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    Histria (So Paulo)

    Histria (So Paulo) v.30, n.1, p. 349-371, jan/jun 2011 ISSN 1980-4369

    Etno-histria e histria indgena: questes sobre conceitos, mtodos e relevncia da

    pesquisa

    Ethnohistory and indigenous history: questions about concepts, methods and relevanceof research

    Thiago Leandro Vieira CAVALCANTE

    Resumo: A partir de dcada de 1990 a pesquisa em histria indgena tem crescido tanto numrica,

    quanto qualitativamente na academia brasileira. Nesse quadro, os conceitos de etno-histria ehistria indgena tm sido utilizados, muitas vezes, de maneira imprecisa. Este artigo aborda a

    histria do conceito de etno-histria e seus principais desdobramentos. Alm disso, discute o

    carter interdisciplinar da pesquisa em histria indgena e sua relevncia social. Tambm so

    abordadas questes sobre a formao de recursos humanos para ensino e pesquisa em histria

    indgena, ensino de histria indgena em contexto de educao bsica e a tica profissional do

    pesquisador em histria indgena.

    Palavras-chave: Etno-histria. Histria indgena. Interdisciplinaridade.

    Abstract: Since the 1990s, research into indigenous history has grown both quantitatively and

    qualitatively in Brazilian academia. Nevertheless the concepts of ethnohistory and indigenous

    history have been frequently used imprecisely. This article discusses the concept of ethnohistory

    and its development. Also, it discusses the interdisciplinary character of research into indigenous

    history and its social relevance. Questions are also raised about the training of human resources for

    teaching, the research into indigenous history, the teaching of it in the context of basic education

    and the professional ethics of the researcher.

    Keywords: Ethnohistory. Indigenous History. Interdisciplinary.

    .

    Mestre em Histria pela UFGD, Doutorando pelo Programa de Ps-graduao em Histria - Faculdade de Cincias eLetras de Assis - UNESP - Universidade Estadual Paulista, Campus de Assis, Brasil. Bolsista do CNPq. E-mail:[email protected]

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    Etno-Histria

    O primeiro registro de uso do termo etno-histria data de 1909, quando Clark Wissler o

    empregou para se referir utilizao de documentos escritos e dados arqueolgicos para a

    reconstruo da histria de culturas indgenas (EREMITES DE OLIVEIRA, 2003; ROJAS, 2008).

    Inicialmente a etno-histria foi ligada apenas ao estudo de sociedades culturalmente no-ocidentais

    e grafas. Pretendia-se que fosse a histria de povos grafos escrita a partir de fontes produzidas por

    outros povos, predominantemente, portanto, em situao colonial. Segundo essa definio, a etno-

    histria estava prxima de ser uma espcie de histria dos povos sem histria. No entanto,

    brevemente a definio teve seus limites ampliados, chegando-se prximo de um consenso em torno

    da ideia de que a etno-histria um mtodo interdisciplinar de pesquisa (ROJAS, 2008).

    O carter grafo das culturas no-ocidentais, chave dessa primeira concepo, foi

    questionado por Rojas. O autor destaca que certo que a maioria das diversas culturas nativas da

    Amrica essencialmente oral, mas no se pode desprezar o fato de que logo no princpio da

    dominao colonial muitos indgenas foram alfabetizados, tanto nas lnguas europeias quanto em

    algumas lnguas indgenas que foram submetidas a sistemas grficos europeus. Esse processo de

    reduo escrita das lnguas indgenas e de alfabetizao de indgenas em lnguas ocidentais

    continua at a atualidade e tem uma srie de implicaes, incluindo a a produo de textos diversose o registro escrito da memria dos grupos. Isso altera significativamente o conjunto de registros

    que podem ser tomados como fontes para a escrita da histria dessas populaes.

    Rojas destaca, tambm, que para alm dos sistemas ocidentais inseridos na Amrica

    colonial, h casos de sistemas de escrita criados pelos prprios indgenas, como, por exemplo, o

    Cherokee Sequoia da Amrica do Norte, que foi criado no princpio do sculo XIX. Lembra, ainda,

    que na Mesoamrica, antes da chegada dos europeus, a escrita j era uma realidade que no podia

    ser ignorada, pois alguns desses povos j escreviam em diferentes suportes como a cermica, apedra, a madeira, os ossos e o papel. A frequente dificuldade encontrada para a decifrao desses

    escritos no converte os mesoamericanos em povos grafos (ROJAS, 2008).

    De acordo com aAmerican Society for Ethnohistory, o termo etno-histria em sua premissa

    terica bsica atual, ou seja, associado a um mtodo, foi utilizado pela primeira vez em 1930 por

    Fritz Rck no Viennese Study Group for African Culture History. Tal grupo emergiu como uma

    reao ao predomnio da Vienna School of Culture Historical Ethnology. Sua inteno era criar

    modelos que possibilitassem que a histria fosse desenhada a partir de dados etnogrficos coletados

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    na frica. O movimento no conseguiu, no entanto, transpor as suas proposies tericas para a

    prtica, fundindo-se, em seguida, com a chamada etnografia histrica (ASE, 2010).

    Segundo Trigger (1982), A. G. Bailey, um historiador graduado pela Universidade de

    Toronto, publicou em 1937 aquele que provavelmente foi o primeiro grande estudo de etno-histria

    norte-americana, intitulado El conflicto entre las culturas europea y algonkina oriental, 1504-

    1700. Apesar da existncia desse trabalho, foi apenas a partir da dcada de 1950 que e a etno-

    histria efetivamente se desenvolveu na Amrica do Norte tanto como disciplina quanto como

    mtodo (ASE, 2010). Aps vrios debates, que sero, em parte, retomados a seguir, a definio de

    etno-histria que se consolidou na Amrica do Norte foi aquela que identifica o conceito como um

    mtodo interdisciplinar, isso porque o uso do termo para designar uma disciplina foi julgado

    inapropriado pela maioria dos especialistas.

    Um fato histrico contemporneo apontado como o grande impulsionador do

    desenvolvimento dos estudos etno-histricos sobre as populaes indgenas da Amrica do Norte.

    Trata-se da proclamao, pelo Congresso dos Estados Unidos da Indian Claim Act1,que permitia

    que os indgenas reivindicassem compensaes pelas terras das quais haviam sido retirados sem a

    existncia de qualquer tratado (ROJAS, 2008; CARMACK, 1979; ASE, 2010).

    Essas reivindicaes geraram grande demanda de pesquisas etno-histricas e muitos

    pesquisadores, principalmente antroplogos, se envolveram nesses trabalhos. Inicialmente foram

    produzidos laudos que demonstravam que, em alguns casos, existiam tratados cujos termos

    precisavam ser analisados, visto que possivelmente no haviam sido cumpridos e identificavam

    tambm as antigas localizaes das terras exigidas, enfim, produziam, por meio dos necessrios

    estudos diacrnicos, pesquisas que permitiam fundamentar as reivindicaes indgenas bem como

    embasar as decises do poder judicirio (ROJAS, 2008).

    Situao similar a essa vem sendo vivida no Brasil, a partir da promulgao da Constituio

    Federal de 1988, a qual garantiu vrios direitos aos povos indgenas, especialmente o direito aos

    seus territrios tradicionais, gerando assim grande demanda e valorizao das pesquisas diacrnicassobre os povos indgenas no pas. Isso conduz, inevitavelmente, a reflexes sobre a relevncia

    social das pesquisas, bem como a uma necessria tica que deve estar sempre presente nas

    preocupaes do pesquisador, temas aos quais se retornar mais adiante.

    Em 1950 os laudos antropolgicos e histricos produzidos nos Estados Unidos foram

    reunidos pela primeira vez na Ohio Valley Historic Indian Conference que posteriormente ficouconhecida como American Indian Ethnohistoric Conference,fundada em 1954, afiliada Indiana

    University em Bloomington. Em 1966 a Conferncia mudou seu nome para American Society forEthnohistory,que publica desde 1954 o peridicoEthnohistory2, ainda pouco conhecido no Brasil.

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    A mudana de denominao marcou a abertura para estudos sobre povos indgenas de outras partes

    do mundo j que, at ento, as pesquisas se concentravam especialmente nos povos norte-

    americanos. Essa sociedade ainda responsvel pelo The Ohio Valley-Great Lakes Ethnohistoriry

    Archive3, formado entre 1953 e 1966, que continua sendo considerado, pela American Society for

    Ethnohistory,como a mais importante coleo sobre a temtica.

    Os primeiros passos da etno-histria foram dados por antroplogos, mas com o passar do

    tempo vrios historiadores e tambm outros pesquisadores, como, por exemplo, gegrafos e

    arquelogos, passaram a se interessar pela problemtica. Assim a etno-histria caminhou para se

    consolidar como um mtodo que congrega, principalmente, aportes da antropologia e da histria,

    mas tambm e com grande importncia de outras disciplinas, tais como a arqueologia e a

    lingustica, por exemplo (EREMITES DE OLIVEIRA, 2003; ROJAS, 2008; TRIGGER, 1982).

    Etno-Histria como disciplina acadmica independente

    Num primeiro momento pensou-se ser possvel definir a etno-histria como uma disciplina

    independente, mas logo se chegou concluso de que isso no era uma boa alternativa. Sobre a

    problemtica da definio acerca do que etno-histria, o ensaio de Bruce Trigger (1982), j no

    incio dos anos 1980, dava esse assunto quase que por superado, ao menos nos Estados Unidos. No

    Brasil, conforme Jorge Eremites de Oliveira (2003) ainda h certa confuso e, de fato, mesmo jquase uma dcada depois da publicao do artigo deste autor, ainda comum encontrar alguma

    confuso e, s vezes, ensaio de querela em torno dos usos do conceito.

    Segundo Trigger, nos primeiros nmeros deEthnohistory muito se discutiu sobre esse tema.

    A partir da anlise de Bryde, Trigger informa que as discusses procuravam responder se a etno-

    histria era uma disciplina independente, ou uma sub-disciplina da antropologia ou da histria, ou

    uma tcnica especial de anlise dos dados ou ainda uma maneira convincente de fornecer dados

    para outras disciplinas. Discutia-se tambm se a etno-histria estava mais ligada antropologia ou histria, ou se era simplesmente uma espcie de terra de ningum. Discutia-se se comportava a

    descrio etnogrfica das culturas histricas e a chamada etnografia histrica e ainda se essas duas

    em contraposio ao estudo das mudanas culturais a partir dos primeiros contatos com os europeus

    eram ramos diferentes de etno-histria. Segundo o autor, aparentemente no houve um acordo sobre

    essas questes.

    Houve, todavia, um acordo tcito, que considerou a etno-histria como uma metodologia

    que se utiliza principalmente de evidncias documentais e tradies orais para estudar astransformaes nas culturas das sociedades sem escrita da Amrica, sobretudo para o perodo

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    posterior ao processo de conquista europeia da Amrica (TRIGGER, 1982). A incluso das

    metodologias arqueolgicas possibilita ainda pensar em uma abordagem mais holstica incluindo a

    histrica pr-colonial indgena no escopo de preocupaes numa perspectiva de longa durao

    (EREMITES DE OLIVEIRA, 2001; EREMITES DE OLIVEIRA, 2003).

    Apesar do exposto, no se deve pensar que a refutao da etno-histria como disciplina

    independente tenha acontecido pela simples falta de acordo entre seus adeptos oriundos de

    disciplinas diferentes. Se de fato h discordncias entre eles, tambm preciso destacar as questes

    ideolgicas e epistemolgicas envolvidas no assunto que sustentam a ideia de que a etno-histria

    no pode ser tomada como uma disciplina.

    J muito conhecida a clssica e aparentemente superada dicotomia entre antropologia e

    histria que, no sculo XIX se definiam a partir de seus objetos de estudo. A primeira se dedicava

    ao estudo das culturas nativas no-ocidentais consideradas inferiores e estticas, culturas a-

    histricas, portanto. J a histria devia se preocupar com as culturas de origem europeia vidas pela

    mudana e especialmente letradas, o que permitia produzir e deixar muitos documentos escritos

    sobre o prprio passado. Essa distino entre as duas disciplinas estava, sem dvida, ligada aos

    ideais expansionistas e racistas presentes nas cincias sociais (incluindo a histria) durante o sculo

    XIX e que fundamentaram discursos sobre a colonizao da Amrica, alm de, em parte, terem

    sustentado os ataques neocoloniais daquele sculo, especialmente em direo frica.

    No caso do Brasil, a famosa frase de Francisco Adolfo Varnhagen, escrita em sua Histria

    Geral do Brasil de 1854, segundo a qual para os ndios [...] no h histria, h apenas etnografia

    (VARNHAGEN apudMONTEIRO, 1995, p. 221) ilustra bem esse pensamento. Segundo Manuela

    Carneiro da Cunha, no Brasil, at a dcada de 1970, os indgenas no tinham nem passado e nem

    futuro, seu fim era visto como certo e estava prximo. A ausncia de seu passado era corroborada

    por historiadores e antroplogos. Os primeiros hesitavam em se livrar do fetiche pelas fontes

    escritas, e escritas pelos prprios atores histricos, por isso no davam ateno histria indgena,

    que muitas vezes, s pode ser feita com o uso de fontes de terceiros, fontes materiais e/ou com ouso de tradies orais, sobre as quais pesavam muitas desconfianas. J no caso dos antroplogos

    sua absteno atribuda a algumas de suas filiaes tericas, como, por exemplo, o evolucionismo,

    para o qual os indgenas no tinham passado, pois, de certa forma, eram o prprio passado, o ponto

    inicial da humanidade. A mesma absteno foi praticada pelos funcionalistas e estruturalistas que,

    por razes diversas, privilegiaram a anlise sincrnica da sociedade (CUNHA, 2009).

    Apesar desse quadro histrico, hoje, ainda que seja claro que as diversas culturas possuem

    diferentes historicidades (SAHLINS, 2003), quase inquestionvel a ideia de que os povosindgenas tm histria, visto que h dinamismo cultural e que ele facilmente observvel. Nesse

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    sentido o uso do conceito de etno-histria para designar uma disciplina que se dedica a estudar a

    histria dos povos indgenas ou nativos, como os chama Trigger, visto por este autor como uma

    atitude etnocntrica. A existncia de uma disciplina etno-histrica separada da histria, indicaria

    que a histria dos povos indgenas cumulativamente diferente da dos povos ocidentais letrados.

    Por isso, o autor defende que se a inteno for se livrar dos prejuzos causados pela dicotomia

    antropologia e histria do sculo XIX, deve-se abandonar o uso do termo etno-histria para

    designar uma disciplina, passando-se a falar apenas em histria nativa ou, num contexto mais atual

    histria indgena ou ainda mais especificamente da histria de cada povo (TRIGGER, 1982).

    Serge Gruzinski, em entrevista concedida a Maria Celestino de Almeida (2007), destacou

    que no Mxico durante muito tempo a etno-histria cuidava dos ndios, enquanto a histria se

    dedicava aos brancos. Segundo ele, a melhor opo estudar a histria dos ndios. Destaca ainda

    outro problema, pois se praticamente j no h mais a imposio da distino entre as disciplinas, a

    preocupao de alguns pesquisadores em privilegiar a voz dos indgenas, focando apenas no

    protagonismo indgena, tem levado utilizao macia de fontes escritas por indgenas. Na opinio

    do autor, essa abordagem radical, que despreza a viso colonial, tambm contribui para a

    manuteno da dicotomia entre histria e etno-histria (GRUZINSKI, 2007).

    Rojas defende uma posio ainda mais radical, segundo ele, mesmo o termo histria

    indgena etnocntrico, pois o erro estaria em querer estudar separadamente a histria de

    sociedades que esto mescladas no contexto colonial (ROJAS, 2008). Essa posio encontra

    ressonncia entre outros importantes pesquisadores e ser novamente abordada na ltima parte deste

    trabalho, mas preciso ressalvar que Rojas, historiador de formao, indica que as preocupaes da

    etno-histria se voltam principalmente para o perodo colonial; portanto, no est alinhado a um

    pensamento mais holstico que no aceita o rompimento entre uma pr-histria indgena e uma

    histria indgena iniciada a partir do contato colonial.

    Etno-Histria como compreenso e/ou representao prpria dos povos indgenas acerca de

    sua histria e do tempo

    H, ainda, uma viso que define a etno-histria como a compreenso ou a representao que

    os povos indgenas fazem sobre a sua prpria histria ou sobre as suas categorias de tempo, a rigor

    sobre suas historicidades. Esta a viso defendida por dois nomes importantes da antropologia

    brasileira, Manuela Carneiro da Cunha e Eduardo Viveiros de Castro que assim se expressaram:

    [...] procurava-se perceber, naquilo que propriamente se poderia chamar de etno-histria, a

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    significao e o lugar que diferentes povos atribuam temporalidade (CUNHA, 2009, p. 127). A

    etno-histria [...] entendida no seu sentido prprio de auto-concepes da histria forjadas pelas

    diferentes sociedades indgenas[...] (CASTRO & CUNHA, 1993, p.12).

    Na mesma linha de pensamento, ainda que tambm proponha uma metodologia etno-

    histrica (MELI, 1997, p.96), segue a proposio de Bartomeu Meli, que se refere

    especificamente ao caso dos Guarani. Para ele, a etno-histria, no uma histria que simplesmente

    trata dos Guarani, [...] No es el Guaran en la historia, ni el Guaran de la historia, sino la historia

    del Guaran, en cuanto que es ste quien sabe sus tiempos e los sinte []. Segundo ele, para se

    chegar a isso preciso descobrir os esquemas culturais e as relaes de valores prprios dos

    Guarani (Meli, 1997, p. 35).

    Esta a definio de etno-histria mais literal do ponto de vista etimolgico. No , no

    entanto, a nica aceitvel, por isso a constatao de mltiplos significados para o mesmo conceito

    reafirma a importncia de o pesquisador apresentar, ao menos, uma pequena nota indicando que

    sentido est atribuindo ao conceito quando utilizado. Existe aqui, tambm, um importante campo de

    estudos, sobre o qual alguns trabalhos j foram publicados (CASTRO & CUNHA, 1993 e

    REVISTA DE ANTROPOLOGIA n. 30/31/32, 1987/1988/1989, por exemplo), mas que ainda tem

    muito por fazer, visto que a aceitao terica de que as diferentes culturas possuem diferentes

    historicidades (SAHLINS, 2003) no basta para seu conhecimento efetivo.

    Ressalta-se, no entanto, que essa abordagem no pode desconsiderar o ambiente colonial no

    qual as representaes indgenas esto sendo produzidas. A desconsiderao desse contexto leva

    inevitavelmente construo de representaes essencialistas dos grupos indgenas e de suas

    culturas, tais representaes so inaceitveis no estgio atual das pesquisas.

    Esta perspectiva de etno-histria enfoca de maneira privilegiada a abordagem mica, ou

    seja, a representao que os indgenas fazem de si mesmo. Esta viso se ope chamada abordagem

    tica, que se refere quelas representaes feitas a partir de chaves interpretativas externas.

    Eremites de Oliveira destaca, no entanto, que o uso da abordagem mica no to simples quantopode parecer, pois

    [...] a aparente dicotomia entre o tico (nossa representao sobre o outro) emico (a representao dos indgenas sobre si), remete a uma longa e antigadiscusso aparentemente longe de um entendimento consensual:histria/eventos/diacronia versus estrutura/mitos/sincronia. Isto porque, semrecorrer neste momento a um alhures no campo da chamada antropologia histrica,a viso que os prprios nativos constroem sobre sua trajetria , em muitos casos,impregnada por complexas representaes simblicas no facilmente

    decodificveis e passveis de serem ordenadas em termos temporais (Eremites deOliveira, 2003, p. 40).

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    Esta observao demonstra que propor uma abordagem mica no significa apenas dar

    voz aos povos estudados, mas, em muitos casos, subverter a maneira linear com a qual se est

    acostumado a pensar a histria, a partir da historicidade ocidental. Eremites de Oliveira destaca,

    ainda, que a construo de uma histria indgena pode ser norteada para mais ou para menos em

    torno das perspectivas tica ou mica. O maior ou menor uso da tradio oral como fonte interfere

    significativamente nessa balana.

    Robert Carmack inclui essa acepo do termo etno-histria entre as trs matrias, que,

    segundo ele, so as mais estudadas pelos etno-historiadores, que so a histria especfica, a

    etnografia histrica e a histria folk (CARMACK, 1979). A acepo ora discutida enquadrada por

    ele na chamada histria folk, que, para ele, o estudo da viso que uma sociedade tem sobre o seu

    prprio passado. Essa viso includa como parte integral da cultura e por isso se constitui num

    aspecto especial da reconstruo etnogrfica. Assim, o estudo da histria folk pode ser tomado

    como o significado literal do termo etno-histria, que seria [...] la historia dos grupos tnicos ou

    culturas.... Com esse sentido o conceito de etno-histria assume semntica similar a outros como

    etnomedicina, etnobotnica, etnomusicologia e etc. (CARMACK, 1979, p. 31).

    Um dos focos de estudo destacados pelo autor est a preocupao com a atitude cultural que

    um povo tem diante da passagem do tempo. Outro ponto que tambm pode ser explorado so as

    mitologias que podem ser abordadas a partir de uma perspectiva ultrapassa a narrativa e se

    preocupa, por exemplo, com as implicaes histricas do mito, suas relaes com os rituais, sua

    fundamentao em estados psicolgicos, suas funes sociolgicas e seus usos na reconstruo da

    histria cultural (CARMACK, 1979).

    Essa abordagem ajuda tambm no trabalho de crtica necessrio a qualquer pesquisador que

    utilize fontes escritas ou orais originrias de povos indgenas. Citando Boston, Carmack destaca que

    as tradies orais de cada povo tm suas prprias perspectivas histricas e a primeira tarefa do

    historiador compreender essas perspectivas antes de tentar inseri-las na escala linear ocidental

    (CARMACK, 1979). Essa observao certamente ajuda, sobremaneira, no trabalho de crtica dasfontes e pode diminuir os problemas oriundos da leitura de fontes indgenas a partir de chaves

    hermenuticas no-indgenas.

    Essa acepo de etno-histria busca compreender a histria indgena a partir das chaves

    culturais prprias dos grupos estudados, analisando como os atores sociais percebem a sua prpria

    histria, ou seja, pretende apresentar uma viso mica. No entanto, este trabalho , em geral, feito

    por um pesquisador externo ao grupo tomado como objeto de estudo, esta a principal diferena em

    relao acepo do conceito de etno-histria da qual se tratar a seguir.

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    Etno-Histria como uma etnocincia

    Nos ltimos anos, ainda que seja tmida, tem crescido a participao de indgenas em cursos

    superiores, participao essa que no se limita aos cursos de graduao, ocorrendo tambm em

    cursos de ps-graduao stricto sensu. Tal participao, tem se demonstrado muito positiva, pois os

    indgenas formados nas mais diversas reas tendem a se tornar interlocutores privilegiados entre os

    grupos indgenas e a sociedade envolvente, especialmente com o Estado brasileiro, tornando-se

    potenciais defensores dos direitos coletivos de seus grupos. claro que esse quadro apresenta,

    tambm uma srie de implicaes sociolgicas que no podem ser aqui discutidas.

    Muitos desses acadmicos indgenas tm se dedicado s reas da histria e da antropologia,

    inserindo, muitas vezes, suas pesquisas no campo que est sendo discutido neste artigo.

    Paralelamente a esse fenmeno social, tem surgido, ainda que no de maneira escrita e

    sistematizada, uma nova acepo para o conceito de etno-histria como a histria indgena escrita

    por indgenas, ou seja, uma etnocincia, muitas vezes confundida com a concepo apresentada no

    item anterior.

    Este um fenmeno ainda muito recente e concluses acerca dele podem ser precipitadas,

    pois ainda no possvel saber o exato alcance e a repercusso que essas pesquisas tero. No h

    dvida, no entanto, de que um pesquisador indgena que se dedica histria de sua prpria etnia

    est em condies muito mais favorveis do que a maioria dos outros pesquisadores para analisar ahistria desse povo, sobretudo a partir de uma perspectiva mica. Nesse sentido, tudo indica que

    logo se ter acesso a trabalhos com uma perspectiva renovada e rica, especialmente para os povos

    indgenas.

    Apesar disso, uma importante questo no pode ser esquecida, trata-se do processo autoral

    que envolve a produo de qualquer trabalho acadmico nos moldes ocidentais, sistema no qual,

    mesmo nas ditas propostas interculturais, os acadmicos indgenas esto se inserindo. Desde que os

    historiadores sepultaram os pressupostos da escola histrica ou metdica, praticamente unnimeentre as vrias correntes da historiografia a ideia de que o pesquisador exerce papel ativo e,

    portanto, subjetivo na produo do conhecimento histrico. Diante disso, no se deve cair na

    tentao de considerar uma histria indgena produzida por indgena como a verdade ou uma

    histria definitiva, nem tampouco como uma histria automaticamente melhor do que as outras.

    No se pode esquecer que o pesquisador indgena tambm um indivduo (ainda que o peso

    da individualidade possa ser discutido em relao ao social em alguns grupos indgenas) que exerce

    diversos papis sociais e pode ocupar diferentes posies de prestgio no sistema social ao qual estinserido, podendo inclusive estar envolvido em conflitos de interesses internos e em alguns casos

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    Etno-histria e histria indgena: questes sobre conceitos, mtodos e relevncia da pesquisa

    Histria (So Paulo) v.30, n.1, p. 349-371, jan/jun 2011 ISSN 1980-4369 359

    ter aderido a igrejas crists de diversas confisses, etc.. Alm disso, no se deve imaginar que todos

    os indgenas dominam a integralidade de sua cultura, um xam, por exemplo, certamente sabe

    mais sobre os mitos de sua cultura do que um indivduo comum, etc.. H ainda que se considerar

    as interferncias que os orientadores e o contexto institucional acadmico podem exercer na

    produo do conhecimento. Enfim, todas as variveis observadas na leitura crtica de um trabalho,

    diga-se comum, devem tambm ser consideradas na leitura de autores indgenas que escrevem

    sobre histria indgena ou sobre a questo indgena de maneira mais ampla.

    Essas observaes no desmerecem, de forma alguma, a produo de pesquisadores

    indgenas, muito pelo contrrio, observa-se que essas contribuies representam um inestimvel

    avano no sentido do dilogo intercultural e do conhecimento histrico efetivamente mico. No

    entanto, as representaes histricas individuais no podem ser automaticamente convertidas em

    coletivas.

    Etno-Histria como um mtodo interdisciplinar

    A viso que qualifica a etno-histria como um mtodo interdisciplinar que conjuga dados e

    mtodos da antropologia, da histria e da arqueologia a que encontra maior ressonncia entre os

    autores aqui referenciados e tambm a perspectiva que est sendo aplicada s atividades de

    pesquisa at aqui desenvolvidas. Nesse sentido, caminham as posies de Robert Carmack (1979),Bruce Trigger (1982), de Jorge Eremites de Oliveira (2003) e de Jos Luis de Rojas (2008).

    De acordo com essa acepo, a etno-histria, como mtodo interdisciplinar, o melhor

    caminho para se compreender os povos de culturas no-ocidentais a partir de uma perspectiva

    histrica. Nesse sentido, dada muita importncia s tradies orais e s fontes arqueolgicas, que

    podem oferecer dados bastante valiosos sobre essas culturas, as quais, em sua maioria advm de

    tradies grafas. A lingustica tambm tem se demonstrado uma valiosa aliada nesse campo de

    pesquisa, os estudos de lingustica histrica so capazes de apresentar diversos aspectos quedificilmente seriam acessados por outras vias (CHAMORRO, 2009).

    A documentao escrita, seja ela produzida por indgenas seja por no-indgenas, tem

    tambm grande destaque. Nesse sentido, fundamental que as tcnicas de crtica documental sejam

    aplicadas com bastante destreza pelos pesquisadores. Bartomeu Meli aponta que a documentao

    colonial foi produzida sobre a perspectiva da reduo do indgena vida poltica e humana, ento,

    o mtodo etno-histrico indicado para a anlise das fontes coloniais consiste precisamente em

    desideologizar as fontes (MELI, 1997). A proposta uma espcie de anlise discursiva da qual se

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    Thiago Leandro Vieira Cavalcante

    Histria (So Paulo) v.30, n.1, p. 349-371, jan/jun 2011 ISSN 1980-4369360

    pode retirar no apenas as representaes acerca dos indgenas, mas tambm dados para uma

    possvel etnografia histrica.

    Meli apresenta sua proposta pensando especialmente nos grupos por ele estudados. Assim,

    apresenta outro recurso para a semantizao dos elementos fornecidos pelas fontes coloniais,

    especialmente pela documentao jesutica. Tal recurso presume a anlise da documentao a partir

    da cultura dos Guarani atuais. Segundo o autor, tal procedimento,

    No se trata de buscar simples coincidencias ni de superponer rasgos semejantes, yaque entre los Guaran actuales y los histricos media un largo proceso deinterferencias exteriores que ha producido cambios significativos; sino de procurarlas categoras fundamentales para una reestructuracin semntica que seaautnticamente guaran. Los conocimientos que se tienen de la cultura guaranactual, gracias a los trabajos de Nimuendaj, Cadogan y Schaden, permiten apelar

    a este recurso con seriedad (MELI, 1997, p. 100).

    Tal procedimento se depara com algumas crticas, sobretudo entre os tericos do

    desenvolvimento cultural, para os quais no possvel a suposio de que haja continuidade entre

    os modos de vida dos grupos indgenas pr e ps-conquista (ROOSEVELT, 1989 Apud

    FAUSTO, 1992, p. 381). A esse respeito, Carlos Fausto concorda que seria ingenuidade

    desconsiderar as rupturas que a conquista colonial representa para as culturas indgenas. No entanto,

    conforme este autor, tambm seria ingenuidade imaginar que existe uma simples correlao entre

    demografia e complexidade sociocultural ou sociopoltica. Se assim fosse, a dizimao fsicacorresponderia a alterao proporcional e previsvel no que diz respeito aos aspectos culturais.

    Segundo Fausto, ao contrrio disso, as crnicas coloniais sobre os Tupi da costa apresentam uma

    inegvel familiaridade com os Tupi atuais (FAUSTO, 1992, p. 381). Essa mesma familiaridade

    tambm pode ser observada sob alguns aspectos na relao entre os Guarani atuais e a

    documentao histrica a seu respeito. evidente que esse recurso, chamado de projeo

    etnogrfica, precisa ser utilizado com muita cautela, pois existe o forte risco de se retratar os povos

    indgenas com eternos, fossilizados ou estticos, ou seja, como povos que no mudaramdesde a conquista colonial. A isso equivaleria dizer que so povos sem histria, o que o oposto

    perfeito ideia defendida pela atual pesquisa em histria indgena. Essa cautela tambm no pode

    desconsiderar que cada cultura tem sua prpria historicidade, isso, entre outras coisas, significa

    dizer que o ritmo das mudanas diferente nas diferentes culturas.

    Por outro lado, corre-se o risco de, numa busca cega pela historicidade dos elementos

    socioculturais e polticos indgenas, voltar-se o olhar apenas para a dimenso das mudanas,

    deixando esquecida a dimenso das permanncias, que tambm parte importante da historicidade

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    de uma cultura. Nas palavras de Sahlins [...] As coisas devem preservar alguma identidade atravs

    das mudanas ou o mundo seria um hospcio[...] (2003, p. 190).

    Com relao ao mtodo interdisciplinar etno-histrico, Jos Luis de Rojas (2008, p. 118) fez

    uma observao bastante interessante ao assinalar que Las disciplinas disciplinan, assim sendo, a

    etno-histria representa uma poro de liberdade metodolgica que propicia ao pesquisador partir

    de um problema que se quer analisar e o problema que determina as fontes e o mtodo que se quer

    utilizar e no o inverso. Isso porque os mtodos devem estar a servio da pesquisa e no o inverso.

    Por conta prpria, acrescenta-se tambm, que as teorias devem estar a servio da pesquisa e no o

    inverso. Evidentemente que isso no equivale a dizer que vale tudo, antes disso, o pesquisador que

    adere a essa prtica metodolgica precisa adquirir certo grau de domnio das metodologias e teorias

    das diferentes reas envolvidas (ROJAS, 2008).

    Nesse sentido o problema da formao de profissionais com viso interdisciplinar um

    grande desafio. De fato, a maioria dos pesquisadores que trabalha com o mtodo etno-histrico no

    Brasil oriunda ou da antropologia ou da histria, havendo tambm, em menor quantidade, mas

    com grande importncia, a participao de outros profissionais. O fato que, em geral, as

    formaes oferecidas em nvel de graduao no Brasil, e mesmo em nvel de ps-graduao, com

    algumas excees, so bastante disciplinares. Essa situao no parece ser to diferente em outras

    partes do mundo, pois Jos Luis Rojas destaca que h pouqussimos lugares no mundo onde se

    oferecem graduaes especficas ou especialidades em etno-histria. Assim, quase sempre, os

    profissionais precisam se dedicar sozinhos para completar a sua formao, constituindo-se, em

    muitos casos, em verdadeiros autodidatas (ROJAS, 2008).

    Acredita-se que um bom encaminhamento para a questo no seja o oferecimento de cursos

    de graduao em etno-histria. A sada mais saudvel seria o oferecimento de disciplinas

    pertinentes s reas nas diferentes graduaes, um ncleo comum de formao humanstica nos

    primeiros anos dos cursos seria uma tima alternativa. Cursos de etnologia, arqueologia e

    lingustica ainda so muito incomuns nos cursos de histria. Da mesma forma, disciplinas sobremtodo historiogrfico so ainda mais raras nos cursos de cincias sociais, nos quais muitos

    antroplogos recebem sua formao inicial (EREMITES DE OLIVEIRA, 2001).

    Esse quadro acaba por gerar situaes em que pesquisadores oriundos da antropologia

    acusam os historiadores de no saberem lidar adequadamente com dados etnogrficos e tradies

    orais; por outro lado, os oriundos da histria acusam os antroplogos de utilizar as fontes histricas,

    principalmente as escritas, de maneira acrtica (CARMACK, 1979; TRIGGER, 1982). Esse tipo de

    problema, de fato, em muitos casos verdico. O livro de Jos Luis Rojas, por exemplo, que historiador de formao inicial, d nfase muito maior para as metodologias ligadas anlise

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    documental do que para as outras metodologias envolvidas na questo. No que ele faa isso de

    maneira inconsciente, pois no captulo intitulado La Documentacin, afirma que [...] Nos

    encontramos nuevamente con que cada uno arrima el ascua a su sardina y, en cierta medida, yo voy

    a hacer lo mismo, aunque con ligera pretensin de presentar un tipo de sardina que pueda ser

    ampliamente compartido[] (ROJAS, 2008, p. 51).

    Essa dificuldade ser superada mais facilmente quando as universidades brasileiras

    comearem a ampliar a prtica do discurso interdisciplinar, que j est bastante disseminado.

    Infelizmente o que se v, em muitos casos, o imprio das atitudes disciplinares, chegando, em

    alguns casos, s vias de algo comparvel xenofobia. A expresso mais ilustrativa disso, alm dos

    currculos dos cursos, a exigncia de formao linear, ou seja, graduao e doutorado na mesma

    rea, como requisito bsico para os concursos pblicos promovidos para admisso de pesquisadores

    e docentes. Essa situao desestimula os estudantes a buscarem uma formao mais interdisciplinar,

    sob pena de terem dificuldades para insero no mercado de trabalho. paradoxal que as

    universidades ofeream atualmente no Brasil 335 cursos de ps-graduao, entre mestrados,

    mestrados profissionalizantes e doutorados, vinculados rea de avaliao multidisciplinar da

    Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior do Ministrio da Educao do

    Brasil (CAPES, 2010). O Paradoxo verificado porque, ao menos na rea de cincias humanas,

    raramente os egressos desses programas so contemplados pelos editais de universidades pblicas

    para contratao de docentes e pesquisadores, e o que mais intrigante, que isso tambm acontece

    em algumas instituies que oferecem, ou pleiteiam autorizao para oferecer, cursos dessa

    natureza.

    evidente que h um leque muito grande de possveis interaes entre as vrias disciplinas

    inseridas no dilogo interdisciplinar aqui tratado. No h aqui condies de se abordar esse aspecto

    de maneira muito profunda, mas evidente que nem toda viso da antropologia, da histria, da

    arqueologia ou de outras disciplinas envolvidas, contribui para a construo de uma histria

    indgena a partir do mtodo etno-histrico. As escolhas cabem a cada pesquisador, que deve buscaras alternativas mais adequadas ao problema proposto.

    A ttulo de exemplo, destaca-se que, a j citada, incluso da arqueologia, ainda pouco

    trabalhada em uma relao mais holstica com a histria indgena, contribui sobremaneira para que

    se possa pensar a histria indgena a partir de um ponto de vista mais integral. Assim pode-se ter

    uma abordagem de longa durao, na qual a histria indgena no tem seu incio marcado pelo

    incio da conquista e colonizao do continente americano, isso pensando no estudo dos povos

    indgenas da Amrica, mas consciente de que esse mtodo tambm aplicado em outras regies domundo.

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    Etno-histria e histria indgena: questes sobre conceitos, mtodos e relevncia da pesquisa

    Histria (So Paulo) v.30, n.1, p. 349-371, jan/jun 2011 ISSN 1980-4369 363

    Muito embora o mtodo etno-histrico tenha sido desenvolvido e aplicado, sobretudo para a

    compreenso dos aspectos histricos dos grupos no-ocidentais, muitas vezes grafos, h tambm a

    possibilidade de aplicao no que seria uma perspectiva mica a partir da viso ocidental. Lilia

    Moritz Schwartz coordena o Ncleo de Pesquisa de Etno-Histria do departamento de Antropologia

    da Universidade de So Paulo, ali, para surpresa de muitos, os objetos de pesquisa no esto

    relacionados histria indgena, mas nossa prpria sociedade, terreno de uma antropologia

    histrica, que segundo a autora, pretende, [...] semelhana do que a etno-histria realiza para

    outras culturas, recuperar um trabalho de traduo para as sociedades complexas. Esse tipo de

    antropologia nos levaria a ser capazes de representar nossa prpria sociedade e, por que no?, o

    tempo e a histria [...] (SCHWARTZ, 2005, p. 134).

    Levando em considerao que o estudo da humanidade no se restringe aos domnios de

    nenhuma disciplina. Considerando ainda que os povos indgenas tm culturas, historicidades e

    modos de se expressar bastante diversos, a etno-histria se apresenta como uma metodologia

    potencialmente favorvel para a construo de uma histria indgena mais holstica. Alm disso,

    como se v nas proposies de Lilia Schwartz (2005), possvel transpor esse mtodo tambm para

    a compreenso das sociedades ocidentais.

    Histria Indgena

    Acredita-se que a histria indgena a melhor designao para o campo de pesquisas que

    vem sendo tratado neste artigo. Dentro dessa proposta, a etno-histria se configura como uma

    metodologia bastante eficaz de trabalho. Para finalizar, discutir-se-o agora alguns aspectos deste

    campo de pesquisas.

    J foi anteriormente citada a perspectiva de negao da possibilidade de uma histria

    indgena amplamente difundida durante o sculo XIX e por quase todo o sculo XX no Brasil, mas

    tambm de modo geral no mundo ocidental. Como afirmou Manuela Carneiro da Cunha (1992),

    durante muito tempo os indgenas no foram vtimas apenas da eliminao fsica, mas tambm da

    eliminao enquanto sujeitos histricos.

    A dcada de 1990 marcou um momento de guinada, pois vrias novas iniciativas frutos da

    articulao entre antroplogos, arquelogos e historiadores trouxeram tona trabalhos com

    perspectivas renovadas. Pode-se destacar a publicao da coletnea Histria dos ndios no Brasil

    (CUNHA, 1992) como um marco importante para a histria indgena no pas. Alm desse, h vrios

    outros trabalhos que se tornaram marco de referncia da historiografia sobre o assunto, como, por

    exemplo, Negros da Terra de John Manuel Monteiro (1994) e Ensaios em Antropologia

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    Histrica de Joo Pacheco de Oliveira (1999). Nesse perodo tambm se viu florescer a formao

    de vrios especialistas na rea, que, embora ainda no sejam to numerosos, tm contribudo para

    com o avano das pesquisas e para a formao de novos pesquisadores. Observa-se tambm a

    interiorizao e a ampliao do nmero de instituies que comeam a abrir espao para esse tipo

    de pesquisa.

    No presente momento observa-se um franco crescimento, no s numrico, mas, sobretudo

    em termos qualitativos da produo cientfica da rea. Percebe-se tambm que aos poucos os

    historiadores e arquelogos adquirem maior participao na produo da rea, que foi inicialmente

    levantada e defendida por uma maioria de antroplogos. Os sinais disso so vrios, como, por

    exemplo, a insero de simpsios temticos sobre histria indgena em todas as edies a partir de

    2003 do Simpsio Nacional de Histria, o maior evento bianual de histria realizado no Brasil sob

    organizao da Associao Nacional de Histria. Tambm possvel destacar a publicao de

    dossis temticos em vrias revistas cientficas do pas, como, por exemplo, Revista de

    Antropologia (1989), Revista Eletrnica Histria em Reflexo (2007), Revista Fronteiras

    (1998), Revista de Histria (2006) e Tempo (2007).

    Mas no se pode enganar, apesar de tudo o que j foi feito, h um longo caminho a ser

    percorrido. Em 2008 a Lei Federal n 11.645, a exemplo do que j era previsto desde 2003 em

    relao histria e cultura afro-brasileira, tornou obrigatrio o estudo da histria e cultura indgena

    nos estabelecimentos de ensino fundamental e mdio do pas. Como j foi destacado em outro

    trabalho (CAVALCANTE, 2008), a legislao traz otimismo, mas tambm certa melancolia por

    saber que necessria uma obrigao legal para oferecer algum espao histria indgena ou ao

    indgena na histria do Brasil ensinada nas escolas. Apesar dessa questo, esse dispositivo legal

    pode contribuir para o desenvolvimento da pesquisa em histria indgena, pois se espera que as

    instituies de ensino superior abram novos postos de trabalho nessa rea. Isso propiciar a

    contratao de professores e pesquisadores comprometidos com a temtica e a formao de

    licenciados habilitados para o ensino da questo nas escolas.Para o sucesso efetivo dessa legislao, fundamental que seja superada a perspectiva

    eurocntrica e evolucionista presente em muitos currculos escolares. Observa-se que em muitos

    casos, tanto a histria e a cultura da frica ou afro-brasileira, quanto a histria e a cultura dos

    indgenas so inseridas nas atividades escolares por meio de projetos anexos, mas desconectados

    das atividades curriculares normais. Essa forma de cumprimento da obrigao legal tem carter

    apenas burocrtico e pode ter um efeito inverso ao esperado, pois tratar dessas histrias de forma

    isolada da dita histria nacional pode reforar preconceitos, visto que so apresentadas somente nasemana do ndio e na semana da conscincia negra de forma desconexa em relao chamada

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    Etno-histria e histria indgena: questes sobre conceitos, mtodos e relevncia da pesquisa

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    Histria do Brasil. Nos livros didticos em geral, os indgenas figuram apenas nos captulos que

    tratam da pr-histria e do perodo da conquista do continente, contribuindo assim para a

    consolidao de uma viso fossilizada dos povos indgenas e para seu silenciamento nos demais

    perodos da histria nacional.

    Um dos principais objetivos desta lei o de combater os preconceitos em relao aos povos

    indgenas. Por isso cabe uma reflexo acerca de qual histria indgena ser ou est sendo ensinada?

    Esta uma importante questo, uma questo que foge ao controle legal, o que amplia a

    responsabilidade do meio acadmico sobre essa reflexo. O papel da academia importantssimo,

    pois ela tem se configurado como o espao privilegiado de produo de conhecimento,

    conhecimento esse que tende a ser didatizado. Portanto, a histria ensinada , de certo modo,

    reflexo da produo acadmica universitria (sem, claro, aprofundar em discusses sobre a

    ideologizao da construo de currculos e materiais didticos). Alm disso, a formao de

    licenciados sensveis questo urgente.

    Nesse sentido alguns pontos podem ser destacados. Primeiramente, importante caminhar

    no sentido, j defendido anteriormente, de uma histria indgena que no seja temporalmente

    determinada pela histria colonial. Ou seja, a historiografia no pode repetir a ideia de que a histria

    indgena comea com a dominao colonial, pois sabido que h muita histria na chamada pr-

    histria. Uma abordagem nesse sentido s avanar com a incluso mais sistemtica da

    arqueologia nas pautas de discusso sobre histria indgena (CARNEIRO DA CUNHA, 1992;

    EREMITES DE OLIVEIRA, 2001).

    preciso, tambm, promover a descolonizao do discurso histrico, isso possvel a partir

    do momento em que os povos indgenas sejam tomados como sujeitos histricos plenos. Assim

    sendo, no devem ser tratados apenas como vtimas de processo colonial, mas tambm como

    responsveis pela prpria histria (CARNEIRO DE CUNHA, 1992, EREMITES DE OLIVEIRA,

    2001, PACHECO DE OLIVEIRA, 1999). Isso no significa, de forma alguma, atribuir a culpa de

    suas mazelas aos prprios indgenas. Jamais se deve esquecer ou omitir que a relao colonial entreindgenas e no-indgenas foi e continua sendo uma relao desigual. Nesse sentido, por exemplo, a

    prpria linguagem utilizada para representar esse momento tem algo de colonial.

    Manuela Carneiro da Cunha destaca, por exemplo, que o termo encontro no passa de um

    eufemismo envergonhado (1992, p. 12). Mais do que na perspectiva do encontro a questo deve,

    numa linguagem descolonizada, ser tematizada como conquista. Mas isso tambm no significa

    esquecer o papel dos atores indgenas que nesses processos estabeleceram diversas formas de

    intercmbio com os colonizadores, sendo por vezes aliados do sistema colonial e contribuindo paracom ele.

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    Thiago Leandro Vieira Cavalcante

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    sempre bom lembrar que o termo ndio do qual deriva indgena um termo

    generalizante que no reflete a diversidade de povos e culturas existentes na Amrica. Seu uso

    aceito apenas no sentido de oposio entre povos de origem europia, de culturas ocidentais e os

    nativos de culturas no-ocidentais, mas nunca se deve imaginar que os povos indgenas tenham

    em algum momento constitudo um bloco monoltico. So, portanto, importantes as relaes de

    aliana e conflito historicamente observadas entre povos diversos e mesmo as relaes polticas e

    sociais internas a cada grupo.

    Pode-se abordar a questo no sentido de uma histria indgena, mas tambm no sentido de

    uma histria da presena indgena na histria do Brasil (ou outros pases, ou na Amrica etc.).

    Ambas so abordagens possveis e importantes. A histria indgena, enquanto tal pode ser pensada

    como a histria especfica de cada grupo, ou de movimentos indgenas, por exemplo. Enfim, nessa

    abordagem a perspectiva do olhar est sobre a histria particular e pode ser pensada da mesma

    maneira como se pensa em uma histria do Brasil, ou histria da Amrica, etc. Mas a histria

    indgena no pode ignorar os processos coloniais nos quais os povos esto inseridos (PACHECO

    DE OLIVEIRA, 1998).

    No se pode imaginar que um grupo tenha continuado sua histria livre da interferncia

    colonial. Nesse sentido, Carneiro da Cunha destaca que a prpria noo de isolamento precisa ser

    relativizada, pois se sabe que os contatos indiretos, por meio de artefatos e microrganismos, foram

    muito mais rpidos do que os diretos (CUNHA, 1992). Apesar de sempre levar em conta o contexto

    colonial, a abordagem da histria indgena parte do princpio epistemolgico de que os povos

    indgenas tm histria e que sua histria digna de ser estudada independente do grau de relao

    que ela tenha com o contexto colonial, ou seja, a histria colonial s precisa ser abordada at o

    ponto em que afeta a histria indgena (TRIGGER, 1982).

    A abordagem da presena indgena na histria do Brasil igualmente importante, mais

    alinhada com a proposta j exposta de Rojas (2008), tende a se debruar sobre a participao dos

    indgenas nos temas mais abrangentes da histria nacional, ressaltando a importncia dos papisdesempenhados por esses povos. Essa proposta est ligada ao urgente fim do silenciamento visto

    em muitas pginas da historiografia nacional, nas quais a participao indgena sistematicamente

    ocultada ou inferiorizada. Nessa linha de interseco pode-se colocar, tambm, a histria do

    indigenismo, que se preocupa, sobretudo, com a relao entre os povos indgenas e o Estado, mas

    tambm com outros agentes, como organizaes no-governamentais e misses religiosas. A

    histria da poltica indgena tambm no deve ser esquecida, pois no se pode pensar em uma

    histria da poltica indigenista desconectada da histria da poltica indgena (CUNHA, 1992).

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    Etno-histria e histria indgena: questes sobre conceitos, mtodos e relevncia da pesquisa

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    Para todas essas abordagens o mtodo etno-histrico oferece ferramentas eficazes para o

    manejo de diferentes categorias de fontes. No obstante, cabe destacar que as fontes de origem

    indgena (orais, materiais, visuais, escritas ou audiovisuais) tm muita importncia para uma

    abordagem que vise devolver ao indgena o papel de protagonista de sua histria. No se deve

    esquecer, claro, da supracitada crtica de Gruzinski, no sentido de que a nfase extrema no

    protagonismo indgena e o recurso exclusivo s fontes indgenas podem ocultar a relao colonial, o

    que no seria positivo para a compreenso da histria indgena ps-conquista (GRUZINSKI, 2007).

    A histria indgena deve representar os povos indgenas como povos histricos, ou seja, no

    pode reproduzir o discurso do ndio eterno estereotipado e extico, no entanto, nem sempre isso

    o que se v. obvio que em graus diferenciados todos os povos indgenas sofreram mudanas

    culturais em razo da relao colonial instaurada na Amrica desde o final do sculo XV. Sabendo

    disso, , todavia, preciso ressaltar que as culturas indgenas, assim como as no-indgenas,

    respeitando suas diferentes historicidades, no teriam permanecido estticas se a conquista e

    colonizao no tivessem ocorrido. Fazer essa ressalva no o mesmo que dizer que as culturas

    indgenas estariam, como atualmente se encontram se no tivessem sido partes do processo

    colonial, mas sim, reafirmar sua historicidade.

    No raro ouvir ou ler pesquisadores das questes indgenas afirmando que os povos

    indgenas perderam ou esto perdendo a sua cultura, ou ainda, que preciso resgatar essa

    cultura. Esse pensamento favorece a construo de uma histria indgena que parece mais uma

    histria do desaparecimento dos povos indgenas. Trata-se, na opinio deste pesquisador, de uma

    viso distorcida, pois a cultura no algo que se perde, mas algo que se transforma. Esse processo

    de transformao pode evidentemente ser tematizado, mas com uma abordagem diferente dessa que

    est sendo criticada (Esta crtica no dirigida s iniciativas micas de preservao cultural, que

    tm outra natureza). Pensando assim, conclui-se que alguns elementos ocidentais so incorporados

    cultura indgena.

    A ideia de indigenizao (SAHLINS, 1997) bastante interessante nesse sentido, pois apartir dela se pode entender que elementos no-indgenas so indigenizados, passando, portanto, a

    compor a cultura indgena, da mesma forma que muitos elementos indgenas foram ocidentalizados.

    A partir da, possvel pensar, por exemplo, o fenmeno das diversas igrejas indgenas crists que

    existem em Mato Grosso do Sul. Mostrar que o indgena de hoje no , e, sobretudo, no tem a

    obrigao de ser como seus antepassados do sculo XV fundamentalmente importante,

    principalmente no que diz respeito aos direitos indgenas.

    Ainda frequente a confuso entre os conceitos de cultura e etnia quando se buscamcritrios de indianidade. Ao tratar esses dois conceitos como sinnimos, propaga-se a ideia de que o

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    Histria (So Paulo) v.30, n.1, p. 349-371, jan/jun 2011 ISSN 1980-4369368

    indgena para ser indgena precisa ter um grande bojo de sinais diacrticos que marquem sua

    diferena em relao sociedade envolvente. Trata-se de uma perspectiva tola, pois aqueles

    ocidentais, que quase no se parecem mais com seus avs, exigem que os indgenas sejam como

    seus ancestrais pr-coloniais, negando-lhes novamente a sua historicidade. evidente que a h um

    discurso poltico implcito, discurso esse que visa afirmar que os indgenas que usam roupas

    ocidentais, televiso, telefones celulares, computadores, etc., no so mais indgenas,

    consequentemente no tm mais os direitos constitucionais que lhes so garantidos. A histria

    indgena precisa ajudar a desconstruir esse discurso, demonstrando que as culturas so histricas e

    ressaltando que os critrios de identificao tnica esto muito mais relacionados s relaes sociais

    do que a culturais (BARTH, 2000).

    O ltimo ponto a ser abordado neste artigo diz respeito ao compromisso tico-profissional

    que reforado diante da relevncia social que a pesquisa em histria indgena adquiriu no Brasil.

    Semelhante ao que j foi relatado em relao ao surgimento da etno-histria nos Estudos Unidos, no

    Brasil a histria indgena comeou a ganhar fora justamente no momento em que a nova

    Constituio Federal de 1988 garantiu uma srie de direitos aos povos indgenas, com grande

    destaque para o direito a terra.

    Segundo o artigo 231 da nova Constituio, os indgenas tm garantidos os direitos

    originrios sobre as terras que tradicionalmente ocupam, cabendo Unio demarc-las e proteg-

    las. Os estudos histricos, sejam eles produzidos pela academia ou durante as pesquisas realizadas

    pelos grupos tcnicos do rgo indigenista oficial, so elementos muito importantes nesse processo,

    pois fundamentam os tcnicos do governo na elaborao dos relatrios de identificao de terras

    indgenas. Esses estudos so tambm frequentemente utilizados durante a realizao de percias

    solicitadas pelo poder judicirio em causas envolvendo direitos individuais e/ou coletivos de

    indgenas. Conclui-se, por tanto, que a histria indgena tem papel ativo como subsidiadora e

    legitimadora das aes estatais de garantias ou privaes de direitos indgenas.

    Diante disso, como destacou Trigger (1982), o pesquisador da histria indgena, ainda queseja simptico causa indgena, e de fato, quase sempre , no pode jamais abrir mo dos critrios

    de validao do conhecimento histrico. Com relao a isso, ainda que haja vozes discordantes,

    sempre bom lembrar que no h conhecimento histrico sem fontes, entende-se evidentemente que

    as fontes histricas compreendem um conjunto de vestgios sobre os atos humanos muito mais

    amplo do que apenas o dos documentos escritos e que para a histria indgena o recurso s tradies

    orais e cultura material, no apenas salutar, mas fundamental. O pesquisador precisa ter um

    compromisso tico diante da conscincia da importncia de seu trabalho para as reivindicaesindgenas. Assim, no h absolutamente necessidade alguma de se produzir trabalhos cuja validade

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    Etno-histria e histria indgena: questes sobre conceitos, mtodos e relevncia da pesquisa

    Histria (So Paulo) v.30, n.1, p. 349-371, jan/jun 2011 ISSN 1980-4369 369

    acadmica possa ser questionada, pois o que h, de fato, sobre a histria indgena, sendo bem

    abordado mais do que suficiente para fundamentar as legtimas reivindicaes dos povos

    indgenas.

    Em um artigo como esse impossvel abordar a problemtica da histria indgena de

    maneira exaustiva, mas espera-se que o texto tenha contribudo para o aclaramento de alguns

    conceitos importantes, bem como no estmulo reflexo sobre alguns dos pontos considerados

    chave no desafio que a histria indgena.

    Agradecimentos

    Agradeo aos professores Paulo Santilli, Jorge Eremites de Oliveira e Protsio Paulo Langer pela

    leitura e comentrios primeira verso deste artigo. A responsabilidade pelo texto , no entanto,

    exclusivamente minha.

    Notas

    1 Lei de reivindicaes indgenas.2 - O acesso integral aos textos livre se forfeito a partir de computadores interligados a servidores com acesso livre ao projeto de Peridicos da CAPES.3

    http://www.gbl.indiana.edu/archives/menu.html

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    Thiago Leandro Vieira Cavalcante

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    Etno-histria e histria indgena: questes sobre conceitos, mtodos e relevncia da pesquisa

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    Recebido em: 09/09/2010Aprovado em: 09/05/2011