entrevista Bernardete Gatti

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“O QUE SE PERCEBE É QUE A QUESTÃO DA DOCÊNCIA É SEMPRE RELEGADA COMO SE FOSSE ALGO MENOR” “WHAT WE NOTICE IS THAT THE TEACHING ISSUE IS ALWAYS TREATED AS SOMETHING INFERIOR”

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  • O que se percebe que a questO da dOcncia sempre relegada

    cOmO se fOsse algO menOr

    What We nOtice is that the teaching issue is alWays treated

    as sOmething inferiOr

  • O que se percebe que a questo da docncia sempre relegada como se fosse algo menor

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    Bernardete Angelina Gatti, paulista de Mato (SP), uma das principais

    referncias na temtica de formao de professores no pas. Sua formao

    acadmica inclui graduao em Pedagogia pela Universidade de So

    Paulo (1962), formao parcial na licenciatura em Matemtica na mesma

    universidade, doutorado em Psicologia pela Universit de Paris VII (1972)

    e dois ps-doutorados, um na Universit de Montreal (Canad) e outro na

    Pennsylvania State University (EUA).

    Tem um extenso currculo na docncia e na pesquisa. Na educao bsica,

    trabalhou como professora alfabetizadora, professora de matemtica e

    orientadora educacional. Na educao superior, foi professora do Instituto

    de Matemtica e Estatstica da USP e do programa de ps-graduao em

    Educao da PUC-SP. Presidiu o Comit Cientfico de Educao do CNPq, foi

    coordenadora da rea de Educao da Capes e membro do Conselho Estadual

    de Educao de So Paulo, entre muitas outras atuaes de destaque.

    H mais de 40 anos na Fundao Carlos Chagas, atualmente vice-presidente

    da instituio. Relata que foi l que se aprofundou na temtica do trabalho

    docente. Tem especial interesse nas pesquisas que privilegiam um enfoque

    amplo, de anlise do cenrio macro da formao e atuao do professor e sua

    relao com o aluno a partir de grandes bases de dados.

    Nesta entrevista Cadernos Cenpec, Bernardete fala sobre os problemas, con-

    flitos e desafios que permeiam a formao de professores no pas. Participaram

    Maria Ambile Mansutti, coordenadora tcnica do Cenpec, Vanda Mendes

    Ribeiro e Joana Buarque de Gusmo, editoras da Cadernos Cenpec.

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    Entrevista com Bernardete Gatti

    CADERNOS CENPEC Gostaramos que voc falasse um pouco sobre sua

    experincia na rea da educao e sobre sua trajetria profissional.

    BERNARDETE GATTI Comecei como professora alfabetizadora dos primeiros

    anos do ensino fundamental. Depois cursei Pedagogia e fiz uma parte do

    curso de Matemtica, dei aula de matemtica no antigo ginasial (atual ensino

    fundamental II). Nesse mesmo perodo, trabalhei no Colgio de Aplicao da

    USP como orientadora educacional. Na Faculdade de Educao trabalhei no

    departamento de Estatstica.

    A partir da fiquei na universidade, na rea de Estatstica Aplicada a Cincias

    Humanas. Minha ligao com a educao nunca se desfez. Depois fui fazer

    doutorado na Frana. O tema era em Educao, mas eu fiz na Psicologia, com

    algumas disciplinas de matemtica aplicada. Na poca em que fui fazer o

    doutorado eu trabalhava no Colgio de Aplicao com adolescentes. Fazia uma

    dinmica com os alunos em que discutamos questes da atualidade, e acabei

    usando esse trabalho na minha tese. Quando voltei, continuei na Estatstica;

    no me deixaram sair, afinal, ningum queria trabalhar com Pedagogia e

    Estatstica. O Colgio de Aplicao tinha sido fechado, e fui convidada para

    trabalhar na Fundao Carlos Chagas (FCC), que estava montando um corpo

    de pesquisadores. E foi assim que fiquei meio perodo na Universidade de

    So Paulo (USP) e meio perodo na Fundao. Mas foi na Fundao que eu me

    encontrei profissionalmente.

    Com o tempo fui me afastando da USP e me dedicando mais Fundao,

    at que me aposentei da universidade. Logo depois, continuei na Fundao e

    passei um perodo na Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP),

    onde realizei alguns trabalhos na ps-graduao da Psicologia da Educao.

    Foi um perodo muito bom.

    Agora faz oito anos que estou somente na Fundao. Tudo o que eu fiz de

    pesquisa, tudo o que pude fazer de trabalhos de investigao na educao, fiz

    graas ao apoio que tive na FCC. Nela h uma estrutura de que a universidade

    no dispe: mais financiamento, alguns suportes que podem ser contratados,

    alm de suportes tcnicos da prpria casa o que faz muita diferena na hora

    de desenvolver as pesquisas. Posso dizer que a Fundao a minha casa: fui

    coordenadora de departamento, superintendente de Educao e Pesquisa e,

    agora, estou na vice-presidncia, onde sou responsvel pela rea de Pesquisa

    e Educao. Essa a minha trajetria.

    Estudo formao de professores desde sempre. Quando voltei da Frana com

    o meu doutorado, j vim com essa preocupao de que quem trabalha com

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    alunos, com ensino-aprendizagem, como eu fazia, com questes do dia a dia

    da escola, acabava esbarrando na figura do professor. Ao chegar Fundao,

    meu primeiro projeto foi avaliar um treinamento de professores hoje se

    fala educao continuada. Falava-se treinamento, e agora feio falar isso...

    Era um treinamento de formao de professores e assistentes pedaggicos

    da Prefeitura de So Paulo. A partir da, o tema nunca deixou a minha vida.

    Trabalhei com essas questes sob vrios enfoques; mas eu gosto mesmo de

    trabalhar com grandes bases de dados para entender o problema educacional

    de forma mais ampla.

    Muitos dos estudos de formao de professores so estudos de caso, ou

    questes muito especficas do trabalho do professor, relao professor-

    aluno... Mas eu gosto mesmo de olhar o cenrio macro. E este tem sido o meu

    trabalho nos ltimos dez anos: enfoque amplo e realizado em equipe. No d

    para fazer estudos dessa natureza se voc no contar com uma equipe. As

    minhas grandes parceiras so a Elba Barretto e a Marli Andr, alm dos meus

    outros parceiros pesquisadores da Fundao.

    CADERNOS CENPEC Gostaramos que voc falasse um pouco sobre os

    conflitos envolvidos na formao de professores: o que tem estado

    em pauta nos ltimos anos nas secretarias de Educao, nos rgos

    pblicos e na academia?

    BERNARDETE GATTI Tenho acompanhado muitas das reunies e propostas da

    Unio Nacional dos Dirigentes Municipais de Educao (Undime) e do Conselho

    Nacional de Secretrios de Educao (Consed). Desenvolvi estudos para o

    Consed. Os secretrios vm anunciando suas preocupaes com o desempenho

    de suas redes no que eles atribuam isso somente aos professores, pois

    reconhecem que existem outras dificuldades. Mas, de fato, os professores tm

    revelado alguma dificuldade para lidar com a sala de aula. Os gestores vieram

    da rea da educao, das licenciaturas, e avaliam, com bastante preciso, que

    a formao do professor, hoje, no est atendendo necessidade atual da

    escola, do seu dia a dia. Eles colocam isso nas discusses com o Ministrio. Mas

    o que de fato os despertou para essas questes foram as grandes avaliaes

    e o foco que a elas foi dado. Nas avaliaes nacionais e internacionais, em que

    ficamos sempre em penltimo lugar, as nossas fragilidades, no que diz respeito

    aprendizagem dos alunos, ficam muito evidentes. H aspectos didtico-

    pedaggicos envolvidos a. A crianada, o jovem que chega escola hoje no

    mais um ser passivo. Ele j vem estimulado por um ambiente de mdias; vem

    com outras linguagens. E no tranquilo lidar com ele na escola, especialmente

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    Entrevista com Bernardete Gatti

    a partir de dois pontos de vista: primeiro, o da motivao, o que o faz estar

    ali e permanecer ali em trajetria crescente; e, segundo, o do interesse pelo

    conhecimento, porque, muitas vezes, os currculos e as formas de trabalhar

    na escola no tm sentido para aqueles adolescentes, para aqueles jovens. E

    para esse tipo de trabalho do cotidiano escolar, em relao aos contedos

    selecionados para o processo de escolarizao, que h muitos conflitos quanto

    ao currculo de formao dos professores. As dificuldades ocorrem, sobretudo,

    em funo da estrutura das licenciaturas.

    CADERNOS CENPEC Poderia falar um pouco sobre como a formao

    inicial est configurada no pas perante os desafios enfrentados pelos professores?

    BERNARDETE GATTI Acho que, depois dos estudos que fiz com a minha equipe

    e estudos realizados por outros pesquisadores de 2009 a 2013, o conceito

    segundo o qual estava tudo muito certinho nessa formao foi abalado: vimos

    que as licenciaturas no estavam fazendo o trabalho que deveria ser feito.

    Nesse ponto aparecem algumas questes que esto relacionadas nossa

    tradio cultural: a maneira como esses cursos foram institucionalizados. Eles

    foram institucionalizados nos anos 1930, sob a gide da viso cientificista do

    sculo XIX, que fragmenta a cincia. Tnhamos a formao de bacharel e, de

    repente, descobriu-se que a escola bsica comeava a ser ampliada, para o

    que se precisavam de professores.

    Professores para o chamado primrio j existiam eles vinham das Escolas

    Normais. Eram poucas, porque no tnhamos educao para todos nesse

    perodo. Tnhamos as Escolas Normais, mas no tnhamos professores

    especificamente formados para o chamado secundrio. Ento, agregou-se

    um ano de disciplinas de educao aos bacharelados, como adendo, e esse

    formato est at hoje na representao das universidades e faculdades que

    formam professores. Ou seja, voc segmenta, valoriza o conhecimento formal

    da disciplina da rea e d uma tintura leve de educao, que no suficiente,

    hoje, para o professor atuar com as crianas, os adolescentes e os jovens.

    O curso de Pedagogia teve um percurso muito complicado. Corria tudo

    relativamente bem com a formao do professor primrio nas Escolas Normais,

    em nvel mdio, que davam os fundamentos e as prticas para o seu trabalho;

    e tambm houve os Centros Especficos de Formao e Aperfeioamento para

    o Magistrio (Cefams)1, que foi uma experincia maravilhosa de formao de

    1 Os Cefams foram criados em 1988 como um projeto especial da rede pblica da Secretaria de

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    professores para os primeiros anos do ensino fundamental e da educao

    infantil. At que veio a Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (LDB)

    e foi proposto que essa formao passasse para o ensino superior, com a

    orientao de um tempo para essa mudana. Representantes dos cursos de

    Pedagogia lutaram para assumir a formao dos professores dos primeiros

    anos do ensino fundamental e da educao infantil, o que no era uma

    tradio do curso. O curso de Pedagogia formava o pedagogo, o educador,

    o planejador, o pesquisador, o supervisor, e tambm professores para as

    Escolas Normais. Os estudantes visavam trabalhar, vamos chamar assim,

    mais como tcnicos da educao ou gestores. Eles j eram professores

    formados no ensino mdio e muitos j trabalhavam nas escolas. O curso no

    era vocacionado propriamente para formar alfabetizadores. Nesse perodo

    no houve uma orientao do Ministrio da Educao (MEC) para essa

    transio de formao no ensino mdio para o superior e cada curso foi se

    ajustando sua maneira, as Escolas Normais foram sendo fechadas de forma

    muito rpida e os cursos de Pedagogia, principalmente da rede privada, foram

    abrindo muitas vagas, mas sem ajustar adequadamente seu currculo para a

    formao de alfabetizadores.

    CADERNOS CENPEC Voc acha que falta identidade para os cursos de

    Pedagogia?

    BERNARDETE GATTI Ah, falta! Com as diretrizes curriculares, que geraram

    um embate muito grande nos cursos de Pedagogia, sua ambiguidade no se

    resolveu. Essas diretrizes atriburam muitas funes ao curso de Pedagogia:

    so 16 funes. Um curso que tem de dar conta de todas essas diretrizes acaba

    tendo de fazer escolhas. Preferencialmente, voc tem que formar professores

    alfabetizadores e para a educao infantil, mas os cursos de Pedagogia no

    estavam e no esto ainda totalmente preparados para isso o que no quer

    dizer que eles no venham tentando. Mas aqueles cursos mais estruturados,

    mais antigos, eles tm muita dificuldade de implementar isso, porque os

    prprios professores que atuam nas universidades no tm formao para

    formar alfabetizadores. E a educao infantil fica sempre relegada, sendo que

    essa uma rea crucial, em que voc deveria ter uma formao mais forte,

    e no tem. Os nossos estudos mostraram que pouqussimos currculos dos

    cursos de Pedagogia contemplam a educao infantil. E quando contemplam,

    uma formao em Histria da Infncia, Histria da Criana que tambm

    Estado da Educao de So Paulo para formar, em nvel mdio, professores da 1 4 srie do ensino fundamental. Outros estados tambm tiveram essa experincia. O curso tinha durao de quatro anos e funcionava em perodo integral. Foram extintos em 2005.

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    Entrevista com Bernardete Gatti

    muito importante, mas no tem nada sobre como trabalhar com as crianas

    na pr-escola e nas creches no dia a dia. E agora, com a expanso das

    creches, como que o professor deve atuar com bebs? Criar um ambiente

    de desenvolvimento cognitivo e socioemocional dessas crianas seria

    funo desse professor, mas no tem formao para isso. Estamos vivendo

    uma ambiguidade na licenciatura em Pedagogia: forma pedagogo ou forma

    professor? Os prprios estudantes se ressentem disso nos cursos.

    CADERNOS CENPEC O que existe ento um conflito de interesses ou

    um no saber fazer?

    BERNARDETE GATTI As duas coisas. Para mim, h conflito de interesses e

    de perspectivas.

    CADERNOS CENPEC Comente um pouco mais sobre isso. Quais so as perspectivas que esto em jogo?

    BERNARDETE GATTI Na Pedagogia, h duas posies: aqueles que acham

    que deveria formar o pedagogo, o educador, o gestor; e aqueles que acham

    que ela deveria formar especificamente os professores para as primeiras

    sries de ensino fundamental. As instituies privadas optaram mais por essa

    segunda direo, mas, pelos estudos existentes, sem um currculo adequado.

    O conflito maior acontece nas instituies pblicas, que so muitas, porque

    voc tem todas as federais e as estaduais, e algumas municipais. Em todas

    essas instituies esse conflito de perspectivas est posto. As Diretrizes

    Nacionais no resolveram isso, s agravaram a questo. Seria necessria

    uma nova discusso, de um novo consenso, para fechar algumas questes

    em relao a isso.

    CADERNOS CENPEC Como seria possvel resolver esse panorama

    fragmentado da formao dos professores?

    BERNARDETE GATTI histrico. Temos o problema da fragmentao interna,

    e da separao entre os cursos, que sempre levado em conta nos nossos

    estudos. Existe uma fragmentao intracurso, que separa a formao por rea

    disciplinar, no campo da formao pedaggica isso acontece com o curso

    de Pedagogia tambm. E temos uma fragmentao intercursos, porque cada

    curso fica atrelado ao seu instituto, ou com coordenaes separadas entre si,

    que no se conversam. O pessoal que estuda Fsica tem a base na Fsica; quem

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    estuda Biologia tem a base nas Cincias Biolgicas, e todos tm uma tintura

    de educao oferecida de diversas formas. Porque tem aquela concepo,

    que hoje no se sustenta mais, de que: quem sabe, sabe ensinar. No

    verdade! Voc pode ter um domnio excelente do seu campo de conhecimento,

    mas no conseguir passar adiante esse conhecimento, torn-lo acessvel, de

    uma forma motivadora, sequencial, com sentido, para crianas, adolescentes

    e jovens esse passo um passo a mais. Eu gosto de citar o Shulman2, que

    fez a distino de que o conhecimento da rea especfica muito diferente do

    conhecimento para o ensino. O conhecimento para o ensino interdisciplinar,

    ele implica voc associar contedos a perspectivas pedaggicas, o que no

    um exerccio simples. No Brasil abandonamos os estudos de didtica;

    abandonamos completamente os estudos relacionados s prticas de ensino

    por confundirmos as questes metodolgicas com tecnicismo. Houve uma

    confuso que eu reputo de ideologismo, em que se confundiu essa gama de

    conhecimentos com o tecnicismo mecnico. No podemos confundir mtodos

    de trabalho, perspectivas pedaggicas e prticas de ensino com mecanicismos!

    O mecanicismo, a perspectiva tecnicista forma um professor rob, que decora

    frmulas, roteiros, para serem aplicados com os alunos. Tratar de mtodos

    implica uma formao que deve ser fundamentada em conhecimentos integrados

    baseados na Psicologia Educacional, no desenvolvimento cognitivo-social, na

    Antropologia Cultural, nas Teorias de Comunicao e outros conhecimentos

    que do sustentabilidade a esse tipo de formao. Dessa forma, voc oferece

    para o professor um cabedal de conhecimentos que lhe permite ser criativo

    ou seja, construir a sua prpria metodologia, lgica de mtodo, fazer escolhas

    fundamentadas no trabalho com seus alunos. Sem esses conhecimentos, ele

    no tem condio de desenvolver um trabalho com reflexo, de fato. E isso

    no acontece hoje na formao de professores em nenhuma circunstncia:

    fornecer-lhe fundamentos e instrumentos para criar possibilidades de trabalho,

    de inovar. E o tipo de aula que dado nas universidades tambm no nada

    inovador. Sala, giz ou grupo de estudo, ningum utiliza mobilizaes diferentes,

    como usar as multimdias ou oficinas, atividades programadas, metodologias

    de soluo de desafios, de problemas, voc no v isso. O que se observa um

    currculo totalmente disciplinar, quer dizer, ns mesmos na universidade no

    somos muito criativos. s vezes voc encontra, por exemplo, um laboratrio

    de ensino, mas no usual um laboratrio de ensino onde as coisas so

    integradas. O comum a diviso por disciplinas. No h o que Zeichner (Kenneth

    M. Zeichner) chama de espao hbrido para a formao de professores. Nesse

    2 SHULMAN, L. S. The wisdom of practice: essays on teaching, learning and learning to teach. San Francisco, CA: The Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching, Jossey Bass, 2004.

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    Entrevista com Bernardete Gatti

    mbito entram os estgios, que muitas vezes nem conseguimos discuti-los de

    to desprezados e malfeitos.

    CADERNOS CENPEC Como est a produo de estudos e pesquisas na

    rea de didtica no Brasil?

    BERNARDETE GATTI possvel observar, de uns dez anos para c, o aumento

    dessa produo. Ela pode ser notada nas edies do Encontro Nacional de

    Didtica e Prticas de Ensino (Endipe). Mas ainda uma produo que eu

    considero, para o tamanho das redes brasileiras e das possibilidades das

    universidades, pequena, e com pouca penetrao nas licenciaturas. E, muitas

    vezes, esses estudos so delimitados, esto focados em uma sequncia

    didtica, ou em uma experincia pequena. Claro que esses estudos contribuem,

    mas no temos, por exemplo, uma articulao sobre propostas de prticas de

    ensino que mobilizem os estudantes ou um tratamento terico e fundamento

    adequado para aes pedaggicas de espectro mais amplo. Falta juntar

    os diversos estudos que existem em um bloco que oferea uma verdadeira

    filosofia de trabalho curricular, acho que isso que est faltando. Isso acontece

    porque deixamos essa questo um pouco de lado. De certa maneira, parece

    que gostamos de considerar o trabalho de um ponto de vista apenas terico,

    achamos que a prtica do trabalho menor e que ela pode ser feita de qualquer

    jeito, mas no verdade, principalmente quando se trata de uma atividade como

    a do professor, que envolve um grau de subjetividade que outras profisses

    no tm. Ele est fazendo um trabalho do qual no sabe o verdadeiro resultado,

    pois quem faz as mediaes so os alunos. O professor pode observar se o

    aluno sabe resolver equao de primeiro grau ou frao, mas no sabe o que ele

    apreendeu de fato, este o n. O mdico, por exemplo, diagnostica a doena,

    d o remdio, a pessoa se cura ou morre. Na educao no assim, o professor

    no sabe com que mediaes o seu aluno saiu da sala de aula, ele no tem

    ideia da construo especfica do pensamento de um estudante, dos seus

    processos de meta-cognio. Por exemplo: ah, era um timo aluno, sempre foi;

    passou em primeiro lugar no vestibular da USP! Quando ele chega profisso,

    no vai para a frente. E um aluno que se saa mais ou menos nas avaliaes

    escolares faz uma faculdade e consegue um sucesso grande no mundo do

    trabalho; quer dizer, o professor realmente no tem condies de aquilatar com

    clareza que mediaes foram feitas por seus estudantes, qual sua qualidade.

    Isso uma angstia para o professor, que pode no estar clara para ele, mas

    est presente em todos os momentos em seu trabalho. A gente se apega: Ah,

    bom, ele est indo, est escrevendo, lendo, est fazendo as coisas de cincias,

  • O que se percebe que a questo da docncia sempre relegada como se fosse algo menor

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    est indo, indo mas no sabemos, de fato, no que o nosso trabalho resultou

    completamente. Esse o grau de subjetividade que diferencia o trabalho do

    professor em relao a outros trabalhos.

    CADERNOS CENPEC O que tem de promissor no Brasil em relao

    formao inicial?

    BERNARDETE GATTI Se a formao inicial fosse boa, no precisaramos do

    Programa Alfabetizao na Idade Certa (Paic), nem da Gesto da Aprendizagem

    Escolar (Gestar) e de tantos outros processos de formao que suprem o

    que no foi realizado nas licenciaturas. Este o grande problema: os cursos

    no esto formando os professores para enfrentar a sala de aula. Isso no

    quer dizer eliminar os fundamentos, a histria, a poltica, mas sim aprimorar

    os aspectos ligados ao saber fazer, o pensar fazendo, com conhecimentos

    balizados. H algum desconforto na formao para o trabalho do professor

    que no est sendo bem observado, considerado. Como estamos olhando a

    formao de professor? ntido que esse profissional no tem a ateno na

    sua formao inicial que ele mereceria. As universidades e as faculdades so

    devedoras, sim, dos professores que atuam na educao bsica.

    CADERNOS CENPEC Voc acha que as universidades e faculdades

    esto resistindo mudana de currculo? Ou elas esto tentando?

    BERNARDETE GATTI Algumas esto tentando. Nos ltimos trs anos, um

    forte movimento vem acontecendo nesse sentido, embora ainda nem sempre

    revertido em mudanas concretas. H que se reconhecer tanto os movimentos

    espontneos de algumas instituies locais como tambm movimentos que

    foram provocados por alguns programas do MEC, por exemplo, o Programa

    Institucional de Bolsa de Iniciao Docncia (Pibid)3 , que, com sua proposta,

    provocou alguns cursos a se repensarem. Porque, medida que os licenciandos

    vo para as escolas e fazem projetos com um professor supervisor e a

    orientao de um professor da universidade, eles passam a trazer para o curso

    questes da rede escolar, do cotidiano de ensino, do ambiente das escolas, e

    esse estudante se torna diferenciado e comea a questionar seus professores

    na licenciatura. O Pibid alcanou um bom nmero de bolsistas, mas h outros

    3 O Pibid um programa da Coordenadoria de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (Capes) que oferece bolsas de iniciao docncia aos alunos de cursos presenciais que se dediquem ao estgio nas escolas pblicas e que, quando graduados, se comprometam com o exerccio do magistrio na rede pblica.

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    Entrevista com Bernardete Gatti

    programas do Ministrio que tambm mobilizaram algumas instituies. Acho

    que necessrio pensar mais claramente sobre a responsabilidade de quem

    forma os professores para a educao bsica. Acabei de sair de uma reunio

    com o colgio de pr-reitores de graduao de universidades federais e eles

    esto preocupados com as suas licenciaturas. Aqui no estado de So Paulo,

    o Conselho Estadual est enfrentando a disputa em torno da deliberao n.

    1114, mas que j vem sendo implantada. Todas as faculdades municipais j se

    ajustaram, compreenderam o esprito do que est sendo proposto. A USP est

    adiantada nessa reformulao nas reas especficas; a Universidade Estadual

    Paulista (Unesp) tambm; e na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

    acho que logo acontecer, medida que eles forem tendo de renovar o

    reconhecimento de seus cursos. Houve muitas conversas. A discusso avanou.

    CADERNOS CENPEC E a Pedagogia?

    BERNARDETE GATTI Na Pedagogia eu ainda no vi esse movimento, mas

    vrios cursos de Pedagogia j mandaram as suas reformulaes para o

    Conselho. No sei como vai ser por aqui, mas em nvel nacional a mudana

    ainda pequena. Nos ltimos dois anos conversei em muitas universidades.

    Percebo uma vontade de mudana de alguns grupos, mas tambm sei que

    dentro de uma instituio h os que esto acomodados, isso inerente ao ser

    humano. Acabei de voltar de Juiz de Fora (MG) e l tem um grupo pensando

    em reformulaes que era pequenininho, mas que j aumentou; eles esto

    discutindo as licenciaturas. Mas passo a passo, porque mexe com a cultura

    institucional. Acho que quando voc vai a um colgio de pr-reitores e

    conversa com eles, a coisa pode andar. Mas h circunstncias a considerar.

    Em So Paulo houve apoio de pr-reitores. Eles se preocuparam. Mas tambm

    tm conscincia das dificuldades, por exemplo, como que voc seleciona

    contedos e disciplinas para as licenciaturas em uma cultura bacharelesca? O

    trabalho com as pblicas por parte do Conselho Estadual de Educao de So

    Paulo pode ser mais direto. No h relao com as particulares. Penso que

    mais difcil aprofundar a questo e ampliar exigncias nessas instituies

    porque elas tm uma caracterstica de mercado e, quanto mais simples,

    melhor. complicada essa seara isso no quer dizer que no h instituies

    privadas que faam um excelente trabalho, mas no o comum. Em geral

    se massifica sem preocupao com perfis de qualidade. Se pegarmos a

    educao a distncia, a coisa fica ainda mais complicada. Enfim, existe uma

    vontade posta de desenvolver mudanas, porm muitas dificuldades.

    4 A deliberao 111/2012 do Conselho Estadual de Educao trata das diretrizes complementares formao do professor.

  • O que se percebe que a questo da docncia sempre relegada como se fosse algo menor

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    Outra questo que sempre aparece nas discusses so os concursos para

    professor no ensino superior realizados nas universidades pblicas. Neles se

    privilegia a formao na rea: a pesquisa e os artigos e relatrios tcnicos na

    rea especfica de conhecimento. Conhecimentos didticos no so exigidos,

    de fato. Mas quando se trata de selecionar para o trabalho nas licenciaturas,

    o que est sendo selecionado so professores para formar professores da

    educao bsica. Entra um professor que nunca teve formao didtica na

    vida. Ele faz o curso numa rea especfica, depois faz mestrado e doutorado

    e presta o concurso. Ele no tem ideia do que didtica, dos aspectos

    pedaggicos do trabalho docente, do que uma prtica de ensino. Muitos tm

    dificuldade para dar aula mesmo no ensino superior. At mesmo porque hoje

    o jovem que est no ensino superior um adolescente de 17, 18 anos, com

    demandas e necessidades de comunicao, de motivaes e de aprendizagem

    especficas. Por isso h um movimento a favor de que o professor de ensino

    superior tambm tenha uma formao didtica, alm da formao na sua rea.

    Na universidade ele no vai ser apenas um pesquisador, vai ser um formador

    de novas geraes. Como um professor que no tem formao pedaggico-

    didtica vai formar professores? Isso muito complicado. E acontece tambm

    na rea da educao; ele faz um curso de Pedagogia, faz o mestrado, que

    hoje voltado para pesquisa, faz o doutorado e presta concurso em uma

    rea especfica. Ele muito bem formado em histria da educao ou em

    sociologia da educao, mas no tem uma formao associada formao

    para o trabalho social como professor. Se vai dar aula na rea especfica,

    tudo bem, ele est relativamente adequado; mas ele tem de lembrar que a

    natureza do curso licenciatura em que ele est atuando impe algumas

    perspectivas diferenciadas. isso que eles tm dificuldade de perceber.

    Muitos vo trabalhar com metodologia e prtica de ensino sem o domnio

    terico que essas reas exigem. A metodologia e a prtica de ensino

    avanaram muito l fora. H teorias, j existe bibliografia, pesquisas e ns

    no usamos esses trabalhos aqui. O Centre de Recherche Interuniversitaire

    sur la Formation et la Profession Enseignante (Crifpe) no Canad, por exemplo,

    est totalmente ligado a essas questes da formao do professor e ensino,

    e um grande instituto de pesquisa, alto nvel. Na Blgica, na Frana e na

    Sua tambm h muita coisa nessa rea, mas ns no temos massa crtica

    aqui. Essa preocupao com a formao de professores ficou escamoteada

    e os cursos de licenciatura sempre foram o primo pobre nas universidades.

    Essa ideia de que qualquer um pode dar aula, que dar aula fcil, dura at

    a pessoa entrar numa sala de aula com 30/40 adolescentes de 11 anos para

    ensinar lngua portuguesa, matemtica, cincias, etc.

  • cadernoscenpec | 260

    Entrevista com Bernardete Gatti

    As dificuldades de ser professor na educao bsica aparecem nos estudos

    com professores iniciantes, que so estudos muito recentes no Brasil. Verifica-

    se que esse professor atua por tentativa e erro, passa por depresses,

    ansiedades, busca apoio, e mesmo assim demora trs, quatro anos at ele se

    encontrar. Ele no tem um repertrio para enfrentar uma situao de trabalho

    de imediato e apreender e selecionar saberes pela experincia to logo inicia

    sua atuao. Leva um tempo...

    CADERNOS CENPEC Quais so os problemas na formao continuada.

    BERNARDETE GATTI Ela no muito bem planejada em termos de aderncia

    local. H pesquisas que apontam para as dificuldades dos professores,

    inclusive as dificuldades de professores mais maduros; situaes escolares

    mudam, novas geraes adentram, cenrios sociais so cambiantes, novas

    necessidades profissionais surgem; para os novatos, circunstncias de sua

    formao os deixam sem repertrio profissional inicial. Com isso, a formao

    continuada de aprofundamento e inovao tem ficado prejudicada.

    De modo geral, a formao continuada no tem suprido esses problemas por-

    que ela no se baseia em estudos locais que definem dificuldades especfi-

    cas. Ela tem sido feita a partir de perspectivas amplas, bom, no temos boa

    alfabetizao, ento vamos dar cursos de alfabetizao para os professores.

    Est certo, porque a maioria dos professores que vai alfabetizar no possui

    o repertrio necessrio para trabalhar com a crianada. Na educao infantil

    a mesma coisa, s que no h uma articulao dessa formao com reali-

    dades especficas. Precisaramos de uma articulao que levasse em conta

    dificuldades especficas em contextos determinados. E h dinheiro para isso

    no Fundo de Manuteno e Desenvolvimento da Educao Bsica e de Valori-

    zao dos Profissionais da Educao (Fundeb), h um fundo dedicado para a

    formao de professores; tanto os estados como os municpios tm a sua cota

    CADERNOS CENPEC Por que voc acha que isso acontece??

    BERNARDETE GATTI Por que ns no temos a tradio de fazer diagnstico,

    planejamento e acompanhamento de formaes. O secretrio municipal de

    Educao chega secretaria e engolido pela burocracia e pelas dificuldades

    do cotidiano. Ele no entra e faz um estudo preliminar e se algum j tivesse

    feito, era s atualizar. Mas ningum faz. Acompanhar como est a sua rede,

    o que seria necessrio fazer de fato. No se pensa em apoios pedaggicos

    efetivos nas escolas, com interlocutores qualificados. No h projetos

  • O que se percebe que a questo da docncia sempre relegada como se fosse algo menor

    261cadernoscenpec | So Paulo | v.4 | n.2 | p.248-275 | dez. 2014

    formativos para isso, por exemplo, para supervisores e coordenadores

    pedaggicos. assim: pe l um coordenador pedaggico. E ele tambm

    fica perdido. Temos muitos problemas.

    CADERNOS CENPEC O investimento feito em formao continuada

    suficientes?

    BERNARDETE GATTI H um bom investimento nisso, mas que no

    aproveitado, pois na maior parte do tempo est se tapando buracos da

    formao inicial desse professor. No h uma continuidade do trabalho

    formativo entre gestes. Novos gestores esto sempre recomeando. Outro

    aspecto que, se voc tiver muitos professores temporrios, voc faz a

    formao, mas daqui a um tempo eles no estaro mais naquela escola. Ou

    seja, o conhecimento no fica ali, no cria razes e ramos.

    CADERNOS CENPEC Como a formao continuada vem se relacionando

    com o desenvolvimento profissional ao longo da carreira?

    BERNARDETE GATTI Quando voc quer pr um patamar avaliando formao

    continuada e experincia, ligada carreira, todo mundo grita! H uma

    incompreenso nesse sentido. H pases em que a cada perodo (varia) se faz

    uma formao, com avaliao, para os professores para progresso na carreira.

    Aqui, quando propomos isso, voc est oprimindo o professor. muito difcil

    mexer com certos traos culturais. Seria importante associar novas aquisies

    de conhecimento profissional ou cultural, ou produes de avanos didticos,

    ou outras iniciativas docentes, com a carreira, porm, delinear isso no

    fcil nem isento de polmica. Para isso, as Secretarias de Educao, sejam

    municipais ou estaduais, teriam de se organizar em torno de um projeto e de

    um planejamento de formaes bem dirigidas e diversificadas localmente, de

    abertura criatividade e de capacidade de aquilatar avanos reais.

    CADERNOS CENPEC E um professor, por exemplo, que ao final da carreira passa a ser um formador de professores? Como voc avalia

    essa possibilidade?

    BERNARDETE GATTI Poderia ser um formador tambm no meio de sua

    carreira. No Paran, por exemplo, h alguns anos houve algumas iniciativas.

    Foi proposta a possibilidade de professores se licenciarem para algum estudo

    especfico ligado a um projeto da escola e posteriormente compartilhariam

  • cadernoscenpec | 262

    Entrevista com Bernardete Gatti

    seus conhecimentos e experincias com os colegas, havendo a possibilidade

    de realizar uma formao continuada com eles e outros professores, havendo

    progresso para suas carreiras. J houve iniciativas em vrias direes que

    muitas vezes no perduram, no so levadas frente. Porque vem depois um

    outro iluminado e muda tudo, que outro problema de gesto neste pas. Cada

    um que vem acha que ele que sabe tudo e quer mudar o que o outro fez. No se

    faz uma avaliao do que est em andamento, do que pode ou deve ou no deve

    ser continuado. H uma descontinuidade muito grande nas polticas de aes

    educacionais em nosso pas nos trs nveis de gesto. Mas, quanto carreira,

    h tambm muitos conflitos de diversas ordens. H uma orientao geral do

    Conselho Nacional de Educao, mas que parece ser pouco considerada.

    Sobral (CE), hoje, dada como exemplo. Estou lembrando de l porque h

    estudos desse caso. Eles associaram a reforma curricular que pretendiam im-

    plantar com a formao dos seus professores. Um professor era concursado,

    mas ele iria para a Escola do Professor, no perodo de cumprimento de seu

    estgio probatrio (mas no s). Essa formao tem uma parte terico-cultu-

    ral bastante interessante, e uma formao voltada para as prticas e para os

    problemas vivenciados na realidade escolar em que est atuando e ao cur-

    rculo proposto. Vai sendo avaliado na formao e as diferentes realizaes

    tm relao com a carreira. Essa proposta tem 14, 15 anos de continuidade.

    Campo Grande (MS) foi outro exemplo de ao nesse sentido, mais dirigido

    a alfabetizadores dos primeiros anos. Porm, no conheo nada do tipo para

    docentes do fundamental II e do ensino mdio. De outro lado, mas no deter-

    ministicamente, podemos olhar as mdias de desempenho dos alunos, por

    exemplo, em lngua portuguesa: na 5 srie, atingem as metas exigidas 40%

    dos alunos; no fundamental II, 29%, e no ensino mdio, 9%! O aluno est de-

    saprendendo? O que est acontecendo? Quer dizer, temos um srio problema

    na trajetria escolar. Temos de repensar todo esse processo. No d para des-

    cartar totalmente a ao pedaggica dos professores a. E, assim, remete-nos

    sua formao inicial no ensino superior o que de formao para a docncia

    foi a eles oferecido. Pouco se pensa na formao inicial como extremamente

    importante. A formao inicial mais do que importante, a base. mais do

    que isso. o alicerce para que possamos construir algo maior, efetivo.

    CADERNOS CENPEC A base nacional comum de que fala o Plano Nacional

    de Educao (PNE) no seria um bom catalisador para se repensar a

    formao inicial, sobretudo para os professores que vo se engajar na

    educao bsica a partir dos anos finais do ensino fundamental?

  • O que se percebe que a questo da docncia sempre relegada como se fosse algo menor

    263cadernoscenpec | So Paulo | v.4 | n.2 | p.248-275 | dez. 2014

    BERNARDETE GATTI Eu s vejo uma sada. Porque, mesmo tendo a base

    nacional comum para essa formao e eu defendo que haja , se no tiver

    um organismo institucional nas universidades ou faculdades dedicadas

    especificamente formao de professores, vamos continuar com esse

    problema. No se forma identidade de base se no houver uma referncia

    institucional. Quero dizer, mdico tem identidade? Tem, ele veio de uma

    faculdade de medicina. Engenheiro tem identidade? Tem, ele veio de uma

    faculdade de engenharia. E o professor vem de onde? De cursos esparsos

    em departamentos estanques ou cursos isolados. por isso que quando se

    pergunta para professores O que voc ?, a resposta Eu sou bilogo.

    Sou matemtico. Sou fsico, etc. Mas na verdade so professores de

    biologia, professores de matemtica, professores de fsica. Parece que h

    certa vergonha em dizer que professor. Questo de identidade. Por qu?

    Entre outras razes, porque no temos um centro de formao de professores,

    ou qualquer instituto articulador dessa formao profissional dentro do

    nosso ensino superior. Portugal os tem nas universidades, a Argentina tem os

    institutos superiores onde se formam professores, a Frana tem (est dentro

    das universidades agora, mas tem), a Inglaterra tem o Teachers College, os

    Estados Unidos tm o Teachers College. J aqui...

    CADERNOS CENPEC Existe essa discusso nas universidades para que

    se tenha algo como esses exemplos que voc mencionou?

    BERNARDETE GATTI H muito isso apontado por pesquisadores. Mas sem

    audincia. Hoje parece que h um despertar para a questo. H grupos em vrias

    universidades pblicas tomando atitudes, propondo articulaes diferentes

    dos conhecimentos nas formaes de professores. Mas o peso dos hbitos e

    conceitos cristalizados grande. Por exemplo, temos mudanas interessantes

    em cursos na USP e na Unesp, matemtica, fsica, filosofia, educomunicao,

    histria, entre outros. Tomei conhecimento de que um grupo na Unicamp

    acho que capitaneado pelo pessoal da Faculdade de Educao fez um projeto

    para criar um centro de referncia dentro da universidade a fim de formar os

    professores em graduao e oferecer formao continuada. O projeto que vi

    muito bem-feito, mas ainda no foi para a frente. Na Universidade Estadual

    de Ponta Grossa h um colegiado em que todas as licenciaturas discutem a

    forma de encaminhamento e eles fazem muita coisa integrada. A Universidade

    Federal de Juiz de Fora est comeando com a discusso, tem uma inteno que

    antes no existia. A Universidade Federal de Gois outro exemplo, e tambm

    h discusso na Universidade Federal de Minas Gerais. Existem embries de

    mudana? Existem. Mas no se veem iniciativas nas instituies privadas, de

  • cadernoscenpec | 264

    Entrevista com Bernardete Gatti

    modo geral. Tenho ideia do que estavam fazendo at 2010, 2011, mas acredito

    que no tenha mudado muito, pelas pesquisas que fiz com equipes diversas.

    Pelos dados, elas no esto fazendo bem essa formao, pelo que se viu nos

    currculos, na conduo dos estgios. A forma que usam na contratao dos

    professores, em grande parte horistas, tambm no propicia trabalho integrado;

    por exemplo, que professores tenham espaos coletivos em laboratrios de

    ensino, em oficinas de trabalho com seus estudantes. E o estgio: o estgio o

    calcanhar de Aquiles da formao de professores.

    CADERNOS CENPEC O MEC tem alguma iniciativa para reorientar a

    formao inicial dos professores?

    BERNARDETE GATTI De modo geral, quanto a currculo, at agora, no. Em

    termos de universidades federais, o MEC deveria ter uma ao mais proati-

    va, propor alguma coisa, ter um projeto-programa. O ministro Paim5 organizou

    uma comisso para analisar diagnsticos e pensar o que se poderia fazer ini-

    cialmente com os cursos de licenciatura; mas seu mandato durou muito pouco.

    No entanto, do pessoal que estava na Secretria de Educao Superior (Sesu),

    muitos permaneceram. No sei se vo dar continuidade a essa proposta.

    CADERNOS CENPEC Como costuma funcionar um laboratrio de

    ensino na universidade?

    BERNARDETE GATTI Varia. O laboratrio deve ter uma infraestrutura e suportes

    condizentes com seus objetivos e a natureza do conhecimento a ser tratado

    pedagogicamente, e ter um programa de trabalho aes, intervenes,

    produes e pesquisa de ensino propriamente dita. Por exemplo, na PUC-SP

    tem um pessoal da matemtica que faz estudo sobre sequncias didticas;

    eles atuam com uma teoria que vem de estudiosos franceses, que lhes d

    suporte, e fazem experimentaes prticas nas redes, organizam estudos,

    fruns de discusses.

    Os projetos variam conforme o grupo de professores que trabalha ali. Mas

    a existncia de um laboratrio um sinal. Quando h, numa faculdade de

    Educao, um laboratrio como, por exemplo, uma brinquedoteca, um bom

    indcio, porque est sinalizando que os licenciandos podero ter experincias

    e aprendizados relativos ao papel da ludicidade na formao de crianas

    pequenas. Criana e seu desenvolvimento tm tudo a ver com o ldico. Ento,

    5 Jos Henrique Paim Fernandes foi ministro da Educao de 3 de fevereiro de 2014 a 1 de janeiro de 2015.

  • O que se percebe que a questo da docncia sempre relegada como se fosse algo menor

    265cadernoscenpec | So Paulo | v.4 | n.2 | p.248-275 | dez. 2014

    quando existe isso, voc fala: Bom, tem uma preocupao tambm. Mas

    na maioria dos cursos de formao de professores das instituies privadas

    no existe esse tipo de iniciativa. aulinha, hora-aula separadinha, apostila...

    Voc no v oficinas... Estgio? Tem um professor que orienta 100, 200 alunos,

    isso invivel. O estudante que se vire para achar uma escola para estagiar.

    No conheo nenhuma instituio privada, a no ser duas em So Paulo, que

    tenha uma associao e um projeto com escolas em que os licenciandos iro

    estagiar porque o ideal seria que a universidade tivesse um convnio com

    as escolas e um projeto de trabalho articulado com elas. Alis, o que est

    previsto na lei de estgio, na lei 11.788. Mas muito difcil voc encontrar um

    estgio estruturado, planejado, com superviso, em que o docente supervisor

    conhea a escola, que conhea o professor que vai receber os alunos e que

    isso tenha alguma ateno da universidade. Fica ao deus-dar!

    O estudante vai l, faz o seu estgio, ningum sabe exatamente como

    conseguiu e como o fez de fato. Pense bem: cursos de Pedagogia noite,

    quando que este estudante far o estgio se ele trabalha o dia todo? No

    tem ensino de 1 a 5 srie no perodo noturno, nem pr-escola, nem creche!

    Provavelmente est fazendo estgio na Educao para Jovens e Adultos (EJA).

    E depois vai trabalhar com criancinhas na educao infantil ou vai alfabetizar

    crianas. Nada a ver. Duas condies educacionais absolutamente diferentes.

    Resumindo, temos muitos dramas para resolver e precisamos pensar em

    resolver um de cada vez.

    CADERNOS CENPEC As metas do PNE podem ajudar nessa questo

    BERNARDETE GATTI Se elas forem levadas em considerao, podem. Agora

    pense na pr-escola, que at o ano que vem tem de ter 100% de atendimento6.

    No vai ter! Foi promulgado agora, era para ter sido feito em 2010, o que

    demandaria que a discusso comeasse por volta de 2006, 2007, para chegar

    a 2010 com a lei discutida, de forma participativa. No aconteceu. Comeou

    tardiamente e foi promulgada agora. Vocs acreditam que os municpios

    tero condio de atender a isso? Parafraseando Karl Marx, ideias somente

    no mudam o mundo, aes mudam; leis no resolvem situaes, atuaes

    resolvem. Situaes problemticas se resolvem nas relaes conscientes que

    se fazem em direo a mudanas coletivas.

    No que se refere formao de professores, as instituies tm de acordar para

    a situao crtica dessa formao e precisam se reformular. E no vai ter maior

    6 As metas do PNE so atingir 100% das crianas de 4 e 5 anos na educao infantil at 2016 e 50% das crianas de 0 a 4 anos at 2014.

  • cadernoscenpec | 266

    Entrevista com Bernardete Gatti

    custo para as Instituies de Educao Superior (IES) particulares porque, se

    houver uma base comum, essa base ser comum para todas as licenciaturas.

    Os estudantes sero agrupados para fazer a base comum, e depois ser feita

    a diversificao voc at ganha em efetividade. Mas essa discusso muito

    difcil. necessrio romper muros. E em todas as universidades, romper muros

    de departamentos, por exemplo, muito difcil. E h uma confuso entre o

    que a vida cientfica de um professor numa universidade federal ou estadual

    e o que o trabalho de formao do professor na graduao. um trabalho de

    introduo a conhecimentos bsicos. A pesquisa alimenta, mas no se formam

    professores apenas tratando com estudantes nefitos de problemas de ponta

    das cincias, aqui includas as Cincias da Educao. No se podem confundir

    as duas atividades: as pesquisas de ponta em curso e a formao inicial em

    disciplinas introdutrias. H uma questo curricular e de desenvolvimento de

    compreenses tericas e de prticas culturais a ser considerada. O prprio

    background dos estudantes tem de ser levado em conta. Em se tratando de

    educao, os professores universitrios tm de propiciar a iniciao de seus

    estudantes em reas de conhecimento com linguagens e teorias prprias

    e ajud-los a ter bases para avanar na busca do conhecimento. Sem essa

    iniciao, sem uma formao de base, os estudantes nas graduaes, nas

    licenciaturas, tero dificuldades de acessar com significado a pesquisa

    avanada e os dilemas de ponta das cincias. H muita confuso nesse

    assunto. Somos muito nefitos nisso tudo, em educao, se comparados a

    outros pases. A ampliao da educao escolar no pas data dos anos 1950,

    basta ver os dados demogrficos da educao. A nossa ps-graduao tem o

    qu, 40 anos? E nesses caminhos cometeram-se alguns erros. O primeiro foi

    em relao aos mestrados: no incio, todos os mestrados tinham didtica para

    o ensino superior, alm dos aprofundamentos disciplinares seu objetivo era

    formar mestres para atuar no ensino superior; depois, foi-se mudando esse

    objetivo para a formar pesquisadores (como se isso fosse possvel em dois

    anos!). O doutorado, sim. O doutorado acadmico destinado formao de

    pesquisadores, ainda assim, estes necessitando de outras experincias. O

    que se percebe que a questo da docncia sempre relegada como se fosse

    algo menor. Ser pesquisador que chique! Na nossa sociedade, a cultura

    o professor um zero esquerda. Ento, acho que se ns no rompermos

    com este preconceito, se no dermos consistncia e visibilidade s IES

    para a formao de professores e no retomarmos a formao de mestres

    (como mestres, mesmo), nunca vamos valorizar o professor, sua carreira, as

    atividades de ensino, os processos de aprendizagem a que todos tm direito.

  • O que se percebe que a questo da docncia sempre relegada como se fosse algo menor

    267cadernoscenpec | So Paulo | v.4 | n.2 | p.248-275 | dez. 2014

    CADERNOS CENPEC Diante desse quadro, voc considera que haveria

    a necessidade de ressignificar a formao docente?

    BERNARDETE GATTI Precisamos fazer uma reformulao radical em relao

    ao professor, em todas as reas e na sua profissionalizao. uma luta que

    deve ser realizada institucionalmente, e na sociedade, com a conscientizao

    daqueles que tero a responsabilidade de assumir a possibilidade de repensar

    e fazer de outro modo essa formao. Sem deixar de lado a formao na rea

    especfica, mas escolhendo, dessa rea especfica, o que importante que um

    professor saiba. E este um raciocnio difcil de fazer. Tenho tido muito contato

    com os professores universitrios das reas de Qumica, Matemtica e Fsica

    no, mas eu no posso tirar essa disciplina , mas o que importante,

    o que bsico e indispensvel que um professor de ensino fundamental II

    e de ensino mdio saiba, diferentemente de um bacharel qumico? Olha,

    uma dificuldade! E so eles que tm de fazer essa escolha formativa, com os

    fundamentos do seu conhecimento e um olhar na educao escolar.

    CADERNOS CENPEC Como essas questes esto sendo discutidas

    dentro do MEC? Que propostas esto em curso?

    BERNARDETE GATTI Essas questes comearam a ser pensadas, mas na

    maioria dos espaos pertinentes isso ainda acontece com muita dificuldade.

    Especialmente na gesto do ministro Haddad7 houve essa preocupao. Em

    sua gesto foram propostos alguns programas, como o Pibid, que visa mexer

    com o problema da formao para a docncia para a educao bsica, nas

    licenciaturas; tambm os mestrados profissionais em educao8. Fez o que

    achou que era possvel fazer. Foi proposta uma prova para docentes dos anos

    iniciais da educao bsica, organizando-se seus eixos, matrizes, itens e pr-

    testes. Mas at agora no houve aplicao dentro do edital proposto. Todo

    esse trabalho tem sido postergado. O ministro Paim tinha muita preocupao

    com a formao de professores, mas ele teve um mandato muito curto. Muitas

    mudanas...

    Est sendo discutida no Conselho Nacional de Educao uma nova poltica

    nacional de formao de professores e uma nova resoluo sobre as diretrizes

    nacionais para a formao de professores. A ltima feita foi em 2002. Rene-

    7 Fernando Haddad, atual prefeito da cidade de So Paulo, foi ministro da Educao de julho de 2005 a janeiro de 2012.

    8 O mestrado profissional uma modalidade de ps-graduao stricto sensu normatizada em 1988 pela Capes. voltada para a capacitao de profissionais para atuao no mercado de trabalho.

  • cadernoscenpec | 268

    Entrevista com Bernardete Gatti

    se o que foi feito de 2002 at agora e tenta-se incorporar seletivamente em

    uma nova resoluo. Ainda est em discusso, foi tratada em uma audincia

    preliminar em Braslia, ainda de modo informal; foi discutida tambm em

    Recife e recentemente na USP, vamos ver. O professor Dourado9, que o

    relator, disse que gostaria de apresentar logo a proposta de resoluo ao

    Conselho. Eles vo abrir para discusso quando chegarem a uma fase mais

    avanada da redao. H a proposta de aumentar o nmero de horas nas

    licenciaturas. A Pedagogia j tem 3.200 horas, e a proposta para que todas

    as licenciaturas tenham 3.200 horas.

    Ou seja, estamos caminhando. Existe uma preocupao por parte do

    poder pblico, do Ministrio tambm. Mas o Ministrio faria uma ao

    verdadeiramente forte se tomasse decises e aes que impactassem o

    conjunto das IES que formam professores. As avaliaes das licenciaturas

    tambm poderiam ter um olhar diferente da dos bacharelados. Poderia, ainda,

    haver um programa especfico para as instituies federais, um programa que

    promovesse a inovao rumo consolidao de solues para o problema da

    formao inicial de docentes. Poderia comear em parte das licenciaturas.

    Porque a uma proposta pode se firmar. O ministro Hingel10 fez um projeto

    desse tipo, com foco em cursos inovadores propostos pelas IES, que durou

    trs anos e depois acabou. Financiavam-se inovaes em programas de

    licenciatura institucionais. Chegou a financiar 54 instituies. Era para ter

    crescido, tinha uma comisso que selecionava o projeto, porm, depois

    disso, nunca mais, nenhum dos ministros entrou com essa preocupao.

    Todo mundo quer reformar o ensino mdio, quer reformar o currculo, etc.

    No adianta. Se voc no tiver professores bem formados para pr qualquer

    currculo em ao, no vai funcionar. Pode fazer a reforma curricular da base

    nacional comum que vai continuar tudo como est. preciso fazer isso e

    mais a reformulao radical da formao de professores. H outra questo:

    a formao dos professores do ensino superior que atuam nas licenciaturas.

    A maioria deles selecionada por sua expertise na rea disciplinar em que

    atua, por suas pesquisas nessa rea, sem levar em conta conhecimentos

    sobre aspectos educacionais relativos s redes de educao bsica e as

    caractersticas relativas a seus professores. Em projetos que desenvolvemos

    encontramos muitos docentes que no sabiam que atuavam em licenciaturas

    na formao de professores para a educao bsica. Penso que se teria de

    9 Luiz Fernandes Dourado membro da Cmara de Educao Superior do Conselho Nacional de Educao e professor da Faculdade de Educao da Universidade Federal de Gois.

    10 Murilo Hingel foi ministro da Educao no governo Itamar Franco, de 1 de outubro de 1992 a 1 de janeiro de 1995.

  • O que se percebe que a questo da docncia sempre relegada como se fosse algo menor

    269cadernoscenpec | So Paulo | v.4 | n.2 | p.248-275 | dez. 2014

    fazer tambm uma proposta de formao continuada para os professores da

    universidade que atuam na formao dos professores da educao bsica.

    Tomar conscincia do porqu e para que esto formando os estudantes, ter

    percepo do contexto formativo e do contexto de destino importante para

    a atuao desses docentes nas formaes em que atuam.

    Temos lacunas, mas tambm h boa vontade. Quero dizer, percebo que

    existe boa vontade. Mas muitas vezes se sucumbe diante das dificuldades

    cotidianas. Estive no interior de Gois, nos Institutos Federais de Ensino

    Superior (Ifes), e olha, praticamente s tem pessoal de rea especfica. Muitos

    engenheiros, mas esto preocupados. O problema que o cotidiano engole

    todo mundo em suas rotinas e burocracias. por isso que penso que, neste

    caso, seria preciso, sim, uma proposta formativa do Ministrio, pois s assim

    haveria alguma mudana. J pensou se conseguimos melhorar a formao

    dos professores feita nos 38 Ifes e em todas as universidades federais? Seria

    um grande salto.

    CADERNOS CENPEC - E voc acha que isso impactaria tambm a formao

    que acontece na universidade privada?

    BERNARDETE GATTI Acho que se deveria tambm repensar como seria a

    regulao da formao nas particulares. Porm, haveria um caminho a

    percorrer e alguns enfrentamentos. Quanto formao profissional, as

    prticas devem ser consideradas com seriedade e seus fundamentos. a tal

    histria: em discusses se fala Ah, voc s est pensando na instrumentao,

    na prtica. No se pode confundir prtica profissional com mecanicismos, ou

    tecnicismo! Prtica ao social efetiva; no caso, a nossa ao educativa

    cultural, no s instrumentalista. Mas as prticas socioeducacionais

    tm suportes metodolgicos que no podem ser desprezados. Temos certo

    aligeiramento em interpretaes quanto aos conceitos relativos a aes

    instrumentais no meio educacional, mas no d para discutir isso aqui. Tachar

    uma ao docente de instrumentalista, ou tecnicista, superficial quando

    se est tratando de atuaes de professores na sala de aula, com seus

    alunos, com vistas a propiciar-lhes aprendizagens importantes para a vida.

    Eu questiono o seguinte: o pedreiro precisa saber usar o instrumento dele.

    Se ele no sabe usar uma p, e para isso h um modo, no conseguir fazer

    seu trabalho com qualidade: parede lisa e plana; o uso inadequado pode lhe

    dar problemas nos pulsos e nas mos, nos ombros; h um modo de fazer.

    O lixeiro, quando pega o lixo, instrudo a pegar de determinada maneira,

    porque ele pode se contaminar. Trata-se de prticas sociais que incorporaram

  • cadernoscenpec | 270

    Entrevista com Bernardete Gatti

    conhecimentos, e podem at ser reformuladas conforme a situao e novos

    conhecimentos, sobretudo podem ser transformadas por aqueles que as pem

    em ao agregando novas formas de fazer, com novos fundamentos. Todas

    as prticas profissionais so aprendidas e aperfeioadas com a associao

    a conhecimentos e experincias. O mdico que usa o estetoscpio pode ser

    considerado um tecnicista? No, porque envolve uma ao tcnica com uma

    interpretao luz de conhecimentos adquiridos terica e praticamente.

    A forma de trabalho dele no est no uso do instrumento, est na forma

    como ele interpreta e trata o uso daquele instrumento. Fazemos algumas

    interpretaes de fazeres que esto muito prximas ao senso comum. Ns

    no aprofundamos as questes. E ficamos confundindo conceitos s para

    defender determinado ponto de vista.

    Eu gosto muito de um texto do Dermeval Saviani e do Newton Duarte, Pedagogia

    histrico-crtica11, em que eles dizem que ns precisamos, para compreender

    e mudar alguma coisa, ter uma reflexo radical sobre a situao real, o que

    percebemos e o que a determina, colocando-a em um cenrio ampliado para

    poder compreender e modificar. Ns no fazemos essa reflexo radical.

    Ficamos alienados no cotidiano, assoberbados com defesas de interesses, de

    posies, de ideias ou de ideologias, presos a essas particularidades, como

    diz Agnes Heller12. No conseguimos enxergar a questo de forma ampla,

    contextuada e aprofundada.

    O que percebo, s vezes, quando discutimos que preciso melhorar a

    formao em metodologias de ensino e prticas de ensino, melhorar os

    estgios, que h uma interpretao superficial sobre metodologias de

    trabalho e formao profissional. Interpreta-se que se est propondo que

    no para dar os fundamentos (histria da educao, sociologia...). E no

    isso! O que se est falando que no basta ficar apenas nos fundamentos

    histria da educao, poltica da educao, sociologia da educao,

    psicologia da educao se no se abre espao para as metodologias de

    trabalho educacional, em que esses fundamentos tm um papel; e, tambm,

    se no se associam esses fundamentos s realidades socioeducacionais,

    e ainda mais se no se integram questes de histria, sociologia, poltica,

    etc., entre si, com perspectivas interdisciplinares. O conhecimento dos

    fundamentos essencial. Eu no consigo entender um professor que no

    conhece um mnimo de histria da educao. E olha, para discutir isso com

    11 DUARTE, Newton; SAVIANI, Demerval. Pedagogia histrico-crtica e luta de classes na educao escolar. So Paulo: Autores Associados, 2012.

    12 Agnes Heller uma filsofa hngara

  • O que se percebe que a questo da docncia sempre relegada como se fosse algo menor

    271cadernoscenpec | So Paulo | v.4 | n.2 | p.248-275 | dez. 2014

    o pessoal das reas especficas muito difcil, parece que voc est falando

    de uma coisa que eles no entendem. Tenho visto isso na Matemtica. Ah,

    mas a gente d histria da matemtica.... Eu no estou falando de histria

    da matemtica! Histria da matemtica no histria da escola, das ideias

    educacionais, estou falando de outra coisa. Existe uma miopia disciplinar que

    ns precisamos romper, em vrios lados.

    CADERNOS CENPEC Voc falou que existe boa vontade por parte das

    pessoas para fazer alguma mudana, mas tambm disse que as pessoas

    no saem de sua zona de conforto. Poderia falar um pouco sobre essa dualidade nos grupos?

    BERNARDETE GATTI Essa situao est nacionalmente difundida na

    cultura das universidades. As licenciaturas nasceram fragmentadas em sua

    concepo, l em 1930. Um adendo ao bacharelado. Um pouco na concepo

    falsa de quem sabe, sabe ensinar. Depende, no ? E continuamos assim.

    Temos uma concepo cientificista na formao de professores muito difcil

    de romper. Isso no quer dizer que a rea disciplinar especfica no seja

    importante. Mas voc tem de considerar: a servio de que ou de quem est

    esse conhecimento? Onde, por que e para que ele est sendo chamado a

    colaborar, a dar sua contribuio? Voc est formando um engenheiro: voc

    pensa o currculo com o perfil do engenheiro que quer formar, mas no

    pensa no currculo de formao de professores com o perfil do professor.

    Por exemplo, obrigatrio fazer um projeto poltico-pedaggico de curso. E

    todos os docentes envolvidos com o curso teriam de participar, ler, conhecer,

    discutir. Isso no ocorre. Tambm observa-se que esses projetos so lindos!

    Mas, ao analisar a estrutura curricular do curso, percebe-se que uma coisa no

    tem nada a ver com a outra. No tem ligao, esquizofrnico. Via de regra, o

    projeto poltico-pedaggico no feito coletivamente. Conheo trs ou quatro

    instituies que fizeram o seu projeto coletivamente. Ningum se lembra,

    quando entra um professor novo, de falar: Olha, ns temos um projeto, est

    aqui. Este o projeto, estas so as ideias que ns trabalhamos. O docente vai

    dar aula de uma disciplina especfica e no sabe nem qual o plano curricular,

    quais articulaes sua disciplina mantm no currculo proposto, quanto mais

    conhecer o projeto pedaggico. Em uma instituio onde a formao toda

    picadinha, a sua mente tambm ficar toda picadinha.

    Ao mesmo tempo estamos descobrindo boas possibilidades no estado de So

    Paulo, como a licenciatura em Geografia do campus de Ourinhos da Unesp.

    um projeto totalmente diferente, inovador, envolve todos os professores.

  • cadernoscenpec | 272

    Entrevista com Bernardete Gatti

    Ele nasceu de uma maneira especfica, e mesmo assim eles ainda tm

    alguma dificuldade de articulao. Mas existe um propsito, um trabalho

    sendo feito, e procuram socializar sempre os seus projetos de trabalho. Na

    Geografia de Ribeiro Preto h alguns professores que fazem um trabalho

    interessante na direo de uma didtica para a Geografia. H nichos que

    esto se constituindo e que podem oferecer conhecimentos e formas novas

    de trabalhar na educao bsica. O que ns precisamos de uma conscincia

    institucional mais forte quanto questo, e advogo que as universidades

    deveriam ter um centro de formao inicial de professores. A faculdade de

    Educao, no meu entender, contribuiria para esse centro, ela no deixaria

    de existir. Ela tem uma misso mais especfica relativa aos conhecimentos

    das Cincias da Educao. Porque, para mim, a faculdade de Educao est

    voltada para altos estudos em histria da educao, filosofia da educao,

    antropologia educacional, ou seja, a produo de conhecimentos nas Cincias

    da Educao. Outros institutos, departamentos, disciplinas contribuiriam em

    suas especialidades. Tudo com uma boa articulao curricular. E o centro de

    formao de professores receberia essas contribuies para a formao de

    professores para os diversos nveis de ensino e reas, e pesquisaria ensino,

    etc. Temos dificuldade de pensar em articulaes desse tipo.

    CADERNOS CENPEC E esse centro de formao de professores seria

    uma unidade separada?

    BERNARDETE GATTI Sim, seria uma unidade prpria. Nem precisaria ser

    grande, no preciso ter 500 funcionrios nem 500 professores, porque

    tratar-se-ia de articular os professores que j existem alocados nas diversas

    faculdades que tratam das diversas reas, inclusive os professores da

    faculdade de Educao.

    CADERNOS CENPEC Voc conhece as experincias das escolas de

    formao, ligadas s Secretarias de Educao que fazem formao

    continuada em So Paulo, em Minas Gerais...

    BERNARDETE GATTI Minas faz um trabalho um pouco mais articulado. H

    uma proposta mais clara. Mas em So Paulo eu no percebo isso. Acho que

    municpios e estado ainda no conseguiram se articular suficientemente

    com as universidades, com um projeto de formao integrado. No que

    no haja nenhuma cooperao, mas da minha percepo so cooperaes

    pontuais e eventuais.

  • O que se percebe que a questo da docncia sempre relegada como se fosse algo menor

    273cadernoscenpec | So Paulo | v.4 | n.2 | p.248-275 | dez. 2014

    CADERNOS CENPEC Acha que poderamos falar de embries se forman-

    do nesse momento na direo das mudanas necessrias formao

    dos professores no Brasil?

    BERNARDETE GATTI Como j falei, h um certo movimento. A questo

    que a oferta educacional tende a crescer e no estamos avanando muito em

    qualidade no que diz respeito formao de professores. Parece que estamos

    sempre correndo atrs do prejuzo, porque o pas muito grande, a populao

    cresceu muito e, em educao, temos de dar conta de muitos setores e

    formaes ao mesmo tempo. As ideias surgiro. Acredito que haver maior

    movimento nas instituies, profissionais que movero algumas pessoas para

    formarem ncleos diferenciados preocupados com a docncia na educao

    bsica, com as escolas e as aprendizagens das crianas e jovens. Precisamos

    reconhecer os novos tempos e criar formaes mais densas e ao mesmo

    tempo promover integrao com as mdias para uma didtica renovada. Acho

    que por a. Encontramos sinais disso, mas carecemos de uma poltica mais

    bem orientada e dirigida com foco.

    Minha gerao teve um curso de Pedagogia academicamente forte. Quando

    falo sobre como era o curso h certo espanto. Matemtica, biologia, sociologia,

    filosofia, dois anos de estatstica, trs ou quatro de histria da educao, dois

    de filosofia da educao, trs de psicologia da educao, etc. Era um grande

    aprofundamento dos estudos nas Escolas Normais. Valorizo muito a filosofia

    e a histria da educao, mas s com esse conhecimento o professor no

    est pronto para entrar numa sala de aula, em qualquer nvel da educao.

    Hoje os estudantes que entram na Pedagogia no tiveram formao para ser

    professor antes desse curso. Vm do ensino mdio geral. Ento, para atender

    s Diretrizes Nacionais preciso formar esse estudante como professor

    para os primeiros anos da educao bsica. No apenas estudando

    poltica, tendo um compromisso poltico que voc vai ser um bom professor.

    Compromisso poltico com a qualidade da educao pblica absolutamente

    necessrio. Mas compromisso poltico abstrato, sem saber o que e como fazer

    educao escolar, no resulta em aprendizagens necessrias aos alunos na

    contemporaneidade. Tem que ter o compromisso e o saber fazer. Estamos

    exatamente nessa batalha. Muita gente est trabalhando nessas questes.

    Por exemplo, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) h um grupo

    novo, muito interessante, na rea de didtica, que tem se preocupado com

    essa rea de conhecimento e seus impactos, com pesquisas, seminrios,

    discutindo didtica em outro patamar. Isso um bom sinal. Como esse grupo

    h outros em vrias reas disciplinares. Claro, ainda so poucos considerando

  • cadernoscenpec | 274

    Entrevista com Bernardete Gatti

    o universo de referncia, mas podem fazer uma grande diferena, estimular

    outros grupos, porque tudo na educao demora. Se hoje se comea a mudar

    a formao de professores, s daqui a quatro anos esse pessoal estar nas

    redes. Claro, h a formao em servio, que deveria ser mais bem planejada.

    E o resultado aparecer somente em oito ou dez anos. tudo muito longo.

    uma gerao.

    Agora seria desejvel que nossos polticos e gestores colocassem a educao

    acima de disputas partidrias. Se no conseguirmos um consenso nacional

    de que a educao um bem pblico acima de disputas partidrias, tambm

    ficar difcil a continuidade de processos bem-sucedidos. Educao e sade

    so coisas delicadas e precisam ser tratadas com a devida relevncia e acima

    de interesses particulares. O interesse pblico deve estar na frente. Mas ainda

    estamos amadurecendo nesse quesito.

    Edio: Carolina Ferraz.

  • O que se percebe que a questo da docncia sempre relegada como se fosse algo menor

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