Faces da cura

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Unidos pelo frágil vínculo da solidariedade e pelo tema da cura – e suas facetas –, os quatro personagens são marcados por tragédias familiares e passam a se relacionar proporcionando, uns aos outros, descobertas e aprendizados sobre o amor e a tolerância sexual e religiosa. Ambientado em Brasília, este romance narra o abandono de uma criança pobre e a maneira como foi acolhida por desconhecidos. A partir disso, o destino e as ideias desses marcantes personagens se completam e se entrecruzam, ao mesmo tempo que se configura o perfil social e psicológico deles. Uma saborosa experiência repleta de temas atemporais, e alguns até mesmo em voga atualmente – como a “cura gay” –, narrada de forma dinâmica e surpreendente.

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São Paulo, 2015

TALENTOS DA LITERATURA BRASILEIRA

Maurício Nardell i

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Faces da curaCopyright © 2015 by Maurício Gonzalez NardelliCopyright © 2015 by Novo Século Editora Ltda.

gerente editorial

Lindsay Gois

editorial

João Paulo PutiniNair FerrazVitor DonofrioRebeca Lacerda

gerente de aquisições

Renata de Mello do Valeassistente de aquisições

Acácio Alvesauxiliar de produção

Luís Pereira

preparação

Bruna Martinelli

capa

Dimitry Uziel

diagramação

Equipe Novo Século

revisão

Ana Lúcia Neiva

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Nardelli, MaurícioFaces da curaMaurício NardelliBarueri, SP: Novo Século Editora, 2015. (talentos da literatura brasileira)

1. Ficção brasileira I. Título. II. Série.

15-05088 cdd-869.3

Índice para catálogo sistemático:1. Ficção: Literatura brasileira 869.3

novo século editora ltda.Alameda Araguaia, 2190 – Bloco A – 11o andar – Conjunto 1111 cep 06455-000 – Alphaville Industrial, Barueri – sp – BrasilTel.: (11) 3699-7107 | Fax: (11) 3699-7323www.novoseculo.com.br | [email protected]

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 10 de janeiro de 2009.

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Esta obra é dedicada à minha esposa Daniella e ao meu filho Pedro.

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Agradeço, especialmente, aos escritores Fernando e Cláudio Pinto, pelas primeiras luzes e valiosos conselhos. Agradeço ao meu irmão Flávio Nardelli pela paciência e o empenho nas sucessivas revisões desta obra.

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primeira parte

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A s condições de vida no assentamento onde Naldo nasceu eram extremas; tão ruins que a sor-

te e a esperança desanimadas, insuficientes, quase nunca aconteciam por lá. Precária favela vizinha à cidade-satélite do Paranoá – iniciada na década de 1990 por famílias mise-ráveis recém-chegadas a Brasília –, tomou forma caótica se-melhante à de um cinzento campo de refugiados empoeirado de algum sangrento conflito armado africano. Ali surgiam pessoas de todas as cores e credos, igualmente desesperadas, fugidas da fome causada pela seca, da escassez de empregos em suas cidades e por outras questões da triste realidade bra-sileira – brotavam. Foram amontoando-se nas proximidades da cidade e constituíram-se à força como uma comunidade marginal sem qualquer apoio governamental. Não tinham água, esgoto, calçamento, segurança, eletricidade, posto médico, sopão, nada; nem ônibus passava por lá. O arame farpado que dividia a terra em minúsculos lotes fora obti-do durante a madrugada, furtado de cima dos muros de um condomínio da casas que teve o azar de ver surgir ao seu lado

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imensa invasão. O governo e os mais influentes membros da sociedade da Capital Federal, naquela época, entendiam que, apesar de não faltarem recursos financeiros, se oferecessem condições mínimas de vida para as pessoas dessas comuni-dades clandestinas, atrairiam cada vez mais gente pobre e in-desejável para a cidade deles. Porcos, cabras e galinhas eram criados soltos dentro do assentamento. Os pais de Naldo não matavam as galinhas para comê-las, pois, em longo prazo, os ovos que elas poriam eram mais importantes. Não possuíam um fogão e, mesmo que possuíssem, não havia dinheiro para comprar gás; fogueiras eram perigosas e mal vistas pelos vi-zinhos – muitos deles destemperados e agressivos –, que te-miam as graves consequências que um incêndio produziria nas rústicas estruturas construídas com pedaços de plástico e Madeirit. Seus pais, por não disporem de muita opção, ali-mentaram Naldo com ovos crus desde muito cedo, o que fez com que aprendesse a comê-los naturalmente, saboreando a iguaria. Como não havia sido programado para se enojar, deleitava-se comendo ovos crus. Através de um pequeno bu-raco que fazia na casca, tomando cuidado para não desperdi-çar o alimento, sugava a clara e a gema de dentro deles com a voracidade de uma jaritataca esfomeada.

Sua mãe se ocupava pedindo esmolas nas casas do Lago Sul, bairro de classe média alta abastada, onde a maioria suntuosa das residências é ampla e possui piscinas, churras-queiras, saunas, e, pelo menos, dois carros na garagem. Nas quadras e conjuntos residenciais há apenas um acesso para entrada e saída. São raras as esquinas. As crianças do lugar nascem em maternidades sofisticadas, pelas mãos de obste-tras e de enfermeiras de gabarito; recebem todas as vacinas

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imprescindíveis e são bem nutridas; frequentam excelentes escolas particulares. Porém, muitas delas não são felizes se não podem calçar o tênis de grife da moda, ficam mais infeli-zes ainda quando não conseguem exibir brinquedos moder-nos tops de linha.

Com o propósito de logo sensibilizar as senhoras do bair-ro nobre nas ocasiões em que perambulavam a pedir esmo-las, ainda muito pequeno Naldo era carregado no colo de sua mãe. Havia de prover o sustento da família, já que o pai, sem-pre bêbado e agressivo, em nada colaborava. A criança febril, mal nutrida, macilenta bastante morena de sol era exposta enrolada em tecido barato presa ao tórax da mãe, tal e qual um marsúpio. As reações ao espetáculo deprimente eram as mais angustiosas. Os olhos de boa parte das senhoras para as quais suplicavam esmola lacrimejavam emocionados diante do frágil estorvo humano. Outras, ao contrário, desprezavam a encenação dolorosa, indiferentes. Havia, também, as que se assustavam com a violência estética do quadro e até mesmo as que se indignavam e que repreendiam a mãe mendicante, chamando-a de irresponsável; desumana.

O expediente da mãe era providencial, na maioria das vezes, as desprevenidas senhoras faziam com que mãe e filho esperassem à porta até que elas providenciassem provisões e lanche para os dois. Porém, jamais uma delas se interessou fraternalmente pela situação da pedinte, como chegara àque-la condição paupérrima? Jamais ela recebeu auxílio produ-tivo além da piedade paternalista, nunca orientação prática e educativa. Davam só a caridade imediata, sem outro com-promisso. Alienada, a mendiga aceitava o donativo aleatório, paliativo, para ela era o que importava.

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O menino cresceu sem certidão de nascimento. Quando saiu sozinho pela primeira vez para pedir esmolas Naldo tinha, aproximadamente, quatro anos de idade; sequer havia apren-dido a falar direito. Outro irmão havia nascido e sua mãe esta-va de resguardo. Providenciar comida para todos continuava a ser uma necessidade diária inadiável. Por isso, Naldo foi tra-balhar como pedinte com os meninos que viviam no mesmo assentamento; crianças um pouco mais velhas que ele. Passou a ser a mascote de um pequeno grupo de garotos indigentes.

Saiam cedo do embrião de favela direto para o ponto de ônibus da linha Paranoá-plano piloto, a aproximadamente um quilômetro de distância percorrida a pé pelo acostamen-to de uma estrada interestadual muito movimentada.

O transporte público precário era detestável, pois quem mandava na cidade utilizava carro próprio. Somente pessoas pobres usavam transporte público e o único disponível era o ônibus; não havia trem nem metrô. Táxi, impensável. Nada além do ônibus. Após longa espera pelo coletivo, as crianças ainda imploravam ao trocador que ele as deixasse passar por baixo da roleta. Se não viajassem de graça, era problema, en-xotadas, saltavam humildes para esperar durante uma hora o próximo lotação. Eis a primeira dificuldade do dia e precisa-va ser habilmente resolvida. Assim como as madames, cada cobrador de ônibus reagia de uma maneira própria, quando a turma andrajosa aparecia. Os rabugentos e frustrados des-carregavam nos tristes espantalhos infantis a raiva enrusti-da que traziam no coração, recusando-se malvados a abrir a porta para que entrassem pelo menos. Embora, oprimidos também, não se identificavam solidários com os pequenos párias sociais, recusavam-se a ajudá-los, esquecidos de que

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toda infância pobre é parecida. Bastaria olhar para outro lado enquanto os meninos passassem por baixo da roleta, mas não, preferiam transmitir o problema para o colega do pró-ximo coletivo, deixar que esperassem por alguém mais bene-volente. De qualquer forma, do jeito fácil, ou difícil, o grupo sempre conseguia chegar aonde queria.

Ao circular mendigando pelo Lago Sul o grupo maltrapi-lho daquelas crianças pedintes via de longe os outros petizes, saindo da aula de inglês, o motorista à espera na porta da aca-demia, lanchando no McDonald’s. As roupas de marca, os ce-lulares caros, os ouvidos conectados ao som importado. As bi-cicletas cromadas radicais, patins de titânio, skates, carrinhos de ferro Ferrari vermelhos, bonecos de super-heróis cheios de acessórios, pequenos aviões planadores. Tudo aquilo parecia aos pequenos párias extremamente fascinante. Na companhia da sua mãe, jamais conseguira observar tanto. Mas no meio da matilha esfarrapada tudo era permitido. Para Naldo, as crianças ricas lhe pareciam muito diferentes dele; quase outra categoria de gente, talvez vinda de outro lugar, possível so-mente em filme. Não se sentia semelhante a elas.

Certa vez, num fim de tarde de um dia difícil, ao tocarem a campainha de uma casa rica para pedir comida e algum dinheiro miúdo, a esmola foi algumas bananas com um ovo cru. Não era comida suficiente para todos. Pequeno e fraco coube-lhe o ovo. O menor da turma nunca ganhava uma dis-puta. Como estava acostumado a comer proteína em natu-ra, abriu um orifício na casca do ovo, como estava faminto sugou clara e gema quase de um só gole, vigorosamente e com tanta naturalidade que despertou a atenção da piedosa dona de casa que acabara de entregar o modesto donativo.

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Os demais meninos não tinham o mesmo costume de sorver ovo cru e também acharam a cena um tanto repugnante e esquisita, coisa de bicho do mato. No entanto, o mais esperto da garotada percebeu que a senhora estava perplexa com o episódio, nunca vira um desjejum de ovo inglês daquele jeito grotesco, foi demais para sua sensibilidade e estômago frágil, precipitada deu as costas e voltou para dentro de casa.

Depois do acontecimento o bando pedinte de crianças, instigado pelo líder, abordava os meninos ricos, propondo aposta com desafio que o raquítico mirrado Naldo era capaz de sugar ovos crus na casca. Num primeiro momento, os ri-quinhos duvidavam desconfiados que alguém seria capaz de algo tão asqueroso: engolir o conteúdo de ovos crus; para eles era proeza inacreditável. Estimulados pela curiosidade e por um pouco de sadismo, corriam para casa, traziam os ovos, queriam ver de perto tal espetáculo de circo. Com isso, além de assegurar a ingestão de muita proteína na barriga, Naldo virou uma fonte de dividendos para a descamisada trupe, em sentido irônico, uma verdadeira galinha dos ovos de ouro.

Normalmente, os meninos dividiam o dinheiro angaria-do pelo golpe, ao cair da noite, antes de pegarem o ônibus de volta para o Paranoá. Não havia critérios bem definidos entre eles para a divisão do lucro apurado. As regras surgiam na hora! Ainda assim, durante as duas primeiras semanas com o grupo, Naldo sempre voltou para casa com suficiente dinhei-ro para entregar à sua mãe que abençoava o filho, satisfeita com a quantia providencial.

Naldo pedia auxílio com o mesmo grupo de meninos no comércio da QI 15 quando foi sugerido que se dirigissem ao setor de chácaras da QI 05, lugar ainda não explorado por

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eles. Seguiram a pé, aproveitando as oportunidades surgidas pelo caminho. Ao passarem perto do Centro Comercial Gil-berto Salomão, os garotos decidiram ir até lá para tentar a sor-te e observar o que acontecia. O lugar era uma novidade para Naldo. Havia no local muitos restaurantes, lojas de roupas, de artigos para piscina, farmácias, um supermercado, escritórios, enfim, diversos tipos de comércio próspero e variado.

Passava das duas horas da tarde e ainda não haviam al-moçado. A quantia conseguida até aquele momento dava para todos comerem bem só uma vez. Apenas resolvia em parte o problema. Seguiram adiante, quando, na área interna do centro comercial, foram atraídos pelas magníficas máqui-nas barulhentas e multicoloridas de uma loja de fliperama. O fascínio foi imediato, o brilho de novidade jamais vista arre-batava. Ficaram encantados com o que viam.

Apesar de seduzido pelo som onírico e pelas imagens co-loridas incríveis das máquinas de pinball, devido à sua baixa estatura, Naldo não conseguia alcançar os botões de controle, nem enxergar o que estava se passando acima, e, por isso, não conseguiu jogar direito. Restou-lhe, portanto, o prazer de observar em torno, enquanto seus colegas gastavam, pro-digamente, todo o dinheiro do almoço deles.

As crianças se divertiram tanto que perderam a fome e não perceberam a tarde passar. Esqueceram-se do tempo e da falta que o dinheiro gasto lhes faria. Riram muito, abraçaram--se, comemoraram a cada vitória, a cada vez que passavam de fase em alguma aventura virtual. Com o fim dos recursos de que dispunham, decidiram voltar ao trabalho. Queriam ganhar mais dinheiro para jogar de novo. Como o ambiente da loja era sombrio com a finalidade de destacar as luzes e os

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efeitos especiais das máquinas, não notaram que já havia es-curecido. Estava na hora de voltarem para casa. O penúltimo ônibus para o Paranoá passava pelo lugar às nove horas da noite. Estavam famintos, atrasados e falidos financeiramente. As lojas do centro comercial estavam quase todas fechadas ou fechando. Era uma quarta-feira, dia em que o movimen-to noturno dos restaurantes era mínimo. Não sabiam como conseguir o dinheiro necessário para as passagens de volta e não contavam com tempo suficiente para tanto, e não havia quase ninguém para pedirem esmolas. Dependeriam da boa vontade generosa do cobrador do ônibus que passasse que vi-nha geralmente lotado e, por isso, talvez nem se detivesse no ponto de parada do Gilberto Salomão, pelo excesso de passa-geiros. O bem-estar daquelas crianças estava por um fio.

Mesmo contra a probabilidade desfavorável, partiram em direção ao ponto de parada, confiantes e felizes. Algo mudara sensivelmente naquelas crianças. Sentiam-se livres, realizadas, invencíveis. Haviam acabado de viver aventuras incríveis, antes inimagináveis. Pilotaram aviões, dispararam metralhadoras no campo de batalha, aceleraram carros de corrida. Não paravam de comentar sobre as vitórias e as der-rotas passadas. As dificuldades presentes na vida deles pa-reciam um pesadelo superado, com o qual já sabiam lidar e, particularmente naquela hora, não mais os abalava e oprimia.

O ônibus chegou na hora exata, com meia lotação e pa-rou no ponto, quando solicitado. Explicaram com cara de choro ao cobrador que não tinham dinheiro e ele permitiu generoso que passassem por baixo da roleta sem maiores de-longas. Ainda eufóricos, chegaram ao ponto final na estação rodoviária do Paranoá.

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Caminharam juntos em animada conversa, pela beira da pista rumo ao assentamento onde moravam. Antes de se se-pararem, combinaram, entusiasmados, que voltariam ao tra-balho no Gilberto Salomão no dia seguinte, que ganhariam muito dinheiro, assim, poderiam voltar a jogar mais.

Possuíam, agora, um propósito tangível; seria outro dia de formidável aventura na vida deles – real e virtual.

Naldo, ainda que um tanto quanto alheio ao ocorrido por não conseguir jogar direito, sentiu a vibração positiva que o grupo emanava e também se alegrou.

Como chegava mais tarde do que o horário normal, sua mãe o aguardava impaciente e preocupada na porta do bar-raco enquanto oferecia o leite do peito para o filho mais novo. Ao vê-lo, sentiu-se aliviada e foi logo pedindo que lhe entre-gasse o dinheiro ganho durante o dia, pois seus cigarros ha-viam acabado cedo e ela estava agoniada para fumar. Naldo não tinha nada, nem um tostão para entregar a sua mãe. Por sorte, ele conseguira voltar para casa ainda no mesmo dia. Ela, que já estava irritada em razão do longo período em abs-tinência de tabaco, passou a exigir-lhe explicações.

– Diga a verdade, moleque! Onde você escondeu o meu dinheiro? – inquiriu.

Naldo, surpreso e indefeso, não soube o que dizer e recebeu, com um susto, o primeiro tapa de mão aberta em seu braço.

– Você está mentindo! Fala a verdade! Quanto você ga-nhou hoje? Passa pra cá o dinheiro, agora! – duvidou sua mãe.

Como não havia dinheiro, Naldo não tinha o que res-ponder à sua mãe; calou-se e, sentindo o braço arder, come-çou a chorar baixinho, com medo de irritá-la ainda mais.

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– Você gastou o meu dinheiro, não é? Gastou sim! Ou, então, está escondendo ele de mim! Moleque vagabundo, sem-vergonha! Você é safado que nem o teu pai! – acusou.

A essa altura, Naldo já havia recebido vários safanões de sua mãe e seus ombros e costas doíam sem que ele se impor-tasse muito com isso. Seu problema era mais sério do que a dor física dos tabefes. Não sabia inventar dinheiro. Desespe-rado, esgueirou-se por um canto do casebre, escondendo-se entre um sofá esfarrapado e um armário de madeira barato, onde sua mãe não o alcançava mais. Sentou-se encolhido, com a cabeça baixa em choro sufocado. Sua mãe reagiu indignada com a manobra evasiva dele que lhe pareceu pusilânime, saiu e voltou com uma vassoura na mão e passou a cutucar Naldo no intento de expulsá-lo de seu esconderijo. Ela conseguiu fazer com que o menino amedrontado se curvasse para frente, foi quando ela pegou o braço dele, retirando-o da toca improvi-sada de maneira brusca. O choro dele explodiu convulsivo em crise irritante e as sovas raivosas aumentaram de intensidade, ele se enroscou em mutismo, fechou os olhos e aceitou a surra resignado, até que sua mãe fatigada encerrou o castigo brutal.

Toda a felicidade que sentira durante a tarde, a diversão vivida com seus amigos virara esmaecida lembrança antiga. Ele não mendigava para se divertir, pedia donativos para so-breviver. Naldo teve de aprender isso da pior maneira pos-sível, levando uma surra ríspida e dura da sua mãe. Sentiu o peso do martírio em seu íntimo. Apanhou e sofreu sem reagir na condição de vítima indefesa porque, pela primeira vez em sua vida, comportara-se de modo infantil.

Por incrível que pareça, após as agressões sofridas Naldo dormiu calma e profundamente até o momento em que foi

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acordado para tomar o café da manhã e sair novamente para trabalhar. Ao transpor o arremedo de portão de sua casa, ain-da escutou uma última advertência materna:

– Vê se não volta pra casa de mão vazias de novo, Naldo, que a próxima sova vai ser bem pior. Eu vou chamar o seu pai pra te castigar – ameaçou raivosa.

Só de imaginar a cena Naldo pôde sentir como de perto o cheiro forte e sufocante de seu pai, sempre impregnado de álcool, de tabaco e de suor sebento. Pelo pouco que sabia, seu pai, que já fora um ajudante de pedreiro e um homem traba-lhador, começara a beber por causa de uma insuportável dor de dente; alguém da obra em que ele trabalhava disse que, se ele atravessasse a rua e comprasse uma dose de cachaça no bar-raco que vendia bebidas e cigarros, a dor de dente dele dimi-nuía. Como a cachaça anestesiava a dor, mas não curava a cau-sa da inflamação, ele passou a consumi-la regularmente. De um mero paliativo tornou-se vício, evoluindo, posteriormente, para uma visceral dependência química. Perdeu o precioso emprego devido à sua embriaguez habitual e tornou-se um pária. Naldo lembrou-se de suas mãos grossas, calejadas, de seu aspecto sujo e grotesco, de sua agressividade, de seus olhos vermelhos de fera açoitando-o com um pedaço avulso de fio elétrico. A advertência de sua mãe era realmente assustadora.

Justamente por isso, ironia cruel, a jornada mendicante não fora proveitosa e Naldo, temeroso de que as ameaças pro-feridas por sua genitora se tornassem realidade, sentiu muito medo de voltar para casa. Na hora de regressar, afastou-se de seus companheiros para continuar, sozinho, na tarefa de con-seguir esmolas; como estava nas proximidades, dirigiu-se ao mesmo centro comercial que fora motivo da ríspida punição

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no dia anterior. Trabalhou duro, esforçou-se, implorou, in-sistiu tanto em conseguir algum dinheiro para não chegar de mãos vazias em casa, que acabou perdendo o último ônibus que o levaria de volta ao assentamento em que morava.

Parecia mentira. Não podia acreditar que o tempo pas-sara tão depressa. De qualquer maneira, não havia mais o que pudesse fazer. Sua casa distante, tão longe que mesmo que caminhasse durante horas seguidas, Naldo dificilmente alcançaria o seu destino, e, assim, ele foi tomado por um an-gustiante sentimento de impotência e de fragilidade ante a solidão ameaçadora da noite.

Sem ter o que fazer, passou algumas horas vagando a esmo, observando as lojas que iam fechando ao fim do expe-diente, uma a uma, até que sobraram abertas apenas as far-mácias 24 horas e o Pão de Açúcar. Por impulso, dirigiu-se à padaria do supermercado onde observou os afazeres dos funcionários apressados organizando prateleiras, carregando caixas, desmontando móveis, insones e atarefados.

Depois, dirigiu-se até a farmácia, onde o ambiente es-tava mais calmo; em seu interior, havia um único funcioná-rio plantonista responsável pelo funcionamento notívago do estabelecimento. Naldo achou estranho o fato de uma úni-ca pessoa estar trabalhando por trás de portas de vidro e de grades reforçadas, contato possível apenas por uma pequena janela pela qual os clientes lhe passavam o dinheiro e rece-biam os remédios solicitados e o troco, quando havia. Des-provido de opções, ajeitou camadas de papelão sobre o piso de granito e se acomodou ao lado da janeleta de atendimen-to da farmácia, escorando-se na parede, onde permaneceu

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alternando com cochilos, pequenos sustos e pedidos de es-mola aos clientes que surgiram durante a madrugada.

Com o dia claro, pôde observar a vida voltando pouco a pouco àquele centro comercial. Em primeiro lugar, a padaria aberta, depois, a banca de revistas, a farmácia também, o su-permercado, o relojoeiro que acumulava função de chaveiro, o sapateiro, as lojas de roupas, os escritórios, até que todos os estabelecimentos funcionavam à plenitude no atendimento de um fluxo constante de fregueses.

Superado o desafio involuntário de passar a noite sozinho ao relento fora de casa sentiu-se menos perdido e mais cora-joso. Naldo contou seu dinheiro e viu que havia apurado uma boa quantia, valor suficiente para se alimentar durante o dia, para pagar sua passagem de volta ao lar e, ainda, para suprir as necessidades de sua mãe. Empolgou-se, eufórico seguro de si, não viu razão para voltar imediatamente para casa e conti-nuou com seu trabalho, angariando esmolas e mais esmolas para agradar sua família quando regressasse de noite. No en-tanto, já era uma quinta-feira, dia da semana em que os bares e casas noturnas ali localizadas tradicionalmente enchiam--se de clientes ávidos por diversão. Ele, amealhando dinhei-ro com facilidade, não quis perder a chance de ganhar ainda mais. Nesse ritmo aproveitaria a sexta-feira, o fim de semana e Naldo somente retornou à sua casa na noite de segunda-feira. Estava com o bolso cheio de dinheiro, certo de que isso seria mais que suficiente para aplacar a ira de sua mãe, que depois de contabilizar o valor que ele havia juntado para lhe dar não o puniria, maltratando-o, nem mandaria que seu pai o castigas-se. Ao contrário, receberia agrados carinhosos, ouviria muitos

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elogios e também seria tratado com especial atenção, isto era tudo que ele tanto desejava receber de sua família.

Já passava das oito horas da noite quando Naldo entrou caminhando firme, próspero e altivo, na rua de terra batida em que morava. Ao aproximar-se de sua casa, viu que havia algumas mulheres na porta da casa da sua vizinha, a quem chamava carinhosamente de Tia Rute. Ao vê-lo passar à sua frente, Tia Rute assustou-se, mudou radicalmente sua expres-são facial, arregalou os olhos com espanto e pena, exclamando:

– Naldo, meu filho, onde foi que você se meteu? O que você está fazendo aqui? – indagou Rute, confusa.

A primeira pergunta fazia sentido, mas a segunda não lhe pareceu nada pertinente. E Naldo respondeu:

– Ué, Tia Rute, eu tive uns dias trabaianu e agora voltei para casa pra dar o dinheiro pra minha mãe.

Dada a resposta, seguiu em frente, ansioso para ver a rea-ção de sua família assim que lhes entregasse o volumoso maço de notas que trazia. De forma abrupta, a vizinha interpôs-se entre Naldo e a entrada de sua casa, abraçou-lhe e disse:

– Espera, meu filho, venha aqui um instante que a Tia Rute tem que te dizer uma coisa muito importante.

O tom de voz de sua vizinha era sério, preocupado e con-descendente. Naldo percebeu que deveria ser algo realmente muito importante e deteve-se para saber do que se tratava.

– Meu filho, aconteceu uma coisa muito ruim enquanto você estava sumido. Sua família não mora mais nessa casa. Tem outra família morando na sua casa. Seus pais foram em-bora. Saíram daqui ontem à noite. Voltaram pro Maranhão.

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