — comentou ele, encostando-se à mesa. — E no outono não é tão ruim. Mas no inverno é frio demais e muito longe de tudo. Imagino que vá achar difícil viver aqui, sem parentes e amigos com quem conviver.

— Será que está tentando me dissuadir?

— Não. Estou apenas lhe mostrando a situação real. Claro que seria diferente se você se casasse com Greg e estivesse em sua casa!

— Agora que ele e sua irmã se reencontraram, talvez ele peça Laura em casamento — comentou Margret rindo, enquanto separava as peças de roupa em pilhas.

— Não enquanto você estiver aqui — disse Brett. — Ele não vai sentir necessidade de se casar outra vez enquanto tiver alguém para cozinhar e cuidar da casa. Greg vai ter que enfrentar primeiro a situação de um pai sozinho, tendo que cuidar de tudo, antes de pensar em pedir Laura em casamento. — Afastou-se da mesa. — É melhor eu ir andando — disse, sorrindo amistosamente e estendendo as mãos para ela. — Gostei muito de nossa ida ao teatro! Só sinto não ter tido oportunidade de sair mais com você.

Brett foi embora e Margret continuou com o trabalho de separar a roupa limpa e guardá-la nas gavetas e armários. Durante todo o tempo seus pensamentos estiveram ocupados com o que Brett lhe contara. Os comentários sobre Greg e Laura combinavam com o que Carl dizia do primo, e ela também reconhecia que seu patrão era assim mesmo. Enquanto estivesse ali, fazendo tudo o que uma esposa faria habitualmente, Greg nem se lembraria de se casar outra vez, principalmente depois da péssima experiência com Liza.

Eram quase cinco e meia quando Greg voltou com as crianças. Margret serviu o jantar e depois todos andaram pela praia. Mais tarde as crianças foram dormir, e, quando o sol acabava de se pôr no horizonte, Greg chamou Margret ao escritório e entregou-lhe um cheque.

— É o que eu devia a você por estas últimas semanas — disse. — A conta está certa?

— Está, obrigada — confirmou Margret, olhando o total do cheque. — Greg, e agora,

o que vai acontecer? Vai começar logo o trabalho na universidade?

— Não, ainda tenho duas semanas de folga — respondeu ele, recostando-se na cadeira. — Amanhã Laura vai levar as crianças até a feira, em Midworth.

— Ela parece se dar bem com Heather e Jamie, e os dois gostam dela também — comentou Margret, pensativa. — É uma pena... — Interrompeu-se, mordendo os lábios.

— O que é uma pena? — indagou Greg, surpreendido com a hesitação dela.

— Eu não tenho nada com isso — continuou ela —, mas não posso deixar de pensar que Laura seria uma boa mãe para Heather e Jamie ou para qualquer outra criança.

— Também concordo com você — disse ele entusiasmado.

— Então por que não a pede em casamento?

Greg piscou os olhos, surpreso com a franqueza da moça. Depois sacudiu a cabeça e sorriu para ela com tristeza.

— Ela não me aceitaria.

— O que o faz pensar assim?

— Ela tem um ótimo emprego na diretoria de uma escola e está apaixonada por Carl. Sempre esteve apaixonada por ele, e foi por isso que.... —- Fez uma pausa, com uma expressão de amargura no rosto Levantou-se e, enfiando as mãos dentro dos bolsos da calça, deu alguns passos até a janela, olhando a escuridão lá fora. — Eu queria me casar com Laura anos atrás, quando ainda estávamos no colégio — explicou. — Mas sabia que ela amava Carl, que na ocasião estava no Vietnã. E ficou tão magoada quando ele apareceu com Liza que eu tive que fazer alguma coisa. Pensei que, se levasse Liza comigo Carl teria chance de perceber o quanto Laura o amava. — Houve um pequeno silêncio e Greg virou-se, com uma expressão de tristeza no rosto. — Cometi um erro. Carl não reagiu do modo como eu esperava! Ele também foi embora, e Liza... bem, Liza insistiu em que nos casássemos.

Margret mal podia acreditar no que ouvia. A complicação de dez anos atrás fora ainda maior do que imaginava, e do que Brett contara!

— Está querendo me dizer que pediu a Liza que fugisse com você apenas porque queria ajudar Laura? Você a amava tanto assim, apesar de saber que ela estava apaixonada por Carl?

— Parece coisa de Don Quixote, não é? — Sorria como se tivesse pena de si mesmo. — Eu amava Laura, e acho que ainda a amo um pouco. Mas Carl sempre veio em primeiro lugar. Hoje os dois saíram juntos e sei que ela está esperando que ele a convide para ir ao Peru.

— Mas suponha que ele não a convide. Suponha que ele convide outra mulher. Nesse caso Laura vai entender, finalmente, que Carl não a ama?

— Talvez — admitiu Greg a contragosto. — Mas a quem convidaria? Atualmente não existe outra mulher na vida dele, senão a teria trazido.

Um carro parou do lado de fora. Portas bateram e passos soaram sobre o deck. A porta da frente se abriu e a voz de Laura soou clara, seguida pela de Carl.

— Acho que vou dormir — disse Margret. — Boa noite.

Passou por Laura e Carl quando entravam na sala, e a mulher sorriu alegremente para ela, parecendo muito animada. Carl nem sequer a cumprimentou. Os dois se dirigiram ao escritório de Greg.

No quarto, Margret olhou pela janela. A noite estava escura, mas não como quando Carl chegara. Agora estrelas brilhavam no céu negro e se refletiam sobre as águas do canal.

Margret virou-se na beirada da cama e acendeu a lâmpada de cabeceira para olhar o cheque que Greg lhe entregara. Se descontado, daria para a passagem de volta à Inglaterra e ainda sobraria um pouco. Agora que tinha dinheiro, poderia partir.

"Venha voar comigo"... As palavras da música passaram novamente por sua cabeça. Nessa mesma manhã Carl lhe pedira pela última vez que fosse com ele, e ela recusara. Será que fizera o mesmo pedido a Laura, como Greg estava supondo? Seria esse o motivo da animação dela?

Margret segurou o cheque com força. Não podia deixar que Carl levasse Laura para longe de Greg do mesmo modo como o próprio Greg levara Liza há dez anos. E havia apenas uma maneira de evitar que isso acontecesse. Ela teria que ir com Carl para que Greg e Laura chegassem a um acordo sem interferências e sem outras alternativas.

Ficou sentada durante um longo tempo, e por fim ouviu o movimento de pessoas que andavam no andar térreo. Pé ante pé chegou até o alto da escada. A luz brilhava no cabelo loiro de Laura enquanto dizia alguma coisa a Greg, e Carl permanecia encostado na porta que dava para a sala. Greg saiu para acompanhar Laura até o carro e depois de alguns instantes Margret desceu.

— Carl?

— Sim? — Virou-se para encará-la.

— Eu mudei de idéia. Gostaria de ir com você.

— Até o fim? Como eu sugeri? Ir embora, viver comigo no Peru?

— Sim.

— Por quê?

A pergunta inesperada a deixou sem fala por um momento, bem como o ar de suspeita no rosto dele.

— Eu... eu... não suporto a idéia de me separar de você — admitiu ela depressa, a voz trêmula ajudando a convencer.

Carl franziu a testa e deu um passo em direção a ela. Segurou-lhe o queixo e virou o rosto da moça para a luz, de modo a ver-lhe os olhos.

— Você está sendo sincera? — indagou, como se duvidasse.

— Claro, quero mesmo ir! — insistiu ela.

— E quanto a Greg? Já contou a ele sobre essa sua decisão?

— Ainda não, tinha que falar primeiro com você, ter certeza de que...

— De que eu não havia mudado de idéia... — terminou Carl por ela. — Bem, não mudei. Mas, se quer ir comigo, venha hoje mesmo e durma a bordo. Eu quero sair bem cedo amanhã, para aproveitar a maré. — Encarou-a novamente, o rosto sério. — Se quer

realmente partir, vá arrumar suas coisas. E diga a Greg que vou levá-la comigo. Encontre-me na praia dentro de vinte minutos.

Carl não estava reagindo como ela imaginara. Não ficara muito animado, pensou ela, apreensiva, enquanto arrumava suas roupas em duas malas, dando graças a Deus por ter pouca coisa. Vestiu um jeans uma camisa e uma malha de lã. Conferiu se levava o cheque de Greg, o passaporte e outros documentos na bolsa, colocou-a no ombro, pegou as malas e desceu, pensando no que diria a Greg. Largou a bagagem no hall e foi até o escritório. A luz estava acesa mas ele não se encontrava lá. Também não estava na cozinha, mas Margret tinha certeza de que ele entrara em casa. Deu uma olhada no relógio e viu que os vinte minutos estavam para terminar. Sentou-se na mesa do escritório e rabiscou um recado, explicando aonde tinha ido, com quem e por quê. Depois, assinou.

Saiu de casa rápida e silenciosamente, e chegou à praia. Carl estava lá, perto da forma escura do barquinho. Em alguns minutos ela sentava na popa enquanto ele remava até o veleiro.

Uma vez a bordo, Carl mandou que fosse dormir, e Margret acomodou-se na cabina menor, onde dormira com Heather. Caiu num sono profundo e só acordou com o barulho do motor sendo ligado e da âncora sendo içada. A luz fraca da aurora entrava pela escotilha. Margret vestiu-se depressa, chegando à coberta apenas a tempo de ver a casa da Ponta de Lindley desaparecer atrás dos rochedos da entrada do canal. Foi como uma cortina se fechando sobre um ato de alguma peça sobre sua vida. O tempo que passara com Greg e as crianças havia acabado. Logo seria só uma lembrança. E a viagem, com Carl talvez fosse apenas um intervalo antes que outro ato começasse.

Seguiram ao longo das águas calmas que separavam a Ilha do Veado do continente, com o sol por detrás deles, iluminando as velas, mudando as cores de tudo, de cinza para tons de verde, amarelo, marrom e azul. O vento não estava muito forte, e o veleiro seguia adiante, cortando as águas e deixando um rastro de espuma atrás de si. Passaram sob o traçado curvo e delicado de uma ponte suspensa que ligava a ilha ao continente, e seguiram em direção à Ilhota da Abóbora, que, com seu velho farol, guardava a entrada da baía de Penobscot.

Na luminosidade azul da baía, algumas ilhas pareciam boiar, como se estivessem espetadas por pinheiros e orladas de praias alvas e pedras amareladas. À distância viam-se as colinas de Camden com sua silhueta azulada contra o céu cheio de luz. Com as velas esticadas, o barco seguia adiante, o vento cantando no cordame, em direção ao fim da longa ilha.

Depois de velejarem ao sol por mais uma hora, chegaram a uma península escura, coberta também por pinheiros. De repente entraram em águas calmas, sem ondas, mais sombreadas. Correndo silenciosamente, com o vento pela popa, seguiram ao longo de um canal estreito, por entre praias salpicadas de rochedos.

Era um atalho, explicou Carl, que costumava usar quando menino, em companhia do tio, mas que só dava passagem na maré alta. Saíram do canal para uma larga baía, onde focas cinzentas tomavam sol sobre algumas ilhotas, levantando as cabeças lustrosas quando o barco passava por elas. Casas enormes, meio escondidas pela vegetação, apareciam nas praias da baía. Eram as residências de verão do pessoal rico de Nova York e de outras cidades vizinhas, explicara Carl.

Saindo da baía, deram no mar aberto, cheio de sol, e dali viram os edifícios brancos e a torre de uma igreja delineados contra o verde de uma colina. Era a cidade de Camden. O intervalo entre os atos estava quase terminando, pensou Margret entristecida, pois aproveitara cada minuto daquela viagem de cinco horas. Agora entendia por que tanta gente

gostava de velejar. Enquanto estava no mar, todos os problemas foram esquecidos. Mas ela teria que se preparar para enfrentar seu papel na peça assim que desembarcassem.

Deixaram o veleiro no cais do Iate Clube, onde Paul Munsen, o amigo de Carl, o aguardava com a esposa e mais alguns amigos.

— Parece que você fez um ótimo cruzeiro! — exclamou Paul, olhando curiosamente para Margret. As outras pessoas caíram na risada.

— Tenho a impressão de que estava sozinho quando saiu daqui, há uma semana — comentou uma voz masculina. — Ela é uma refugiada ou você a encontrou numa ilha deserta, vítima de algum desastre naval?

— Esta é Margret — disse Carl, sem se perturbar com os risos do pessoal. E a apresentou a todos do mesmo modo, sem se importar com os sobrenomes.

Eram todos muito agradáveis e amistosos, mas Margret não podia deixar de perceber que a tratavam como um simples caso de Carl. Ficou aliviada quando, depois de um rápido lanche, ele a levou para o carro em que iriam para Boston.

A viagem, no sol quente da tarde, foi silenciosa, e, ao se aproximarem da fronteira com Massachusetts, Margret já se sentia tensa. Desde a noite em que dissera a Carl que havia mudado de idéia que ele estava diferente, muito mais retraído. Por diversas vezes tentara puxar conversa, mas o rapaz sempre respondia com evasivas.

Será que estava arrependido do convite que fizera? Ou será que uma vez conseguido o que queria, ele não se sentia na obrigação de ser atencioso com ela? Tantas vezes, nos últimos dias, Margret se sentira ligada a Carl! Mas agora, no carro, pareciam dois estranhos, sem nada para dizer um ao outro. Ainda assim estavam dispostos a viajar juntos para outro país e viverem lá, dividindo cama e mesa.

A revolta começou a surgir dentro dela ao se lembrar das expressões dos amigos de Carl, que a fitaram com certa ironia. Imaginou próximos encontros, com outros amigos dele, onde quer que fossem juntos. Será que ia ser sempre assim, os olhares curiosos, os sorrisos irônicos? Será que nunca seria tratada com respeito, nem simpatia?

Havia sido uma louca ao concordar com ele. Mas na verdade não fora isso, dizia para si mesma logo depois. Viera com ele por uma razão muito especial: havia abandonado a casa de Greg. Mas não precisava ficar com Carl, nem levar até o fim do plano original. Assim que chegassem a Boston ela o abandonaria, acharia um lugar para passar a noite e, no dia seguinte, depois de trocar o cheque, compraria uma passagem de volta à Inglaterra. Sim, era isso mesmo que iria fazer.

A oportunidade de escapar apareceu antes de chegarem a Boston, quando Carl parou o carro num posto de gasolina, na velha cidade de Salem. Reparando que ali havia uma toalete, e satisfeita por ter guardado algumas roupas numa sacola de mão, Margret saiu do carro e se dirigiu para lá, onde ficou durante algum tempo. Depois saiu com cuidado e reparou que Carl estava de costas, falando com o atendente do posto. Então virou-se e correu para os fundos do prédio, atravessou o estacionamento e chegou à outra esquina.

Estava começando a chover, uma garoa fina que chegava com o anoitecer, molhava as calçadas e enevoava as luzes que iam se acendendo no prédio em frente, onde havia uma placa indicando que se tratava de um motel. Sem hesitar, Margret empurrou as portas de vidro e entrou no hall atapetado, onde se ouvia uma música suave.

Havia mais uma pessoa na mesa de recepção, e ela teve que aguardar alguns minutos. Por fim chegou sua vez e a recepcionista, uma senhora de ar severo, olhou-a de

cima a baixo quando pediu um quarto.

— Tem crédito? — indagou a mulher, cheia de suspeitas.

— Crédito? — Margret não entendeu.

— Claro, você tem um cartão de crédito? Ou vai pagar adiantado pelo quarto?

— Quer dizer que tenho que pagar antes, para ficar com o quarto?

— Isso mesmo.

— E quanto é?

A mulher lhe disse e o desânimo a atingiu. Sabia que não tinha toda aquela quantia.

— Eu não tenho cartão de crédito nem tanto dinheiro trocado — explicou. — Tenho um cheque de pagamento do meu patrão. Será que a senhora poderia trocá-lo para mim?

A mulher sacudiu a cabeça, como se não ligasse ou não quisesse ajudar.

— Não posso fazer isso — disse com grosseria e olhou para alguém que acabara de entrar. — Quer alguma coisa, senhor?

— Não, obrigado. Estou esperando por esta senhorita. — A voz de Carl era calma e sossegada demais para o gosto de Margret, que virou-se para encará-lo.

— Como foi que descobriu que eu estava aqui? — indagou meio trêmula, sentindo o coração apertado ao reparar a expressão do rosto dele e no olhar severo que lhe lançava.

— Quando você se demorou no toalete, fui verificar se havia acontecido alguma coisa e vi quando fugiu pelo estacionamento. Voltei para o carro e a segui até aqui. Que diabos, por que fugiu desse jeito, sem dizer nada? O que está tentando fazer?

Margret não respondeu; apenas virou-se e seguiu para a porta. Mas não foi muito longe: logo sentiu as mãos dele em seu braço. Carl segurou-a e virou-a para si.

— Não vai a lugar algum antes de me dizer o que está acontecendo! — ameaçou, zangado.

— Não podemos conversar aqui! — retrucou ela, ofendida. — Há gente escutando.

Carl deu uma olhada para a recepcionista, que, debruçada sobre o balcão, esticava o pescoço, cheia de curiosidade, e soltou o braço da moça. Aproveitando a distração momentânea, Margret abriu a porta rapidamente e correu pela calçada.

Carl alcançou-a na esquina e agarrou-a novamente pelo braço. Os dois respiravam com dificuldade e se encaravam com raiva, debaixo da lâmpada da rua.

— Aquilo foi um truque sujo — disse ele. — Mas você não vai escapar de mim assim tão facilmente, sem me dar uma explicação. O que estava fazendo naquele motel?

— Eu ia passar a noite lá. Carl, não posso ir com você para o Peru. Vou voltar para a Inglaterra — explicou com tristeza. A chuva, apesar de fraca, os encharcava, escorrendo pelos cabelos e rostos dos dois.

— Eu bem que desconfiava que você tivesse algo assim em mente quando veio me avisar que havia mudado de idéia. — A voz de Carl soava áspera, enquanto sacudia Margret de leve. — Mas não imaginei que chegasse ao ponto de fugir desse jeito, sem me dizer

nada. Será que não lhe ocorreu que eu iria ficar preocupado, imaginando o que havia acontecido? Não é muito seguro uma pessoa como você ficar andando por aí, sozinha, à noite.

— Pensei que fosse ficar aliviado — disse ela baixinho.

— Aliviado? E por que pensou isso?

— Eu... eu... eu percebi, no caminho para cá, que estava arrependido por ter me pedido para acompanhá-lo.

— Você por acaso sabe ler pensamentos? — ironizou ele. — Pois está errada. Não me arrependi de tê-la trazido, e, já que veio até aqui, não vou deixar que se vá. Pelo menos não agora. Esta noite você fica em Boston, na casa de tia Marion, e talvez amanhã, quando estiver mais descansada, possamos conversar sobre o que fazer. Posso até descontar seu cheque, se quiser.

— Mas eu... mas eu não posso ficar na casa de sua tia.

— E por que não?

— Bem... e o que ela iria pensar sobre... sobre nós dois?

— Vai pensar o mesmo que Paul e os outros pensaram, lá em Camden. Vai pensar apenas que temos um caso.

— Mas não quero que ela nem mais ninguém pense assim!

— Então por que veio comigo? — perguntou ele, enquanto apertava o braço da moça com mais força. Através da garoa Margret tentou olhar para ele. Mas seu rosto estava meio escondido nas sombras e ela não conseguiu perceber o que sentia.

— Por que não ficou com Greg e as crianças? Descobriu o que há entre ele e Laura?

— Descobri, sim — respondeu, a voz cheia de surpresa.

— Estou entendendo. — Deu um sorriso cínico enquanto passava as mãos no rosto, para retirar um pouco da água que escorria. — Acho que agora estou percebendo por que veio comigo — comentou, soltando o braço dela e virando as costas como se pretendesse voltar para o carro e largá-la ali. Só que não foi. Olhou novamente para Margret e disse: — Ainda pode ir a Boston comigo. Pelo menos ficará mais bem instalada na casa de minha tia do que num motel suspeito qualquer. Mesmo que encontre um que não exija pagamento adiantado.

— Está bem, então vou até Boston — disse baixinho, pensando consigo mesma que cedia apenas porque estava cansada, molhada, com fome e sem forças para lutar contra Carl.

Foram seguindo pela noite chuvosa em direção à cidade. Saíram da estrada para tomar um emaranhado de ruas estreitas, na parte velha, até que chegaram a uma casa alta, espremida entre outras casas altas em uma ladeira íngreme. Lampiões antigos deixavam sair uma luz amarelada que iluminava uma fachada de tijolos vermelhos, portas em arco e janelas brancas. Todo o bairro aparentava uma riqueza discreta.

Carl parou o carro em frente à casa, saiu e foi abrir a porta para Margret.

— Já é tarde, mas acho que tia Marion ainda não foi deitar-se — disse ele, segurando o cotovelo de Margret para ajudá-la a subir os degraus da frente da casa. Apertou a

campainha e, quando a moça escutou o som ecoando por dentro da casa, sentiu o coração apertado.

— Carl — murmurou, virando-se para ele. — Eu não posso... — E, sem saber como, estava nos braços dele. Sentia a jaqueta molhada de Carl encostada no rosto e os dedos dele em sua testa, arranjando seus cabelos molhados.

— Vai dar tudo certo. Você está cansada e confusa. Uma refeição e uma boa noite de sono vão operar milagres. Amanhã tudo vai parecer mais alegre e melhor, você vai ver.

Uma luz foi acesa e a porta se abriu de repente. Com um braço na cintura de Margret, Carl olhou para a senhora de cabelos brancos que, espantada, olhava para os dois.

— Ora, ora, você era a última pessoa que eu imaginava ver hoje, Carl — disse ela com uma voz doce e alegre. — Greg acabou de ligar. Queria saber quando é que você ia voltar para o Peru. Parecia estar muito preocupado com alguém chamado Margret. — Os olhinhos espertos encararam a moça. — Imagino que você seja Margret. Greg parece pensar que fugiu com Carl. — Olhou outra vez para o sobrinho e franziu a testa com um ar severo, como se estivesse aborrecida com o rapaz. — A pobre moça parece exausta. É melhor entrarem e explicarem o que andaram aprontando!

Entraram, e Margret notou o hall alto e comprido, com paredes cobertas de espelhos e móveis bem polidos, muito antigos.

— Estou achando que gostariam de comer alguma coisa — disse tia Marion, seguindo à frente dos dois até uma cozinha moderna onde panelas de cobre brilhavam contra o fundo escuro dos armários de madeira. — Se conheço bem meu sobrinho, ele não parou no caminho para vocês se alimentarem.

— É, a senhora me conhece... — concordou o rapaz, rindo. Sentaram-se à volta de uma mesa redonda com cadeiras de encosto de palhinha e comeram uma deliciosa refeição de queijo e frutos do mar, que Marion Lindley havia tirado do congelador e aquecido rapidamente num forno de microondas.

— Então é verdade? — indagou ela depois, enquanto servia o café para os dois. — Você fugiu mesmo com esse malandro, Margret?

— Na verdade, não — respondeu a moça, de cabeça baixa.

— Eu perguntei a Margret se ela gostaria de vir comigo, quando saí ontem da casa da praia, e ela aceitou — aparteou Carl com toda a calma. — Por isso estamos aqui.

— Então foi só isso que aconteceu? — exclamou tia Marion, levantando as sobrancelhas para Margret.

— Foi só isso mesmo — afirmou Carl, categórico.

— Então não consigo entender por que Greg estava tão preocupado. Quem o escutasse iria pensar que o mundo havia se acabado só porque Margret saiu de lá!

— Talvez ele pense exatamente assim durante algum tempo — disse Carl, num sorriso irônico. — Sabe, Margret era governanta da casa, cuidou de Heather e Jamie durante um ano e meio. Por isso ele deve estar achando que algo desabou na vida dele!

— Mas não existe ninguém lá para ocupar seu lugar? — indagou a Sra. Lindley, ansiosa, olhando outra vez para Margret.

— Não — respondeu a moça, sacudindo a cabeça.

— É claro que existe alguém para ficar no lugar dela! Greg precisa olhar melhor à volta dele. Laura Spencer está passando férias na casa da família...

— Está? Eu sempre gostei de Laura Spencer — disse tia Marion animada. — Durante algum tempo pensei que ela e Greg fossem se casar, mas depois apareceu Liza e... — A velha senhora soltou um suspiro, mas alegrou-se novamente. — Estou feliz que os dois tenham se encontrado de novo. Espero que desta vez aconteça alguma coisa!

— É exatamente nisso que estou pensando — disse Carl, empurrando a cadeira e levantando-se. — Tia Marion, por que a senhora não mostra a Margret o quarto onde ela vai ficar? Não dormiu quase nada a noite passada e viajamos o dia inteiro. Vou dar uma ligada a Greg e avisá-lo que Margret está aqui e que está tudo bem.

Saiu da sala e imediatamente a Sra. Lindley indagou a Margret:

— Você é inglesa, não é? De que lugar?

— Sou de Surrey, não muito longe de Londres. — Agora que havia comido e se sentia bem, Margret estava tendo enorme dificuldade em manter os olhos abertos, dê tanto cansaço.

— Cíntia também era inglesa — comentou a mulher.

— Cíntia? — Margret tentou esconder um bocejo.

— A mãe de Carl. O pai, que era irmão gêmeo de meu marido, conheceu-a quando esteve na Inglaterra, fazendo um curso de pós-graduação em Cambridge. Edwin também era engenheiro, como Carl. Ele não lhe falou nada a respeito dos pais?

— Não. Ele... nós... nós nos conhecemos há pouco tempo, só uma semana. Sra. Lindley, eu...

— Chame-me de tia Marion, querida. É assim que todos me chamam — disse, levantando-se. — Você está me parecendo muito esgotada e meio confusa, como se não soubesse direito o que aconteceu. Tem certeza de que fez a coisa certa, largando seu emprego? Espero que Carl não a tenha forçado a nada. Ele tem uma grande tendência para ser autoritário, e às vezes se comporta como uma locomotiva. Se acha que alguém está atrapalhando, simplesmente passa por cima. É muito parecido com meu falecido marido, tem liderança. Geralmente suas intenções são boas, mas os métodos que usa às vezes são rudes demais.

— Só sei que precisava ir embora — respondeu Margret, séria. — Sra... Tia Marion, eu gostaria muito de ir me deitar, se não se incomoda.

— Claro! Venha, vou levá-la ao quarto de hóspedes, e, se quiser, tome um bom banho antes de dormir.

Grata pela compreensão de tia Marion, Margret percebia vagamente que as coisas não iam muito bem entre ela e Carl, embora não conseguisse descobrir exatamente por quê. Tomou banho e se enfiou sob as cobertas da confortável cama do quarto de hóspedes. O cansaço a dominou e ela caiu num sono profundo.

CAPÍTULO V

Dez horas mais tarde, Margret acordou com o barulho do tráfego pesado. Durante um instante perguntou-se, sonolenta, onde estaria. Abriu os olhos e viu o quarto de teto alto, onde o sol entrava pelas janelas enfeitadas com cortinas de babadinhos.

As paredes eram verde-claras, e a colcha da cama, de brocado verde e prata. Um grosso tapete caramelo cobria o chão e a mobília de mogno brilhava de tão polida. Num grande espelho sobre o toucador, Margret via sua imagem refletida, os cabelos escuros espalhados sobre o travesseiro.

Espreguiçou-se gostosamente, sentindo nas pernas a maciez dos finos lençóis de linho. Dormira bem e sentia-se descansada. Agora sabia que teria condições de solucionar a situação em que se encontrava, exatamente como Carl havia previsto.

Jogou as cobertas para um lado, saiu da cama e foi até a janela. Através da cortina enxergou a rua, pavimentada com paralelepípedos, uma relíquia do tempo em que a velha cidade de Boston fora construída. Casas de tijolos vermelhos acompanhavam a ladeira, todas germinadas, elegantes em sua simplicidade. Margret voltou a lembrar-se da noite passada, quando ela e Carl, parados nos degraus, esperavam que a porta se abrisse. Ele havia sido surpreendentemente gentil, mas era muito perigoso ficar recordando a compreensão dele naquela hora, bem como o calor de seus braços enquanto a amparava. Tinha que deixar bem claro a si própria que havia vindo com ele apenas para ajudar Greg e que a primeira coisa que teria a fazer seria descontar o cheque, comprar a passagem para Londres e ir embora o mais depressa possível.

Pegou a sacola de mão e procurou pelo cheque, dentro da carteira. Não estava lá. Aflita, derrubou o conteúdo da sacola sobre a cama e ainda assim não o encontrou. As mãos na cabeça, procurou na memória, tentando lembrar-se do que havia feito com ele depois de mostrá-lo à recepcionista do motel. O cheque estava em suas mãos quando Carl apareceu e continuava nelas quando correu em direção à porta, fugindo para a rua. Ou não estava?

Chorando, sentou-se na beirada da cama, olhando para a carteira vazia, pensando com tristeza que o deixara cair quando tentara escapar de Carl. O cheque estava mesmo perdido, e ela, sem nenhum dinheiro.

Uma batida na porta a assustou. Foi abrir. Marion Lindley, vestida num elegante conjunto de malha azul, o cabelo branco como um halo à volta da cabeça, ali estava, segurando uma bandeja com leite, café, mel e um prato com pãezinhos.

— Ótimo, já acordou — disse, entrando no quarto. — Achei que gostaria de tomar seu café sossegada. Não tenha pressa — concluiu, colocando a bandeja na mesinha de cabeceira.

— Obrigada, foi muita bondade sua — disse Margret. — Acho que dormi demais. Por favor, que horas são?

— Dez e quinze, mas não se preocupe com isso. Carl e eu achamos que era melhor deixar que dormisse à vontade. — Marion virou a cabeça, olhando para Margret. — Você hoje está muito melhor!

— Estou me sentindo bem...

— Ouça, vou ter que sair, tenho uma reunião da comissão de voluntárias, trabalho muito nesse tipo de serviço. Se não fosse por isso, gostaria de ficar com você e conversar.

Mas esteja à vontade, e pode ficar aqui quanto tempo desejar. Carl precisou ir até a matriz da companhia, em Filadélfia, e avisou que só estará de volta na sexta-feira. — Marion foi indo para a porta. — Pauline, minha ajudante, vai ficar em casa. Se precisar de alguma coisa, peça a ela. Até logo.

Marion saiu e Margret serviu-se de café. Mordeu um dos pãezinhos. Macio e fofinho, derretia na boca, e ela pegou mais um, levando a xícara de café até a janela. Marion Lindley estava entrando num carro de luxo, o motorista segurando a porta.

Então Carl tinha ido a Filadélfia e só voltaria na sexta-feira! Havia ido embora sem dizer nada a ela, sem se despedir e sem deixar recado. Não que ele precisasse dizer alguma coisa, pensou ela depressa, afastando o sentimento de rejeição que ameaçava sufocá-la. Ambos eram livres para fazer o que bem quisessem! O fato de ele ir embora, afastar-se durante alguns dias, indicava que havia concordado com a decisão de Margret de não mais viajar ao Peru. Ele não insistiria no convite, pois deixara a porta aberta para que ela se decidisse a voltar para a Inglaterra.

Só que sem dinheiro não poderia ir a lugar algum. Sem dinheiro era praticamente uma prisioneira naquela casa. Franzindo a testa, preocupada, voltou e serviu-se de mais café. E se alguém tivesse encontrado o cheque e tentasse descontá-lo? Será que não seria melhor informar Greg de que o perdera, para que ele pudesse tomar providências?

Terminou de tomar o café, lavou o rosto, vestiu-se e desceu, levando a bandeja. Perguntou a Pauline, uma senhora gordinha, de cabelos grisalhos, onde ficava o telefone, e se encaminhou para o escritório. Era uma saleta com painéis de madeira, onde havia uma escrivaninha antiga e diversas cadeiras. Sentou-se e ligou direto para a casa da Ponta do Lindley. Esperou que o telefone tocasse seis vezes antes de desligar. Greg devia ter saído e ela teria que ligar mais tarde.

Marion voltou, como havia prometido, para o almoço. As duas estavam à mesa, na sala de jantar, quando a campainha tocou. Pauline foi atender e logo depois Greg entrava no aposento.

— Greg, que bom ver você! — exclamou tia Marion, levantando-se e indo até o sobrinho para beijá-lo.

— Também estou contente em vê-la, tia Marion — disse, retribuindo o beijo.

— Estamos acabando de almoçar, e talvez você queira comer alguma coisa. Pauline, traga outro prato e talheres, por favor. As crianças estão com você, Greg?

— Não, eu as deixei com Laura. Lembra-se de Laura Spencer? Ela prontificou-se a cuidar das duas para que eu viesse até aqui, fazer uma pesquisa no Ateneu — disse ele, seguindo a tia até a mesa.

O cabelo de Greg estava em desalinho, a barba por fazer, os olhos vermelhos de tanto dirigir. Obviamente fumara sem parar o caminho todo, pois cheirava a fumo e a frente do casaco estava cheia de cinza.

— Graças a Deus você ainda está aqui — resmungou ele, os olhos escuros expressando incredulidade e ansiedade. — Onde está Carl?

— Está em Filadélfia — respondeu a tia calmamente, olhando de um para outro. — Estou vendo que vocês dois devem ter muito o que conversar, por isso vou deixá-los sozinhos. Vai passar a noite aqui, Greg?

— Não, tia Marion, obrigado. Vou ficar com meus pais enquanto estiver aqui. Eles

estavam fora quando voltei da Inglaterra.

Marion fez que sim com a cabeça, olhou para Margret e, para surpresa da moça, deu uma piscada, como se achasse divertido o comportamento do sobrinho. Depois saiu da sala e Pauline entrou, com o prato para Greg e um bule de café fresco.

— Por que foi embora desse jeito, sem avisar nada? — indagou ele, enchendo o prato com salada. — Eu nunca teria imaginado que você pudesse cometer uma loucura dessas!

— Eu o avisei, ou melhor, tentei avisá-lo — retrucou Margret. — Tentei lhe dizer que não queria mais ficar e trabalhar para você, mas não me escutou. Ficou insistindo que precisava de mim, que dependia de mim...

— Mas é verdade, eu dependo de você!

— Bem, mas não devia — disse ela secamente, e, percebendo que ele ficara sentido, mordeu os lábios. — Oh, Greg, por favor, compreenda. Foi melhor para você eu ter vindo com Carl. Não devia ter me procurado. Por que veio?

— Para impedir que você fosse com Carl para o Peru, claro. Não deve ir com ele, e existe apenas um meio de impedir que isso aconteça. — Levantou os ombros e olhou diretamente para ela. — Margret, quer se casar comigo?

A surpresa foi tão grande que ela ficou ali, parada, sem saber o que responder.

— O que... o que foi que disse? — gaguejou finalmente.

— Pedi que se casasse comigo — respondeu ele. — Eu devia ter pensado nisso antes, mas ultimamente andei muito preocupado em arranjar emprego. Provavelmente iria descobrir mais tarde, assim que tudo se acalmasse. Deveria ter falado com você naquela noite em que falávamos sobre o futuro. Se a gente se casar tudo vai se resolver...

— Não, não vai! — Margret interrompeu o que ele dizia, fazendo com que levantasse os olhos, surpreendido. — Você já se casou por essa mesma razão. Pediu Liza em casamento para resolver um problema e veja o que aconteceu... Os dois foram infelizes! — Uma expressão de dor passou pelo rosto dele e Margret continuou, preocupada! — Por favor, Greg, tente compreender. Eu gosto de você, mas não o quero como marido, e por isso a resposta é não. Se quer mesmo se casar novamente, peça Laura em casamento.

— Mas eu já pedi e ela não me quer. Ainda está apaixonada por Carl. Estava esperando que a convidasse para ir ao Peru, mas ele convidou você. — Passou os dedos pelos cabelos. — Não entendo por que Carl lhe pediu que o acompanhasse. Mas, afinal, eu nunca o entendi... Ele não age como todo mundo... — Olhou para ela, do outro lado da mesa. — Margret, você ficará muito mais segura se se casar comigo. Carl não é do tipo que se casa...

— Eu não quero ser outra Liza!

— O que quer dizer com isso? Claro que não está pensando que a pedi em casamento porque se parece com Liza! Você não tem nada dela!

— Nem fisicamente nem no comportamento, mas Laura deve ter achado que me pareço com Liza por estar vivendo com você lá na casa da praia. Foi por isso que me afastei, Greg, para que você pudesse pedir Laura em casamento. Oh, será que não enxerga? Laura gostaria de ser sua esposa! Gostaria de ser mãe de Heather e Jamie! Você não devia estar aqui. Devia estar lá no Maine, com Laura.

— Gostaria de acreditar em você — suspirou ele, sacudindo a cabeça. — Mas não posso. Enquanto Laura souber que Carl está solteiro, vai ter esperanças. E nunca vai me querer.

Margret o encarava, exasperada. Para um homem culto e bem-educado, ele era absurdamente cego. Mas não era fato conhecido que psicólogos e psiquiatras têm grande dificuldade em resolver seus próprios problemas, muito mais que as pessoas comuns? Margret sentia uma grande tentação de pegar Greg pelos ombros e dar-lhe uma boa sacudidela, para ver se ele acordava para a realidade da situação. Ela precisava descobrir alguma coisa que o convencesse de que estava com a razão. De repente sentiu que havia achado a resposta.

— Carl não vai continuar solteiro por muito tempo. Nós dois vamos nos casar aqui em Boston, antes de irmos para o Peru. — Greg quase caiu da cadeira ao escutar aquilo. Ela percebeu que ele duvidava, por isso resolveu fingir mais um pouco para convencê-lo. — Sei que parece inacreditável — continuou, baixando os olhos e dando sorriso misterioso, indicando que tanto ela quanto Carl tinham seus segredos. — E para mim parece mesmo, pois foi tudo tão rápido...

— Mas você o conhece há apenas uma semana!

— Eu sei, mas é que nos entendemos muito bem desde o começo. E depois, quando fizemos o cruzeiro com as crianças, tivemos oportunidade de nos conhecer melhor. — Sorriu mais uma vez, sugerindo grande intimidade com Carl. — Na verdade, gostaria de ter contado a você antes de vir para cá, mas decidimos nos casar quando chegamos a Boston. Vamos anunciar o casamento logo que Carl volte de Filadélfia, na sexta-feira. Então está vendo que pode voltar para o Maine e dizer a Laura...

— Meu Deus! Você e Carl! — Interrompeu ele. — Eu nunca poderia imaginar que uma pessoa tão delicada e frágil como você fosse se apaixonar por um sujeito rude e arranjador de encrencas como Carl! — Olhou para ela, a dúvida aparecendo em seus olhos. — Margret, você tem certeza?

— Tenho certeza — respondeu ela, séria.

— Meu Deus! — murmurou ele novamente, passando a mão pelos cabelos. — Você vai ter que me perdoar por achar tão difícil acreditar nisso. Na verdade, não estou acreditando muito, e só vou ficar satisfeito vendo o fato consumado. Por isso não voltarei ao Maine antes que isso aconteça. Vou continuar aqui em Boston e testemunhar o acontecimento. Quero ser padrinho de Carl.

— Oh, mas... — Margret entrava em pânico. — E as crianças? E se Laura não puder cuidar delas por mais de dois dias?

— Ela pode trazê-los para cá e também assistir ao casamento. Talvez se convença de uma vez por todas que Carl não a ama. É isso mesmo que vou fazer, vou telefonar a ela esta noite e dizer-lhe que venha com as crianças, e assim todos estarão aqui para a cerimônia.

— O rosto moreno se animou e os olhos castanhos sorriram para ela.

— Acho que no fundo estou feliz com tudo isso, Margret.

— Obrigada — disse ela num fio de voz. — Mas por favor... não diga nada a Laura ainda. Nem a tia Marion. Veja, Carl quer estar aqui quando comunicarmos a todos. Por favor, não diga nada a ninguém até que ele volte.

— Então você ainda não tem muita certeza — acusou Greg, a expressão de alegria desaparecendo do rosto e dando lugar a um ar de dúvida.

— Sim, claro que tenho certeza — disse ela, apressada. — É que prometi a Carl não dizer nada a ninguém até que ele voltasse, e só contei a você porque... bem, porque também me pediu em casamento. Escute, Greg, não acha que é melhor fazer alguma coisa a respeito daquele cheque?

— Como? — Ele pareceu atrapalhado, sem entender aquela súbita mudança de assunto. — Que cheque?

— O que você me deu. Acho que o deixei cair na rua, quando paramos em Salem para abastecer o carro. Eu não consigo encontrá-lo e tenho medo que alguém tente descontá-lo. Por isso acho melhor você telefonar ao banco e avisar, e depois gostaria que me fizesse outro e me levasse a alguma agência para que eu pudesse trocá-lo. Estou sem nenhum dinheiro e preciso de um pouco para comprar roupas e outras coisas... para o enxoval.

— Está bem, está bem... vou telefonar. — Mas ainda franzia a testa, em dúvida. Dirigiu-se ao escritório e Margret, levantando-se, fez o mesmo, sabendo que se hesitasse ele voltaria ao assunto do casamento com Carl.

O banco foi avisado e Greg levou a moça até a agência para descontar o cheque. Agora Margret sentia-se mais segura, sabendo que poderia fazer uma reserva no primeiro vôo que saísse do aeroporto de Logan para Londres. Pediu a Greg que a deixasse num Shopping Center. O rapaz relutou, mas acabou cedendo, mesmo porque precisava ir até a Biblioteca do Ateneu. Avisou-a de que passaria no dia seguinte para visitá-la e despediu-se.

Assim que Greg a deixou, Margret entrou na primeira agência de viagens que encontrou e indagou se ainda havia algum lugar no próximo vôo para Londres. Pretendia viajar naquela noite mesmo, mas a lista de passageiros estava completa. Fez uma reserva para o dia seguinte, terça-feira. Quando Carl voltasse, na sexta, ela já estaria em Londres. Sentiu uma pontada de dor no coração. Quilômetros e quilômetros de distância os separariam e nunca mais iria vê-lo. Nunca mais... Apertou os lábios, lutando contra a angústia. Não ia mais fazer nenhum plano, e, como Carl, não ia se entregar ao arrependimento.

Ficou aliviada quando tia Marion a convidou para um concerto naquela noite. Sempre conseguia se esquecer um pouco dos problemas quando escutava boa música, e, ao voltar para casa, cantarolava o tema central do andante do Quarto Concerto para Piano de Beethoven.

Mas assim que se deitou começou a pensar no erro que cometera ao dizer a Greg que ia se casar com Carl antes de viajarem para o Peru. Tentou se convencer de que fizera isso com a melhor das intenções, mas sua consciência não a deixava em paz. Havia dito a Greg uma mentira deslavada e na noite seguinte ia fugir dessa mesma mentira, deixando a Carl todas as explicações.

Mas sabia que, no fundo, desejava que aquilo não fosse mentira. Queria, na verdade, casar-se com Carl! Por quê? Oh, não! Virou-se e enfiou a cabeça no travesseiro. Não podia ter acontecido! Não podia ter se apaixonado por Carl, não devia, não queria estar apaixonada nem por ele nem por mais ninguém. Deitada ali, na noite escura, sem conseguir dormir, examinou seus sentimentos e acabou tendo que admitir que estava realmente amando Carl e que a mentira que contara a Greg era o resultado do que desejava que acontecesse!

Nem por isso sentiu-se mais sossegada e acabou caindo num sono agitado. Acordou de repente, os nervos tensos, certa de ter escutado a porta do quarto se abrir e alguém entrar. Sentou-se na cama, escutando, e ouviu o som leve da respiração de alguém.

— Quem está aí? — perguntou aflita, a voz soando alta demais.

— Eu.

No mesmo instante a lâmpada de cabeceira se acendeu e ela viu Carl, de pé ao lado da cama, as mãos dentro dos bolsos de um robe vermelho-escuro amarrado na cintura, que deixava à mostra o peito nu.

— Mas... mas... eu pensei que estivesse em Filadélfia — sussurrou ela, esfregando os olhos com as mãos, ainda sem poder acreditar no que via.

— Eu estava lá, mas voltei esta noite. Faz pouco tempo que cheguei. — Percebeu que ela esfregava os olhos outra vez e acabou rindo. — Eu estou aqui, de verdade! Sinta.

Sentou-se na beirada da cama e colocou as mãos dela sobre seu peito. Margret sentiu a pele quente e úmida, ouviu as batidas fortes e regulares do coração de Carl, e essa sensação acabou por afetá-la profundamente.

— Está convencida? — indagou chegando mais perto. À luz da lâmpada, a pele de Carl brilhava como bronze, mas os olhos estavam sombrios e nada revelavam. Uma mecha de cabelo caía-lhe sobre a testa e Margret se excitou com a poderosa masculinidade que emanava dele. Sentiu uma vontade louca de passar os braços à volta do pescoço de Carl, demonstrar que estava feliz em tê-lo de volta. Mas com medo do impulso, retirou as mãos que ele segurava e as enfiou debaixo das cobertas.

— Já me convenci — retrucou, fingindo despreocupação. — Mas o que está fazendo no meu quarto?

— Vim verificar se você continuava aqui. Tive a impressão de que poderia ter voltado para a Inglaterra...

Alarmada, Margret afastou-se dele. Será que Carl havia pressentido o que ela pretendia fazer? Será que um sexto sentido o trouxera para Boston? Arregalou os olhos, assustada.

— O que foi? — indagou o rapaz.

— Tia Marion disse que você só estaria de volta na sexta... e eu... eu imaginei que não fosse voltar mais para cá, que fosse direto para o Peru.

Os dois se encaravam sob a luz suave da lâmpada de cabeceira, os olhares percorrendo amorosamente o rosto, o formato dos lábios, mas sempre acabando por voltar para os olhos. Margret sentia o sangue ferver, como se estivesse prestes a fazer uma maravilhosa descoberta, mas Carl se levantou e dirigiu-se ao lado escuro do quarto. O momento de intimidade havia passado e ela sentiu um desapontamento enorme invadindo todo o seu ser.

— Eu tinha mesmo ido embora para sempre — disse ele mansamente. — Não pretendia mais voltar para cá antes de ir para o Peru. Achei que fosse para a Inglaterra assim que soubesse que eu ficaria fora por alguns dias. Mas então encontrei seu cheque na minha carteira e percebi que você não poderia viajar sem dinheiro.

— O cheque que Greg me deu? — indagou, espantada.

— Esse mesmo. Você o deixou cair no hall do motel, em Salem, e eu o apanhei. Pretendia entregá-lo quando chegássemos aqui, mas acabei me esquecendo. — Saiu das sombras, e, tirando um papel do bolso, colocou-o sobre a mesinha-de-cabeceira. — Aqui está, um pouco amassado, mas ainda válido.

Margret olhava para o cheque, lutando para controlar-se.

— Você voltou apenas para me devolver isto? Trouxe-o somente para que eu pudesse rasgá-lo?

— Rasgar? — Apertou os lábios, franzindo a testa. — O que está querendo dizer?

— Greg veio até aqui esta tarde — disse ela, como se isso explicasse tudo.

— Veio aqui? E por quê?

— Disse que precisava fazer uma pesquisa numa biblioteca, mas isso foi apenas uma desculpa. Na verdade, veio para impedir que eu fosse embora com você.

— E como é que ele pretendia fazer isso?

— Pediu que me casasse com ele.

Houve um silêncio pesado e Margret ergueu os olhos. À luz do abajur, o rosto de Carl parecia uma máscara, nada demonstrando do que sentia ou pensava.

— E era isso que esperava que ele fizesse? Foi por isso que veio comigo? Esperava provocá-lo o suficiente para que resolvesse tomar uma atitude?

— Não... quero dizer... sim. Eu queria que ele tomasse uma atitude, mas não essa — disse ela, aflita. — Oh, acho que você sabe muito bem por que vim, por que saí da casa da praia.

— Eu também pensei que soubesse — retrucou ele secamente, os lábios num riso cínico. — E vai se casar com ele?

— Não, claro que não. Eu lhe disse para voltar ao Maine e pedir Laura em casamento. Mas Greg afirmou que não adiantava, que ela não concordaria com isso enquanto você fosse solteiro, porque ainda está apaixonada, e por isso eu disse a ele que... —Margret se interrompeu, hesitando em confessar, sem saber como ele reagiria.

— O que disse a ele, afinal?

— Eu... eu disse que nós dois nos casaríamos em Boston antes de viajarmos para o Peru — conseguiu dizer num murmúrio, a cabeça baixa.

Houve novo silêncio, desta vez tão profundo que Margret sentia-se comprimida contra a cama. Ficou com vontade de puxar as cobertas e esconder a cabeça, fugir dele de tanta vergonha, certa de que ele estava furioso. Depois de algum tempo levantou a cabeça, mas não enxergou Carl.

— Carl? — chamou, insegura, imaginando se havia sonhado tudo aquilo.

— Sim? — A voz vinha da direção da janela.

— Sinto muito ter inventado isso, mas foi a única coisa que me passou pela cabeça para convencê-lo de que está errado sobre Laura. Achei que não teria importância, já que você não voltaria mais para cá e que eu iria embora para a Inglaterra.

— Mas ele acreditou?

— Não completamente.

— Então há outras coisas?

— Sim — disse ela, suspirando. — Greg disse que só acreditaria nesse casamento se o visse. E que vai continuar aqui, e ser seu padrinho. Vai pedir a Laura que traga as crianças. Acha que se ela estiver presente à cerimônia talvez se convença de que você não pretende levá-la para o Peru.

Novo silêncio, e desta vez tão longo que Margret sentia que seus nervos iriam arrebentar. Quando Carl falou novamente, a moça deu um salto, assustada.

— E mais alguém sabe que nós vamos nos casar, além de Greg? — A voz dele soava calma e controlada.

— Eu pedi a ele que não dissesse nada a ninguém, nem a tia Marion, porque você queria estar aqui para contar a todos. — Fez uma pausa e acrescentou: — Está com raiva de mim, não é?

— E por que deveria estar?

— Porque o deixei em situação difícil. Sinto muito, eu não deveria ter mentido a Greg. Agora temos que contar a ele que não vamos nos casar.

— Nós teremos que fazer isso apenas se não nos casarmos — disse Carl, aproximando-se.

— O que quer dizer? — indagou ela baixinho, o coração começando a disparar.

— Que não há razão para modificarmos nada, já que esse é o único jeito de convencer Greg e Laura de que nenhum de nós quer se casar com nenhum deles... — E o rosto de Carl se abriu num sorriso maroto. — Estou achando que é um pouco tarde para pedir sua mão, principalmente porque você se adiantou e contou a um parente meu que íamos nos casar. Mas de qualquer modo farei a coisa certa, Margret. Se nos casarmos aqui em Boston, você embarca comigo para o Peru?

Carl estava com o rosto meio escondido nas sombras, e Margret não o via direito. Mas tinha a impressão de que ele se divertia imensamente com aquela situação. Acabou ficando com raiva. Como ele podia achar engraçada uma coisa tão séria quanto uma proposta de casamento?

— Que inferno! Agora percebo que estão todos dispostos a rir de mim! — murmurou baixinho, apertando a cabeça entre as mãos e sentindo lágrimas brotarem em seus olhos.

— Que diabos está dizendo agora? — quis saber ele irritado,

— Um trecho da peça de Shakespeare, Sonho de uma Noite de Verão. Helena é quem fala, quando se vê perseguida por Lisandra e Demétrius. Ela não consegue acreditar na seriedade dos dois quando a pedem em casamento. E você está fazendo o mesmo comigo. Quer divertir-se às minhas custas pelo que falei a Greg. Mas não teria dito nada se soubesse que você ia voltar!

— Mas foi mesmo uma boa idéia, e acho que devíamos levá-la adiante — disse Carl calmamente.

— Você não é o tipo de homem que pensa em se casar! Já me disse isso, e Greg

também sabe. É por isso que ele está duvidando.

— Mais uma razão para que a gente vá em frente — afirmou ele, sentando-se perto dela. — Vou perguntar mais uma vez, Margret. Quer se casar comigo?

— Não está falando sério — objetou ela.

— Claro que estou! Haverá tempo de nos casarmos antes da viagem ao Peru. Aqui em Boston consegue-se uma licença em apenas três dias!

— Mas... reservei um lugar no vôo de amanhã para Londres — disse ela com voz fraca.

— Essa certamente não é uma boa razão para alguém rejeitar uma proposta de casamento — desafiou Carl. — Vai precisar de um motivo mais forte, pois pode cancelar a reserva...

— Nós não podemos nos casar! Não podemos! — sussurrou ela, a cabeça baixa, o cabelo caindo em ondas sobre o rosto.

— E por que não podemos?

Margret continuou silenciosa enquanto tentava encontrar uma razão na qual ele pudesse acreditar. Não encontrou nenhuma.

— Você quer ajudar Greg, não é verdade? Quer que ele aja do modo certo e encontre a felicidade, não é?

— Sim, é verdade — respondeu ela, levantando os olhos depressa. Carl a encarava com atenção.

— Então case-se comigo. Devo isso a Laura, para desfazer o erro que cometi quando levei Liza para a casa da praia, há dez anos. Se existe alguém culpado pela infelicidade dos dois, esse alguém sou eu. — afirmou ele, amargo. — E, se meu casamento pode ajudá-los, então estou preparado para me casar com você.

— Mas... e depois? O que vamos fazer depois de nos casarmos?

— Vamos viver juntos, como todos os casais — replicou ele com um toque de humor.

— E se não der certo?

— Então a gente se separa — disse vagarosamente, franzindo a testa.

— Sempre achei o casamento um passo muito sério — disse Margret, querendo descobrir um jeito de ele entender o motivo pelo qual desconfiava daquela proposta.

— E imagina que eu não penso assim, certo?

— Sim, certo. Você não está me pedindo em casamento porque me ama!

— E o que é que você sabe sobre o amor? — indagou ele, sarcástico, chegando mais perto e dominando novamente os sentidos de Margret.

— Apenas sei que não é o que sente por mim — afirmou ela.

— E o que sinto por você? — indagou suavemente, levantando uma das mãos para tocar o rosto de Margret, os dedos leves como uma pluma.

— Alguma coisa apenas física, só isso — replicou ela, tentando controlar os tremores que percorriam seu corpo.

— Admito — murmurou ele, tocando-lhe de leve o cabelo, colocando uma mecha por trás da orelha, encarando os lábios vermelhos. — Eu me sinto atraído pela cor de seu cabelo e pelos seus olhos dourados. — Curvou o corpo e tocou com os lábios cada uma das pálpebras de Margret. — Pelo seu sorriso misterioso quando fica pensando nas maneiras de me enganar. Eu me sinto atraído pela sua pele suave e por suas pernas bonitas. Desejo você desde o primeiro instante em que a vi e foi por isso que pedi que fosse comigo para o Peru.

— O desejo nunca deve ser confundido com amor — retrucou ela, o rosado das faces demonstrando que ficara tocada com as palavras dele.

— Eu não concordo — afirmou Carl. — Pode ser o começo do amor. — Chegou ainda mais perto, de modo que ela se sentia quase presa. — E não tente dizer que não sente exatamente a mesma coisa por mim. Não vai negar que gosta de me tocar tanto quanto gosto de tocá-la, porque sei da verdade.

Quentes e sensuais, os lábios de Carl tocaram os dela, abrindo-os com suavidade. Por um segundo Margret resistiu, mas não conseguia mais lutar contra o desejo que explodia dentro dela. A explosão veio de repente, derretendo suas resistências e, com um suspiro de prazer, passou os braços pelo pescoço de Carl.

Durante longo tempo procuraram e descobriram deleites escondidos, falando apenas a linguagem dos lábios e das mãos. Sem palavras, criaram um poema alegre e sensual, que parou apenas quando a voz de Carl, suave e arfante, o interrompeu.

— Amanhã, na hora do café, diremos a tia Marion que vamos nos casar, e pode ter certeza de que ela telefonará aos pais de Greg para contar a novidade. Assim ele vai ter certeza de que vamos mesmo nos casar — cochichou ele, os lábios na orelha de Margret. — Você ainda não disse sim, querida.

— Pensei que tivesse acabado de dizer... — replicou ela timidamente.

— Mas eu gostaria de ouvir tanto quanto de sentir.

Será que podia confiar nele? Será que o casamento era uma coisa boa para os dois? A escolha era dela. Ainda podia desistir, dizer não, ou então mergulhar de cabeça. Nada em sua experiência de vida a havia preparado para uma decisão tão complicada, e não tinha, como no teatro, diretores para guiá-la nem ponto para ajudá-la. Tinha apenas uma sensação muito forte de querer ficar perto de Carl o maior tempo possível, de vê-lo todos os dias. Mas ainda assim não se sentia segura.

— Sim — disse baixinho, antes de ter tempo de mudar de idéia.

— Obrigado — disse ele, beijando-a mais uma vez e descendo da cama.

— Para onde vai agora?

— Para a minha cama, no meu quarto — replicou, apertando o cinto do robe. — Estou morto de cansaço, pois saí daqui ontem cedo, passei o dia todo em conferência com meu patrão em Filadélfia e depois viajei de volta. E não imaginava ficar acordado com você até as duas da madrugada!

— Bem, não precisava ter vindo até aqui — retrucou ela meio sem fôlego, apoiando-se nos cotovelos, irritada consigo mesma por ter ficado desapontada ao ver que Carl não ia

passar a noite toda com ela.

— Mas não está contente por isso? — disse ele da porta, como se a provocasse. — Eu bem que gostaria de ficar mais — acrescentou, como se lesse os pensamentos dela. — Mas acho melhor esperar até que façamos as promessas perante as testemunhas. Vejo você na hora do café. Boa noite e durma bem!

A porta se fechou atrás dele e tudo ficou silencioso no quarto iluminado pelo abajur. Aquela era a única prova de que Carl estivera mesmo ali no quarto, pensou Margret enquanto apagava a luz e se deitava novamente. Durma bem, ele havia dito. Virou-se e socou o travesseiro, cheia de frustração. Durma bem! Como é que ia conseguir dormir?

Deitou-se de costas e ficou olhando o clarão das luzes da rua que entrava pela janela. Será que Carl estivera mesmo em seu quarto? Será que a pedira mesmo em casamento? Era verdade que havia aceitado se casar com ele? Casamento! A palavra dançava em letras vermelhas à sua frente. Casamento sem amor. Oh, o que tinha feito? O que tinha feito...

Surpreendentemente, adormeceu em seguida, mas ao acordar não se sentia descansada. Tinha a estranha sensação de que podia apenas ter imaginado tudo o que acontecera em seu quarto na noite passada. Só quando desceu e entrou na copa para tomar café, e viu Carl, atraente e queimado do sol, de jeans e camiseta azul, sentado à frente de tia Marion, foi que sua sensação de dúvida começou a desaparecer.

— Margret, estou tão contente! — Tia Marion levantou-se, caminhando para ela de braços abertos, o rosto magro iluminado por um sorriso, os olhos azuis brilhando. Deu um beijo no rosto da moça e abraçou-a. — Carl acabou de me contar. É uma coisa que sempre desejei, e Earl, meu marido, teria ficado muito feliz. Só sinto que tenha que acontecer tão depressa, mas não posso reclamar. Afinal, vai ser aqui em casa! — Olhou para Carl. — Vou telefonar para Phyllis e contar a ela! — Virou-se novamente para Margret. — É a mãe de Greg. Acho que vai querer conhecê-la.

Tia Marion saiu da copa e Margret sentou-se à mesa. Carl pegou o bule e encheu uma xícara de café para ela.

— Assim que acabarmos aqui, vamos tratar da licença — disse, animado. — Acho que não vai haver nenhuma complicação. Você tem atestado médico?

— Não. Mas é preciso?

— Sim, para provar que você não tem problemas físicos ou mentais. — Franziu a testa. — Talvez tia Marion possa arranjar uma consulta para você hoje, com o médico dela.

— E se eu me recusar a ir a um médico? — indagou Margret.

Do outro lado da mesa, os olhos azuis de Carl, claros e brilhantes no sol da manhã, a encararam.

— O que aconteceu, mudou de idéia? Se foi isso, tia Marion vai ficar desapontadíssima. Ela acha que você é a garota mais sensacional que eu já trouxe aqui, e está feliz porque vamos nos casar.

— Carl, será que temos que fazer a cerimônia nesta casa? Será que não podemos dizer que nos casaremos quando chegarmos ao Peru?

— O que foi, está ficando apavorada, querida? — disse ele, os lábios se abrindo num sorriso decepcionado. — Já se esqueceu de Greg? Ele só vai acreditar no casamento se comparecer à cerimônia, foi isso que você me contou. Temos que nos casar aqui, se é que

vamos mesmo nos casar...

— Mas... — Interrompeu-se quando Marion entrou na copa.

— Phyllis e Greg já vêm vindo para cá — comentou ela, satisfeita. — Ficaram atônitos, como imaginei que ficariam. E agora, existe alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?

— A senhora poderia levar Margret ao Dr. Seifert — disse Carl. — Ela precisa de um atestado médico para poder tirar os papéis de casamento.

— Mas claro! — disse tia Marion, toda feliz. — Vou telefonar imediatamente à secretária dele e marcar uma consulta. Margret, e sobre o seu pessoal, na Inglaterra? Já contou a eles? Será que algum de seus parentes vai querer vir para a cerimônia?

— Bem... eu... eu não tenho família... isto é, ninguém muito próximo, só minha madrasta... e ela não vai querer vir. Não chegaria a tempo... Não... não há ninguém.

— Então nós seremos a sua família — disse tia Marion com bondade, dando-lhe um tapinha amistoso no ombro. — Oh, estou tão animada! — deixou escapar enquanto saía novamente. — Eu sempre quis planejar um casamento!

— Está vendo? Tente escapar agora e vai ter em suas mãos uma tia Marion extremamente infeliz.

— Isso é chantagem! — retrucou Margret, e viu que ele sorria. — E você, não está arrependido?

— De jeito nenhum — disse, debruçando-se em direção a ela. — Veja, vou conseguir uma coisa que desejo muito: você!

De repente a magia da noite anterior estava de volta, afugentando as dúvidas. Todos os argumentos de que dispunha contra o casamento sumiram e Margret estendeu a mão para a dele, por cima da mesa. Carl cobriu-a com a sua. Nada mais foi dito entre eles porque tia Marion estava de volta, avisando que o Dr. Seifert poderia receber Margret em seu consultório em meia hora, e que ela iria acompanhar a moça.

A partir daquele instante, e durante cinco dias quentes e ensolarados de verão, Margret sentiu-se envolta num clima de sonho, como se estivesse presa numa aura mágica, da qual não conseguia escapar. Enquanto isso, tia Marion prosseguia, animada, nos preparativos do casamento. A sensação persistiu até as duas horas da tarde de um dia abafado e úmido, quando, usando um vestido branco curto e simples, com flores de laranjeira espalhadas pelos cabelos escuros, ela ficou ao lado de Carl na sala da casa dos Lindleys, e prometeu ser sua esposa.

CAPÍTULO VI

A cerimônia do casamento havia terminado, e os noivos, trocado promessas e alianças. Lá fora, como para acentuar a dramaticidade da ocasião, o céu explodia em relâmpagos amarelados, entre nuvens quase roxas, que depois desabaram como se milhões de baldes de água fossem despejados das alturas, encobrindo a visão das casas do outro lado da rua.

Na elegante sala da casa de tia Marion as luzes cintilavam nos candelabros de cristal, o champanhe brilhava nas taças. Os olhares se animavam, os sorrisos se abriam em rostos queimados de sol, e vozes se alteavam em conversas e risos por entre os convidados.

Apertando as mãos de gente que não conhecia e sorrindo sem parar, Margret representava seu papel naquela peça. Logo mais a cortina baixaria e ela seria novamente Margret Randall, uma mulher só, livre para ir aonde bem entendesse, independente, sem ligação alguma com qualquer homem.

— Espero que você seja muito feliz, Margret — desejou Greg, e sua mão apertou a da moça, enquanto a cumprimentava do modo tradicional. Só que os olhos do rapaz continham uma expressão tensa e a costumeira ruga de preocupação aparecia em sua testa... — Estou me sentindo responsável por tudo isso — disse ele enquanto lhe tomava o braço, levando-a até perto de uma janela, onde podiam conversar mais à vontade.

— Por quê? — indagou ela. Não era possível que ele tivesse descoberto a verdade, que nunca teria havido casamento se não fosse para convencê-lo.

— É uma coisa bem antiga — disse ele. — Vem desde o dia em que apareceu em minha casa para a entrevista. Se você não tivesse aceitado o emprego, não tivesse vindo para os Estados Unidos e não tivesse ido para a Ponta do Lindley, não teria conhecido Carl. Por isso sinto-me responsável.

— Mas não devia sentir-se assim — afirmou Margret, enquanto reparava em Carl e Laura conversando do outro lado da sala. Os dois cochichavam como conspiradores. Exatamente nesse instante, Laura levantou os olhos e encarou-a; depois virou-se e disse algo a Carl, e caíram na risada. Uma estranha sensação tomou conta de Margret, que teve de controlar a vontade de atravessar a sala e ir tomar satisfações.

— Não consigo deixar de pensar que você caiu numa espécie de armadilha com esse casamento — dizia Greg.

— Armadilha? Como? — perguntou ela alarmada encarando-o. Depois lembrou-se de que estava representando um papel, o papel de uma garota muito feliz que acabara de se casar com o homem que amava. — Oh, não! — E achou que seu riso parecia verdadeiro. — Não caí em armadilha alguma ao me casar com Carl. Casei-me com ele porque... porque quis, só isso.

— Acho que foi porque tudo aconteceu tão depressa que estou me sentindo desse jeito — afirmou Greg, como se pedisse desculpas.

— Lembre-se de que nos casamos aqui, hoje, porque queríamos agradar a tia Marion. Faz muito tempo que ela planejava um casamento na família, e sua mãe também.

— Sim... sim, eu sei. — Seu olhar evitava o da moça, enquanto passava as mãos pelos cabelos, demonstrando claramente não ter ficado satisfeito com a resposta dela.

— Greg, não se preocupe com isso. Carl e eu nos entendemos muito bem e tudo vai dar certo, pode ter certeza. — Pôs a mão no braço dele e sorriu-lhe. — Estou contente porque você, Heather e Jamie vieram. Como não tenho parentes, senti como se vocês fossem minha família.

— Foi uma coisa bonita, essa que você disse — replicou ele, cobrindo as mãos de Margret com as suas. — Espero que sempre se sinta assim com relação a nós, pois durante algum tempo fomos mesmo uma família, não acha? Só Deus sabe como sentimos sua falta quando nos deixou, e eu nem sei como resolver o problema. Minha mãe disse que as crianças podem ficar com ela aqui em Boston e freqüentar a mesma escola que freqüentei até que eu encontre alguém que tome seu lugar...

— Mas escute... Olhe, pensei que agora que Carl está casado, você se decidisse a pedir Laura em casamento! — exclamou Margret desconcertada.

— Não sei se vou fazer isso... — resmungou ele, dando uma olhada na direção de Laura, que ainda conversava com Carl. — Ela está desolada, está mesmo. Foi difícil convencê-la a vir à cerimônia. Disse que achava que esse casamento era uma mistificação...

— Ora, ora, Greg! Não monopolize a noiva! — disse uma animada voz masculina ao lado deles. — Parabéns, Margret. Sou John Mason, um amigão de Carl. Fomos juntos para a guerra. — Margret sentiu-se segura por uma enorme mão vermelha e percebeu que o rapaz a beijava no rosto. Foi sendo arrastada para longe de Greg, em direção a tia Marion, de pé ao lado da mesa onde estava o bufê.

— Já está na hora de vocês cortarem o bolo — avisou a boa senhora. — Carl, coloque sua mão sobre a de Margret enquanto ela segura a faca. Eu gostaria que Greg e as crianças também ficassem perto, bem como Phyllis e Gordon. É para uma fotografia para os jornais da cidade. Todo mundo vai saber que nós, os Lindleys, ainda estamos bem vivos!

O bolo foi cortado e as fotos tiradas. Carl curvou-se para Margret e disse, baixinho:

— Assim que isto acabar, vá lá para cima e troque de roupa. Vou encontrar você na cozinha e a gente sai pela porta dos fundos. Não quero todo mundo nos acompanhando ao aeroporto. O avião para Miami, onde passaremos a noite, sai dentro de uma hora, e temos que estar lá trinta minutos antes.

Margret levou ainda algum tempo para conseguir escapar da sala, tantas eram as pessoas que ainda queriam falar com ela. Por fim conseguiu escapulir e subiu para o quarto. Fechou a porta e respirou, aliviada. Esse era o intervalo entre os atos e durante algum tempo podia ficar sozinha e reunir forças para a próxima cena.

Chegou até a cama e sentou-se, olhando para a aliança que Carl colocara em seu dedo. Era mesmo uma mistificação, como Laura havia sugerido a Greg? Virou o anel no dedo, pensando nas promessas que ela e Carl haviam feito. Eram bem reais, assim como a certidão e o juiz.

Então essa parte não era falsa, havia mesmo acontecido. Alguém bateu à porta e Margret, pensando que fosse tia Marion, apressou-se em abrir, dando de cara com Laura, que foi entrando.

— Eu a vi escapulindo, e logo imaginei: por quê? — Um sorriso brilhante iluminava-lhe o rosto. — Achei que poderia ajudá-la. — Fechou a porta e se aproximou da cama. — Você está pálida. Está se sentindo bem?

— Estou, obrigada. É que apareceu uma leve dor de cabeça, só isso — respondeu Margret, forçando um sorriso. — As tempestades sempre me deixam assim.

— A tempestade parece já ter passado — disse Laura, dando uma olhada pelo quarto. — O que é que você vai usar para viajar?

— Um conjunto de malha verde, que está dependurado no guarda-roupa — replicou Margret, levantando-se e soltando um raminho de flores da frente do vestido. — Será que poderia abrir o zíper para mim, por favor? — pediu, virando-se de costas para Laura.

Margret tirou o vestido de noiva e Laura o estendeu na cama, ajeitando as pregas.

— Você vai levá-lo?

— Não. Tia Marion disse que eu poderia deixá-lo aqui por enquanto — respondeu Margret. — Já arrumei as outras malas, estão no carro — disse, vestindo uma blusa de seda.

Depois de vestida, sentou-se em frente à penteadeira, para dar um retoque no cabelo e na pintura, esperando que Laura saísse e a deixasse sozinha por alguns instantes. Precisava de um pouco mais de tempo para ser Margret Randall, para se preparar para a próxima cena, onde seria Margret Lindley. Mas Laura não foi embora; ficou em pé, perto da janela.

— Muito obrigada pela ajuda — disse Margret com firmeza.

— Não há de quê — replicou a outra, aproximando-se de Margret. Refletida no espelho, era uma mulher alta, de seios cheios, a pele do rosto meio quadrado queimada de sol, nem linda nem graciosa, mas competente e segura de si. Usava um vestido de seda azul-marinho e branco, os olhos sombreados por um chapéu branco de abas largas.

— Eu bem que desejava ter tido mais tempo para conhecê-la melhor — disse ela.

— Eu também gostaria de conhecer você melhor, — afirmou Margret educadamente.

— Gosto muito de Carl — continuou Laura. — E uma vez me apaixonei por ele. — Olhou diretamente para os olhos dourados de Margret. — Depois descobri que não o amava mais, percebi que preferia Greg. — E um sorriso amargo apareceu-lhe nos lábios. — Mas descobri tarde demais, depois de ele ter fugido com Liza — acrescentou com amargura.

— Não precisa me contar tudo isso — disse Margret depressa, levantando-se e pegando a bolsa caramelo que combinava com as sandálias que usava. — Preciso ir, Carl está me esperando.

— Não, espere! — disse Laura, dando um passo à frente. — Preciso contar que quando soube que havia uma moça... uma moça muito bonita, na casa da praia, passando férias junto com Greg e as crianças, fiquei com tanto ciúme que podia ter acabado com você. Havia um rumor na cidade de que era amante de Greg e que provavelmente se casaria com ele algum dia. — Laura deu aquele sorriso triste outra vez, ao reparar na surpresa de Margret. — Não sabia que todo mundo estava comentando sobre isso? Eu acreditei nas histórias que andavam contando e pensei que você fosse outra Liza.

— Mas se você estava lá naquelas duas primeiras semanas, por que não apareceu para ver se as histórias eram verdadeiras?

— Acho que fiquei com medo de descobrir que eram... — disse Laura. — Eu sabia que Carl estava aqui em Boston, em férias, e por isso telefonei a ele contando sobre você. Ele disse que iria até lá dar uma espiada nas coisas.

— Oh, então ele sabia que eu estava na casa da praia o tempo todo! Sabia que eu

estava lá e no entanto... — Margret se interrompeu, franzindo a testa, tentando lembrar-se do que Carl havia dito a ela na noite em que chegara à Ponta do Lindley.

— É, ele sabia — disse Laura. — E concordou em levá-la embora por alguns dias, de modo que eu pudesse me encontrar com Greg novamente, sem que você estivesse lá. Depois a persuadiu a vir com ele para Boston. Isso teria sido ótimo, só que Greg veio atrás. — Laura riu e sacudiu a cabeça. — Greg sempre foi um cavalheiro... sempre disposto a socorrer uma dama em perigo. — Fez uma pausa e lançou a Margret um olhar gelado. — Sei que ele pediu você em casamento — acrescentou.

— É verdade, e foi por isso que...

— Por isso que você e Carl resolveram anunciar seu casamento — disse Laura, suspirando. — Imagino que foi isso que aconteceu, que o espetáculo de hoje foi apenas uma representação.

— Mas nós nos casamos legalmente — insistiu Margret.

— Não duvido disso, mas achei que Carl não chegaria a esse ponto — disse Laura, virando-se e começando a andar de um lado para outro. — Eu nunca desconfiei que ele gostasse tanto de mim a ponto de fazer o que fez... acho que estou tentando dizer que sei que ele não a ama e que você também não o ama e que não pretendem continuar casados.

Margret deu uma olhada ao relógio e dirigiu-se para a porta. Não estava gostando do que Laura dizia e não queria escutar mais nada.

— Eu preciso ir. Por favor, não diga nada sobre suas suspeitas a Greg — acrescentou, abrindo a porta. — Espero que tudo acabe bem entre vocês.

— Mas não está percebendo que você e Carl não precisariam chegar a casar-se?

— Adeus — disse Margret, séria, e fechou a porta do quarto atrás de si.

Conseguiu chegar na cozinha sem ser vista pelos outros convidados. Carl estava ali, impaciente. Fez com que Margret saísse pela porta dos fundos e descesse alguns degraus até uma viela, onde o carro de tia Marion os aguardava.

— Graças a Deus aquilo já acabou! — disse Carl ao se sentar ao lado dela. — Nunca mais vou me casar... detesto esse tipo de coisa.

Margret deu uma olhada para ele. Com um terno cinza e camisa azul-clara, parecia muito diferente do homem esportivo com quem fizera o cruzeiro. Só que, enquanto olhava para ele, Carl já soltava a gravata e desabotoava a camisa, demonstrando que não gostava daquela roupa formal.

O carro entrou na avenida que levava ao aeroporto, que ficava a alguns quilômetros do centro da cidade. As nuvens escuras que haviam sobrado da tempestade estavam sumindo para o lado leste e o sol brilhava nos vidros e no concreto dos arranha-céus que se erguiam mais para trás da parte velha da cidade, cujas construções eram, na maior parte, de tijolos vermelhos, e tinham telhado bem inclinado. Na baía, em frente à cidade, o vento encrespava as águas, que de acinzentadas se tornavam muito azuis.

— Carl, não vou mais com você para o Peru — disse Margret, os olhos fixos nos edifícios do terminal do aeroporto que apareciam mais à frente. Nada demonstrava da confusão de sentimentos causada pela conversa com Laura. Resolveu que já era tempo de parar representar.

— E por que não? — indagou ele calmamente.

— Não é necessário que eu vá com você, agora que Greg nos viu casando.

— Eu tinha a impressão de que você encarava o casamento como coisa séria — disse ele secamente.

— E é verdade. Por isso mesmo não posso viajar com você. — Virou-se para ele, mas se encolheu ao ver como o rosto do rapaz estava sério e como os olhos azuis pareciam tristes. — Oh, para que continuar a fingir? — murmurou, lembrando-se de que o motorista poderia escutar. — Cumprimos toda a cerimônia do casamento apenas para que Greg se convencesse, e ele não vai saber que nós não viajamos juntos. Ninguém vai saber que nos separamos. E, até que alguém descubra, Greg e Laura já estarão casados.

Carl não respondeu logo, e nesse meio tempo o carro parou na entrada de um dos terminais do aeroporto. O motorista saiu e foi pegar a bagagem dos dois.

— Você ainda vai ter que representar mais um pouco — disse Carl, tentando manter-se calmo e controlado, os olhos mais frios do que nunca, rugas profundas cortando o rosto de expressão severa. — Se o motorista não nos vir indo embora juntos, irá contar a tia Marion e todo mundo vai saber da verdade cedo demais. Você vem comigo até dentro do edifício, pelo menos até o balcão da companhia aérea.

— Oh, está bem.

Alfred, o motorista, entrou com eles, ajudando a carregar as malas, e não havia ninguém no balcão. Quando Margret alcançou Carl, ele já havia entregado os bilhetes e, antes que ela pudesse impedir, Alfred colocou as malas na balança, despediu-se e foi embora. Margret tentou tirar uma de suas malas da balança exatamente na hora em que um funcionário colava uma etiqueta em outra e a colocava numa esteira rolante.

— A minha mala! — exclamou, voltando-se para Carl. — Foi-se!

— Nós gostaríamos de lugares na parte dos não-fumantes — disse Carl à funcionária.

— Mas eu não vou com você! — insistiu Margret, chegando mais perto dele.

Carl deu-lhe uma olhada. Havia uma grande determinação em seus olhos.

— Assim mesmo vou marcar a passagem — retrucou, tenso. — Talvez até a hora do embarque você mude de idéia!

— Não! Nunca! — replicou ela, zangada. Então, percebendo que a moça do balcão a olhava com as sobrancelhas erguidas, e que as pessoas que estavam na fila atrás de Carl também pareciam curiosas, virou-se e dirigiu-se para o toalete.

Fechou-se em um dos reservados, resolvida a permanecer ali até que o avião levantasse vôo para Miami. Era o único meio de convencer Carl de que não ia mesmo com ele.

Ouviu a chamada do vôo de Miami por diversas vezes e também por diversas vezes escutou seu próprio nome sendo chamado. Pediam-lhe para que comparecesse ao balcão da companhia. Uma mulher entrou no toalete e bateu em cada um dos reservados, perguntando se a Sra. Margret Lindley se encontrava ali. Desconfiada de que fosse alguém enviado por Carl, Margret preferiu não responder. Logo o avião levantaria vôo e ele iria embora para sempre, deixando-a livre para voltar à Inglaterra. O breve casamento estaria terminado.

Depois que o avião decolou, ela esperou mais quinze minutos e saiu do reservado. Por precaução, continuou ali ainda por uns dez minutos, penteando o cabelo com vagar, lavando as mãos e planejando o que fazer a seguir. Encontrou dentro da bolsa o talão da passagem que comprara para Londres e viu que ainda era válida. Apenas precisava fazer nova reserva, e teria que ir ao balcão da companhia inglesa ver se havia lugar no vôo daquela noite para a Inglaterra.

Abriu com cuidado a porta da sala das senhoras e saiu. Havia muita gente na área de embarque, e Margret começou a andar em direção à saída, olhando à volta o tempo todo, procurando por Carl e esperando ardentemente não o encontrar. De repente esbarrou em alguém, e olhou dentro de dois olhos azuis cheios de raiva.

— Que diabo está tentando fazer? — resmungou Carl como voz ameaçadora. — Nós perdemos o vôo para Miami.

— Eu sei. Era isso mesmo o que pretendia. Não vou com você. — Passou a língua pelos lábios, mais confusa do que gostaria de admitir. — Por que não embarcou?

— Eu estava esperando você sair do toalete! — disse ele, zangado. Estava muito pálido. — Será que não se esqueceu de uma coisa? Não se esqueceu de que nos casamos esta tarde? Fizemos promessas um ao outro, e acho que isso me dá o direito de perguntar por que você está querendo a separação antes de ver se o casamento dá certo!

— Eu já lhe disse. Sei que se casou comigo apenas para convencer Greg e ajudar Laura, por isso achei que facilitaria as coisas se me afastasse agora. Ainda tenho a passagem que comprei para Londres. Por isso pensei em ir até o balcão da companhia inglesa ver se ainda posso embarcar hoje.

— Está bem, vou com você — disse conformado, segurando-lhe o braço enquanto saíam. — É um pouco longe, teremos que pegar o ônibus do aeroporto.

Lá fora havia uma fila de gente esperando o ônibus e alguns táxis estavam parados, aguardando passageiros. Carl levantou o braço um dos táxis parou o lado deles. O rapaz abriu a porta de trás insistiu para que Margret entrasse.

— Eu prefiro ir de ônibus — disse ela, repentinamente cheia de suspeitas, querendo livrar-se das mãos que lhe seguravam o braço.

— Assim é mais rápido — replicou Carl calmamente, dando-lhe um empurrão e fazendo com que acabasse sentada no banco do carro. Quando ela se recuperou do susto e estendeu a mão para o trinco da porta, Carl já havia entrado e o carro começava a andar. Passou o braço pelos ombros dela e puxou-a para si.

— Só vai conseguir se machucar se tentar sair agora — sussurrou.

Resistindo ao desejo de aconchegar-se a ele, Margret soltou-se debruçando-se para frente, disse ao motorista:

— Por favor, leve-nos ao terminal da companhia inglesa.

— O senhor quer que eu faça isso? — indagou o motorista enquanto se dirigia para a saída do aeroporto.

— Não. Leve-nos ao Hotel do Peregrino. Sabe onde é?

— Fica ao longo da costa, em direção ao Cabo Cod. Vai ficar meio caro... — disse o motorista de modo rude.

Carl tirou algumas notas da carteira e entregou-as ao homem.

— Pago o resto quando chegarmos.

— Tudo bem, senhor. O senhor é quem manda. — Deu um sorriso de desculpas para Margret. — Sinto muito, madame, mas o dinheiro fala mais alto nesta cidade.

— Estou vendo — retrucou ela, atirando-se para um canto, sem olhar para Carl. — Para onde estamos indo?

— Para algum lugar onde possamos ficar sozinhos nesta nossa primeira noite, onde possamos jantar à luz de velas, num hotel perto da costa, especializado em casais em lua-de-mel. — O sarcasmo dominava sua voz.

— Não vou passar a noite com você! — explodiu ela.

— Mas não vai passar com mais ninguém... — retrucou ele, sério. — Ninguém me engana, nem mesmo você.

— Eu... eu não enganei você!

— Mas estava pretendendo — resmungou Carl. — Na semana passada você disse que iria comigo para o Peru se nos casássemos. Agora estamos casados e você se recusa a ir. Acho que isso é uma tentativa para me enganar. — Fez uma pausa, soltou um suspiro e passou os dedos pelos cabelos. — Eu devia ter pensado melhor — acrescentou meio desanimado. — Mas achei que finalmente havia encontrado uma mulher em quem podia confiar.

Depois disso se afastou dela, sentando-se no lado oposto, e virou-se para olhar, pela janela, o trânsito da cidade, que o táxi procurava evitar. Desconcertada e magoada pela idéia que ele fazia de seu comportamento, Margret continuou em silêncio, sentindo-se miserável. De repente, lembrou-se de suas malas.

— Onde está minha bagagem?

— A caminho de Miami, junto com a minha — replicou Carl secamente. — Não se preocupe, elas estarão à nossa espera quando chegarmos lá. Deixei tudo combinado com a companhia de aviação.

— Você devia ter ido...

— Não sem você.

— Mas... e seu emprego?

— Pode esperar até que eu acerte minha vida pessoal, e neste instante você é minha vida pessoal... muito pessoal. — A voz dele soava estranhamente áspera. — Estou começando a desejar nunca ter ido à casa da praia. Por Deus, como eu desejaria nunca ter conhecido você!

— E eu também desejava não o ter conhecido! — gemeu Margret, voltando o rosto novamente para fora, vendo tudo através de uma cortina de lágrimas.

Daí para frente só o silêncio, quebrado pelo rádio do táxi, que tocava uma música triste, o cantor chorando as mágoas, lembrando de uma mulher que deixara numa cidade distante.

Margret não prestava atenção, imersa em seus pensamentos. Se ela e Carl não

tivessem se encontrado, nem saído no veleiro, não estariam ali, agora, presos um ao outro pelo casamento e desejando nunca terem se conhecido...

Todos os sinais da tempestade haviam desaparecido quando o carro por fim saiu da estrada principal e tomou uma via secundária, que descia em direção ao mar. A luz do sol poente brilhava nas ondas, tingindo a água de vermelho até o horizonte. Ao longe, diversos veleiros, os triângulos das velas também iluminados pelo sol.

O táxi parou na entrada de uma agradável casa em estilo colonial. Carl deu ao motorista mais um maço de notas, e o homem ficou extremamente agradecido. Margret subiu alguns degraus de um pórtico, consciente da mão de Carl em seu braço e sabendo que desta vez não haveria possibilidade de fuga.

O hall de entrada era finamente mobiliado, e o funcionário da recepção escondeu muito bem sua surpresa quando Carl disse que não traziam bagagem. Um rapaz os levou a um quarto com vista para o mar, onde havia uma cama de casal e uma cômoda antiga.

— É um quarto lindo! — disse Margret, mantendo-se calma e controlada. — Quando é que vamos jantar?

— Mais tarde — disse Carl, tirando o paletó e dependurando-o no armário. Tirou a gravata e soltou alguns botões da camisa. Depois, fechou a janela, anulando o barulho das ondas. — Deixe-me ajudá-la a tirar o casaco. — Tocou de leve as costas de Margret, e ela estremeceu àquele contato.

— Não, obrigada, vou ficar com ele. — Afastou-se perturbada e percebeu, tarde demais, que a carteira que trazia sob o braço estava nas mãos dele. — O que está fazendo? — exclamou, voltando para perto dele e estendendo a mão. — Dê-me isso!

Carl tirou a passagem e devolveu a carteira. Depois, abriu o bilhete e analisou-o.

— Só de ida, não é?

— É. Foi tudo o que pude pagar. Por favor, devolva.

— Não.

— Não se atreva! — gritou, e, adivinhando que ele pretendia destruir o bilhete, agarrou-o da mão de Carl. O papel fino se rasgou. — Oh, não! Veja o que fez!

— A culpa é sempre minha, não é? — retorquiu ele enquanto rasgava a passagem em mil pedacinhos e os jogava no cesto de lixo.

— Por que fez isso?

— Assim você não me escapará outra vez!

— Oh, como você é prepotente! — gritou Margret novamente. — Gosta de obrigar as pessoas a fazerem o que não querem! Você é muito atrevido e arrogante! Não tinha o direito de destruir minha passagem!

— E você não passa de uma garota sem personalidade! Está sempre pretendendo ser o que não é. Está sempre representando! — Deu um passo em direção a ela e segurou-a pela cintura. — Pensou que podia me enganar como enganou Greg, não é? Mas eu não sou Greg e não vou deixá-la escapar sem que pague o preço da traição. Nós vamos celebrar nosso casamento do modo certo, como todo mundo, e vai ser aqui e agora. Depois você pode ir embora... isto é, se ainda quiser. — A voz de Carl tornou-se mansa enquanto lhe tirava o casaco. Deixou-o cair ao chão, segurou a moça pelos ombros e puxou-a para si. —

Parece que todos puderam beijar a noiva na festa, menos eu — sussurrou.

— Carl, por favor! Espere!

— Não espero mais. Você me provocou e fugiu de mim várias vezes, Margret. Mas agora isso acabou.

Carl segurou-lhe o queixo e forçou-a a olhar para ele. Margret percebeu o brilho daqueles olhos azuis, viu os lábios entreabertos, num convite, e sentiu as fagulhas do desejo se acenderem dentro dela. Quando os lábios de Carl tocaram os seus, ela retribuiu num beijo ardente e apaixonado. Suspirou e se encostou nele, entregando-se às carícias daquelas mãos como a terra seca se entrega à chuva.

Vagarosamente a blusa caiu ao chão, ao lado do casaco, e os dedos quentes e leves de Carl passearam ternamente pelo corpo de Margret.

Para além da janela, a luz do sol foi desaparecendo. No quarto, a luz do abajur cobria tudo com um tom róseo. Carl e Margret, sobre o leito, pele contra pele, corpo contra corpo, se entregavam a carícias mútuas, lábios trêmulos e úmidos, até que a paixão explodiu e a barreira final foi rompida.

Como num sonho, Margret sentia-se invadida por uma lassidão deliciosa. Nunca imaginara que fazer amor fosse uma combinação tão doce de prazer e emoção. Nunca soubera que iria sentir vontade de rir e chorar ao mesmo tempo. Por que sentia essa tristeza tão grande penetrando todo o seu ser se queria gritar de alegria? Será que era porque tudo fora feito sem amor?

De repente sentou-se na cama, soluçando, as lágrimas correndo entre os dedos que lhe cobriam os olhos e caindo sobre o corpo nu de Carl. Ele ergueu-se ao lado dela, grande, quente e protetor. Abraçou-a Margret, com o rosto junto ao peito dele, chorava e soluçava.

— Que aconteceu? — indagou ele baixinho, passando os dedos pelos cabelos da moça, como para consolá-la. — Eu tentei ser delicado. Da próxima vez vai ser melhor, amorzinho...

— Não, não vai ser — gemia ela, tentando se afastar. — Não sem amor! Eu havia prometido a mim mesma nunca fazer isso sem amor...

— Mas você não me ama? — Carl parecia surpreso, e acabou até rindo. — Isso é engraçado, eu tive a impressão, agora mesmo, de que você estava apaixonada...

— Oh, não é isso! Não foi isso o que eu quis dizer. É com você, você não me ama... Oh, o que fui fazer? Casei-me com um homem que não me ama! Que gosta de outra mulher! De Laura Spencer! Nosso casamento foi um erro, Carl. Logo se cansará de mim e me jogará fora, como a um sapato velho!

Um ataque de soluços impediu que ela continuasse a falar. Tentou novamente empurrá-lo, mas não conseguiu. Estava exausta. Esgotada física e emocionalmente, acabou se recostando em Carl, grata pela força que emanava daquele corpo cheio de energia, pelo conforto que sentia quando os dedos dele acariciavam seus cabelos ou seu rosto.

— Eu amo você — disse Carl com suavidade, e Margret prendeu a respiração de tanta surpresa, sufocando os soluços. — Eu não estaria aqui se não a amasse. Não teria voltado de Filadélfia se não a amasse. Teria ido direto ao Peru se não a amasse! — Fez uma pausa e virou-se, de modo a olhá-la de frente. — Se desejar ficar com você o tempo todo, se desejar dividir experiências e querer dividir tudo com você for amá-la, então eu a amo demais! — Olhou dentro dos olhos cheios de lágrimas de Margret e sussurrou: — Não

acredita?

— Quero acreditar, mas... mas... você disse que desejava nunca ter me conhecido!

— Eu sei. Mas era o que eu sentia naquele instante. Estava odiando você, pois havia me causado mais encrencas, me deixado mais noites sem dormir do que qualquer outra mulher em minha vida. Além disso, depois de tudo, você simplesmente decidiu sumir da minha vida, me descartar como se eu não tivesse sentimentos... Quando fugiu de mim no aeroporto e se escondeu na sala das senhoras, atravessei o inferno! Foram os piores momentos de minha vida! — Respirou profundamente. — Eu não podia acreditar que tivesse me traído, não queria acreditar que me casara com uma aventureira! Em outras circunstâncias teria ido sozinho para Miami. Teria deixado você. Mas não consegui agir assim. Fiquei como tonto, andando de um lado para outro no aeroporto, esperando que você aparecesse. Queria descobrir o modo de convencê-la de que havia me casado por um sentimento sincero, com a firme intenção de permanecer com você!

Margret não disse nada, adivinhando que ainda havia mais a ser dito. Recostou a cabeça no ombro dele, admirando o ângulo forte do queixo de Carl delineado contra a luz do abajur.

— Até um certo ponto — continuou ele —, eu também concordava com você. Era apenas atração física, o mesmo que sentia por outras mulheres. Adivinhei que aceitaria meu convite para ir ao Peru apenas para sair da casa da praia e não ficar entre Laura e Greg. Minhas suspeitas se confirmaram quando você fugiu em Salem, e por isso decidi ir embora sozinho. Só que não consegui. — A amargura dominou sua voz e durante algum tempo ele ficou quieto, trançando os dedos nos cabelos de Margret. — Eu não conseguia mais tirá-la da cabeça. Durante aquele encontro comercial em Filadélfia, só pensava em você, em vez de me concentrar nos projetos de construção no Peru. E, quando me perguntaram se gostaria de voltar a ser o responsável pelas obras, não consegui dar uma resposta clara. Percebi que não gostaria de ir sem você. Disse a eles que daria minha resposta mais tarde e fui saindo, sem saber bem o que fazer. Tomei uns aperitivos num bar, e foi aí que descobri seu cheque. Tomei um táxi e fui para o aeroporto. Fiquei esperando desistência em algum vôo para Boston, morrendo de medo de que você já tivesse ido embora e eu não conseguisse mais encontrá-la. Precisava vê-la outra vez, tinha que fazer uma nova tentativa, por isso voltei com a intenção de... — Interrompeu-se e olhou para ela, sorrindo.

— De quê? — quis saber Margret enquanto passava o dedo de leve na cicatriz sobre o lábio dele.

— De seduzir você. Por que outro motivo iria visitá-la em seu quarto àquela hora?

— Mas que atrevimento!

— Acabei descobrindo que você tomara a dianteira e. já anunciara nosso casamento para Greg. Por isso resolvi aproveitar a situação e pedir sua mão de verdade. Aceitou e eu acreditei, de fato, que estava sendo sincera.

— E estava mesmo — disse ela baixinho.

— Então por que a tentativa de fugir hoje? E por que me acusou de estar apaixonado por Laura? De onde tirou essa idéia?

— Dela mesma.

— Quando?

— Esta tarde. Laura me contou que você tinha ido à casa da praia porque ela havia

pedido que desse uma espiada em mim, para descobrir se era amante de Greg. Disse que fez isso apenas para agradar-lhe. Você mesmo me disse que estava em débito com Laura pelo mal que que lhe causou ao apresentar Liza a Greg.

— Fui à Ponta do Lindley porque queria ir — afirmou Carl, sério. — Esse fato nada tinha a ver com Laura. Ela me telefonou e pediu-me que fosse, mas isso foi depois de eu ter pedido emprestado o barco de Paul e de já ter programado a viagem. Não fui até lá para agradar a Laura, nem porque a amava.

— Mas já sabia que eu estava na casa.

— Eu apenas sabia que havia uma mulher com as crianças de Greg. A descrição que Laura havia feito de você era muito confusa e, quando a vi, tive uma agradável surpresa, pois pensava encontrar uma mulher marcada... — O riso sacudia-lhe o peito. — Em vez disso encontrei uma versão moderna de Mary Poppins!

— Mas você mentiu para mim!

— Eu? Quando?

— Naquela noite mesmo. Você disse que não teria invadido a casa daquele jeito se soubesse que eu estava lá. E, na verdade, sabia da minha existência.

— O que eu quis dizer foi que não teria entrado sem me anunciar, o que é bem diferente de invadir, se soubesse que a pessoa que estava lá era como você!

— E fez com que eu fosse velejar para que Laura e Greg ficassem mais à vontade...

— Eu a convidei para fazer o cruzeiro porque queria conhecê-la melhor. Apenas por isso. Fiquei encantado e propus que fosse comigo para o Peru.

— Para ser sua amante — acusou Margret.

— Para ser meu amor — corrigiu ele depressa, dando-lhe um beijo na ponta do nariz. — Eu ainda gostaria que fosse comigo, mas se prefere ir para a Inglaterra, vou com você e dou um jeito nas coisas. Não vai se livrar mais de mim agora, já sabe. Eu a amo e não vou deixá-la ir a nenhum lugar sem mim. Será que acredita?

— Eu quero acreditar! — murmurou ela. — Quero muito acreditar em você!

— Oh, Deus! O que mais quer que eu faça ou diga para se convencer? Já disse a você muito mais do que a qualquer mulher durante toda a minha vida! — Os lábios quentes tocaram o pescoço de Margret. — Será que depois de tudo vai me dizer que ama Greg? Não adianta, não vou acreditar.

— Não, não é isso! Eu não amo Greg, nunca o amei. Por que pensou nisso?

— Lembra-se da noite em que chegamos a Boston? Você estava muito infeliz e eu pensei que talvez estivesse arrependida de tê-lo deixado.

— Então era a isso que se referia quando disse que tudo ia acabar bem? Oh, mas não era nada disso! Eu estava infeliz porque tinha medo de ir embora com você. Queria ir, mas não tinha coragem de me arriscar porque estava certa de que não me amava como eu o amo!

— Ainda está com medo?

— Não tanto quanto antes. Mas você tem o poder de me ferir, e acho que vai ser

sempre assim...

— Lembre-se de que também tem o mesmo poder — disse Carl com suavidade. — Você já fez isso, me magoou demais. Mas acho que esses desencontros fazem parte do processo de aprendizado do amor... Acho que foi isso que andamos fazendo nas duas últimas semanas, não foi?

— Foi, sim — disse ela num sussurro.

— Então vamos tentar mais uma vez: Margret, você quer voar ao Peru amanhã, e morar lá comigo?

— Eu voarei com você para o fim do mundo! — disse ela cheia de alegria, passando os braços pelo pescoço de Carl e erguendo os lábios para os dele. Uma nova onda de paixão anulou qualquer pensamento que não fosse a necessidade premente que sentiam um do outro. E Margret por fim descobriu que o amor não era um sonho, nem um conto de fadas. Que existia realmente. E era essa realidade maravilhosa que ela estava vivendo com Carl. Cheia de emoção, de amor e... para sempre!

FIM