Eduardo Viana Vargas - Os Corpos Intensivos

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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros DUARTE, LFD., and LEAL, OF., orgs. Doença, sofrimento, perturbação: perspectivas etnográficas [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1998. 210 p. ISBN 85-85676-46-9. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org >. All the contents of this chapter, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported. Todo o conteúdo deste capítulo, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada. Todo el contenido de este capítulo, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported. Os limites da pessoa Os corpos intensivos: sobre o estatuto social do consumo de drogas legais e ilegais Eduardo Mana Vargas

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Antropologia e uso de drogas

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    DUARTE, LFD., and LEAL, OF., orgs. Doena, sofrimento, perturbao: perspectivas etnogrficas [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1998. 210 p. ISBN 85-85676-46-9. Available from SciELO Books .

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    Todo o contedo deste captulo, exceto quando houver ressalva, publicado sob a licena Creative Commons Atribuio - Uso No Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 No adaptada.

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    Os limites da pessoa Os corpos intensivos: sobre o estatuto social do consumo de drogas legais e ilegais

    Eduardo Mana Vargas

  • Os Limites da Pessoa

  • 7 Os Corpos Intensivos: sobre o estatuto social

    do consumo de drogas legais e ilegais Eduardo Mana Vargas

    Com a derrocada do comunismo na ex-URSS e no Leste Europeu, as drogas passaram a reinar quase absolutas nos domnios dos pesadelos ocidentais, j que acom-panhadas apenas de longe pela Aros e pelo preconceito xenfobo. desnecessrio insis-tir nas dimenses que o problema das drogas veio a alcanar no mundo contemporneo. Lembramos apenas que as contabilidades financeira, poltica e militar envolvidas em tais circuitos crescem na mesma medida alucinante que a dos corpos mutilados, chacina-dos e siderados pelo uso de entorpecentes. Salientamos tambm que cada vez maior a ingerncia do Estado nos circuitos das drogas, as quais vm legitimando pesadas aes de interveno, inclusive blicas, em nvel internacional ou nacional (interveno norte-americana na Bolvia, na Colmbia e no Panam, por exemplo, ou o golpe de Estado no Peru), bem como tambm a interveno das drogas no circuito do Estado, atravs da corrupo generalizada ou sob a forma mais traioeira dos conflitos continuados que chegam a abalar a soberania e os poderes constitudos de lugares to dspares como o Peru, o Afeganisto, Myanma (ex-Birmnia) ou mesmo o Rio de Janeiro.

    Neste contexto histrico da 'guerra contra as drogas' - e a contextualizao serve, ao menos, para indicar a dimenso estratgica que a questo vem assumindo nas sociedades modernas, ainda mais quando se leva em conta o fato de que esse enfrentamento chega mesmo a assumir um carter "etnicidrio" (Henman, 1986) - , no demasiado dizer que, quanto a isto, a represso ao uso e ao trfico de entorpecen-tes alcanou escala sem precedentes no mundo moderno.

    Parte expressiva desse pesadelo alimentada pelos inmeros desdobramentos polticos, econmicos, jurdicos e sociais da condenao moral que, em sociedades como a nossa, pesa quanto ao consumo de certas substncias. Mas resolve apenas parte do problema dizer que as sociedades contemporneas declararam, de modo geral e com fora nunca antes vista, guerra s drogas, fazendo assim com que estas, diga-se de passagem, se tornassem uma das coisas mais lucrativas e insidiosas deste planeta. Por conta disso preciso evitar restringir esta questo dualidade lei/ilegalidade e, conseqentemente, polmica em torno de sua (des)criminalizao.

    H vrias razes para isso. Primeiro e fundamentalmente, os inmeros vnculos entre drogas e criminalidade e os problemas que da decorrem esto na dependncia de

  • um fato bsico que tem merecido pouca ateno dos cientistas sociais: o de que um nmero impressionante de pessoas se sujeita s condies mais adversas, com fre-qncia colocando em risco a sua vida fsica e social, no intuito de atualizar, em rotina que chega s beiras da impertinncia, uma prtica at certo ponto muito pouco con-vencional: 'consumir' drogas. Encarando o problema das drogas do ponto de vista de seu consumo, o que se verifica efetivamente o oposto do que seramos levados a imaginar em princpio. Isto porque, longe de um consumo 'reprimido', por assim dizer, o que se observa nossa volta que nunca se 'usou' tantas drogas, ilcitas ou no, como nos dias de hoje: no fosse por isso, o alvoroo em torno da questo no seria to grande. Mais do que isso, cremos ser possvel mesmo dizer que jamais se incitou tanto ao consumo de entorpecentes, nunca seu uso foi to prescrito e estimula-do como nos tempos atuais.

    Da ser necessrio precaver-se contra a naturalizao da distino entre as dro-gas lcitas e as ilcitas e reconhecer um fato aparentemente bvio, mas cujo impacto na discusso deste problema no tem sido muito considerado pelos especialistas, ou seja, que as drogas no so apenas aquelas substncias qumicas, naturais ou sintetizadas que produzem algum tipo de alterao psquica ou corporal e cujo uso, em nossa soci-edade, objeto de controle (caso do lcool e do tabaco) ou represso (caso das drogas ilcitas) por parte do Estado. Mesmo que trivial, preciso no esquecer que 'drogas so ainda todos os frmacos'.

    Disso decorre tal questo no implicar apenas consideraes de ordem econ-mica, poltica, sociolgica ou jurdico-criminal, tendo sido considerado caso 'eminen-temente mdico' desde que se tornou, em nossa sociedade - o que no faz assim tanto tempo - um real problema de 'drogas'. as implicaes desse vnculo entre drogas e Medicina no so absolutamente desprezveis, j que os saberes e as prticas mdicas foram historicamente investidos, entre ns, na posio de principais instrumentos de legitimao da partilha moral entre as substncias lcitas e as ilcitas por fornecerem, para a sociedade em geral e com a fora da autoridade cientfica que costumamos emprestar-lhes, os critrios para tal partilha.

    J h algum tempo, as Cincias Sociais vm se dedicando a pensar os diferentes aspectos desses desdobramentos, tendo produzido, a esse respeito, muita coisa de quali-dade;1 no entanto, ainda so escassas as pesquisas que investiguem o problema das dro-gas do ponto de vista crtico de suas prticas de consumo e de suas relaes com os saberes e as prticas mdicas. por aqui que pretendemos introduzir a investigao.2

    Considerando a problemtica do uso indiscriminado de drogas, seria muito cmodo dizer, como freqentemente o fazem a Psicologia e o senso comum, que ele se resumiria a uma resposta a determinada crise ou carncia qualquer: toma-se rem-dio porque falta sade, bebe-se lcool ou toma-se drogas porque falta dinheiro, fam-lia, escola, religio, profisso, afeto e t c ; ou seja, que o problema das drogas se esgota-ria, como Caiafa (1985:17-18) chamara a ateno, enquanto "mero produto de uma precariedade criada por outros". No entanto, Guattari (1985:47) tambm j alertara contra os perigos de definies negativistas como essa e sugerira que "ao invs de considerar tais fenmenos como respostas coletivas improvisadas a uma carncia (...), dever-se-ia estud-los como uma experimentao social na marra, em grande escala".

  • Alm disso, a manter-se essa perspectiva negativista segundo a qual a carncia ou a falta constituem-se a base de qualquer consumo de drogas seria o caso de saber, de um lado, como os homens puderam viver durante tanto tempo sem conhecer a aspirina e uma srie de outros medicamentos alopticos e, de outro, como o consumo de inmeras substncias atualmente denominadas 'drogas' pde ser to difundido no tempo e no espao, passando por um espectro de prticas culturais de consumo que vo desde a amanita muscaria das tribos siberianas ao Soma hindu, dos cogumelos mexicanos aos cactos e solanceas pr-colombianos, do tabaco amerndio ao haxixe cita, do yag dos ndios da selva amaznica ao ayahuasca do Santo Daime, do pio chins ao hbito ingls de tomar ch, das folhas de coca mascadas pelos ndios dos Andes maco-nha e cocana consumidas nas metrpoles modernas, entre inmeras outras.

    O consumo de certas substncias, hoje denominadas 'drogas', com propsitos no apenas medicamentosos parece ter sido, portanto, experincia to antiga quanto difundida nas sociedades humanas e, pelo que se sabe, foi somente nossa sociedade 3

    que 'declarou guerra' a certos tipos de consumo dessas substncias. Diante de uma ausncia e de uma presena to expressivas, respectivamente no primeiro e no segun-do casos, espantoso acreditar que todas essas prticas s pudessem se realizar en-quanto respostas a alguma coisa que lhes seria incomum.

    Neste sentido, evitar fazer do consumo de drogas um fenmeno que se reduza condio de resposta a crises ou carncias que lhe so estranhas, implica investig-lo a partir de suas prprias condies de possibilidade, isto , de um ponto de vista posi-tivo, epistemologicamente falando. Deste modo, o que se percebe desde logo que as relaes que sociedades como a nossa entretm com o uso de drogas esto longe de ser unvocas ou monolticas. De fato, encontramo-nos diante de uma situao singular, posto que paradoxal: crescente e, em muitos sentidos, indita represso ao uso de drogas ilegais adiciona-se a insidiosa incitao ao consumo de drogas legais, quer sob a forma de remdios prescritos pela ordem mdica com vistas produo de corpos saudveis, quer sob a forma de drogas autoprescritas em virtude dos ideais de beleza (os anorticos produzindo corpos esbeltos), de habilidade (os esterides e anabolizantes produzindo corpos de superatletas) ou de 'estado de esprito' (os ansiolticos e os antidepressivos produzindo corpos serenos, mansos), e, mais ainda, quer do indefectvel hbito, to comum entre ns, de ingerir bebidas alcolicas, tabaco e caf.

    Diante disso, cabe ressaltar que a diferenciao entre drogas legais e ilegais no resolve ou anula o paradoxo, posto que a questo envolve, de fato, toda uma cadeia sintagmtica que, no plano do consumo, torna prticas vizinhas os usos medicamentosos (feitos sob prescrio mdica), paramedicamentosos (autoprescritos ou prescritos por instncias extramdicas) e no medicamentosos de drogas. essas prticas podem ser tomadas em um mesmo espao porque fazem parte de um mesmo campo semntico -o das prticas corporais - que continuamente atravessado pelos modos como a vida e a morte so experimentadas e concebidas, histrica e culturalmente, pelos homens.

    Considerando que sociedades como a nossa fizeram das drogas um problema mdico-criminal, e um problema que no diz respeito apenas a sua represso, mas tambm incitao ao seu consumo, talvez se possa dizer que essas disposies mdi co-legais que cercam a questo configuram uma espcie de 'dispositivo da droga', em

  • sentido muito prximo ao que Foucault (1982a) estabeleceu para o dispositivo da se-xualidade. Problema de represso e de incitao, a 'droga', tal como o que hoje e o 'sexo', no existiu desde sempre, sendo inveno social recente e muito bem datada. Dc fato, mais do que apropriar-se da experincia do uso de drogas, o que as sociedades modernas parecem ter feito foi criar literalmente o prprio fenmeno das drogas; e o criaram por duas vias principais: a da medicalizao e a da criminalizao da experi-ncia do consumo de substncias que produzem efeitos sobre os corpos e que, at sua prescrio e penalizao, no eram consideradas como 'drogas'.

    nesse sentido que aponta Adiala (1986) em ensaio de cunho historiogrfico dedicado anlise do processo de criminalizao dos entorpecentes no Brasil. Nesse texto, o autor assinala por diversas vezes o quanto a crescente interveno penal no mundo das drogas - caracterizada, entre outras coisas, por um esmiuamento classificatrio das drogas cujo uso considerado criminoso; pela criao de estabele-cimentos especiais para a internao dos toxicmanos; pela represso policial ao trfi-co ou ao comrcio clandestino de entorpecentes; e por acentuada ampliao e especi-alizao do campo de atuao e do poder de interveno policial neste referido 'mun-do' - esteve e ainda est na dependncia de estreito vnculo com todo um processo de medicalizao que ir extrapolar, em muito, o vasto campo da problemtica que en-volve a questo.

    Mas no porque os especialistas tm dedicado mais ateno aos inmeros problemas derivados da penalizao das drogas que se deve diminuir a importncia do processo de medicalizao das mesmas ou deixar a tarefa de analis-lo apenas sob a responsabilidade dos mdicos. Isso porque o compromisso que o saber e as prticas mdicas mantm com o problema das drogas no dos menores; ele se revela no fato de que so precisamente o saber e as prticas mdicas que oferecem os principais argumentos de legitimao da war on drugs, a saber, que o consumo no medicamentoso de drogas no compatvel com os ideais de sade e de bem-estar que a Medicina nos impe buscar. O fato a destacar que, se em nome da sade dos corpos que o consu-mo no medicamentoso de drogas combatido, tambm pelo mesmo motivo, em nome dos mesmos corpos, que o consumo medicamentoso de drogas incitado.

    Haveria, portanto, aos olhos da Medicina, e no apenas dela, um consumo de drogas autorizado c um no autorizado, um consumo moralmente qualificado e um desqualificado, os dois intermediados por modalidades paramedicamentosas do con-sumo dc drogas que so, no mnimo, toleradas. a mesma Medicina quem vai de-sempenhar papel decisivo nessa partida, na medida cm que precisamente o discurso mdico que vai balizar a determinao do estatuto social das drogas nas sociedades modernas.

    Sendo assim, para pensar esse processo de medicalizao da experincia do uso de drogas preciso ter em vista ao menos duas coisas: que, a rigor, a experincia do uso de substncias convencionalmente denominadas 'drogas' (medicalizao que j se impe na violncia dessa conveno) , enquanto se trate de seu consumo, uma criao da sociedade ocidental e moderna c, enquanto tal, est intimamente relaciona-da com as formas como as ligaes de poder vigoram em sociedades como a nossa; e que as relaes que a Medicina mantm com o uso de drogas so bastante ambguas,

  • pois abarcam desde os usos medicamentosos destas substncias - usos prescritos e regulados que, estando de acordo com ordem mdica, so tidos por ela como positi-vos, ou, ao menos, necessrios - at os usos excessivos, paramedicamentosos ou no, que, no sendo prescritos nem regulados, so desqualificados pelo saber mdico sob a forma de drug abuse.

    Vejamos, ento, qual o papel da Medicina nisso tudo. Como toda disciplina que se pretende 'cientfica', ela no deixa de 'evocar' suas origens e l procurar o fundamento de suas prticas atuais. De acordo com o discurso mdico, essas origens remontariam 'noite dos tempos', seja aos imperativos de um 'instinto de cuidar' e um 'desejo de curar' considerados inatos, seja inabalvel e universal luta contra a morte; de qualquer forma, princpios norteadores sobre os quais no caberia qualquer dvida nem qualquer inquietao. Mas evocar as origens sempre constituir um mito, um mito de origem e, enquanto tal, sua importncia no est no que ele poderia, ou no, informar-nos a respeito da histria da Medicina - embora esta insista em faz-lo passar por sua 'histria' - , mas sim no que a evocao desse mito por parte desta disciplina acadmica nos informa a respeito das condies de funcionamento 'atual' do saber e das prticas mdicas. Clavreul j denunciara o carter mtico e arbitrrio dessa proposio quando afirmara que

    ... somente em funo de uma iluso retrospectiva que vemos, que isolamos certas prticas, atribuindo-lhes uma funo teraputica. Nada nos permite iso-lar um 'instinto de curar' que seria natural. Ao contrrio, pode-se observar que numerosos homens e animais se deixam morrer e, mesmo, suicidam-se ativamen-te, s vezes coletivamente. (...) inteiramente artificial isolar (...) certas prticas considerando-as como signos anunciadores de uma prtica mdica em vias de se instaurar, e localizar outras prticas como fruto de supersties votadas a desa-parecer na medida dos progressos da humanidade. (Clavreul, 1983:65-66) Segundo Montero (1985), no foi outra coisa o que a Medicina moderna fez

    quando veio a implantar-se, durante o sculo XIX, no Brasil, ocasio na qual, em nome do cientificismo, desqualificou como supersticiosas ou amadorsticas as prticas curativas que provinham de tradies distintas s da Medicina ocidental, prticas essas que condenou sob o estigma do charlatanismo. Do ponto de vista mdico, essa desqualificao de outras prticas teraputicas no gratuita nem infundada, mas tec-nicamente verificvel, baseada em inquestionvel dado de realidade que poderia ser assim sintetizado: existem as doenas e a Medicina cura, seno todas, ao menos boa parte delas; incontestavelmente, cura como nenhuma outra tcnica teraputica. No entanto, questionando a "perigosa iluso de uma correlao 'natural' entre a intensida-de do ato mdico e a freqncia das curas", Illich (s/d:26) chamara a ateno para o fato de que a Medicina impotente para realizar os fins que ela prpria a si se afere, tais como aumentar a esperana de vida ou reduzir a morbidade. 4 Mais ainda, mostra-ra o autor que ela no apenas impotente, embora tenha a potncia de produzir uma srie de efeitos iatrognicos, tais como a medicalizao da sade por intermdio dos expedientes preventivos, a medicalizao das categorias sociais, a invaso farmacu-tica e tc , os quais comprometeriam, desde a raiz, os idealizados propsitos da inter-veno do saber e das prticas mdicas.

  • Tendo-se em mente que, se o mito mdico da teraputica e da luta contra a morte nada nos diz a respeito da histria da Medicina, se sua importncia est em informar-nos sobre as condies atuais de funcionamento dos saberes e das prticas mdicas e se, mesmo nesse nvel, ele no denota a capacidade desta mesma Medicina para realizar os fins que ela explicitamente a si se afere, visto que a Medicina impo-tente para concretiz-los, poder-se-ia perguntar: a que, ento, ele se presta? Ento, o que se pretende afirmar ao evocar esse mito mdico da teraputica? Diramos que, no sendo nem a 'histria' da Medicina nem sua capacidade para aumentar a esperana de vida ou para reduzir a morbidade, visto que infundada, trata-se de afirmar algo que se vale dessas duas coisas ao mesmo tempo, qual seja, um 'critrio extensivo para avaliar a vida'. Esclarecendo: o que parece ser afirmado a partir da evocao desse mito um dos princpios fundamentais do funcionamento atual das prticas e dos saberes mdi-cos, e no apenas deles, a saber: o princpio da sobrevivncia, da salvaguarda, da preservao da vida, o de que no h outra razo para esta a no ser prolongar-se o mximo possvel em extenso, princpio este que v toda a sua historicidade esvanecer-se nesse mesmo mito que o enuncia, naturalizando-o.

    No entanto, como bem lembrou Weber (1982) quando discorria, em passagem clssica, sobre a impossibilidade da existncia de uma cincia "livre de todas as pres-suposies",

    ... a 'pressuposio' geral da Medicina apresentada trivialmente na afirma-o de que a Cincia Mdica tem a tarefa de manter a vida como tal e diminuir o sofrimento na medida mxima de suas possibilidades. No obstante, isso problemtico. Com seus meios, o mdico preserva a vida dos que esto mortal-mente enfermos, mesmo que o paciente implore a sua libertao da vida, mes-mo que seus parentes, para quem a vida do paciente indigna e para quem o custo de manter essa vida indigna se toma insuportvel, lhe assegurem a reden-o do sofrimento. (...) No obstante, as pressuposies da Medicina, e do cdigo penal, impedem ao mdico suspender seus esforos teraputicos. Se a vida vale a pena ser vivida e quando - esta questo no indagada pela Medicina. A Cincia Natural (...) deixa totalmente de lado, ou faz as suposies que se enquadram nas suas finalidades, se devemos e queremos realmente dominar a vida tecnicamente e se, em ltima instncia, h sentido nisso. (Weber, 1982:170-171)

    se a Medicina deixa isso de lado porque ela 'toma como dado' o princpio de que a vida deve ser vivida em extenso. No entanto, a historicidade e a particularidade desse princpio reaparece logo que se considere que estamos diante de fatos relativos cosmologia da cultura ocidental e moderna e que, por assim dizer, tm o seu 'tamanho'. o que ela nos apresenta que, em torno desse mesmo princpio, parecem ter se consti-tudo os fundamentos de pesadas intervenes polticas no espao mesmo da existncia das pessoas, as quais se deram sob a forma aparentemente incua, saudvel mesmo, de um processo geral de medicalizao dos corpos e da vida.

    Analista desse processo, Foucault (1982b) argumenta que ... o capitalismo, desenvolvendo-se em fins do sculo XVIII e incio do sculo XIX, socializou um primeiro objeto que foi o corpo enquanto fora de produ

  • ao, fora de trabalho. O controle da sociedade sobre os indivduos no se opera simplesmente pela conscincia ou pela ideologia, mas comea no corpo, com o corpo. Foi no biolgico, no somtico, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo uma realidade bio-poltica. A Medi-cina uma estratgia bio-poltica. (Foucault, 1982b:80) Em outro trabalho, Foucault (1982a: 128-132) retoma esse argumento: perce-

    bendo que seu desenvolvimento s podia ser garantido " custa da insero controlada dos corpos no aparelho de produo e por meio de um ajustamento dos fenmenos de populao aos processos econmicos", o capitalismo, mais interessado em produzir foras, faz-las crescer e orden-las do que em barr-las, dobr-las ou destru-las, ope-rou uma transformao muito profunda no nvel dos mecanismos de poder. Nesse con-texto, j no se trata mais de fazer valer o exerccio de um poder soberano simbolizado pela lei do gldio, pela velha potncia de morte, mas de um poder "que se exerce, po-sitivamente, sobre a vida, que empreende sua gesto, sua majorao, sua multiplica-o, o exerccio, sobre ela, de controles precisos e regulaes de conjunto". Em suma, de um poder que se dedique "administrao dos corpos e gesto calculista da vida".

    Mas o capitalismo no exigiu apenas os mtodos de poder capazes de majorar a fora de trabalho, as aptides, a vida em geral e atender, assim, aos reclamos dos aparelhos de produo. Mais do que isso, Foucault (1986:125-152) assinala ainda ter ele exigido tambm que, ao serem majoradas, nem por isso essas foras se tornassem mais difceis de sujeitar: da o desenvolvimento paralelo de toda uma srie de tcnicas de poder que, agindo no nvel dos processos econmicos, incumbem-se de tornar tais foras to teis quanto dceis.

    importante insistir sobre isso ou, mais precisamente, sobre os dois plos ou as duas formas concretas em que esse poder sobre a vida se desenvolve. Mais uma vez, ainda Foucault (1982a: 131-135) quem chama a ateno para essas duas formas, esses dois plos concretos desse poder: trata-se, de um lado, de toda uma antomo-poltica do corpo humano voltada para o seu adestramento, para a ampliao de suas aptides, para a extorso de suas foras, para fazer com que cresam paralelamente sua utilidade e sua docilidade, para integr-lo em sistemas de controle eficazes e eco-nmicos - corpo tornado mquina, devidamente individualizado, disciplinado, docilizado; trata-se, de outro lado, de toda uma biopoltica da populao que faz, do corpo, um suporte dos processos biolgicos, que o transpassa com a mecnica do ser vivo, que o submete a intervenes e controles regulares - corpo tornado organismo, corpo-espcie, devidamente normalizado, modelizado, organizado.

    Sob essas duas formas concretas de poder, a recorrncia de mesmo procedi-mento: a entrada dos fenmenos prprios aos corpos e vida na ordem do saber e do poder, no campo das tcnicas polticas. , pois, para designar "o que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domnio dos clculos explcitos, e faz do saber/ poder um agente de transformao da vida humana", que se pode falar, segundo Foucault (1982a), de "bio-poltica".

    Esse processo de medicalizao geral dos corpos e da vida no , porm, unvoco. Muito pelo contrrio, s se revela o sutil e minucioso poder de alcance de sua dimen

  • so estratgica caso se leve em conta que conectando os dois plos, fazendo convergir os dois eixos, enquanto tecnologia poltica de dupla face, que os saberes e as prticas mdicas constituem, inserem-se e fazem funcionar tais dispositivos de saber/poder. Da regulao das populaes ou das medidas macias que visam todo o corpo social (higiene c Sade Pblica, controle sanitrio das condies de salubridade do meio, controle das taxas de natalidade e mortalidade da populao, entre outras), s constantes e infinitesimals vigilncias que visam os corpos assim individuados pela extenso dos procedimentos disciplinares s cabeceiras dos leitos dos enfermos e, sob o expediente da preveno, aos sos, os saberes e as prticas mdicas se entregam, devotadamente solcitos, ao seu mais 'natural' objetivo: feita cavaleira da cincia e do dever, empunhando alto seu mais glorioso estandarte humanista - o da luta contra a morte - , heroicamente ela se aferra inabalvel c inadivel misso de cuidar da vida sob todos os pretextos, de proteg-la e prolong-la a qualquer preo. Mas precisamente aqui que o carter 'natural' ou 'desinteressado' dos cuidados mdicos revela-se em sua artificialidade; pois no mesmo momento em que os saberes e as prticas mdicas tomam a vida sob seus cuidados, sob sua proteo, em nome do critrio extensivo de preservao da vida, que eles a avaliam, a modelam, a disciplinarizam, preestabelecem seus passos, suas etapas, suas finalidades, seus valores, seus sentidos e negam, como aponta Clavreul (1983:47), "qualquer outra razo de viver que no seja a razo mdica que faz viver, eventualmente fora".

    Alm disso, h que se levar em conta, ainda, que uma das conseqncias mais significativas do desenvolvimento dessas estratgias bio-polticas de gerenciamento da vida, como aponta Foucault (1982a), refere-se

    ... importncia assumida pela atuao da norma, s expensas do sistema jur-dico da lei. A lei no pode deixar de ser armada e sua arma por excelncia a morte (...). Mas um poder que tem a tarefa de se encarregar da vida ter neces-sidade de mecanismos contnuos, reguladores e corretivos. (...) Um poder des-sa natureza tem de qualificar, medir, avaliar, hierarquizar, (operar) distribui-es em torno de uma norma, (...), distribuir os vivos em um domnio de valor e utilidade. Uma sociedade normalizadora o efeito histrico de uma tecnologia de poder centrada na vida. (Foucault, 1982a: 135) Semelhante processo de normalizao se desenvolve e se legitima enquanto

    tal, por sua vez, naturalizando o critrio extensivo de avaliao da vida, isto , toman do-o como valor anistrico, supremo e universal, como valor propriamente 'vital'. Tendo isso em vista, tudo se passa ento como se viver o maior tempo possvel fosse necessidade permanente e essencial, a nica digna desse nome, o que acaba por redu-zir a vida dos corpos a um normatizado funcionamento orgnico. No entanto, preci-so saber, como apontara Canguilhem (1982:36), que a norma , antes de mais nada, um juzo de valor ideal, mas segundo Clavreul (1983:73-74) assinala, um juzo de valor que se ancora em certa "imagem do Homem", na imagem do "Homem ideal" que o humanismo produz e ao qual se confere o estatuto de "Homem normal". Mas que Homem normal/ideal esse?

    Outro analista desse processo de medicalizao geral dos corpos e da vida, Illich (s/d: 123ss) dizia que, avaliando a vida segundo critrios extensivos, o ideal m-dico do 'bem-estar' tambm demanda, ao lado da luta contra a morte e pela cura das

  • doenas, uma luta pela eliminao da dor e do sofrimento. essa luta tem por instrumento o confisco tcnico da dor pelos saberes mdicos, a qual, a partir de ento, reificada enquanto ndice de reao de um organismo ameaado em sua sade, em seu funcionamento normal. Para que tudo v bem, preciso, portanto, que a dor se cale, pois sua manifestao, se no personifica o mal, ao menos anuncia sua presena. O fato, porm, que no apenas a dor que se deve calar, mas tambm, e sobretudo, o prprio corpo: no em vo, Leriche dizia e Canguilhem (1982:67) endossava que "a sade a vida no silncio dos rgos" e que "a doena (...) aquilo que os faz sofrer". As sensaes do corpo passam a ser, por conseguinte, um problema tcnico.

    O problema, adverte Illich (s/d:50-52 e 123ss), que esse processo de medicalizao da dor, ao responder dessa maneira acelerada demanda de gesto tcnica das sensaes do corpo, constituiu, como uma de suas tticas mais significati-vas, a crescente prescrio do uso medicamentoso de drogas, em especial a dos anal-gsicos, dos tranqilizantes, dos antidepressivos e dos ansiolticos. Illich (s/d:50-52 e 123ss), assim como Dupuy & Karsenty (1979), denomina 'invaso farmacutica' a essa incitao ao consumo medicamentoso ou paramedicamentoso de drogas legais que assola os habitantes das cidades.5 No entanto, paralelamente a essa incitao, acom-panhando de perto essa invaso, reduzem-se drasticamente os limiares de suportabilidade do sofrimento, tendendo-se supresso da prpria experincia da dor.

    Pode-se dizer, ento, que um dos mltiplos efeitos de certos consumos de en-torpecentes seria a constituio de um fenmeno generalizado de 'analgesia coletiva'. Com ela, a sade reduzida inconscincia do prprio corpo, suprime-se a prpria experincia deste ou, ao menos, ilude-se com sua eliso. A frieza, a calculabilidade e a indiferena prprias atitude blas, to bem descritas por Simmel (1987), talvez ofeream bom contraponto espiritual para essa experincia moderna do anestesiamento ou da produo de insensibilismos.6

    Nesse sentido, possvel dizer que, enquanto parte de uma estratgia concreta de sujeio das experincias dos corpos que esse processo de medicalizao vai articular o dispositivo da droga anteriormente referido. ele vai articul-lo, medicalizando du-plamente o consumo de drogas, seja medida que, ao impor impressionante invaso farmacutica, tanto se apropria de substncias j conhecidas quanto tambm cria no-vas, desde ento denominadas de drogas, incentivando e prescrevendo seu consumo na condio de que este, tido como instrumento de cura, se d conforme a ordem mdica. Vale dizer, desde que seu uso ocorra segundo os termos da sobrecodificao normativa que os saberes mdicos lhe impem, seja ainda que os saberes e as prticas mdicas - estendendo-se aos usos no medicamentosos de drogas mediante a genera-lizao de imagens apocalpticas e a constituio de todo um apangio terrorfico de corpos deformados e despedaados - tornam-se pea fundamental na converso de to-dos esses usos em usos doentios, em modalidades anormais ou patolgicas de consumo de drogas, as quais, se no forem prevenidas pelas campanhas educacionais, devero ser devidamente sanadas pelos cuidados mdicos oferecidos pelas casas de recuperao de viciados. Nos termos de Illich (s/d:56), "cada vez mais o mdico se v em face de duas categorias de toxicmanos: primeira ele prescreve drogas que criam hbito; segunda dispensa cuidados para tratar de pessoas que se intoxicaram por conta prpria".

  • Todavia, se fundamental no subestimar o papel da Medicina nisso tudo, no tomando a luta contra a morte, a dor e o sofrimento como algo natural ou inquestionvel, tambm fundamental no superestimar esse papel, seja porque sociedades como a brasileira esto longe de ser assim to 'disciplinadas', como poderia levar a crer uma aplicao mais apressada do modelo que Foucault desenvolveu pensando no contexto europeu, seja porque, em sociedades como a nossa, o processo de medicalizao dos corpos e da vida v suas ambies monopolistas serem postas em causa continuamen-te em virtude quer de suas prprias precariedades quer da concorrncia de inmeras outras prticas teraputicas que o processo de medicalizao no conseguiu extinguir. No fosse assim, seria o caso de saber como prticas como a benzeo, a umbanda, as 'medicinas alternativas' ou as curas 'pela f', entre inmeras outras, fazem tanto su-cesso entre ns e so capazes de conviver com nosso gosto apurado pelos produtos farmacuticos.

    Da que, se possvel sustentar a existncia de um 'dispositivo da droga' em sociedades como a nossa, de um dispositivo capaz de criar o prprio fenmeno relaci-onado a isto, enquanto fato extraordinrio que goza o paradoxal estatuto social de ser to reprimido quanto incitado, cremos tambm ser possvel defender que certos con-sumos paramedicamentosos ou no, de 'drogas', ao se efetivarem s expensas das relaes de poder exercidas em nome dos cdigos vigentes de Sade Pblica, configu-ram-se como modalidades dissidentes ou excessivas com relao aos cuidados que os saberes e as prticas mdicas recomendam que se deva tomar com a vida, constituin-do-se, nessa mesma medida, em 'efeitos perversos do prprio dispositivo da droga'. 7

    E, a nosso ver, nessa direo que Illich (s/d:56) aponta quando afirma que ... medida que a analgesia domina, o comportamento e o consumo fazem declinar toda capacidade de enfrentar a dor, ndice da capacidade de viver. (Nessas condies) so necessrios estimulantes cada vez mais poderosos s pessoas que vivem em uma sociedade anestesiada para terem a impresso de que esto vivas. Os barulhos, os choques, as corridas, as drogas, a violncia e o horror constituem, algumas vezes, os nicos estimulantes capazes ainda de suscitar experincia de si mesmo. Em seu paroxismo, uma sociedade analgsi-ca aumenta a demanda de estimulaes dolorosas. (Illich, s/d: 140) a dor, os ndios j o sabiam, como Clastres (1979) muito bem mostrara,

    instrumento mnemnico eficaz que, antes de qualquer outra coisa, no nos faz esque-cer, ao menos at a inconscincia ou a primeira aspirina, da existncia do corpo. Nessa medida que o problema das drogas aponta para a discusso do que Mauss (1974:211) chamou de 'tcnicas corporais', isto , "as maneiras como os homens, sociedade por sociedade e de uma maneira tradicional, sabem servir-se de seus corpos".

    por conta disso que cabe esclarecer que, se o problema do consumo de entorpecentes objeto de interesse desta investigao, ele o tendo em vista que oferece terreno privilegiado para o exame de um problema, a nosso ver, mais fundamental, qual seja, o da produo social, tanto material quanto simblica, dos corpos humanos, bem como das concepes e experincias de vida e de morte nela implicadas.

    Nesse sentido, importa considerar, de um lado, que a questo do estatuto social do consumo de drogas em sociedades como a nossa s se torna inteligvel caso se

  • considere sua relao com as representaes e as prticas corporais, ou mais especifi-camente, caso se leve em conta que os corpos no s so os resultados de engenhos sociais singulares, como tambm, ou por isso mesmo, podem ser produzidos de dife-rentes maneiras, nenhuma absolutamente 'normal' ou 'natural'. De outro lado, isso quer dizer, mais especificamente, que nem sempre os homens se servem de seus cor-pos de maneira ou segundo critrios extensivos, de salvaguarda ou sobrevivncia, e que h fortes indcios de que aquilo que a experincia do consumo no medicamentoso de drogas - mas tambm, e em sentido perigosamente prximo, os esportes radicais que muitos de ns tanto apreciamos, das corridas de Frmula-1 ao 'surfe-ferrovirio' - coloca em jogo so outros modos de produo dos corpos, modos propriamente intensivos, onde o vigor do instante de vida se impe sobre a durao da vida em extenso.

    Em vista disso, torna-se necessrio que as discusses em torno do problema do consumo no medicamentoso de drogas no se restrinjam aos termos negativos da condenao mdica ou da represso policial. Em vez de colocar as coisas nesses ter-mos caberia, a nosso ver, analisar este problema do consumo de drogas - lcitas ou ilcitas - sob uma tica epistemologicamente positiva, onde no se trataria nem de recriminar este consumo nem de fazer sua apologia, mas de operar um deslocamento de perspectivas por meio do qual fosse possvel tanto avaliar a 'doena' ou a droga sob o ponto de vista da 'sade' quanto avaliar a 'sade' sob o ponto de vista da 'doena' ou da droga. Da ser necessrio buscar essa mobilidade essencial que permite fazer a crtica da 'doena' ou da droga atravs da 'sade' e a crtica da 'sade' atravs da 'doen-a' e da droga, em nome, diramos - ao modo que Deleuze (1985:11-12) fez Nietzsche dizer - nem da 'doena' e das drogas paramedicamentosas ou no, nem da 'sade' e das drogas medicamentosas, mas de uma 'grande sade', sem todas essas 'drogas'.

    Antes, portanto, de reduzir o problema do consumo medicamentoso ou no de drogas a uma resposta a carncia ou a algo que lhe seria estranho, caberia investig-lo a partir do que ele seria em si mesmo, partindo-se, como j dito, de uma tica epistemologicamente positiva. Acreditamos ser possvel avanar nessa direo inves-tigando as prticas medicamentosas de consumo de entorpecentes em termos de suas relaes com certas experincias e concepes historicamente datadas do corpo hu-mano que se caracterizam, entre outras coisas, por se articularem em torno do princ-pio de que a vida deve durar o mximo possvel em extenso. Por outro lado, ao associar a experincia do consumo no medicamentoso de drogas nas sociedades mo-dernas produo de estados extticos, Perlongher (1988) indica uma valiosa pista para a considerao epistemologicamente positiva da questo relacionada ao consumo no medicamentoso de drogas.

    Essa associao entre experincias de consumo no medicamentoso de subs-tncias qumicas que produzem alteraes corporais ou comportamentais e experin-cias de produo do xtase no novidade nos relatos de diversos etnlogos. 8 No entanto, testada no mbito das condies 'primitivas' e no ocidentais do consumo no medicamentoso de drogas, onde se mostrou bastante produtiva, tem-se resistido a desenvolver essa aproximao com a produo do xtase no mbito das condies modernas e ocidentais de consumo. Essa resistncia est relacionada, ao que tudo

  • indica, com determinada apropriao da marcante diferena que h entre os cdigos que regem o consumo 'primitivo' e no ocidental de drogas e aqueles - ou sua perda, descodificao - do consumo moderno e ocidental. Essa diferena refere-se ao fato de que, nas condies 'primitivas' e no ocidentais, o consumo de drogas e a produo do xtase costumam ser experincias centrais, as quais, inseridas em grandes aparatos rituais e considerveis produes mticas, freqentemente remetem a um refinado c-digo religioso, a uma elaborada cosmologia sagrada. J nas condies modernas e ocidentais de consumo, o que parece ter passado foi uma abrupta e radical dessacralizao ou desritualizao dessas prticas extticas, impulsionada pela 'desterritorializao' generalizada que o capital induz. Como assinalara Perlongher (1988:6-10), condenada a droga a resplandecer nos ermos becos da marginalidade, seus caminhos passam a seguir cada vez mais de perto os grandes fluxos internacio-nais de dinheiro.

    Mais atentos s condies 'primitivas' e no ocidentais de consumo, mas no porque os etnlogos freqentemente encontraram o xtase cercado de ritos e cdigos religiosos que, estando o consumo moderno e ocidental aparentemente dessacralizado e desritualizado, no ser possvel pensar tambm esse consumo em termos de produ-o de xtase. Isto porque, da mesma maneira que o consumo de drogas no impres-cindvel a esta produo, sendo mesmo muito freqentes os casos em que no se lana mo do uso de drogas para tal, esta tambm no necessariamente uma experincia de cunho religioso, uma experincia codificada ritual e miticamente pela religio. Alm disso, tambm no se pode dizer que, tendo perdido seu carter religioso, a experin-cia moderna e ocidental do consumo de drogas tenha se desritualizado de todo, haja vista a persistncia de diversas formas de sociabilidade, como a 'rodinha de fumo' e o partilhar em conjunto das seringas e dos canudos de inalao; nem se pode dizer tam-bm que as experincias modernas e ocidentais de consumo tenham se dessacralizado absolutamente, como o atestam, por exemplo, os fenmenos do Santo Daime e o da Unio do Vegetal.

    Essa recusa a pensar o consumo moderno e ocidental de drogas em termos de produo do xtase parece encontrar ainda uma outra e mais profunda motivao. Ela reside no fato de que qualquer tentativa de tratar desta questo de uma maneira epistemologicamente positiva ter inevitavelmente que lidar com a inquietante conti gidade que, corriqueiramente, faz convergir experincias como essas e processos violentos de destruio e autodestruio, ou, em outras palavras, com a intrincada injuno entre a destruio agonstica e a plenitude do xtase. O que sejam essas expe-rincias que constantemente roam o ilusrio, o alucinatrio, a estupidez, a misria e a morte, e que desse roar possam extrair potncia afirmativa, sua embriaguez, seu xta-se, ou, ao contrrio, que o xtase e a embriaguez possam resultar em estupidez e mor-te, isto parece ser o que torna radicalmente singular esse tipo de experincia que Bataille (1967) muito propriamente chamou de la part maudite. Em vista disso, em vez de ficar apenas com o carter 'doentio', desarticulador e destrutivo da experincia do consumo no medicamentoso de drogas, isto , de se colocar exclusivamente do ponto de vista da 'sade'; em vez de tambm ficar apenas com o carter inebriante e festivo da experincia do consumo de drogas, ou seja, de se colocar exclusivamente do ponto

  • de vista da 'doena', caberia, a nosso ver, juntar isso que estamos acostumados a separar para ento, depois, encarar de frente essa inquietante injuno, fazendo irem juntos a agonia e o xtase. 9

    se foi possvel dizer anteriormente que o problema do consumo dc drogas tem por campo semntico o das prticas e das tcnicas corporais, isso se deu porque se pensava no fato de que parece ser exatamente no plano da corporalidade que as expe-rincias do consumo no medicamentoso de drogas podem ser consideradas tcnicas de produo dc xtase. Se considerarmos, alem disso, o que o uso medicamentoso c boa parte do uso paramedicamentoso de drogas tm em comum, alm do fato de tam-bm serem prticas ou meios de produo dos corpos ('dceis', 'esbeltos', 'atlticos', 'saudveis') e estarem orientados segundo critrios extensivos de avaliao da vida, caberia investigar, ento, a possibilidade de que estes consumos no medicamentosos ou extticos dc drogas, com sua injuno dc niilismo e pletora, pudessem ser interpre-tados como modos dc produo dc corpos povoados por ondas de euforia ou dc con-templao, por ondas de frio ou de calor, por ondas de cores e de sons, ritmos, veloci-dades ou, para usar uma expresso de Deleuze & Guattari (1980:185-204), de corpos povoados por 'intensidades'. Nesse caso, teramos, ento, ao lado de prticas que se definiriam por avaliar a vida em extenso, tambm prticas que se pautariam por con-siderar a vida, no mais em extenso, mas em intensidade.

    Mais uma vez as experincias do consumo de drogas se colocariam, ento, como questo de vida e de morte. Mas, a partir do que acaba de ser exposto, cremos ter podido apresentar alguns indcios, que acreditamos serem fortes, no sentido dc evitar o caminho enganoso, porque fcil e cmodo, de reduzir o problema das drogas aos termos que desqualificam e negativizam os usos no medicamentosos, por estes aten-tarem contra os reclamos de uma vida que deve durar em extenso. Indcios que tam-bm chamam a ateno para o fato de que, talvez, o que a corte lgubre de corpos drogados, quase liqefeitos, mas gozando de alegria e xtase, estaria fazendo passar sob seu cu trgico seja ainda uma outra relao entre a vida e a morte: no mais a gesto da vida por medo da morte, mas a gesto da morte por afeto vida; no mais a que visa a reproduo ou a salvaguarda da panplia fisiolgica do organismo ou a manuteno imortalizada do esprito diante da fatalidade da morte, mas a que sc vale da morte, que se estrutura sobre cia - e no apesar dela - , que a transforma cm neces-sidade para a produo da vida, da vida em intensidade c no em extenso.

    Que seja necessrio roar a morte para afirmar a vida, ou insensibilizar a vida para tentar escamotear a morte; estes parecem ser os tributos que se paga, os riscos que se corre pelos insidiosos caminhos das drogas. 1 0

    NOTAS NOTAS

    1 Veja, por exemplo, ZALUAR (1985), referncia obrigatria pelo rigor e pioneirismo no trato do tema, e a coletnea que a autora organizou (ZALUAR, 1994). Veja, ainda, MAGALHES (1994).

    2 Este texto fez parte de um projeto de tese de doutoramento desenvolvido no Programa de Doutorado em Cincias Humanas: Sociologia e Poltica, da Faculdade de Artes, Filosofia e

  • Cincias Humanas (Fafich/UFMG), sob a orientao do Dr. Pierre-Sanchis. Baseado em anlise de fontes secundrias, o que se ler a seguir configura um conjunto de hipteses, as quais, acreditamos, podem esclarecer alguns pontos que insistem em permanecer na obscu ridade quando se trata do problema do consumo de drogas, medicamentosas ou no, em sociedades como a brasileira. Portanto, essas hipteses ainda carecem da devida fundamen-tao emprica. Esperamos satisfazer essa necessidade mediante o desenvolvimento de um projeto de pesquisa que dever consistir em levantamento, via survey e pesquisa de campo, dos hbitos teraputicos, de cuidados corporais e de consumo de drogas entre os habitantes de Juiz de Fora, Minas Gerais.

    3 Com exceo apenas dos muulmanos, a quem talvez se aplique, em sentido um tanto ou quanto diferente do imaginado pelo autor, a clebre frmula de Marx segundo a qual "a religio o pio do povo".

    4 ILLICH (s/d: 13ss) argumenta que, levando-se em conta as taxas de mortalidade na Frana dos dois ltimos sculos e considerando o crescente incremento do aparato mdico, no houve, como seria de esperar, declnio da primeira taxa correspondente ao crescimento do segundo, havendo mesmo aumento da primeira, o que mostra que a relao entre as duas no natural ou necessria. Quanto ao problema da morbidade, ILLICH argumenta que, se a Medicina descobriu a cura para certas doenas, tambm descobriu (ou criou) outras doenas; antes, portanto, de falar em reduo da morbidade, seria mais conveniente, no caso, falar de alte-rao do quadro nosolgico.

    5 Matria intitulada "As Drogas Legais", publicada no Caderno Jornal da Famlia, suplemento de O Globo do dia 17/04/94, traz alguns dados interessantes: considerando que a Organiza-o Mundial da Sade estabelece que a proporo ideal de farmcias de uma para cada dez mil habitantes, o Brasil, que conta com 44 mil farmcias, tem 30 mil farmcias em excesso, ou uma para cada 3.214 habitantes; a reportagem afirma ainda que, no Brasil, estima-se entre 18% e 20% a populao consumidora de tranqilizantes ou antidepressivos, e que esse nmero chegaria a 100 milhes no mundo inteiro. Levantamento feito por NAPPO & CARLINI (1994:71-72) indica impressionante crescimento nas autorizaes especiais concedidas pelo Ministrio da Sade para quer farmcias de manipulao e indstrias farmacuticas lidem com substncias psicotrpicas. Elas eram pouco mais de 100 em 1987 e chegaram a cerca de 800 em 1993. Os autores assinalam ainda "que o consumo dos anorxicos no Brasil saltou de 7,7 toneladas em 1988 para 23,6 toneladas em 1992, um aumento de mais de 200%". Retomando um tema nietzschiano, CLASTRES (1979) mostrou muito bem que as relaes que

    6 os ditos 'primitivos' entretm com a dor e com o sofrimento esto longe de serem as mes-mas que as nossas. Ele mostra no s que pela tortura e pela dor que a sociedade produz memria de si mesma, como tambm que o lugar de inscrio e o veculo dessa memria a prpria superfcie do corpo e nada mais. Usa-se aqui a expresso 'efeitos perversos' para apontar processos de alterao ou desvir

    7 tuamento de cdigos sociais vigentes, processos esses que podem, inclusive, embora no exclusivamente, serem levados a cabo por sujeitos agindo racional e deliberadamente. Nes-se sentido, o emprego que aqui se faz dessa expresso difere daqueles propostos por MERTON (1979) e BOUDON (1979), que a concebem em termos das 'externalidades' ou dos resultados no esperados da conjuno das aes racionais dos sujeitos individuais. BASTIDE (1977); HARNER (1976); HENMAN (1981); FURST (1976); LEWIS (1977) e WASSON

    8 (1983,1985) so alguns dos que caminham nessa direo. por conta disso que preciso evitar o contra-senso de pensar que, j que os vnculos entre

    9 Medicina e drogas implicam inmeras relaes de sujeio, o caminho das drogas (daquelas cujo consumo de carter no medicamentoso) o caminho do 'paraso'. Os buracos no

  • so menos negros aqui do que l. Alm de tudo, h mais de um sculo BAUDELAIRE (1971) j chamara a ateno para o que e o quanto h de artificial nesses ditos 'parasos'. O episdio da morte do piloto Ayrton Senna, o que ele representava e o que aconteceu

    10 depois , em mais de um sentido, ilustrativo quanto a vrias das questes aqui levantadas, alm de mostrar, passageiramente, que o problema da produo de intensidades (no caso, de trabalhar com a velocidade no limite ou mesmo alm) extrapola, ainda que no abarque integralmente, o vasto campo da problemtica da droga.

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