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DON GIOVANNI OU O DISSOLUTO ABSOLVIDO DE JOSÉ SARAMAGO: UM NOVO HORIZONTE PARA O ANTIGO PECADOR Alexandre Teixeira Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas). Orientadora: Professora Doutora Luci Ruas Pereira Rio de Janeiro Dezembro de 2008

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DON GIOVANNI OU O DISSOLUTO ABSOLVIDO DE JOSÉ SARAMAGO:

UM NOVO HORIZONTE PARA O ANTIGO PECADOR

Alexandre Teixeira

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas). Orientadora: Professora Doutora Luci Ruas Pereira

Rio de Janeiro Dezembro de 2008

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AGRADECIMENTOS

À Professora Doutora Luci Ruas Pereira, pela fraterna e paciente orientação e pelo incentivo generoso.

À Professora Doutora Ângela Beatriz de Carvalho Faria, que teve decisiva

participação para a escolha do tema desta dissertação. Ao Professor Doutor Wellington de Almeida Santos, pelas aulas em que tive

acesso ao universo operístico e pelo fraterno incentivo. Ao amigo Américo Almeida, que revisou detalhadamente os esboços que

antecederam este trabalho. À minha irmã Jaqueline Teixeira, pela ajuda paciente e atenta e pelas

observações que ajudaram a aperfeiçoar esta dissertação. À minha companheira Cristiane Petito, pelo estímulo constante e pela

compreensão carinhosa. Aos meus filhos Bruno e Mariana, inspiração para o que de bom possa haver

nesta dissertação e em mim.

SINOPSE Estudo das principais características da história e da personagem de Don Juan: as transformações sofridas pelo tema, desde Tirso de Molina até o século XX. Abordagem intertextual: a versão de José Saramago em diálogo com a tradição literária formada em torno da personagem. Identificação das marcas do universo ficcional de José Saramago em Don Giovanni ou o dissoluto absolvido.

RESUMO

Don Giovanni ou o dissoluto absolvido de José Saramago: um novo horizonte para o antigo pecador

Alexandre Teixeira Orientadora: Professora Doutora Luci Ruas Pereira

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação

em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas).

A dissertação persegue dois objetivos: fazer dialogar a versão de José Saramago

com a tradição literária que se formou em torno da personagem de Don Juan ou Don Giovanni e identificar na peça teatral traços e perspectivas do universo ficcional do autor. Apresenta-se, então, um quadro parcial da tradição literária referida, desde a obra inaugural de Tirso de Molina até o século XX, com destaque para as obras de Molière, Mozart/Da Ponte, José Zorrilla e Gonzalo Torrente Ballester. Ressalta-se especialmente o fundo religioso do tema, uma vez que esse é um dos aspectos mais relevantes da subversão saramaguiana. Na segunda parte, depois de uma breve incursão por algumas obras anteriores do escritor, com destaque para O evangelho segundo Jesus Cristo, a dissertação identifica alguns processos próprios da intertextualidade no diálogo que estabelece entre a versão do escritor português e as anteriormente apresentadas, especialmente a ópera de Mozart e Lorenzo da Ponte, pré-texto direto da releitura de Saramago. Verifica-se que a nova versão apresenta um novo horizonte para a personagem marcada desde a origem pela punição divina, horizonte característico da ficção saramaguiana: laicização do universo de Don Giovanni, onde a antiga ordem religiosa cede lugar à afirmação da liberdade humana. Outra perspectiva característica do autor é identificada na absolvição e transformação do protagonista, salvo e humanizado pelo franco e generoso amor feminino, operando-se uma inversão radical da história tradicional: Don Giovanni entrega-se trêmulo à humilde Zerlina, que toma a iniciativa da conquista amorosa. Palavras-chave: Don Juan, Don Giovanni, castigo, absolvição, liberdade, Saramago.

Rio de Janeiro Dezembro de 2008

ABSTRACT

Don Giovanni ou o dissoluto absolvido from José Saramago: a new horizon for the old sinner

Alexandre Teixeira Orientador: Professora Doutora Luci Ruas Pereira

Summary of the Master’s Degree Dissertation submitted to the Post Graduation

Program in Letras Vernáculas of Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, as part of the necessary requirements for obtaining the title of Master in Letras Vernáculas (Portuguese and Africans Literatures).

The dissertation pursues two objectives: make a dialogue between the version of

José Saramago and the literary tradition that has been formed around the character of Don Juan or Don Giovanni and identify in the play traces and perspectives of the ficcional universe of the author. It is presented, then, a partial sight of the mentioned literary tradition, since the inaugural workmanship of Tirso de Molina until 20th century, with emphasis in the work of Molière, Mozart/Da Ponte, José Zorrilla e Gonzalo Torrente Ballester. It is pointed out, especially, the religious basis of the theme, since this is one of the most significant aspects of the saramaguiana subversion. In the second part, after a brief incursion by some previous works of the writer, with highlight to O evangelho segundo Jesus Cristo, the dissertation identifies some proper processes of the intertextuality in the dialogue established between the version of the portuguese writer and the previously presented ones, especially the opera of Mozart and Lorenzo da Ponte, direct pre-text of Saramago’s rereading. It is verified that the new version presents a new horizon for the character marked by the divine punishment since the origin, typical horizon of Saramago’s fiction: laicization of Don Giovanni’s universe, where the former religious order yields place to the affirmation of human freedom. Another typical perspective of the author is identified in the absolution and transformation of the protagonist, saved and humanized by true and generous female love, operating a radical reversal of the traditional history: Don Giovanni submits himself trembling to the humble Zerlina, which takes the initiative of loving conquest. keywords: Don Juan, Don Giovanni, punishment, absolution, freedom, Saramago.

Rio de Janeiro December 2008

SUMÁRIO ABREVIATURAS.........................................................................................................8 1 – INTRODUÇÃO.......................................................................................................9 2 – DE TIRSO DE MOLINA AO SÉCULO XX........................................................13 2.1 – Tirso de Molina............................................................................................14 2.1.1 – O primeiro Don Juan: obra, autoria e fontes.......................................14 2.1.2 – El burlador de Sevilla y convidado de piedra: o sermão edificante...18 2.2 – A Comédia dell’Arte: deformação e difusão do tema..................................25 2.3 – Molière: idéias libertinas e glosa à hipocrisia..............................................28 2.4 – Mozart/Lorenzo da Ponte: preparando o herói e a heroína românticos.......36 2.5 – Do Romantismo ao século XX: as versões de Zorrilla e de Ballester.........42 3 – JOSÈ SARAMAGO...............................................................................................55 3.1 – O universo ficcional de José Saramago.......................................................57 3.1.1 – Relendo a História..............................................................................59 3.1.2 – Confrontando a religião......................................................................63 3.2 – Don Giovanni ou o dissoluto absolvido: a liberdade humana.....................72 3.2.1 – Epígrafe e prólogo: repetir para mudar...............................................76 3.2.2 – Cenas 1 e 2: o novo horizonte de Don Giovanni................................79 3.2.3 – Cenas 3 e 4: o castigo terreno.............................................................90 3.2.4 – Cenas 5 e 6: a absolvição....................................................................96 4 – CONCLUSÃO........................................................................................................108 5 – BIBLIOGRAFIA....................................................................................................112

ABREVIATURAS DOS TÍTULOS DAS OBRAS DE JOSÉ SARAMAGO EJC – O evangelho segundo Jesus Cristo HCL – História do cerco de Lisboa HD – O homem duplicado IM – As intermitências da morte JP – A jangada de pedra LC – Levantado do chão MC – Memorial do convento MPC – Manual de pintura e caligrafia ND – In nomine Dei

1 - Introdução

De todas as ficções poéticas que a musa dramática lançou ao mundo nos três últimos séculos, nenhuma como DON JUAN teve tão grande descendência, nenhuma inspirou a tantos artistas, nem provocou, com tão total e rápido deslumbramento, o aplauso dos públicos.

Victor Said Armesto1

Don Giovanni talvez seja a personagem ficcional que mais vezes reencarnou na

história da literatura universal, desde que, no início do século XVII, veio à luz sob o

nome de Juan Tenorio. Dezenas de autores ressuscitaram em suas páginas, entre textos

teatrais, libretos de óperas, roteiros de cinema, romances, novelas, contos e poemas, a

personagem central de El burlador de Sevilla y convidado de piedra, do escritor e

religioso espanhol frei Gabriel Téllez, que assinava as suas obras como Tirso de Molina.

Também o fez o escritor português José Saramago, que, em 2005, publicou a peça

teatral Don Giovanni ou o dissoluto absolvido, concebida em resposta a uma solicitação

do músico italiano Azio Corghi, a quem o Teatro alla Scala de Milão encomendara uma

ópera sobre o tema.

Diga-se, desde já, que Don Juan – e o donjuanismo – foi também objeto de

vários estudos, os quais chegaram, muitas vezes, a conclusões antagônicas entre si. Esse

fato é explicado, em parte, pela própria profusão de autores que retomaram o tema,

quando diferentes características foram aportadas à personagem. De outra parte, deve-se

ressaltar também que Don Juan suscitou interpretações desde pontos de vista diversos

(da arte à ciência), o que gerou múltiplas significações.

1No original: “De todas las ficciones poéticas que la musa dramática lanzó al mundo en los tres últimos siglos, ninguna como DON JUAN tuvo tan larga descendencia, ninguna inspiró a tantos artistas, ni provocó, con tan total y rápido deslumbramiento, el aplauso de los públicos.” ARMESTO (1946), p.11. São nossas as traduções de todas as citações referentes a este autor.

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Um exemplo é a controvérsia a respeito, digamos, da pulsão de agir do

conquistador de mulheres. Para alguns, Don Juan é um permanente apaixonado, só

cambiando o objeto da paixão; para outros, só há nele a pulsão física, sexual; para

outros, ainda, a única motivação de Don Juan é a conquista da glória, sendo a mulher

um mero instrumento dessa ambição. Há, inclusive, os que vêem uma propensão

homossexual na personagem. E talvez todas essas interpretações sejam simultaneamente

possíveis, desde que escolhamos uma ou outra reencarnação do nosso herói.

Parece que Don Juan veio ao mundo exatamente para desestabilizar. Nada está

seguro, nem esposas, noivas ou filhas, nem conceitos. Mesmo os limites para se

considerar uma personagem como uma verdadeira reencarnação do burlador de Molina

não são precisos. E a sua descendência menos ainda. José Cardoso Pires, em Cartilha

do Marialva, alerta para o equívoco de se ver donjuanismo em todos excepcionais

sedutores, associando-o ao cosmopolitismo citadino e desestabilizador dos valores

tradicionais, os quais, no entanto, estão enraizados em muitos conquistadores,

representantes da sociedade rural e patriarcal, os marialvas. Assim, não seriam

donjuanescas, como é comum se classificarem, muitas personagens da literatura

portuguesa, como o Basílio, de Eça de Queiroz.

Sequer há consenso quanto às fontes originárias do mito, às fontes utilizadas por

sucessivos autores e mesmo quanto à obra que pela primeira vez trouxe Don Juan para a

história da literatura. Como afirma Carmen Becerra Suárez, uma das nossas principais

fontes teóricas, “Em que pese as muitas e bem argumentadas teorias que sobre este

assunto se formularam, nenhuma delas pode provar, sem qualquer dúvida, que a matéria

de Don Juan proceda de uma fonte espanhola; que seu criador seja Tirso de Molina e

que a primeira versão seja a de 1630”.2

2 No original: “Pese a las muchas y bien argumentadas teorías que sobre este asunto se han formulado, ninguna de ellas puede probar, sin ningún género de duda, que la materia de Don Juan proceda de una

11

Contudo, como no escopo deste trabalho não cabe o exame das diversas

polêmicas que envolvem o tema, serão adotados os dados e explicações que maior

fortuna encontram na crítica, conquanto não se deixe de assinalar eventualmente as

controvérsias existentes.

Para Carmen Becerra Suárez,

[…] Só poderemos descobrir o individual, o diferente nas literaturas nacionais recorrendo ao uso da literatura comparada, porque unicamente depois do estudo comparado estaremos aptos para considerar de modo crítico uma obra, um período, uma corrente; e apreciaremos de maneira adequada a originalidade de tal ou qual tratamento, desta ou daquela obra, de um ou outro movimento estético.3

Essa perspectiva encontra maior razão quando o tema e a personagem analisados são o

resultado da intervenção de várias épocas, culturas e autores, como é o caso da história

de Don Juan. A prova disso é o fato de a sua característica mais popular, a de incrível

sedutor, ter sido fixada, como veremos, por versões posteriores à de Tirso de Molina,

autor, aliás, a quem poucos atribuiriam a criação da personagem. Teria, portanto, pouco

significado abordar a criação de Saramago sem a inserir na rica tradição literária que a

precede e que nos permite compreender porque a absolvição do dissoluto é uma radical

inversão da história original. É essa perspectiva que nos obriga a enveredar pelo campo

de trabalho da literatura comparada.

Assim, o objetivo da primeira parte desta dissertação é acompanhar as

transformações sofridas pelo tema (e conseqüentemente as que ocorrem na linguagem

que o sustenta), desde as prováveis fontes utilizadas por Tirso de Molina, cuja obra será,

quase sempre, paradigma para as nossas reflexões. No nosso percurso até o século XX,

fuente española; que su creador fuese Tirso de Molina y que la primera versión sea la de 1630.” SUÁREZ (1997), p. 58. São nossas as traduções de todas as citações referentes a esta autora 3 No original: “[...] sólo podremos descubrir lo individual, lo diferente en las literaturas nacionales acudiendo al uso de la literatura comparada, porque únicamente después del estudio comparado estaremos en disposición para considerar de modo crítico una obra, un período, una corriente; y apreciaremos de manera adecuada la originalidad de tal o cual tratamiento, de esta o aquella obra, de uno u otro movimiento estético.”SUÁREZ (1997), p. 55.

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algumas obras serão apenas citadas ou tratadas incidentalmente, enquanto outras

merecerão maior atenção, seja pela sua importância para história literária do tema, seja

por aportarem elementos e características úteis para a análise da versão de Saramago.

Entre essas, analisaremos especialmente as de Molière e Mozart/Lorenzo da Ponte

(libretista da ópera), cujas contribuições a maioria dos analistas aponta como as mais

relevantes para a conformação e difusão do mito.

Somente então verificaremos, na segunda parte, como o texto de José Saramago

dialoga com os anteriores. Ao contrário da primeira parte, são ainda escassos os estudos

sobre o Don Giovanni do escritor português. Utilizamos como apoio, as entrevistas com

o autor, a apresentação e o posfácio do próprio livro. Servimo-nos também de textos

críticos dedicados à produção geral ou a outras obras do autor com o objetivo de apurar

os traços característicos da criação saramaguiana e identificá-los na obra em questão,

outro e não menos importante objetivo desta dissertação.

13

2 – De Tirso de Molina ao século XX

Há diferentes interpretações sobre a caracterização de um mito. Dificilmente

Don Juan se enquadraria na definição de mito fundador ou de dramaturgia da vida social

ou da história de um povo, adotada por Mircea Eliade, no livro Mito e realidade. As

definições ético-psicológicas e filosóficas de mito, pela associação que estabelecem

com aspectos psíquicos e ético-morais, são mais pertinentes para o enquadramento do

nosso herói, devendo-se ressaltar, entretanto, que muitos teóricos apresentam

justificativas singulares, adotando uma interpretação mais ampla e livre para esse

impreciso conceito. Assim, Don Juan seria uma personagem mítica pela natureza sobre-

humana de suas façanhas – conquistou nada menos que 2065 mulheres; atestaria

também esse atributo o fato de ter sido insistentemente atualizado pela literatura ao

longo dos séculos, demonstrando o seu enraizamento nas pulsões primordiais do

homem.

Na verdade, a maior parte dos estudos ou não menciona tal aspecto ou considera,

sem averiguação, o caráter mítico de Don Juan como um pressuposto4. Outros, como

Jean Rousset, Carmen Becerra Suárez e Ian Watt, buscam fundamentar a atribuição

dessa natureza ao sedutor, apoiando-se, entretanto, em razões diferentes. E diferentes

são as definições a que chegam: Jean Rousset concede-lhe o estatuto dos mitos que

remontam às origens, ao tempo sagrado dos inícios; Carmen Becerra Suárez, após

analisar detidamente as diversas acepções de mito, nega-lhe a categoria de mito puro e o

insere num tipo específico, o mito literário, ressaltando que a personagem foi objeto de

sucessivas desmitificações e remitificações, como teremos oportunidade de verificar.

4 É o caso de Said Armesto, no livro La leyenda de Don Juan. Embora prefira o termo Leyenda, incluído no próprio título, em várias passagens refere-se ao mito de Don Juan.

14

Já Ian Watt inclui Don Juan entre os mitos do individualismo moderno e afirma

que o nosso herói caracteriza-se pelas energias positivas e individualistas do

Renascimento, buscando o seu próprio caminho, e não o dos outros, característica

confirmada por Said Armesto quando diz: “...moço que com tal energia afirma seu eu

insolente e altivo, do homem que com independência orgulhosa põe sua personalidade

sobre todas as leis”.5 Ian Watt, após breve incursão pelas caracterizações de mito,

assenta a definição que utiliza: “uma história tradicional largamente conhecida no

âmbito da cultura, que é creditada como uma crença histórica ou quase histórica, e que

encarna ou simboliza alguns dos valores básicos de uma sociedade.”6

Embora este trabalho não examine a pertinência do caráter mítico de Don Juan,

essa condição será considerada eventualmente, principalmente em função das

interpretações de Carmen Becerra Suárez e Jean Rousset.

2.1 – Tirso de Molina

2.1.1 – O primeiro Don Juan: obra, autoria e fontes

Uma das mais famosas teses contra a autoria espanhola – e por conseqüência de

Tirso de Molina – de El Burlador de Sevilla é a do hispanista e professor italiano Arturo

Farinelli, que sobretudo reivindicava para a Itália as origens poéticas do drama.7 Em La

5 No original: “...mozo que con tal energia afirma su yo insolente y altivo, del hombre que com independência orgullosa pone su personalidad sobre todas las leyes...”ARMESTO (1946), p. 14. 6 WATT (1997), p. 16. 7 Conforme Said Armesto, Farinelli, baseado em dados colhidos de um historiador de arte chamado Riccoboni, afirmava que o Burlador era encenado nas igrejas da Itália já em 1620, antes, portanto, de Molina o ter escrito. Armesto, então, demonstra que da leitura da passagem da obra de Riccoboni, citada por Farinellital e transcrita em La Leyenda, não se pode absolutamente extrair aquela informação. Da mesma passagem, Armesto extrai a conclusão de que tais encenações, nas igrejas da Itália, são bastante posteriores a 1620. Além disso, Armesto afirma não ser possível determinar a data exata em que Tirso teria escrito o seu drama, defendendo que o poderia ter feito desde 1607. Nesse ponto rebate as teses de que o frei espanhol o escrevera a partir de 1625, ano em que teria ocorrido a sua passagem por Sevilla. Primeiro, porque Tirso, conforme Blanca de los Rios, já havia estado naquela cidade em 1616 e, segundo,

15

leyenda de Don Juan, Victor Said Armesto, embora reconheça que antes de Tirso a

linha de investigação adentra o campo das hipóteses, aponta as fragilidades dos

argumentos de Farinelli e junta um número abundante de relatos orais e de textos para

demonstrar existirem em várias nações lendas medievais e narrativas populares com os

núcleos temáticos presentes na peça, segundo ele, espanhola.

Said Armesto prova, pelo menos, que não era necessário a Molina recorrer-se a

terras estrangeiras para encontrar a matéria-prima de Don Juan, defendendo, ainda, que

na rica poesia oral espanhola

[…] não só transparecem os contornos do famoso Burlador de Sevilla y Convidado de pedra, como estão contidas, como em tosca semente, toda a psicologia facetada e fulgurante daquele grande desdenhoso, insaciável buscador de escândalos, desafiador de mortos, eterno enamorado do prazer e do perigo, e que com gesto altivo e olhos frios olha o espectro vingador cara a cara.8

Embora tenda, como Carmen Becerra Suárez, a ver no Burlador a sobreposição

de dois temas distintos – o do frívolo e orgulhoso sedutor e o do banquete macabro –, o

autor de La Leyenda desenvolve especialmente a pesquisa em relação a este último, de

fundo moral e religioso associado à profanação dos mortos.9 Também chamado duplo

convite ou banquete expiatório, seu núcleo é o convite para jantar feito

zombeteiramente a um morto, que comparece e retribui o convite, para surpresa do

profanador. Esse, após o jantar no cemitério ou igreja, é normalmente – mas nem

sempre – punido com a morte. Em muitas fontes, inclusive espanholas, esse tema já

porque o dramaturgo não precisava ter estado em Sevilla para beber das fontes disseminadas em toda a Espanha. Ainda sobre a data da composição, Ian Watt afirma ter sido provavelmente entre 1612 e 1616. 8 No original: “[...] no sólo se traslucen los contornos del famoso burlador de Sevilla y Convidado de piedra, sino que se contiene, como en tosco capullo, toda la psicología facetada y fulgurante de aquel gran desdeñoso, insaciable buscador de escándalos, retador de muertos, eterno enamorado del placer y del peligro, y que con altivo ademán y fríos ojos mira al vengador espectro cara a cara. ARMESTO (1946), p. 26. 9 Amparado em vasta documentação, Said Armesto vai buscar a fundamentação desse aspecto na antiga superstição popular de que os mortos têm também sede e fome e no conseqüente costume de oferecer a eles alimentos, especialmente no dia de finados, nas igrejas e túmulos – costume tolerado pela Igreja Católica por muito tempo. Por via dos abusos e da proibição de tal prática, além da influência de outras superstições, como, por exemplo, a crença de que não se deve comer da comida dos mortos sob pena de morte, o tema desenvolveu-se associado à profanação dos mortos. Em sua defesa das origens espanholas do Burlador, Said Armesto afirma que a representação do morto sob a forma de estátua é uma contribuição oriunda especialmente da Espanha.

16

aparecia entrelaçado ao do frívolo sedutor. É o caso de um antigo romance popular

espanhol descoberto, em 1889, por Juan Menéndez Pidal10, o qual tanto Said Armesto

quanto Carmen Becerra Suárez consideram ser o mais provável antecedente de El

Burlador de Sevilla. Juntando mais quatro versões do mesmo romance e ressaltando

nelas várias características de Don Juan, como a sua condição aristocrática e a sua

impiedade, Armesto observa: “Note-se como os sinais desse rapaz temerário, frívolo e

burlão, coincidem, ainda que de forma abreviada e simplíssima, com as do moço

dissoluto que encheu os teatros da Europa com o estrondo de suas aventuras”.11 O

crítico e professor espanhol acrescenta em reforço à sua interpretação as seguintes

palavras de Menéndez y Pelayo, referentes ao romance descoberto por Pidal: “Análogas

fantasias podem ser encontradas em poesias populares de diversos tempos e países; mas

não conheço nenhuma forma tão próxima a da lenda de Don Juan como esta”.12

Quanto à autoria do primeiro Don Juan, Said Armesto concorda com Menéndez

y Pelayo, para quem o estilo poderia indicar ser obra de Lope de Vega. No entanto,

ambos defendem a autoria de Tirso, entre outros motivos, pelo fato de os dois

dramaturgos serem “poetas de um mesmo tempo e de um mesmo gosto, e mais afins do

que vulgarmente se crê”.13 Embora afirme não ser o escopo da sua pesquisa, o autor,

para demonstrar as convergências com El Burlador, transcreve no apêndice de La

leyenda passagens de vários outros dramas do frade espanhol, “passagens com tal

10 O romance, descoberto em Riello (León), foi publicado no tomo X da Antología de Poetas Líricos Castellanos, de Menéndez y Pelayo, conforme informação de Said Armesto. 11 No original: “Nótese cómo las señas de ese mozalbete temerario, frívolo y burlón, concuerdan, aunque en forma abreviada y simplicísima, con las del disoluto mozo que llenó los teatros de Europa con el estruendo de sus aventuras.”ARMESTO (1946), p. 31. 12 No original: “Análogas fantasías pueden encontrarse em poesías populares de diversos tiempos y países; pero no conozco ninguna forma tan próxima a la leyenda de Don Juan como ésta”. Ibiden, p. 28 (Nota de rodapé). 13 No original: “poetas de un mismo tiempo y de um mismo gusto, y más afines de lo que el vulgo cree”. Ibiden, p. 215. Palavras de Menéndez y Pelayo, citadas no Apêndice do livro. Na mesma página, Said Armesto faz nova citação do mesmo crítico, que afirma que uma outra dificuldade para identificar a autoria é o fato de os textos conhecidos serem uma versão mutilada e estragada do original desconhecido.

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exatidão, mesmo no tipo de ação, ou nos sentidos e conceitos, que não deixam margem

para a dúvida”.14

Surgida muito tempo depois da tese de Arturo Farinelli e do trabalho de Said

Armesto, a mais consistente oposição à autoria de Tirso de Molina parece ser aquela

que a atribui ao dramaturgo e ator Andres de Claramonte, defendida especialmente por

Alfredo Rodríguez López-Vazquez.15 Essa tese, porém, é francamente minoritária e foi,

entre outros investigadores, rebatida por Laura Dolfi no ensaio El burlador burlado.

Don Juan en el teatro de Tirso de Molina, onde a autora compara El burlador com

outras peças teatrais do frade espanhol. Como não entraremos na análise deste ponto,

deixemos apenas registrado que Laura Dolfi foi buscar na peça Quien no cae no se

levanta, que pouca atenção mereceu de analistas anteriores, afinidades significativas,

porque fundadas em três elementos: o caráter do protagonista, a estrutura do enredo e

semelhança de diálogos.

Apesar das diversas polêmicas concernentes às fontes, autoria e data do

surgimento do primeiro Don Juan e apesar de Carmen Becerra Suárez concluir não

estarem pacificadas essas questões, a maior parte dos estudos, enfim, considera ser El

burlador de Sevilla y convidado de piedra a obra que introduziu a personagem na

história da literatura universal, fixando a data de 1630 como a da sua primeira

publicação. Considera também Tirso de Molina o seu autor.

14 No original: “pasajes com tal exactitud, bien en la pauta de la acción, o ya en los giros y conceptos, que no dejan resquício a la duda”. Ibiden, p. 215-6. 15 Em trabalhos como Andrés de Claramonte. Autor de El Burlador de Sevillha, La Coruña, Gráficas Coruñesas, 1982, e Aportaciones críticas a la autoria de El Burlador de Sevilla, Toulouse, Criticón, 1987. Citados por Carmen Becerra Suárez. Ian Watt propõe, ainda, a hipótese de a versão conhecida do drama ter sido escrita por Molina e modificada por Andres de Claramonte.

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2.1.2 – El Burlador de Sevilla y convidado de piedra: o sermão edificante

Ian Watt, citando Georges Gendarme de Bévotte, destaca que Don Juan seria

inconcebível na Antigüidade Clássica, uma vez que o paganismo celebrava a

sexualidade; a personagem só poderia encontrar justificativa diante da repressão cristã

às exigências da carne.16 Mas o nosso herói não é um produto do cristianismo apenas

por essa razão, pois, com O burlador de Sevilha, Tirso de Molina, frade da Ordem das

Mercês, levou aos palcos a defesa da doutrina católica em oposição à protestante.

Porém, antes de analisarmos esse aspecto, façamos a apresentação das principais linhas

da trama.

Após burlar duas mulheres (a duquesa Isabela e a pescadora Tisbea) – ocasiões

em que se serve, respectivamente, do disfarce e de falsas promessas de amor para

“seduzir” suas vítimas –, Don Juan, já na metade do segundo ato, mata Don Gonzalo de

Ulloa em um duelo. O Comendador, pai de Dona Ana, fora em socorro da filha, que

gritara ao perceber o engodo: em seus aposentos estava Don Juan e não o seu noivo,

com quem havia acertado o encontro. Enquanto as personagens ultrajadas pelo burlador

buscam a vingança terrena, Don Juan, que acabara de conquistar a camponesa Aminta,

entra casualmente na igreja onde o Comendador está sepultado sob a sua estátua de

pedra. Confrontado com a inscrição que acusa o assassino de traidor e reclama

vingança, o burlador convida o morto para jantar em sua casa, onde será cumprido o

desafio. Inesperadamente a estátua comparece e, após a ceia, retribui o convite, que é

aceito por Don Juan, para que Sevilha se espantasse do seu valor. Terminado o jantar na

16 Teresa Cristina Cerdeira da Silva, ao abordar o erotismo como instrumento de transgressão do código moral no romance Memorial do Convento, destaca os estudos de Michel Foucault, para quem “o século XVII marca uma ruptura definitiva na forma de tratamento da sexualidade no nosso mundo ocidental. Estaria aí o início da chamada ‘idade da repressão’, momento em que a sociedade burguesa, fundamentada no trabalho como garantia do poder, sentiu a necessidade de coibir a atividade sexual, fundamentalmente antiprodutiva”. SILVA (1989), p. 76.

19

tumba do Comendador, a estátua estende a mão a Don Juan, exortando-o a não ter

medo. Para demonstrar que nada receia, o dissoluto aceita o cumprimento e é, assim,

lançado às chamas infernais.

Para Lilian dos Santos Silva Ribeiro17, o tema central da peça é o bom uso do

livre-arbítrio, o que envolve um fervoroso debate teológico entre protestantes e

católicos. Os primeiros negam a existência do livre-arbítrio e afirmam a predestinação

do homem, incapaz de julgar o Bem e o Mal, excluindo a possibilidade de salvação em

função do mérito de suas obras – justificação pela fé apenas (sola fide) e salvação

mediante a graça divina. Já os católicos orientam-se pelas resoluções do Concílio de

Trento, que estabeleceu as bases teóricas da Contra-Reforma: o homem é capaz de

distinguir o Bem e o Mal e, dotado do livre-arbítrio, escolhe o seu próprio caminho –

justificação pelas boas obras e insuficiência da fé para a salvação.18

A peça teatral de Molina possui uma intenção didático-moralizante, sob o

enfoque do catolicismo contra-reformista. Segundo Ribeiro, “Um dos principais

ensinamentos que o público de El burlador de Sevilla deveria depreender é o de que a

obra do homem deve ser superior à sua fé”.19 Por isso Don Juan não poderia ser um

cético e muito menos um ateu. Capaz de discernir entre o Bem e o Mal,

[...] ele funciona como o exemplo de que, já que estão todos os homens dotados dessa capacidade racional, não devem sob nenhuma hipótese guiarem-se simplesmente pela fé, já que cada um será julgado, e o critério para o julgamento são as suas obras, cujo prêmio ou castigo lhes são diretamente proporcionais, muito diferente das noções de fidúcia e da percepção da graça dentro do Luteranismo. A ideologia em cena, ao enfocar a primazia das boas obras, direciona a atenção para o uso da liberdade individual. Don Juan é livre para mudar de rumo, e lhe são dados avisos que seriam um ensejo para essa mudança, mas, usando sua liberdade de maneira equivocada, assinala sua própria condenação.20

O burlador, então, não desdenha da punição divina, mas apenas sente-se livre

para cometer todos os pecados na juventude, desde que se arrependa na velhice. E o 17 Cf. RIBEIRO (2007), p. 10. 18 Cf. WATT (1997), p. 133-7; SUÁREZ (1997), p. 76-88; RIBEIRO (2007), p. 10-4. Destacamos apenas as principais diferenças entre as teses católicas e protestantes, sem entrarmos nos complexos meandros da polêmica religiosa. 19 RIBEIRO (2007), p. 11. 20 Ibidem, p. 13.

20

enunciado “Tan largo me lo fiáis”21 (“Que longo prazo me dais”), repetido muitas vezes

pelo protagonista (com pequenas variações), é o fio condutor desse sentido. Mas, como

canta o coro quando Don Juan está prestes a ser lançado às chamas infernais, “não há

prazo que não chegue/nem dívida que não se pague” (MOLINA, p. 240).22 Ao ser

surpreendido, ainda jovem, pela morte iminente, o pecador contumaz pede por alguém

que o confesse e absolva, não sendo, porém, atendido pela estátua, que diz ter Don Juan

acordado tarde e ser aquela a justiça de Deus.

A peça de Molina desenvolve-se, portanto, a partir de um argumento teológico,

sendo as palavras utilizadas pelo autor (como as evocadas acima) muito claras quanto à

defesa das teses católicas em oposição às protestantes. Contudo, a conciliação entre a

liberdade humana e a graça divina estava longe de ser pacífica no âmbito da Igreja

Católica, causando consideráveis polêmicas internas. Como não investigaremos tal fato,

registremos apenas que Tirso de Molina, conforme Ian Watt e Carmen Becerra Suárez,

adotou em muitas de suas peças a posição segundo a qual um pecador contumaz pode

ser salvo pela vontade de Deus. Ambos os estudiosos destacam El condenado por

desconfiado, no qual o perverso Enrico é salvo por sua fé e a virtuosa Paula é

condenada por pedir a Deus um sinal de Seus desígnios, atitude explicitamente

condenada pelo Concílio de Trento. Suárez afirma ainda que Molina, com El burlador,

tinha o objetivo de anular os maus efeitos daquela outra peça, cujo exemplo moral

levava ao entendimento de que bastaria o arrependimento de última hora para apagar

uma vida inteira de pecados.

Mas El burlador de Sevilla y convidado de piedra também comporta uma crítica

de cunho social e Don Juan encarna a dissolução da época, especialmente da Espanha

21 Esse é o título de uma outra peça de Molina. Todos concordam que ela e El burlador de Sevillha são praticamente o mesmo texto, com algumas variantes. Embora aqui também haja divergências, a corrente majoritária confere a Tan largo me lo fiais a precedência e também a atribuem ao religioso espanhol. 22 No original: “no hay plazo que no llegue/ni deuda que no se pague”. São nossas as traduções do texto de Molina.

21

dos séculos XVI e XVII, embora, talvez por prudência, o autor situe a ação no século

XIV.23 Segundo Ian Watt,

O fato é que na sociedade descrita em El Burlador não há um estilo de vida que possa ser tomado como um límpido pano de fundo contra o qual se possa projetar a figura contrastante de Don Juan, a fim de melhor avaliá-lo e julgá-lo. De um modo geral ele é mais perverso, mais amoral, e também mais hábil, mais ativo e mais corajoso do que as pessoas à sua volta; mas não difere essencialmente delas, tanto nos objetivos quanto nos métodos. Seu criador, Tirso de Molina, era um escritor cuja visão moral da vida em seu tempo refletia tanto a tristeza que lhe causava a decadência do período de Filipe III (1598-1621) e Filipe IV (1621-65), quanto o seu desprezo pelo mundo em geral.24

Apesar dessa observação, Ian Watt, assim como Lilian dos Santos Silva Ribeiro,

ressalta que as personagens humildes, que vivem nas aldeias, são retratadas de uma

forma mais positiva do que as da sociedade cortesã. O próprio Don Juan afirma que “a

honra se foi para as aldeias/fugindo das cidades” (MOLINA, p. 212).25 Então, embora

quase todas as personagens sejam retratadas de forma mais ou menos negativa, é sobre a

classe representada, entre outros, pelo protagonista que a crítica recai mais virulenta,

como expressam as seguintes palavras da camponesa Aminta: “A sem-vergonhice em

Espanha/se fez cavalaria” (MOLINA, p. 213).26 É significativo o fato de Don Juan

matar a única personagem representativa de valores exemplares (religiosos e seculares)

e de ser ela um Comendador da Ordem de Calatrava, importante instituição da cavalaria

cristã.

Don Juan atua sobre as fissuras morais das demais personagens, como nas burlas

às duas mulheres de extração nobre: a duquesa Isabela e Dona Ana acertam encontros

secretos, em seus aposentos, com os seus amados e Don Juan, protegido pela escuridão

23 Cf. RIBEIRO (2007), p. 65. 24 WATT (1997), p. 119. 25 No original: “el honor se fué a la aldea/huyendo de las ciudades”. 26 No original: “La desvergüenza em España/se ha hecho caballería”. A título de exemplo, destaque-se que o Marquês de la Mota é um embusteiro da estirpe de Don Juan, como se depreende da conversa em que ambos lembram antigas burlas. Apesar de se dizer apaixonado por Dona Ana, De la Mota continua a planejar e a executar novas burlas amorosas. Don Juan o supera, é claro: aproveitando-se da confidência do amigo, burla-o também e toma o seu lugar no encontro marcado com Dona Ana.

22

da noite, toma-lhes o lugar.27 No mesmo sentido, Don Juan consegue escapar do Palácio

do rei de Nápoles (onde burlara a duquesa Isabela) com a ajuda de seu tio Pedro,

embaixador espanhol naquela corte e encarregado pelo rei de capturar o intruso. Nosso

herói espera contar também com a proteção paterna, como afirma a seu criado: “Se é

meu pai/o dono da justiça,/ e um dos privados do rei,/ que temes?” (MOLINA, p. 214).28

E, de fato, Don Diego Tenorio, apesar de admoestá-lo, intercede em favor de seu filho,

que é tratado com evidente indulgência pelo rei, cuja disposição de castigá-lo é tardia e

vacilante, não chegando a se consumar. Como poderia Don Juan ser punido por uma

sociedade cujos vícios e dissolução ele representa? Daí a punição só poder ser levada a

cabo pela intervenção do Céu.

Conforme Said Armesto, não fosse a larga tradição do convite macabro a matriz

da composição de Tirso, “el punctum saliens de la leyenda”, seria brusca, incongruente

e ilógica a transição entre a cólera de Don Juan, encoberta pelo gracejo, e o convite que

faz à estátua para jantar:

Do mote quero rir-me. E haveis vós de vingar-se, bom velho, barbas de pedra? ............................................ Esta noite a jantar vos aguardo em minha casa. Lá o desafio acertaremos, se a vingança vos agrada.; (MOLINA, p. 223)29

A base folclórica parece justificar, para o público da época, não apenas o (para os

nossos dias, inusitado) convite, mas também a introdução do elemento sobrenatural

27 Na interpretação de Lílian Ribeiro, também a pescadora Tisbea e a camponesa Aminta não seriam tão inocentes criaturas, já que ambas visariam, com o ato sexual, ao reconhecimento de uma união legal com o nobre sedutor: a Igreja Católica aceitava como casamento o compromisso selado entre um homem e uma mulher seguido da consumação carnal. Cremos duvidosa tal interpretação. Por outro lado, consideramos mais plausível a hipótese de que, pela lógica do autor, esteja a ser censurada a maleabilidade feminina no tocante ao sexo, o que inclui também a atitude das duas mulheres humildes. Podemos, inclusive, ler como parte da intenção didático-moralizante de Molina as seguintes palavras de Catalinón: “Guárdense todos de un hombre/que a las mujeres engaña,/y es el burlador de España.” (MOLINA, p. 197). 28 No original: “Si es mi padre/El dueño de la justicia,/Y la privanza del rey,/¿Qué temes?” 29 No original: “Del mote reírme quiero/¿Y habéisos de vengar,/buen viejo, barbas de piedra? (…) Aquesta noche a cenar/os aguardo en mí posada./Allí el desafío haremos,/si la venganza os agrada;”

23

numa trama que, até o meio do terceiro e último ato, desenrola-se no plano

exclusivamente terreno (o tema do galante frívolo e orgulhoso), não obstante a marcante

religiosidade da sociedade retratada e os avisos recebidos pelo impenitente sobre o

castigo divino.

Segundo Ian Watt, Tirso de Molina

[...] acrescentou plenitude, complexidade e força dramática não encontradas em nenhuma das versões folclóricas da história; ao fazer da estátua uma representação do pai ofendido; e daquele que o ofende o mesmo jovem arrogante que o matou e agora gratuitamente o insulta, Molina deu ao conto uma poderosa lógica moral antes inexistente.30

E assim entendemos, embora por razões não invocadas pelo crítico. Aliás, Watt parece

não ver necessidade de fundamentar tal afirmação. Cremos que, além de transformar o

embate entre as duas personagens no confronto entre os valores negativos e positivos de

um certo ideal de sociedade, Molina tornou mais palpável para o público a necessidade

de punição do burlador ao agregar ao morto a condição de pai ultrajado. Isso porque,

segundo o próprio Ian Watt, a honra era o código característico da sociedade

espanhola.31 E a honra masculina estava depositada especialmente nas mulheres, como

afirma o rei de Nápoles: “Ah, pobre honra! Se és a alma/do homem, por que te

deixam/na mulher inconstante,/se é a mesma ligeireza?” (MOLINA, p. 156).32 Portanto,

apesar de a estátua, como ressalta Ian Watt, não se apresentar como vingadora da honra

da família, tal aspecto, mesmo que secundário na caracterização do Comendador, não

pode ser desconsiderado.

Muitos estudiosos, como Renato Janine Ribeiro e Lilian dos Santos Silva

Ribeiro, além do próprio Ian Watt, entendem que o primeiro Don Juan está interessado 30 WATT (1997), p. 123. 31 Lilian Ribeiro ressalta a diferença entre honor, termo relacionado à idéia de dignidade, e honra, relacionada à opinião dos outros sobre o indivíduo. A estudiosa, contudo, afirma que muitos autores usavam os dois termos indistintamente. Em El burlador, prepondera a concepção de honra na sua face externa. Apenas o Comendador parece ser portador da honra no sentido de dignidade, de virtude, sendo Don Juan, sua antítese, aquele que mais explicitamente encarna o outro sentido. E é por querer que Sevilha se admirasse do seu valor que o herói aceita o convite do segundo jantar (na tumba do morto); é para não demonstrar temor que aceita o aperto de mão que o precipitará no Inferno. 32 No original: “¡Ah pobre honor! Si eres alma/del hombre,¿por qué te dejan/en la mujer inconstante,/si es la misma ligereza?”

24

em conquistar menos as mulheres do que a fama de o maior burlador de Sevilha. E,

naquela sociedade, não poderia haver maior burla, nem mais escandalosa, do que

desonrar os outros homens. A mulher é apenas o instrumento. Por isso, as conquistas

amorosas de Don Juan, como afirma Catalinón, têm público pregão, devendo todos

defenderem-se “de um homem/ que as mulheres engana” (MOLINA, p. 197).33 Por isso,

diz Don Juan:

Sevilha às vezes me chama o Burlador, e o maior gosto que em mim pode haver é burlar uma mulher e deixá-la sem honra. (MOLINA, p. 192)34

Por tudo que foi exposto, pode-se perceber que na lógica de Molina não poderia

haver salvação para o nosso herói. Proporcionando a Don Juan o castigo mais severo – a

condenação eterna – Tirso é fiel à tradição dramática espanhola da época. Com efeito, a

maior parte da literatura barroca se submetia à exigência – religiosa e contra-reformista

– da subordinação da arte a um propósito moral, devendo constituir-se num exemplo

edificante.

Embora existam latentes no protagonista de Molina, muitas características que

normalmente se associam a Don Juan serão desenvolvidas ao longo do tempo. Apesar,

por exemplo, de transgredir todas as normas, religiosas e sociais, o primeiro Don Juan

não é exatamente um rebelde, não critica a moralidade ou a estrutura vigentes. Ao

contrário, em suas burlas, está protegido pelos privilégios de sua classe, beneficiando-

se, como vimos, das suas relações familiares. O burlador não é sequer um verdadeiro

sedutor, pois o seu método é enganar, seja tomando o lugar do verdadeiro amante (das

mulheres nobres), seja fazendo falsas promessas de casamento (para as mulheres

humildes).

33 No original: “de um hombre/que a las mujeres engaña”. 34 No original: “Sevilla a veces me llama/el Burlador, y el mayor/gusto que en mí puede haber/es burlar una mujer/y dejarla sin honor.”

25

Desconsiderando os autores que abandonaram totalmente a trama original, as

atualizações da personagem têm em comum, no tempo da ação ou no passado, os

episódios que envolvem a morte do Comendador e a presença da sua estátua vingadora.

Segundo Jean Rousset, “para que a rede de relações donjuanescas seja completa e

coerente, deverá comportar três invariantes: 1 – o Inconstante; 2 – o Grupo feminino,

objeto necessariamente plural da conquista inconstante; 3 – o Morto”.35 Outra

personagem que não faltará é a do criado. Como veremos, a Comédia dell’Arte

acentuará o seu traço cômico, apenas sugerido no texto de Molina, influenciando as

versões de Molière e de Mozart/Lorenzo da Ponte.

Com maior ou menor subversão do texto paradigmático, a dimensão religiosa foi

sendo atenuada, ajustando-se o tema à realidade dos novos valores e crenças da

sociedade cada vez mais laica e burguesa. Embora o sobrenatural esteja presente através

da estátua do Comendador e do castigo infernal (nem sempre concretizado), é diminuída

ou suprimida a intenção moralizante sob o ponto de vista católico.

2.2 – A Comédia dell’Arte: deformação e difusão do tema Enquanto na Espanha se criam apenas duas novas versões36 de Don Juan até o

surgimento da obra de Zorrilla em 1840, a personagem foi acolhida rapidamente em

outros países da Europa. Em primeiro lugar, em função da importância da Coroa

espanhola que, embora já estivesse em decadência naquela época, ainda desempenhava

uma grande influência em toda a região; em segundo lugar, porque os séculos XVI e

35 ROUSSET (s.d.), p. 28. 36 Versões de escassa importância para o desenvolvimento do mito: La venganza en el sepulcro, de Alonso de Córdoba y Maldonado, provavelmente do final do século XVII, e No hay plazo que no se cumpla ni deuda que no se pague, y convidado de piedra, de Antonio de Zamora, entre 1734 e 1744. Cf. SUÁREZ (1997), p. 194.

26

XVII foram palco da criação de grandes nomes da literatura espanhola, incluindo Tirso

de Molina, que se projetaram para além de suas fronteiras.

Contudo, a difusão do tema foi impulsionada especialmente pela Itália, onde

surgiram as primeiras versões de Don Juan. Tanto Carmen Becerra Suárez como Franco

Quinziano ressaltam a intensa relação existente entre esses dois países, na época. Na

verdade, o território que hoje constitui a Itália estava dividido em diversos Estados,

parte deles submetida aos soberanos espanhóis. Nápoles, onde os laços políticos e

culturais hispano-italianos eram ainda mais intensos, foi o palco das primeiras

encenações do Burlador na Itália, segundo Quinziano.

Na verdade, houve uma invasão dos palcos italianos pelas peças teatrais

espanholas, fato justificado pela coincidência entre o florescimento do drama espanhol

do “Século de Ouro” e a fase de decadência do teatro italiano, carente de grandes

criadores. Essa situação cultural aliada à dominação política de parte da Itália pela

Coroa espanhola é ressaltada por Said Armesto ao defender que as mais antigas versões

do Burlador encenadas na Itália, ao contrário do que dizia Farinelli, eram traduções e

adaptações da obra espanhola.

O drama de Molina foi, então, rapidamente assimilado aos cânones da Comédia

dell’Arte, canal privilegiado da recepção do teatro áureo na cultura italiana.

Caracterizada por “companhias ambulantes de atores profissionais especializados em

por em cena um determinado tipo de personagem estereotipado”37, com objetivos

cômicos, a Comédia dell’Arte operou significativas alterações na obra de Molina.

Essas alterações já estão presentes na primeira versão italiana do Burlador,

atribuída a Jacinto Andréa Cicognini, intitulada Il Convitato di Pietra, anterior a 1650.

37 No original: “compañías ambulantes de actores profissionales especializados en poner en escena un determinado tipo de personaje estereotipado”. SUÁREZ (1997), p. 108.

27

Vale destacar uma passagem do ensaio de Franco Quinziano para sintetizar esse

processo de assimilação pela Comédia dell’Arte:

[…] como na versão de Giacinto Cicognini, [as encenações italianas] vão atenuando – e em alguns casos despojando – as evidentes conotações morais e religiosas da peça de Tirso para reduzi-la, através da supressão ou substituição de episódios, cenas e personagens, a uma sucessão vertiginosa de sucessos excêntricos e fantásticos, orientados fundamentalmente a satisfazer o gosto do público. Neste processo de inevitáveis conseqüências semi-caricaturais, o comediante de arte funda um novo modelo dramático, centrado na improvisação do ator em cena, que irá configurando-se como uma embrionária indústria da diversão...38

Além das novas características apontadas na citação acima, ganham também

relevo, na busca pela comicidade, os chamados lazzi – mímicas e gestos expressivos,

como bofetões e tapas. Outros elementos familiares ao público italiano, como o

disfarce, as substituições e especialmente as máscaras são também incorporados à

tradição do tema. Por essas características, é fácil compreender por que o criado de Don

Juan ganha maior destaque, chegando mesmo a desempenhar o papel de verdadeiro

protagonista.

Foi por intermédio das companhias ambulantes dos comediantes italianos que o

tema de Don Juan se difundiu por toda a Europa, observando-se nesse processo de

difusão a atenuação ou eliminação do aspecto religioso, configurando-se para Carmen

Becerra Suárez um exemplo de desmitificação do tema, já que o elemento sobrenatural

é neutralizado pela dimensão paródica e cômica de um subgênero hiper-codificado

como a Comédia dell’Arte.

38 No original: “[...] al igual que la versión de Giacinto Cicognini, [as encenações italianas] van atenuando – y en algunos casos despojando – las evidentes connotaciones morales y religiosas de la pieza de Tirso para reducirla, a través de la supresión o sustitución de episodios, escenas y personajes, a una sucesión vertiginosa de sucesos excéntricos y fantásticos, orientados fundamentalmente a satisfacer el gusto del público. En este proceso de inevitables consecuencias semicaricaturales, el comediante del arte funda un nuevo modelo dramático, centrado en la improvisación del actor sobre la escena, que irá configurándose como una embrionária industria de la diversión…” QUINZIANO (2006), p. 303. São nossas as traduções de todas as citações referentes a este autor.

28

2.3 – Molière: idéias libertinas e glosa à hipocrisia

Na França, as primeiras versões da obra de Molina de que se tem notícia são as

de Dorimond (1659) e de Villiers (1660). Essas duas obras – muito semelhantes,

indicando que ou os autores se imitaram mutuamente ou as traduziram de um possível

original italiano – desempenham um importante papel na caracterização futura da

personagem, especialmente na de Molière. Recuperando o protagonismo cedido ao

criado na comédia italiana, assume a cena um Don Juan impregnado das idéias

libertinas.

Molière, já em 1665, publica o seu Don Juan ou le festin de pierre. As

influências mais diretas são atribuídas aos comediantes italianos39 e às versões de

Dorimond e Villiers. Como os seus contemporâneos patrícios, Molière fixa o caráter

libertino do sedutor, cujas reflexões põem em relevo temas presentes na sociedade

francesa da época, articulando sua versão ao conjunto de sua dramaturgia, à qual não era

estranha a crítica de costumes. Ao contrário da obra de Molina, a hipocrisia moral – de

índole religiosa e de inspiração católica – passa a ser glosada por Don Juan. Muitos

estudiosos consideram, inclusive, ser a hipocrisia o verdadeiro tema da obra do autor

francês. Para se entender essa interpretação, transcrevemos abaixo partes de uma

passagem onde o protagonista, frente à ameaça paterna de supressão dos seus

privilégios, justifica a seu criado o diálogo que tivera com o pai, quando fingira passar a

viver uma vida exemplar:

Disso ninguém mais se envergonha. Ao contrário, se orgulha. A hipocrisia é um vício. Mas está na moda (...) Mas a hipocrisia é um vício privilegiado, que tapa a boca de todos que o percebem e transita na corte com vaidosa impunidade (...) Você não sabe quantos hipócritas eu conheço que, com alguns poucos estratagemas, limparam as manchas e os crimes de sua juventude. E aí, usando o escudo e o manto da religião, se transformaram em cidadãos respeitáveis, isto é, os homens mais canalhas deste mundo (...) Serei o vingador dos interesses

39 Suárez revela que a companhia teatral de Molière alternou as suas representações, no Petit Bourbon, com a companhia italiana de los Fideli, de Francesco e Isabella Andreini.

29

do Céu e, sob esse manto assustador, perseguirei meus inimigos, acusando-os de impiedade, desencadeando contra eles o zelo e a perseguição dos carolas que, sem conhecimento de causa, os cobrirão de injúrias, condenando-os à execração pública (...) É assim que se usa a fraqueza, a ignorância e a pusilanimidade dos homens. É assim que um sábio torna virtudes os vícios de seu tempo. (MOLIÈRE, p. 120-2)

Paulo Jonas de Lima Piva, no livro O ateu virtuoso – materialismo e moral em

Diderot, ensina que os filósofos ilustrados do século XVIII, opondo-se à visão

tradicional, segundo a qual a única e verdadeira moral era a das escrituras,

[...] argumentavam que uma moral laica, ou seja, que uma moral que não tivesse como fundamento os dogmas da religião, seria perfeitamente viável e, sobretudo, eficaz. O primeiro passo foi denunciar a precariedade e a ineficácia da moral ditada pela tradição recorrendo à própria experiência do convívio social, na qual era possível verificar, com muita facilidade, inúmeras contradições entre os sermões dos homens de batina e o comportamento cotidiano dos fiéis. Seus costumes revelavam-se quase sempre dúbios. Em público, esforçavam-se para convencer seus concidadãos de que eram pessoas virtuosas, na intimidade, pautavam-se pelo vício e pelo desregramento. Em suma, tais pessoas faziam da virtude um manto sob o qual escondiam seus pecados. Eram, portanto, hipócritas.40

Parece que estamos a ouvir o próprio Don Juan “francês”. E em nada prejudica a

adequação da passagem acima o fato de Piva se referir ao século XVIII, se lembrarmos

que o materialismo mais radical desse século insere-se na “tradição filosófica que

remonta aos ‘livre-pensadores’ da França seiscentista”41 – chamados libertinos por seus

inimigos. Embora existam diferenças, esses eruditos eram também marcados pelo

espírito anti-religioso, opondo “os ensinamentos da fé e da moral cristãs às constatações

da experiência sensível.”42

Há várias outras passagens que apontam para o caráter libertino do protagonista.

Por exemplo, a resposta de Don Juan, quando indagado pelo criado sobre suas crenças:

“Eu acredito que dois e dois são quatro, Leporelo43, e que quatro e quatro são oito”

(MOLIÈRE, p. 71). São de Leporelo as palavras que mais explicitamente remetem Don

Juan para o grupo dos “livre-pensadores”. Afirmando dirigir-se a um patrão imaginário,

diz, com evidente efeito cômico:

40 PIVA (2003), p. 66. 41 MORAES (2003), p.13. 42 Ibidem, p.13. 43 No original, o nome do criado é Sganarelle. Utilizamos o nome consignado na tradução de Millôr Fernandes.

30

Falo dos insensatos, libertinos sem saber por quê: posam de audaciosos porque acham que fica bem. Não falo do senhor não. Se eu tivesse um patrão assim eu lhe diria claramente, olhando-o bem no olho: “Ousa o senhor zombar do céu dessa maneira; não treme o senhor de fazer o que faz, de escarnecer das coisas mais sagradas?” (MOLIÈRE, p. 19)

Parece-nos também que Molière, nessa cena, vocaliza a visão dos libertinos eruditos,

que lamentavam ou mesmo desprezavam a ignorância das classes inferiores,

reprodutoras de crenças irracionais. Isso se depreende de forma ainda mais nítida das

seguintes palavras do criado, anteriores às transcritas acima: “Mas, meu senhor, sempre

ouvi dizer que é muito grave zombar do Céu. Os que se atrevem a isso são libertinos –

jamais têm um bom fim” (MOLIÈRE, p. 18).

O Don Juan de Molière pode mesmo ser aproximado a protagonistas como os de

Les liaisons dangereuses (1782), de Chaderlos de Laclos, última obra-prima, segundo

Raymond Trousson, do romance libertino na literatura francesa do século XVIII.44 Pelo

menos quanto ao seu método, de cuja aplicação prática, contudo, não temos exemplo na

peça:

Há uma doçura extrema em dominar, com cem ou mil galanteios, o coração de uma jovem esplêndida, vendo, dia a dia, o progresso de nossa penetração... em sua ânsia. Invadindo, com lances de arrebatamento, prantos e promessas, o pudor inocente de uma alma e vendo-a, aos poucos, perdendo qualquer vontade de se defender. Forçando, passo a passo, todas as últimas pobres resistências que ela nos opõe, vencendo essa teia de escrúpulos que formam sua honra, levando-a carinhosamente até... até onde queremos. Mas, uma vez possuída, não há mais o que dizer, ou desejar. (MOLIÈRE, p. 16)

Insinua-se (e apenas se insinua), portanto, um Don Juan muito mais calculista, metódico

e intelectualizado do que o original espanhol. Mais reflexivo, ganha relevo a sua

habilidade discursiva, apenas sugerida em Molina45, justificando a afirmação de Renato

Janine Ribeiro de que aos disfarces físicos do sedutor corresponde o disfarce

discursivo.46 Essa sua habilidade, presente no jogo de palavras diante das camponesas

44 Cf. TROUSSON (1996). 45 As burlas de Don Juan Tenorio, entretanto, se apoiavam muito mais nas falsas promessas ou simplesmente no disfarce físico. 46 Cf. RIBEIRO (1988).

31

(que lhe cobram simultaneamente a promessa de casamento) e na burla imposta ao

burguês e credor Domingos47, é explicitamente reconhecida por Leporelo:

Ora, ora, eu ... Só tenho a dizer que não tenho nada a dizer. Ou não sei como dizer. Porque o senhor vira e revira as coisas de uma tal maneira que parece ter absoluta razão onde não tem nenhuma. Trazia aqui dentro os mais claros pensamentos sobre o assunto, mas seu discurso embaralhou tudo. (MOLIÈRE, p. 17)

Parece não caber dúvida de que Molière dotou Don Juan de algumas

características de um certo tipo de personagens libertinas e de algumas idéias dos “livre-

pensadores” do século XVII, idéias às quais, segundo Carmen Becerra Suárez, o autor

não era alheio. No entanto, isso não significa que a obra do dramaturgo francês possa

ser enquadrada na categoria de literatura libertina, ainda que tal categoria permita, como

revela Raymond Trousson, várias interpretações, podendo englobar desde obras

filosóficas e de um racionalismo militante até romances licenciosos.48

Muitas considerações de Trousson sobre o romance libertino francês setecentista

poderiam ser aplicadas a Don Juan, como, por exemplo, a de que “o libertino erige o

instante intenso como norma da relação amorosa, teorizando assim a inconstância”.49

Para comprovar tal afirmação, o autor acrescenta palavras de personagens libertinas que

sustentam a fugacidade do amor e do prazer, palavras semelhantes às que o protagonista

de Molière pronuncia, dirigindo-se ao criado: “Você pretende que uma pessoa se ligue

definitivamente a um só objeto de paixão, como se fosse o único existente? (...) As

atrações nascentes têm encantos inexplicáveis – todo o gozo do amor está na

renovação” (MOLIÈRE, p. 15-6). O próprio denominador comum, segundo Trousson,

das inúmeras manifestações da libertinagem enquadra perfeitamente o herói de Molière,

bem como o de Molina: “Seja como for, a libertinagem, não importa a forma em que se

apresente, conserva algo de transgressivo – o libertino só se realiza ao infringir 47 Molière parece pretender satirizar a nova classe em ascensão, rica mas néscia. 48 Cf. TROUSSON (1996), p. 166-7. 49 Ibidem, p. 177. Voltado para o instante, o protagonista de Tirso de Molina também é marcado pela inconstância, característica, aliás, da imagem arquetípica de Don Juan. Entretanto, a personagem de Molina, ao contrário da de Molière, jamais teoriza.

32

princípios que supostamente assegurariam o bom funcionamento da sociedade”.50 Há

ainda uma outra observação do mesmo autor que se aplica principalmente ao burlador

de Tirso de Molina: “A glória é tão importante ao libertino quanto ao herói corneliano,

seu gozo é ser visto e reconhecido como mestre, ele quer, como Versac, ‘tornar [seu]

nome célebre’”.51

Mas há também sensíveis diferenças entre Don Juan e as inúmeras personagens

aristocráticas e desdenhosas, fechadas em seu círculo social, da estirpe de um Visconde

de Valmont ou de uma Marquesa de Merteuil, de Choderlos de Laclos, não obstante a

afirmação de Carmen Becerra Suárez de que Les liaisons dangereuses é um dos mais

importantes exemplos da combinação entre libertinagem e donjuanismo.52 Em primeiro

lugar, mesmo o protagonista de Molière, apesar da teoria, não age como as personagens

dos romances libertinos franceses, para as quais “As vicissitudes do encontro são

substituídas por uma reflexão elaborada, um plano de batalha, um planning da

sedução”.53 Em segundo lugar, e para além do corpus literário analisado por Raymond

Trousson, não há nenhum vestígio de erotismo nas versões aqui convocadas do nosso

herói. Aliás, na de Molière, bem como na de Mozart/Da Ponte, sequer vemos o sedutor

ter sucesso em suas empreitadas amorosas. Por último, ainda que fragilizado ou

inconsistente, o argumento religioso, tradicional e moralizante, subsiste também no

drama do autor francês, como veremos adiante.

As diferenças entre Don Juan e as personagens libertinas, todavia, se sustentam

apenas quando consideramos os traços mais permanentes do famoso sedutor, uma vez

que tantas reencarnações determinaram inúmeras interseções entre ele e a libertinagem,

50 Ibidem, p. 167. 51 Ibidem, p. 173. 52 Cf. SUÁREZ (1997), p. 113-4. 53 TROUSSON (1996), p. 172. A única ação planejada do protagonista de Molière é o seqüestro de uma mulher, de quem só sabemos tratar-se de uma noiva apaixonada que resistira aos ataques de Don Juan. Contudo, nem se trata de um real processo de sedução nem o plano é bem sucedido. Ademais, é um episódio incidentalmente comentado, não sendo representado na peça.

33

como a apontada por Carmen Becerra Suárez na versão de Thomas Shadwell, The

Libertine (1676). Citando Jean Massin, a autora afirma que alguns traços aportados à

personagem pelos franceses não se fixarão no mito, mas abrirão o caminho que leva de

Don Juan às personagens do Marquês de Sade. Ainda segundo Suárez, o inglês

Shadwell, por exemplo, teria intensificado os traços de perversidade e crueldade

existentes nos protagonistas de Dorimond, de Villiers e de Rosimond (1669),

transformando Don Juan em um assassino, parricida e incestuoso.

Como já afirmado anteriormente, Molière assimilou características da Comédia

dell’Arte, algumas das quais encontramos reunidas nas primeiras cenas do segundo ato,

como a linguagem caricaturada das personagens humildes54 e a pantomima burlesca dos

lazzi: Don Juan, por exemplo, esbofeteia seu criado ao tentar acertar o inconformado

noivo da camponesa Carlota. Mais volúvel que a sua ancestral Aminta (a camponesa de

Tirso de Molina), a noiva parece não corresponder ao amor do camponês, que sofre de

ciúmes da sua amada (mais do que Batricio, de Molina). E o noivo chama-se Pierrô.

Com esses dados, percebe-se que as cenas envolvendo os camponeses e Don Juan são

assimiladas ao clássico quadro da Comédia dell’Arte formado pelo trio Pierrô,

Colombina e Arlequim.

Por outro lado, o famoso dramaturgo francês salva o nosso herói da caricatura a

que o submeteram os comediantes italianos, equilibrando o excesso de comicidade e,

principalmente, recuperando, mesmo de forma mitigada e pouco consistente, o aspecto

religioso do tema, “que se havia feito laico na Itália e nas primeiras versões

54 Segundo Suárez, esse era um recurso cômico de grande efetividade nas encenações da Comédia dell’Arte. A primeira cena do segundo ato começa com o seguinte diálogo, na tradução de Millôr Fernandes, entre os camponeses e noivos Carlota e Pierrô: CARLOTA: Nosso Deus, Pierrô, tu então chegou mesmo na hora? PIERRÔ: Nossa mãe, foi prum fiozim assim qui num se afogaro us dois. CARLOTA: Foi o quê? O pé di vento di manhãzim qui cuspiu dento dágua? (MOLIÈRE, p. 29).

34

francesas”.55 Don Juan não é mais apenas o delinqüente social, a que havia sido

reduzido, mas também um pecador, que presta contas, não ao rei, mas ao Céu.

Jean Rousset considera não ser suficientemente motivada a intervenção do

Comendador, uma vez que Molière suprimiu a cena da sua morte, situando-a no passado

e a transformando numa breve referência por ocasião de um diálogo entre Don Juan e

seu criado. Já Carmen Becerra Suárez é mais radical e considera a presença da estátua

totalmente gratuita, já que despojada das funções de vingadora da honra e de emissária

do Céu. Suárez formula, então, a hipótese de ser a punição do protagonista uma

concessão do autor à tradição literária ou às imposições religiosas e morais da época.

Molière buscaria, desse modo, a captatio benevolentiae56 do público e dos censores,

embora sem sucesso quanto aos últimos, pois a peça acabou sendo proibida após

algumas apresentações, sob a acusação de defender a libertinagem e o ateísmo.

Discordamos, contudo, da afirmação da autora de que a estátua não é emissária do Céu,

uma vez que assim ela se apresenta quando impõe o castigo ao pecador. Castigo divino

largamente vaticinado por diferentes personagens. Mas de fato o Comendador é pouco

convincente e, embora tenha sido morto por Don Juan, está totalmente despojado da

função de vingador da honra ultrajada: não é pai de nenhuma vítima do sedutor porque

Dona Ana simplesmente não existe.

Se Dona Ana desaparece, surge Dona Elvira, “cujo antecedente claro está na

personagem de Leonora de L’Ateista Fulminato”.57 E mais uma vez discordamos da

interpretação de Suárez, que defende ser essa personagem o grande amor de Don Juan e 55 No original: “que se había hecho laico em Itália y en las primeras versiones francesas”. SUÁREZ (1997), p. 117. 56 Acrescentamos que essa hipótese pode ser reforçada se considerarmos a ironia do desfecho da peça, no qual Molière, pela boca de Leporelo, ironiza: “Eis, com sua morte, todos aliviados” (Ato V, Cena VII). 57 No original: cuyo antecedente claro está en el personaje de Leonora del escenario L’Ateista Fulminato”. SUÁREZ (1997), p.118. Embora sem grande fortuna, há uma teoria, segundo Suárez, de que já havia um auto sacramental supostamente representado na Espanha no século XV (El ateísta fulminado) que poderia ser a fonte de Tirso de Molina. Comprovada, apenas a existência de uma peça com esse nome, de autor e data desconhecidos. A partir dela teriam supostamente ocorrido representações em Igrejas na Itália.

35

fonte para a remitificação romântica. Primeiro porque onde a autora vê o ressurgimento

de um amor ignorado, cremos tratar-se de apelo sensual.58 E sobretudo porque os

estudiosos vêem em Dona Ana a fonte a partir da qual os românticos aportarão uma

nova face ao tema, a da busca da mulher ideal e do amor como instrumento de redenção.

Devemos ressaltar, ainda, que encontramos em Molière alguns aspectos do

original espanhol, embora não se possa afirmar que o dramaturgo francês o conhecesse.

Apesar de Suárez se inclinar a esta interpretação, entendemos que o protagonista de

Molière não pode ser considerado ateu, como também não eram necessariamente ateus

os libertinos de seiscentos. Quando o assunto é a fé ou a religião, Don Juan ironiza e até

galhofa, mas não nega a existência de Deus. E o próprio debate teológico – argumento

fundamental de Molina – ecoa ainda, embora deslocado, no seguinte enunciado de Don

Juan: “Apenas mais vinte ou trinta anos desta vida que você chama dissipada e, depois,

o arrependimento. E a absolvição” (MOLIÈRE, p. 111).

Por fim, citamos mais uma vez Suárez, que justifica assim as poucas cenas de

sedução (malogradas) e a débil presença da estátua de pedra: “Molière utilizou um tema

popular como pretexto para, mantendo minimamente determinados traços tradicionais,

levar a cabo uma crítica da sociedade de seu tempo desde uma posição social, filosófica

e teológica que caracterizava os libertinos”.59

58 A passagem referida é a seguinte, na tradução espanhola apresentada pela autora: “la sencillez de su traje, unido a las lágrimas y a su lánguido ademán, han removido en mí las cenizas de un fuego que juzgué apagado” (Ato I, Cena X). Béatrice Didier parece corroborar nossa interpretação ao dizer que Dona Elvira “poderá ainda suscitar o desejo, se se desfaz em lágrimas”. DIDIER (s.d.), p. 86. 59 No original: Molière utilizó un tema popular como pretexto para, manteniendo mínimamente determinados rasgos tradicionales, llevar a cabo una crítica de la sociedad de su tiempo desde una posición social, filosófica y teológica que caracterizaba a los libertinos”. SUÁREZ (1997), p. 120.

36

2.4 – Mozart/Lorenzo da Ponte: preparando o herói e a heroína românticos

Os primeiros imitadores de Molière amplificaram o caráter libertino de Don

Juan, incluindo-o na rota que leva até o Marquês de Sade. Porém, como dito

anteriormente, o afortunado conquistador de mulheres e o libertino não seguiram juntos.

Enquanto a literatura libertina explode em diferentes direções, durante os últimos

decêndios do século XVII e quase todo o século seguinte diminui o interesse pelo nosso

herói, apesar de Franco Quinziano defender o contrário, alegando que foram

identificadas, só na Itália, 27 versões ou adaptações do Convidado de Pedra, entre as

obras de Molière e Mozart/Lorenzo da Ponte. Para Suárez, no entanto, nesse mesmo

período nenhuma outra obra contribuiu decisivamente para a evolução ou difusão do

mito de Don Juan.

Segundo Quinziano, neste ponto em uníssono com outros investigadores,

Foi principalmente no âmbito musical que o motivo do Convidado encontrou durante a segunda metade do século XVIII novas e insuspeitáveis reencarnações através de inumeráveis adaptações em vários melodramas trágicos, operetas cômicas e óperas de tipo popular, bailes, vaudevilles, óperas bufas, farsas e comédias para música e pantomimas...60

Dentre os diversos gêneros musicais, foi a ópera que mais contribuiu para a nova

emergência de Don Juan. Temos que recuar ao ano de 1669 para localizarmos na obra

intitulada Il Empio punito, de Melani e Pipo Acciaiuoli, o primeiro encontro da

personagem com esse gênero musical. Conquanto essa primeira obra se inclua no

gênero de música séria, o tema foi acolhido principalmente pela ópera cômica. Irene

Campéas, em sua dissertação de mestrado, convoca Jean Rousset e Giovanni Macchia

para concluir que Don Juan estava predestinado a se submeter aos comediantes italianos

e à ópera bufa para poder sobreviver. 60 No original: “Fue principalmente en el ámbito musical donde el motivo del Convitato encontró durante la segunda mitad del XVIII nuevas e insospechables reencarnaciones a través de innumerables adaptaciones en varios melodramas trágicos, operetas cómicas y óperas de tipo popular, bailes, vaudevilles, óperas bufas, farsas y comedias para música y pantomimas ...” QUINZIANO (2006), p. 304.

37

A primeira ópera cômica foi a de Le Tellier, Le Festin de Pierre, de 1713. Mas

foi entre 1777 e 1787 que o tema se popularizou, sendo identificadas dez versões

musicais. Só no ano de 1787 foram criadas, além da de Mozart/Da Ponte, três novas

versões, das quais se destaca a de Bertati e Gazzaniga, Don Giovanni, ossia il convitato

di pietra.

A mais importante, porém, é indiscutivelmente Don Giovanni, ossia il disoluto

punito, música de Wolfgang Amadeus Mozart e libreto de Lorenzo da Ponte. Nestes

termos Carmen Becerra Suárez ressalta a sua relevância:

E não somente por lograr reconduzir o mito ao caminho correto, perdido como estava entre libertinos, galantes de salão e cômicos, senão porque consideramos que esta versão musical, como conseqüência de determinadas modificações que contém e das interpretações a que elas darão lugar, representa, e nisso estamos totalmente de acordo com a teoria de Jean Massin, a passagem do mito barroco ao mito romântico, garantindo com isso a existência futura de Don Juan, ou seja, sua transmissão e sobrevivência no tempo.61

Embora Suárez busque influências na distante ópera de 1669 e nas diversas

versões surgidas entre 1777 e 1787 e Irene Campéas aponte fontes como Molina,

Molière e Goldoni62, os analistas são unânimes em afirmar que Lorenzo da Ponte

plasmou o seu texto a partir do libreto de Bertati. Campéas, lastreada por vários

estudiosos, é taxativa em afirmar que o libretista de Mozart copiou Bertati, ressalvando

que era atribuída pouca ou nenhuma importância ao plágio no século XVIII.

A mesma estudiosa, contudo, é a primeira a ressaltar as diferenças entre os

libretos, inclusive no próprio enredo, em cuja descrição não nos deteremos. O fato é que

o resultado foi a criação de uma outra obra, muito mais expressiva e poética. Segundo

61 No original: “Y no solamente por lograr reconducir al mito al camino correcto, perdido como estaba entre libertinos, galantes de salón y cómicos, sino porque consideramos que esta versión musical, como consecuencia de determinadas modificaciones que contiene y de las interpretaciones a que ellas darán lugar, representa, y en ello estamos totalmente de acuerdo con la teoría de Jean Massin, el paso del mito barroco al mito romántico, garantizando con ello la existencia futura de don Juan, es decir, su transmisión y su pervivencia en el tiempo. SUÁREZ (1997), p. 128. 62 Carlo Goldoni, importante libretista que serviu de modelo a outros, foi autor de Don Giovanni Tenório (1736). Celso Loureiro Chaves considera, de passagem, serem o libreto de Bertati e a peça de Molina as principais fontes de Lorenzo da Ponte. Franco Quinziano, tratando superficialmente a questão, parece atribuir ao texto de Molière uma influência decisiva, só dividida com o libreto de Bertati.

38

Campéas, Giovanni Macchia afirma que a falhada obra de Gazzaniga/Bertati se

transforma numa peça dramática e coerente. Porém, Celso Loureiro Chaves, ao mesmo

tempo em que qualifica como irrepreensível a composição musical, sustenta, como

veremos melhor adiante, a imperfeição dramatúrgica desse Don Giovanni, “mais uma

superposição de episódios cênicos periféricos do que um todo coerente”.63

Consideramos irrelevante investigar quais os elementos transportados do libreto

de Bertati por Da Ponte, pois, sejam quais forem, a ópera que os consagrou e os

incorporou definitivamente foi a de Mozart. Um deles, por exemplo, remonta à versão

de Cicognini: o catálogo – consagrado pela ária mozartiana de Leporello – onde o

criado de Don Giovanni anota os nomes das mulheres conquistadas pelo patrão. É

oportuno destacar que foi, não Bertati, mas Molière – cujo texto Da Ponte e Mozart

seguramente conheciam – a fonte para o aproveitamento de Dona Elvira, personagem

que segue como a esposa abandonada do protagonista.

Há duas diferentes versões da ópera de Mozart/Da Ponte, a primeira composta

para a estréia em Praga, em 1787, e a segunda destinada a Viena, no ano seguinte.

Conforme Irene Campéas, era comum a rebeldia dos cantores, que exigiam maior

destaque cênico ou composições em que pudessem exibir sua capacidade vocal. Mozart,

especialmente sensível a essas exigências, teria alterado algumas composições e criado

novas árias para a estréia em Viena em função da presença de novos artistas. A versão

hoje conhecida “é um híbrido que incorpora elementos das duas versões”.64

Apesar de classificada por Chaves como ópera bufa, Mozart dá à sua

composição o título de drama giocoso. Como ensina Irene Campéas, o drama giocoso

ou “ópera semi-séria” é o resultado de um período de transição onde, na estrutura

musical, a ópera “séria aceitou a orquestração mais elaborada e o espírito dos

63 CHAVES (1991), p. 13. 64 Ibidem, p. 17-8.

39

‘ensembles’ da ópera bufa enquanto que esta adotou o coro e o maior dimensionamento

da ópera séria.”65 Segundo Chaves, há em Don Giovanni “um paradoxo quase palpável

entre o caráter noturno da ação e uma leveza ocasional que parece tomada de

empréstimo à mais descompromissada das opere buffe.”66

Com efeito, a face bufa relaciona-se às peripécias de Don Giovanni, sempre

acompanhado de seu criado Leporello, que, muito mais próximo da personagem de

Molière que do Catalinón de Molina, é o principal responsável pelo lado cômico da

ópera. Não faltam, inclusive, os chamados lazzi, como se pode verificar na cômica cena

em que Don Giovanni desfecha algumas bordoadas no camponês Masetto. Já a

atmosfera trágica é posta pela música desde a ouverture, marcada pelo tom solene em ré

menor, o qual será retomado no fatídico desfecho, onde o protagonista é tragado pelas

chamas infernais. No nível textual, logo na primeira cena, com o assassinato do

Comendador, a Morte impõe a sua presença, mantendo-se continuamente suspensa até o

final, ecoando as primeiras juras de vingança, as de Dona Anna e de seu noivo, Don

Ottavio.

Importa especialmente destacar a reabilitação de Dona Ana, que havia sido

negligenciada ou mesmo suprimida, como em Molière. Essa personagem – já

reincorporada, com outro nome, à ópera de 1669 – ganha ainda maior relevo do que o

atribuído a ela por Tirso de Molina, vindo a se transformar na futura musa romântica.

Apenas uma voz vinda do interior de um palácio espanhol e presença parcial em

Gazzaninga/Bertati, Dona Anna supera a condição de vítima (frustrada) do sedutor e de

filha do morto e avulta como a heroína que anima e dirige a oposição ao Don Giovanni

da famosa ópera. Na interpretação tanto de Carmen Becerra Suárez quanto na de Jean

Rousset, a presença de Dona Anna já na primeira cena serve para, junto com a morte do

65 CAMPÉAS (1992), p. 104. 66 CHAVES (1991), p. 11.

40

Comendador, recolocar de forma orgânica e coerente a intervenção da estátua

vingadora.

Para Celso Loureiro Chaves, entretanto, “Ao tentar trazer de volta o Don

Giovanni super-humano para o nível do mundano, Da Ponte comete um inevitável erro

de cálculo e o segundo ato é um interminável retardamento do desenlace que se queria

imediato”67. O crítico levanta tal aspecto com o objetivo principal de demonstrar a

imperfeição dramatúrgica da obra, onde a sucessão de vários episódios poria em cena

diversas personagens superpostas, que só artificialmente interagiriam. Embora sua

análise não seja clara quanto a este ponto, cremos que a sucessão desses episódios sem a

recolocação consistente do aspecto religioso parece inclinar o desfecho da trama para

uma vingança terrena. Afora o Morto (já nas cenas finais do segundo e último ato),

apenas Dona Elvira vaticina, em tom de lamento, o castigo divino: “... a cólera dos céus

e a justiça não podem tardar! Posso antever o golpe fatal, desabando como um raio

sobre a cabeça dele, e um abismo se abrindo diante dos seus passos” (DA PONTE, p.

121). Em outra passagem, entretanto, a própria Dona Elvira se propõe, ela mesmo, a

levar a cabo a punição: “Eu vou me encarregar de puni-lo” (DA PONTE, p. 117). Até

na versão de Molière – talvez para sanar a debilidade da intervenção divina – várias

personagens prevêem a punição do Céu. E, em Molina, o argumento teológico é

insistentemente pontuado pelo “Tan largo me lo fiáis”, enunciado por Don Juan, mesmo

antes de matar o Comendador.

Suárez e Rousset, todavia, são categóricos quanto à plena reabilitação da

significação religiosa na ópera. Para Rousset, Mozart, remontando à fonte espanhola e

contra o seu tempo, “restitui a aura sobrenatural, volta a dar à Morte, ao seu canto de

além-túmulo um terrível poder”.68 E seria justamente de Dona Ana, por sua relação com

67 CHAVES (1991), p. 14. 68 ROUSSET (s/d), p. 35.

41

o Morto, a função de manter atualizado o confronto com o Além, garantindo a

consistência do desenlace trágico sob a intervenção do Céu. De nossa parte, entendemos

que o texto do libreto, isoladamente, não é suficiente para validar essa interpretação.

Com efeito, a última cena da ópera, conquanto se constitua em outro índice do

reatamento com a fonte espanhola e reforce a significação moralizante, apresenta uma

expressiva diferença em relação ao original seiscentista. No desfecho da peça de

Molina, o castigo infernal é imediatamente percebido pelas demais personagens (e pelo

público) como o fim natural e incontornável do ímpio, percepção que é sintetizada no

enunciado do rei: “Justo castigo del cielo!” (MOLINA, p. 244). Já no libreto de Lorenzo

da Ponte, pode-se flagrar uma certa surpresa nas palavras de Don Ottavio, que, junto

com outras personagens, demandava a justiça terrena: “Depois de tudo, então, minha

querida, fomos vingados pelos céus” (DA PONTE, p. 151). E, reforçando essa

perspectiva, vemos todas as personagens em cena, esquecidas dos céus, cantarem juntas

no desfecho da ópera: “Este é o fim de quem faz o mal! A morte de um pérfido é

sempre a imagem de sua vida!” (DA PONTE, p. 151).

Se a rigor não contestamos as interpretações de Rousset e de Suárez é porque o

significado pleno da ópera só se pode apreender pela integração entre o libreto e a

composição de Mozart, que muitas vezes sobrepujou ou mesmo contornou o texto de

Da Ponte. Segundo Carmen Becerra Suárez, Jean Massin assinala mesmo o

protagonismo exercido pela orquestra, que expressa as nuances das situações e da

psicologia das personagens.

A própria estrutura musical da ópera, com seus recitativos e árias, se

encarregou de conceder maior profundidade às personagens, entre as quais se destacam

as mulheres, principalmente Dona Ana, que passaram de mero pretexto para a ação do

sedutor a autênticas individualidades. Daí é que Jean Massin extrai a conclusão de ser a

42

música de Mozart a responsável por abrir a porta para a etapa romântica do tema e Jean

Rousset indaga se não foi Mozart o verdadeiro criador do mito. Carmen Becerra Suárez,

no mesmo sentido, defende que a ópera mozartiana abriu o processo que culminará com

a destruição do mito barroco e o ressurgimento do mito romântico, onde Don Giovanni

se reerguerá em demanda pelo ideal, pelo eterno feminino.

2.5 – Do Romantismo ao século XX: as versões de Zorrilla e de Ballester

Os poetas e músicos do movimento romântico aplaudiram o Don Giovanni de

Mozart como a “ópera das óperas”. Desprezando – e mesmo criticando – os aspectos

bufos da obra, esses artistas foram capturados pela música monumental, pelos cenários

grandiosos e especialmente pelo caráter rebelde e transgressor do protagonista, bem ao

gosto romântico. Na verdade, seria mais exato dizer que Don Giovanni é quem foi

capturado pela visão romântica, como veremos a seguir.

O principal responsável pela assimilação do nosso herói pelo Romantismo foi E.

T. A. Hoffmann, que em 1813 publicou um conto69 cujo tema principal é a ópera de

Mozart. O escritor alemão leva ao extremo aquilo que dissemos acima, ou seja, que a

música do compositor austríaco se impõe e gera significados para além do texto de Da

Ponte. Com efeito, Hoffman, que além de poeta era compositor – inclusive de óperas –

e crítico musical, extraiu sua singular interpretação de Don Giovanni a partir da música

de “ce divin maître”, interpretação que orientou o acolhimento da ópera ao longo do

século XIX.70

69 Carmen Becerra Suárez dá a designação de ensaio para o texto de Hoffmann. O título no original é Don Juan, eine fabelhafte Begebenheit. 70 Cf. CAMPÉAS (1992).

43

Apesar de considerar uma extrapolação das intenções de Mozart, Jean Rousset

admite que a estrutura da ópera setecentista permitiu aos românticos enxergar em Dona

Ana uma paixão secreta por Don Giovanni71. Hoffman, que extrai conclusão semelhante

do canto dilacerado da personagem, vai mais longe e, além de fazer desaparecerem

Elvira e Zerlina, reduz as demais personagens a meras referências, concentrando-se

apenas no relacionamento entre Don Giovanni e Dona Ana:

[...] o narrador, alucinado, da história está deslumbrado por Ana, uma Ana dolorosamente apaixonada por um Don Juan transformado em anjo caído, em idealista perseguindo de mulher em mulher o infinito que nenhuma lhe pode oferecer, até à descoberta da amante privilegiada, pronta a dar a vida para o salvar.72

Segundo a interpretação de Jean Rousset, o perfeito equilíbrio alcançado por

Mozart entre o Inconstante, o Morto e o Grupo feminino se rompe pela desintegração

desse último, substituído por uma única e predestinada mulher, caminho sugerido pela

própria ópera ao atribuir a Ana a importância potencialmente reivindicada desde a sua

origem. Mesmo que assimilando características de Dona Elvira, como defende Suárez, é

Dona Ana quem assumirá o papel de heroína romântica, mulher idealizada, cujo amor é

capaz de redimir o nosso herói. Em conseqüência, o outrora febril conquistador de

mulheres deixa de ser o homem “para quem as vítimas femininas não passavam de

paragens indiferenciadas ao longo de uma caçada sem outra finalidade senão ela

própria”.73 Giovanni ou Juan, “um laço profundo une-o agora àquela que resume em si

todas as mulheres.”74 Transformando a perseguição em demanda, a personagem antes

marcada pelo instante projeta-se para o futuro e, embora ainda volúvel e infiel, sonha

71 Tal interpretação romântica, segundo Rousset, sustenta-se pela “estatura conferida à heroína, o seu papel central no encadeamento das forças em presença, os laços afetivos que parecem estabelecer-se entre dois parceiros que dominam soberanamente todos os que os rodeiam”. ROUSSET (s/d), p. 36. Carmen Becerra Suárez agrega um outro dado para justificar essa interpretação: Dona Ana, depois da morte de Don Giovanni, recusa-se a casar com Don Ottavio e pede um ano para consolar seu coração. Cf. SUÁREZ (1997), p. 134-5. Apenas assinalamos que a motivação da personagem é ambígua, pois a reivindicação do prazo pode ser em função da morte de Don Giovanni ou do Comendador. 72 ROUSSET (s.d.), p. 37. 73 Ibidem, p. 37. 74 Ibidem, p. 37.

44

com a fidelidade. O fracasso torna-o um amante romanticamente trágico, vítima da

ordem social ou divina.

Aliadas à romântica exaltação do eu, essas novas características de Don Juan

propiciam o estabelecimento de uma cumplicidade entre o antigo burlador e os

escritores, que, sob diversos matizes, se projetam na personagem. Nada mais natural,

portanto, o fato de o século XIX ter-se inclinado à glorificação e à salvação do herói.

Carmen Becerra Suárez afirma que a influência de Hoffmann pode ser detectada

em quase todas as versões românticas de Don Juan, as quais acentuaram, quando não

refundiram, uma das quatro facetas já delineadas na obra do escritor alemão: o buscador

do ideal, o rebelde, o amador irresistível e a heroína romântica (Ana).

Infelizmente, os objetivos da presente dissertação não comportam a análise

dessas obras. Entretanto, faremos ainda algumas considerações sobre a versão mais

popular na Espanha e à qual, segundo Suárez, Leo Weinstein imputa importância

comparável às de Molière e de Mozart para o desenvolvimento do tema: Don Juan

Tenorio, de José Zorrilla, publicada em 1840. Nesse drama, afirma Carmen Suárez,

convergem dois caminhos opostos: um de aproximação da fonte original, com a

reintrodução da dimensão religiosa, e outro de afastamento, pela entronização da

heroína romântica.

Registre-se de início que na peça de Zorrilla não há mais nenhum vestígio de

influência da Comédia dell’Arte, ainda presente na ópera de Mozart e Lorenzo da Ponte.

A história assume uma gravidade inédita (pelo menos em relação às versões convocadas

por esta dissertação), estando ausente qualquer traço de bufonaria ou comicidade –

mesmo o criado de Don Juan, Ciutti, mostra-se altivo em seu reduzido papel, não tendo

mais sequer as tradicionais funções de censurar o patrão e de vaticinar o castigo divino.

45

Don Juan, até certa altura do drama, é o mesmo burlador em busca da glória e da

afirmação do seu valor, para quem a conquista amorosa é apenas a mais saborosa forma

de suas burlas, como se depreende já do mote inicial da trama: a aposta que fizeram

Don Juan e Don Luis Mejía para ver “quem de ambos saberia obrar/pior, com melhor

fortuna,/ao cabo de um ano” (ZORRILLA, p. 28).75 Contudo, o nosso herói é agora

mais letal que as criaturas de Tirso, Molière e Mozart/Da Ponte, triunfando sobre Mejía

não só nas conquistas amorosas, que somaram setenta e duas (em um ano), mas também

no número de mortes: trinta e duas.

Enquanto o protagonista de Tirso beneficiava-se ostensivamente das suas

relações de parentesco e o de Molière chegou a optar, em nome de seus privilégios, pelo

manto protetor da hipocrisia, o burlador de Zorrilla não se curva nem diante do pai nem

diante do rei. Quanto ao primeiro, temos a demonstração disso na peça, quando, após

ser renegado pelo pai e por ele chamado filho de Satanás e ameaçado com a justiça

divina, Don Juan diz orgulhosamente:

Largo prazo me concedeis: mas vede que vos quero advertir que eu não vos fui a pedir jamais que me perdoásseis. Então não empenheis vosso afã daqui em diante por mim que como viveu até aqui viverá sempre don Juan. (ZORRILLA, p. 40-1)76

Embora nessa passagem ecoe o refrão “Tan largo me lo fiais” – várias outras evocam

enunciados de El Burlador –, vemos que não está colocada a questão do arrependimento

para o protagonista, que agora professa ostensivamente o ateísmo.

Talvez o caráter mais acentuadamente demoníaco desse Don Juan tenha a função

de pôr em relevo a sua transformação. Transformação inspirada pelo seu amor à Dona 75 No original: “quién de ambos sabría obrar/peor, com mejor fortuna,/en el término de un año”. São nossas todas as traduções do texto de Zorrlla. 76 No original: “Largo el plazo me ponéis:/mas ved que os quiero advertir/que yo no os he ido a pedir/jamás que me perdonéis./Conque no paséis afán/de aquí en adelante por mí,/que como vivió hasta aquí,/vivirá siempre don Juan.”

46

Inês, por ele raptada de um convento. Contrariando o seu caráter e a tradição literária,

vemo-lo de joelhos – aquele que não se curva nem diante do pai nem do rei – a oferecer

ao pai de sua amada o governo de sua vida. De nada adiantou, porém, invocar Dona

Inês e dizer que “Seu amor me transforma em outro homem,/regenerando meu ser,/e ela

pode fazer um anjo/de quem um demônio foi” (ZORRILLA, p. 115).77 Don Gonzalo de

Ulloa, o Comendador, toma tal postura por covardia e, desafiando Don Juan, acaba

morto junto com Luis Mejía, que também fora ao encalço daquele que desfrutara de sua

amada, uma tal Ana de Pantoja.

Só na segunda parte da peça, quando nosso herói retorna a Sevilha após anos de

exílio, é que aquela transformação se consuma, não sem percalços. Depois de saber que

Dona Inês havia morrido “de sentimiento” ao ser abandonada por ele, Don Juan depara-

se com a sombra da amada, que lhe diz: “Eu a Deus minha alma ofereci/em penhor de

tua alma impura” (ZORRILLA, p. 135).78 Mas, mesmo advertido por Dona Inês de que,

se obrasse mal, causaria a desventura de ambos, o antigo burlador – confuso, todavia

incrédulo – ainda, em defesa do seu valor, repete o sacrílego convite à estátua e mata

dois antigos camaradas. Zorrilla, porém, redime o seu protagonista. E não só o redime

como lhe concede a salvação, unindo argumento teológico e perspectiva romântica. Isso

porque é pela intervenção de Dona Inês que o impenitente é salvo, não da morte, mas do

Inferno. 79

77 No original: “Su amor me torna en otro hombre,/regenerando mi ser,/y ella puede hacer un ángel/de quien un demonio fue”. 78 No original: “Yo a Dios mi alma ofrecí/en precio de tu alma impura”. 79 Se Zorrilla não foi o primeiro, foi o mais relevante autor, até então, a conceder a salvação a Don Juan. Desconsiderando as obras totalmente alheias aos argumentos tradicionais, a salvação é concedida anteriormente ao nosso herói por Blaze de Bury na pouco conhecida obra Le soupeur chez Le Commandeur, de 1834. Zamora, em sua versão de 1744 , oferece um final ambíguo quanto a esse aspecto. Alexandre Dumas (pai) concede a salvação a seu protagonista – e de forma muito semelhante a Zorrilla – apenas nas últimas versões, em torno de 1864, de seu drama Don Juan de Mañara ou le chute d’um ange, inicialmente publicado em 1836. Essas informações foram extraídas de Carmen Becerra Suárez, bem como de José Luis Varela, na introdução constante da edição aqui utilizada da obra de Zorrilla.

47

Carmen Becerra Suárez e José Luis Varela80 ressaltam a polêmica relativa à

adequação da salvação do impenitente no quadro das doutrinas da Igreja Católica. É que

o católico Zorrilla, no caminho oposto de Tirso, parece inadvertidamente sustentar a

tese protestante da salvação da alma desnuda de boas obras, mediante a misericórdia

divina. Com efeito, a estátua do Comendador, quando comparece ao jantar, apresenta-se

como emissária de Deus para anunciar ao impenitente que a infinita clemência divina

lhe concedia um dia de prazo para morrer com ventura. Nosso herói, contudo, não a

aproveita e mata os seus outros dois convidados.81 Posteriormente, atendendo ao convite

retribuído, Don Juan assiste ao seu próprio enterro junto à tumba do piedoso Ulloa, cuja

estátua lhe avisa que “um ponto de contrição/dá a uma alma a salvação,/e esse ponto

ainda te dão” (ZORRILLA, p. 164).82 Ao que responde Don Juan: “Impossível! Em um

momento/apagar trinta anos malditos/de crimes e delitos” (ZORRILLA, p. 164).83 Mas

foi. Quando a estátua, como a de Molina, pronuncia “Já é tarde” (ZORRILLA, p. 167)84,

surge Dona Inês, que diz: “Deus te outorga por mim/tua duvidosa salvação”

(ZORRILLA, p. 171).85

Como vimos na parte dedicada à obra de Tirso de Molina, essa questão teológica

não era pacífica na doutrina católica, tendo o autor de El burlador adotado em outras

peças, como El condenado por desconfiado, a posição de que um pecador contumaz

poderia ser salvo pela vontade de Deus. José Luis Varela defende a validade do

argumento teológico de Zorrilla evocando as Escrituras, a tradição eclesiástica e o

pensamento escolástico, os quais dariam sustentação à doutrina segundo a qual a 80 Na introdução constante da edição aqui utilizada da obra de Zorrilla. 81 Há uma outra polêmica de fundo teológico: se um dos seus últimos adversários de duelo o havia matado, como afirma a estátua do Comendador, Don Juan não poderia ter-se arrependido antes da morte, como seria necessário para a sua salvação. Contudo, parece-nos claro, como afirma Varela, ter sido Don Juan apenas gravemente ferido nos duelos que não foram postos em cena, uma vez que abundam nos diálogos finais referências explícitas ao tempo de vida que ainda restava ao pecador. 82 No original: “un punto de contrición/da a un alma la salvación,/y ese punto aún te le dan”. 83 No original: “¡Imposible! ¡En un momento/borrar treinta años malditos/de crímenes y delitos!” 84 No original: “Ya es tarde”. 85 No original: “Dios te otorga por mí/tu dudosa salvación”

48

intervenção de um justo pode conseguir para o pecador tudo que para si merece,

inclusive a graça que move ao arrependimento. Acrescentamos que há uma outra peça

de Molina onde as cenas finais são muito semelhantes às de Zorrilla. Trata-se de La

Santa Juana, na qual o também libertino Don Jorge, igualmente avisado da sua morte

no dia seguinte e lamentando o pouco prazo que lhe era concedido, é salvo do Inferno

pela intervenção da piedosa e apaixonada Maria.

Teria esse drama influenciado Zorrilla? Não podemos afirmar, pois o certo é

existirem diversas variações em torno desse tema nas lendas e narrativas populares

antigas, bem como no teatro do “Século de Ouro” espanhol, tributário daquelas fontes.

Aliás, são diferentes temas que se cruzam, inclusive na história de Don Juan. Presente

na peça de Zorrilla, a visão do próprio enterro, por exemplo, já havia sido incorporada

por uma outra lenda, criada pela imaginação popular a partir da vida de Miguel de

Mañara, que, nascido em 1626, na cidade de Sevilha, corrigira-se da vida

escandalosamente dissoluta por amor a uma mulher, vindo a se tornar pio e caridoso

quando prematuramente falece a sua amada. Perfeitamente ajustada ao gosto romântico,

essa lenda se fundiu pela primeira vez à história de Don Juan na novela Les âmes du

Purgatoire, de Prosper Mérimée, publicada em 1834, suscitando a hipótese, hoje

descartada, de ter sido Mañara o modelo para a criação de Molina.86

Seja ou não ortodoxo o argumento teológico, Zorrilla resgata a dimensão

religiosa para conceder ao amor um poder transcendente, bem ao gosto da época. Como

diz Dona Inês, “o amor salvou Don Juan” (ZORRILLA, p. 171).87 Pela própria salvação

e por ela ter sido proporcionada pela filha do Morto – que, além de substituir todo o

86 Cf. SUÁREZ (1997), p. 150-4. José Luis Varela nega a influência de Mérimée sobre Zorrilla, afirmando que a passagem da visão do próprio enterro pode ter como fonte El estudiante de Salamanca, de José Espronceda, obra publicada em 1837. Em relação à possibilidade de Mañara ser o modelo de Tirso de Molina, basta, como lembra Said Armesto, a sua data de nascimento (1626) para inviabilizá-la. 87 No original: “el amor salvó a don Juan”.

49

Grupo feminino, usurpa a função do pai – a estrutura tradicional do tema, segundo Jean

Rousset, desequilibra-se de vez, pondo um ponto final na carreira de Don Juan.

A obra de Zorrilla apresenta uma das diversas formas de reabilitação de Don

Juan, promovida pelos escritores românticos. Contudo, o mesmo século XIX assistiu

também a uma contundente reação à perspectiva romântica, legando-nos igualmente

burladores decadentes ou grotescos.88 Mas, acrescenta Carmen Becerra Suárez, a crítica

mais destrutiva, os golpes mais duros contra Don Juan vieram “das mãos da ciência em

palavras de renomados psicólogos e brilhantes filósofos que o convertem em um caso

clínico”.89 Apesar de ter havido especialmente na Espanha estudos e versões literárias

voltados para o resgate e reafirmação dos motivos tradicionais, durante o século XX

muitas foram as obras inspiradas por aquelas teorias, as quais descobriram em nosso

herói, por exemplo, ocultas tendências homossexuais, sentimentos bestiais ou

incapacidade de amar.

Mesmo não sendo particularmente alheio à interpretação psicanalítica, o escritor

espanhol Gonzalo Torrente Ballester é um exemplo daqueles que seguiram outra

direção. Para Carmen Becerra Suárez, o autor promove o renascimento do mito na sua

narrativa, de 1963, intitulada Don Juan, na qual o argumento religioso, embora sob um

ponto de vista crítico, é um dos elementos fundamentais.

Transportados para meados do século XX, Don Juan e Leporello cruzam em

Paris com o principal narrador da história, um jornalista e intelectual espanhol, que se

julga vítima da burla de uma dupla de farsantes. Esse é o mote para o autor, por meio de

um hábil jogo de intercalação de histórias, gêneros e narradores, apresentar,

88 Exemplos dados por Suárez: Lelia (1833) de George Sand, La Vieillese de Don Juan (1853), de Jules Viard, e El nuevo don Juan (1863), de Adelardo López de Ayala. 89 No original: “de manos de la ciencia en palabras de renombrados psicólogos y brillantes filósofos que le convierten en un caso clínico.” SUÁREZ (1997), p. 166.

50

retrospectivamente, a vida de Don Juan, desde a infância, no longínquo século XVII.90

Desse modo, Ballester preenche as lacunas da história e da psicologia de Don Juan, as

quais suscitaram inúmeras e diferentes interpretações, muitas delas revisitadas e quase

sempre rebatidas, na obra, pela autoridade dos próprios Don Juan e Leporello. É o

criado quem nos esclarece sobre um erro fundamental, causa de tantos outros: “A

discrição do meu amo, esse silêncio sobre si mesmo tão teimosamente mantido, deu

lugar a muitos equívocos” (BALLESTER, p. 263).91

Reservado, Don Juan não é aquele homem para quem o importante era a fama de

maior burlador da Espanha. Estudando em Salamanca desde os dez anos de idade,

mantivera-se não só virgem como totalmente alheio às exigências da carne até os vinte e

três anos, dispondo-se a assumir o sacerdócio. A passagem do homem ao mito, como

entende Suárez, ou o início da famosa carreira de sedutor, como afirma o próprio

protagonista, ocorre quando Don Juan elege livremente o pecado, depois de retornar a

Sevilha para as exéquias do pai.

O móvel dessa transformação é o Comendador, um nobre dissoluto e falido, que,

como parte de uma estratégia para tomar-lhe a opulenta herança, induz o ingênuo Don

Juan a iniciar sua vida sexual pelas mãos de uma prostituta. O último representante dos

Tenorios na terra terá que escolher: ou continuará seguindo as leis de Deus ou lavará a

honra da família com o sangue do Comendador, conforme exigido por seus

90 A vida de Don Juan é apresentada de três formas: informações de Leporello (mediadas pela narrativa do jornalista, que inclui diálogos entre ele e o criado de Don Juan), longo texto escrito em primeira pessoa por Don Juan e encenação da parte final da vida – no século XVII – do burlador. Ressalte-se que o Don Juan do século XX é praticamente apenas uma referência. Embora para ele convirjam as atenções, o narrador – e o leitor, nesse plano temporal – só o encontra rápida e episodicamente, não ocorrendo entre eles qualquer diálogo. Já o texto em primeira pessoa, esse é escrito, na verdade, pelo narrador, sob a fantástica inspiração de Don Juan, cujo espírito, como o de Leporello, tem a capacidade de se apossar de corpos alheios. Leporello, na verdade, é um dos demônios de Satanás, enviado para testemunhar uma experiência sobre a liberdade do homem, ao fim da qual seria decidido se Don Juan deveria ser aceito no Inferno. O protagonista acaba condenado a viver eternamente na terra, já que tanto o Céu como o Inferno o recusaram. Ressalte-se que não abordaremos os sucessos decorridos no século XX, nos quais os protagonistas são o jornalista (narrador) e Leporello. 91 No original: “La discreción de mi amo, ese silencio sobre sí mismo tan empecinadamente mantenido, dio lugar a bastantes errores.”

51

antepassados. Dividido, na hora da decisão, o futuro sedutor joga uma moeda para que

Deus se pronunciasse. Diante do silêncio celeste – a moeda cai “de canto” –, sentencia:

“ante esta prova de minha liberdade, e por ficar bem para Deus, elejo desde agora

mesmo o pecado. Ele o sabia, e, sem embargo, quis dar-me uma oportunidade. Aceito-a.

Matarei o Comendador e me deitarei com Elvira. Depois...” (BALLESTER, p. 235-6).92

Como diz Leporello logo em seguida, Don Juan poderia ter optado por um meio

termo entre a santidade e o pecado, como é próprio dos humanos. Poderia,

acrescentamos, ter optado também – como fizera seu antepassado “francês” – pela

hipocrisia da maioria dos respeitáveis membros daquela sociedade, desde os Tenorios

até os membros da Ordem de Calatrava e da Igreja, entre os quais se destaca o

Comendador, que passou a vida ofendendo a Deus, mas, como ele mesmo diz, “fazia de

outra maneira, com dissimulação. Eu guardava as formas” (BALLESTER, p. 328).93

Como na peça de Molière, a hipocrisia é um tema importante na versão de

Ballester. Mas agora Don Juan é um homem que despreza os que disfarçam os pecados

sob a capa de uma aparente virtude. Ele sustentará os seus inclusive diante de Deus,

pois, como ele havia afirmado depois de ouvir dos Tenorios que o pecado, inclusive de

homicídio, se apaga com o arrependimento: “não posso cometer um homicídio com o

propósito de me arrepender em seguida. Seria uma hipocrisia inútil, uma fraude”

(BALLESTER, p. 174).94 Mas a sua integridade mistura-se ao seu desmedido orgulho

(herança dos Tenorios) e Don Juan, mesmo sabendo que a perderia, estabelece uma luta

particular e ambígua com Deus. E no centro dessa luta está a mulher. Apesar de buscar

em seus corpos a apetecida, mas sempre frustrada, união mística com a Criação,

92 No original: “[...] ante esta prueba de mi libertad, y por dejar quedar bien a Dios, elijo desde ahora mismo el pecado. El lo sabía, y, sin embargo, quiso darme una oportunidad. La acepto. Mataré al Comendador y me acostaré con Elvira. Después...” 93 No original: “Lo hacía de otra manera, con disimulo. Yo guardaba las formas” 94 No original: “no puedo cometer un homicidio con el propósito de arrepentirme luego. Sería una hipocresía inútil, una trampa”.

52

pressentida em sua primeira experiência sexual, o sedutor transforma a mulher no

instrumento de sua inimizade com Deus: vendo que elas se sentem demasiadamente

felizes em seus braços, como só o poderiam ser no Paraíso, Don Juan arrebata a Deus o

que apenas Ele deveria dar.

Segundo o Leporello de Ballester, quase todos os poetas se tinham enganado ao

descreverem o seu amo, especialmente quando o retrataram como um amante grosseiro

e apressado. Mas Tirso de Molina, querendo fazer dele uma história exemplar, teria

cometido um erro ainda pior com o seu “Tan largo me lo fiáis”, pois Don Juan nunca se

preocupou com o arrependimento futuro, “entre outras razões, porque se arrependia

todos os dias, porque tinha que lutar cada dia contra o arrependimento” (BALLESTER,

p. 264).95 Como se vê, a subversão operada por Ballester não se restringe à

caracterização do herói e do seu antagonista, atingindo o argumento fundamental da

peça seiscentista.

A parte final da vida – no século XVII – do herói é encenada na peça teatral La

muerte de don Juan, assistida pelo principal narrador da história de Ballester. Essa é a

única parte que apresenta uma franca comicidade, que fica a cargo do Comendador –

Leporello é eventualmente irônico, mas nunca cômico. No tradicional jantar, Don Juan

é morto pelo Comendador, que, no entanto, jamais poderia ser o instrumento da justiça

divina. Em primeiro lugar, porque o morto era um hipócrita e um pecador contumaz,

castigado com o Inferno; em segundo lugar, porque Don Juan, apesar de continuar a

exigir uma resposta de Deus, já havia sido abandonado pelo Céu. Interessados por ele

apenas os demônios, que haviam comparecido ao jantar, disfarçados de músicos. Esses,

se ficasse demonstrada a predestinação de Don Juan, cerrar-lhe-iam as portas do

Inferno. E não bastava que o pecador se sentisse livre: “afinal queria arrepender-se e

95 No original: “entre otras razones, porque se arrepentía todos los días, porque tenía que luchar cada día contra el arrepentimiento”.

53

não pôde. Por quê? Nós o impedimos, por acaso? Está claro que em nenhum momento

colaboramos em sua condenação! Se o Outro lhe negou a Sua Graça…” (BALLESTER,

p. 349).96

A principal questão colocada pelos demônios parece ter ficado inconclusa: Don

Juan era ou não livre? A antiga polêmica religiosa que fez nascer o nosso herói talvez

seja mesmo insolúvel, pois, se os demônios cerraram as portas do Inferno para o

obstinado, mas íntegro pecador, as do Céu não se abriram. O tema fundamental da obra

de Ballester parece ser, nesse sentido, a investigação sobre a possibilidade de

conciliação da liberdade humana (várias vezes afirmada no texto) com a perspectiva

religiosa, pelo menos a cristã. E, se assim for, a conclusão é negativa. Se Deus existe, os

Seus desígnios são inapreensíveis ao homem, que não pode abdicar da sua liberdade de

escolha, como compreendeu Don Juan ao jogar a moeda na espera de um sinal divino

sobre a decisão de matar ou não o Comendador. E o trágico herói de Ballester,

convertido a mito, descobre que, ao contrário especialmente do protagonista de Molina,

não terá um mais além onde prestar contas: “Morri como Don Juan, e o serei

eternamente. O lugar onde o seja, que importa? O inferno sou eu mesmo”

(BALLESTER, p. 350).97 Apesar de não nos aventurarmos a descobrir na obra em

questão influência do existencialismo ateu de Jean-Paul Sartre, cujo pensamento era

inconfundivelmente marcado pela idéia de responsabilidade e liberdade humanas, não

podemos deixar de assinalar, nessa conclusão de Don Juan, o eco da célebre frase do

filósofo francês, embora invertida.

Carmen Becerra Suarez, considerando a obra de Ballester uma exceção,

concorda com as conclusões de Jean Massin e Jean Rousset segundo as quais o mito de

96 No original: “al final quería arrepentirse y no pudo. ¿Por qué? ¿Se lo hemos impedido, acaso? ¡Está claro que en ningún momento hemos colaborado en su condenación! Si el Otro le ha negado Su Gracia...” 97 No original: “He muerto como Don Juan, y lo seré eternamente. El lugar donde lo sea, ¿qué más da? El infierno soy yo mismo”.

54

Don Juan desapareceu ou ficou detido no século XIX. Em seu lugar teria surgido um

Tipo, conformando uma conduta chamada donjuanesca, ou donjuanismo. A

personagem, distanciada da dimensão religiosa, voltaria a aparecer em diversas obras,

em nada associadas ao tradicional argumento, onde “a relação com o tema reside

exclusivamente no fato de que todos compartilham uma grande capacidade de

sedução”.98 É assim, por exemplo, o Don Juan do brasileiro João Gabriel de Lima, que

em 2000 publicou o romance O burlador de Sevilha, um dos finalistas do Prêmio José

Saramago de 2002. Nele não há duelos, assassinato, estátua vingadora, condenação ou

salvação. Muito menos qualquer vestígio de dimensão religiosa. Diríamos que há uma

plena transposição, como viria a propor Saramago, para o horizonte exclusivamente

humano. Simplesmente tudo o que está fora desse horizonte desaparece da trama de

Lima, que nos oferece um burlador moderno, vivendo numa Sevilha dos nossos dias

laicos e sexualmente livres.

Conforme Carmen Becerra Suárez, essa vertente foi especialmente aberta pelo

poema inacabado Don Juan, de Lord Byron, escrito entre 1818 e 1824. Exceto pelo

nome e pela qualidade de amante irresistível, dificilmente o herói seria identificado.

Homem fascinante, diante do qual todas as mulheres se rendem, esse Don Juan nem é

propriamente um sedutor, pois nunca toma a iniciativa. Na verdade, é um sedutor

passivo: não seduz, é seduzido, aspecto que não será ignorado por José Saramago.

98 No original: “la relación con el tema reside exclusivamente en que todos comparten una gran capacidad de seducción”. SUÁREZ (1997), p. 46.

55

3 – José Saramago

No capítulo anterior, selecionamos e analisamos algumas obras sem cuidarmos

explicita e concretamente das suas relações intertextuais, atendo-nos a mencionar fontes

e influências. Tal procedimento pode merecer censura, especialmente por ser o objeto

do nosso estudo um tema prodigamente atualizado ao longo da historia da literatura e,

portanto, incontornavelmente marcado pela intertextualidade. Leve-se em conta,

contudo, que o objetivo principal do nosso trabalho é analisar a realização de Saramago,

tendo a primeira parte, apesar de longa, apenas a função de oferecer o quadro de uma

tradição, construída ao longo de quase quatro séculos, com a qual o dissoluto absolvido

pudesse dialogar.

Laurent Jenny, em A estratégia da forma, observa que o conceito de

intertextualidade legado por Julia Kristeva pressupõe uma noção de texto muito

abrangente, significando “sistema de signos”, incluídos os sistemas simbólicos sociais

ou inconscientes, o que tornaria excessivamente complexa e fluida a identificação do

fenômeno. Por isso, propõe uma definição mais restrita:

Contrariamente ao que escreve Julia Kristeva, a intertextualidade tomada em sentido estrito não deixa de se prender com a crítica das fontes:a intertextualidade designa não uma soma confusa e misteriosa de influências, mas o trabalho de transformação e assimilação de vários textos, operado por um texto centralizador, que detém o comando do sentido.99

Essa conceituação também oferece a vantagem de colocar em primeiro plano o

“texto centralizador”, no nosso caso o de Saramago, “que detém o comando do sentido”

– ou intertexto, na definição adotada pelo mesmo autor. Relacionada a essa perspectiva,

a noção de “ideologias intertextuais” terá uma importante função no presente trabalho.

Embora também estejamos interessados em estabelecer diálogos entre discursos,

e não só entre o texto de Saramago e um ou outro dos seus antecessores, seguiremos,

99 JENNY (1979), p. 14.

56

sempre que possível, o procedimento proposto por Laurent Jenny, também decorrente

da sua definição de intertextualidade: “conseguir uma aproximação simultaneamente

mais ingênua e mais concreta, que não esquecesse o objeto-texto na sua

materialidade.”100 Para isso, ressaltaremos, ao longo das próximas páginas, alguns dos

processos através dos quais, segundo Jenny, a intertextualidade opera.

Essa “aproximação simultaneamente mais ingênua e mais concreta” é necessária

para que possamos superar a dificuldade imposta, paradoxalmente, pela genérica

evidência do fenômeno intertextual entre obras que se constituem em diferentes versões

de uma mesma história. Por isso, teremos que olhar um pouco mais de perto o texto de

Saramago, não para surpreender relações insuspeitadas ou apenas suspeitadas – o que,

talvez, fosse mais instigante – mas para tentar oferecer respostas a questões como estas,

formuladas por Jenny: “como se opera a assimilação, por um texto, de enunciados pré-

existentes? Em que relação estão esses enunciados com o seu estado primeiro?”101

A assertiva de Laurent Jenny de que a virgindade por parte do descodificador de

qualquer obra literária é inconcebível torna-se ainda mais pertinente em se tratando de

“uma história afinal arquiconhecida”, como diz da sua o narrador do Evangelho

segundo Jesus Cristo (p. 103). Embora a história de Don Giovanni não seja tão

conhecida quanto a de Jesus, ela o é suficientemente para “fazer estalar a linearidade do

texto”102, modo de leitura característico da intertextualidade, que, ao suscitar

referências paradigmáticas, semeia “o texto de bifurcações que lhe abrem, aos poucos, o

espaço semântico.”103 E outro caminho, mais abrangente, a ser percorrido por esta

dissertação é o de iluminar tais bifurcações, de modo a enriquecer a nossa atribuição de

sentido.

100 Ibidem, p. 31. 101 Ibidem, p. 30. 102 Ibidem, p. 21. 103 Ibidem, p. 21.

57

Ressalte-se que o fato de Laurent Jenny referir-se exclusivamente a narrativas

(todos os exemplos do artigo aqui utilizado são de textos desse gênero) não é impeditivo

e nem poderia ser, porque a intertextualidade não é uma prerrogativa exclusiva da

narrativa.

3.1 – O universo ficcional de José Saramago

Se a produção literária de todos os tempos opera sobre textos anteriores e se os

textos sobre Don Juan são determinados por essa característica, uma das mais

significativas marcas da chamada pós-modernidade é a de reivindicar essa operação. É

bem verdade que a cultura renascentista e, durante muito tempo, parte considerável da

literatura francesa, por exemplo, produziram obras em que o diálogo com autores e

textos anteriores era um pressuposto. Porém, observa Teresa Cristina Cerdeira:

Se a intertextualidade não é apanágio da pós-modernidade, é entretanto aí que a ousadia da apropriação parece ganhar corpo e o diálogo intertextual ultrapassar o eco das referências intelectuais que justificam o reconhecimento de uma cultura humanística, para se transformar no centro de interesse da ficção, roubo salutar de uma liberdade que ousa deslocar seus mitos pertubadores ...104

De forma semelhante, Linda Hutcheon, ao tratar do conceito pós-moderno de

“presença do passado”, esclarece: “Não é um retorno nostálgico; é uma reavaliação

crítica, um diálogo irônico com o passado da arte e da sociedade”.105 Essa definição

ajusta-se perfeitamente à escrita de Saramago, cujo processo de apropriação textual é

geralmente paródico, no sentido amplo de introduzir novos e desviantes significados aos

textos convocados. Como faremos amiúde, deixemos o próprio escritor oferecer um

pouco do seu processo criativo, agora através do narrador de História do cerco de

Lisboa:

104 CERDEIRA (2000), p. 226. 105 HUTCHEON (1991), p. 20.

58

[...] os livros estão aqui, como uma galáxia pulsante, e as palavras, dentro deles, são outra poeira cósmica flutuando, à espera do olhar que as irá fixar num sentido ou nelas procurará o sentido novo, porque assim como vão variando as explicações do universo, também a sentença que antes parecera imutável para todo o sempre oferece subitamente outra interpretação, a possibilidade duma contradição latente, a evidência do seu erro próprio. (HCL, p. 24)

Estamos em pleno campo da intertextualidade. A escrita de Saramago é uma

máquina pertubadora que perscruta a “contradição latente” de uma sentença, de um

texto, bem como do discurso que os compromete, desestabilizando os sentidos que se

queriam imutáveis. A operação insinuada pelo narrador de História do cerco de Lisboa

pressupõe uma característica do processo intertextual, apontada por Laurent Jenny, a

reativação do sentido. Parece, inclusive, que quanto mais enraizado estiver o sentido e

mais cristalizada a forma, maior ainda é o interesse do escritor, que procede

constantemente na forma anunciada pelo protagonista do mesmo romance, o ousado

revisor Raimundo Silva: “Nanja por isso, os lugares-comuns, as frases feitas, os

bordões, os narizes-de-cera, as sentenças de almanaque, os rifões e provérbios, tudo

pode aparecer como novidade, a questão está só em saber manejar adequadamente as

palavras que estejam antes e depois ...” (HCL, p. 11).

Se a escrita de Saramago é uma máquina pertubadora, a ironia é a sua arma mais

característica, acentuando a dimensão crítica subjacente à apropriação paródica. Sem

temer a denúncia direta e indignada e o tom emocionado, como teremos a oportunidade

de constatar, é especialmente pela retomada irônica de textos e discursos que Saramago

lhes expõe a matriz ideológica, confronta e desestabiliza as verdades instituídas ou

denuncia as diversas formas de opressão. Além de textos literários, entre os quais se

destacam os de Camões e de Fernando Pessoa106, as fontes principais da apropriação

106 Além de seus poemas freqüentarem quase toda a produção ficcional de Saramago, os dois maiores poetas da literatura portuguesa são transformados em protagonistas de duas obras do Prêmio Nobel de Literatura: a peça teatral Que farei com este livro, na qual Camões peleja para publicar o seu poema épico, e o romance O ano da morte de Ricardo Reis, onde o heterônimo volta a Portugal no conturbado ano de 1936 e lá se encontra com o seu recentemente falecido criador.

59

saramaguiana estão situadas nas áreas da história e da religião, dois temas que, como

veremos a seguir, são os alvos especiais da atenção do escritor.

3.1.1 – Relendo a História

Já em Manual de pintura e caligrafia, um pintor supostamente medíocre, em

seus primeiros exercícios de uma nova forma de expressão, antecipa uma relação com a

História da qual o consagrado escritor nunca se afastará:

Tudo, provavelmente, são ficções: a vida autêntica de Adriano é devagar esmagada, triturada, desfeita, e recomposta com outra figura, na ficção de Marguerite Yourcenar. Podemos apostar, ganhando, que de Adriano ainda alguma coisa falta, quem sabe se apenas porque nunca ocorreu a Defoe nem a Rousseau escreverem eles a sua biografia daquele imperador romano que em Itálica nasceu, mas que a ficção oficial quer que tenha nascido em Roma. Se coisas assim a ficção oficial usa fazer, que coisas tão mais extraordinárias não teria feito a ficção particular? (MPC, p. 97)

“Que coisas tão mais extraordinárias não teria feito a ficção particular?” Obras

como Levantado do Chão, O ano da morte de Ricardo Reis e Memorial do Convento, os

três romances analisados por Teresa Cristina Cerdeira da Silva em seu livro José

Saramago entre a história e a ficção: uma saga de portugueses. Ancorada

especialmente nos postulados da Nova História, a autora ressalta a consciência da

moderna historiografia de que as lacunas existentes nas fontes e documentos históricos,

aliadas à carga ideológica do pesquisador e do seu tempo, afastam a ilusão de

recuperação integral do passado e a da imparcialidade e objetividade do discurso

histórico.107 Postas em epígrafe na introdução do livro de Cerdeira, as palavras de

Georges Duby parecem corroborar a ainda insegura visão de H., protagonista de Manual

de pintura e caligrafia: “A história é acima de tudo uma arte, uma arte essencialmente

literária.”108

107 Cf. SILVA (1989), p. 24-5 108 DUBY e LARDREAU (1980) apud SILVA (1989), p. 23.

60

A professora Teresa Cristina Cerdeira demonstra, então, que Saramago faz

muito mais que inserir personagens fictícias em contextos históricos reais; ele não

apenas utiliza fatos históricos, como o faz por meio “de um discurso que, em sua

execução e propósitos, se revela organizador da História por intermédio do ficcional.”109

Mas, como dirá o narrador de História do cerco de Lisboa, para compor uma história é

necessário juntar-lhe “uma parte suficiente de imaginação para a tornar mais real e

autêntica” (HCL, p. 277). E assim faz Saramago ao investigar o passado e reescrever a

História, não de Portugal, mas dos portugueses110, onde reis e rainhas cedem lugar

àqueles que são os verdadeiros protagonistas da história nacional. Esse projeto está

expressivamente resumido nas seguintes palavras do narrador de Memorial do

Convento:

[...] por via destes e outros tolos orgulhos é que se vai disseminando o ludíbrio geral, com suas formas nacionais e particulares, como esta de afirmar nos compêndios e histórias, Deve-se a construção do convento de Mafra ao rei D. João V, por um voto que fez se lhe nascesse um filho, vão aqui seiscentos homens que não fizeram filho nenhum à rainha e eles é que pagam o voto, que se lixam, com perdão da anacrónica voz. (MC, p. 248)

Se, como diz H. em sua incipiente caligrafia, “Tudo é autobiografia”(MPC, p.

169), é lícito supormos uma evolução das reflexões de Saramago sobre a relação da

ficção com a História, o que era previsível depois de tê-las aplicado ao revisitar, nos

romances analisados por Cerdeira, três “momentos da história portuguesa – a revolução

agrária do Alentejo, a Inquisição e a construção de um convento, ou o fascismo dos

anos 30 da Europa”.111 Lembrados do “Tudo, provavelmente, são ficções” de H.,

ouvimos ecoar as de Georges Duby nas já firmes palavras do revisor Raimundo Silva,

no diálogo com o autor de uma ainda não emendada história sobre o cerco de Lisboa:

109 Ibidem, p. 26. 110 Cf. SILVA (1989), p. 268. Uma das epígrafes que abrem o livro de Cerdeira é uma frase pronunciada por Saramago no auditório da Faculdade de Letras da UFRJ em 1984: “É preciso deixar de fazer História de Portugal para se começar a fazer a história dos portugueses.” 111 CERDEIRA (2000), p. 203.

61

“tudo quanto não for vida é literatura, A história também, A história sobretudo, sem

querer ofender” (HCL, p. 12).

Nesse romance, além de demonstrar ser mesmo um profundo estudioso da

História, Saramago nos oferece um pouco mais do seu modus operandi, através do

trabalho do revisor, que escreve a sua versão sobre o cerco de Lisboa, depois de

emendar um “não” onde antes havia um “sim” no texto do historiador. Desse modo

podemos acompanhar a minuciosa pesquisa de fontes e a descoberta da sua

insuficiência, como esta: “Pensarmos nós que nunca nunca viremos a saber que palavras

disse realmente D. Afonso Henriques aos cruzados” (HCL, p. 41), apesar de tê-las

registrado um vero Osberno, de quem o fictício historiador as traduziu. Mas, como já

havia dito o narrador de A jangada de pedra, “querendo apurar o que ambiciosamente

denominamos rigor dos fatos, (...) à falta de convictas certezas faz-se de conta” (JP, p.

34-5), como na ficção.

É verdade que essa nova história não se enquadra perfeitamente na perspectiva

proposta pela professora Teresa Cristina Cerdeira, uma vez que parte da rasura a uma

convicta certeza histórica, a de que os cruzados, sim, ajudaram a tomar Lisboa aos

mouros.112 Mas, assim como o rigor dos fatos exigiu que se esclarecesse não se dever “a

construção do convento de Mafra ao rei D. João V”, também era necessário mais uma

vez contestar o discurso oficial: a formação de Portugal não foi obra apenas de D.

Afonso Henriques e outros nobres, cruzados ou não. Lá estiveram assoldadados da

infantaria popular, como Mogueime, e barregãs de nobres cavaleiros, como Ouroana,

agora incorporados à saga de portugueses.

112 Referimo-nos à proposta de leitura constante do livro José Saramago entre a história e a ficção: uma saga de portugueses. No ensaio intitulado Na crise do histórico, a aura da História, Cerdeira afirma que o romance História do cerco de Lisboa está entre os textos de Saramago que “voluntariamente optavam por radicalizar a ficção”, no caso, “pela recusa consciente da verdade histórica”. CERDEIRA (2000), p. 203.

62

Faltava, talvez, ir às origens de Portugal e lá na semente instilar a seiva de

homens que reivindicam o justo tratamento, como aquele de serem pagos pela tabela

dos cruzados, mesmo diante da ameaça do rei:

Ora, foi bonita coisa de se ver, provavelmente só possível naqueles inocentes tempos, como se lhe alteou ainda mais a figura a Mogueime e como lhe veio clara a voz para dizer, Se vossa alteza nos mandar cortar a cabeça e os pés, será todo o vosso exército que ficará sem pés nem cabeça. (HCL, p. 312-3)

Já naqueles inocentes tempos, mas não só naqueles, houve um dia “levantado e

principal” (LC, p. 366). E, ao contrário do que disse el-rei antes de ceder, não foi um

mal começo, pois, como retrucou Mogueime, “este país em princípio de vida só

começará mal se não começar justo” (HCL, p. 313).

Assim como a professora Cerdeira, Rosemary Conceição dos Santos ressalta que

Saramago relê o passado com os olhos voltados para o presente, “através do olho,

magicamente crítico, da atualidade”113, acrescentando consistir o seu projeto literário

“em fornecer uma visão do passado sob uma nova perspectiva, iluminada por um

realismo crítico e social, que se fundamenta na ideologia marxista”.114 Mas, se os olhos

de Saramago estão voltados para o presente, o novo e generoso princípio de Portugal

projeta-se para o futuro de forma exemplar, fundamentado num suporte ideológico cujas

raízes – para além do marxismo – estão francamente expostas nesta veemente

passagem: “...o que era ali motor das vontades e gerador de alegrias resultava

infinitamente mais do contentamento que no espírito sempre fará nascer uma justiça que

seja igual para todos e que de cada um faça destinatário escolhido de um integral e

incorruptível direito” (HCL, p. 315).

Registre-se que as reflexões de Saramago sobre a História não assumem apenas

a forma de releitura do passado e estão pontualmente presentes em grande parte da sua

ficção, mesmo em romances tão alheios ao tema como, por exemplo, O homem

113 SANTOS (2004), p. 20. 114 Ibidem, p. 23.

63

duplicado, no qual o narrador aponta a limitação e a parcialidade da matéria que o

protagonista ensina a seus alunos. Tertuliano Máximo Afonso é professor de História.115

3.1.2 – Confrontando a religião

Assim como as reflexões de Saramago sobre a História estão presentes em

várias de suas obras, também está dispersamente manifestado o seu interesse por

questões religiosas, as quais assumem o primeiro plano e se constituem no próprio tema

em A segunda vida de Francisco de Assis, O evangelho segundo Jesus Cristo e In

nomine Dei, como bem registrou Beatriz de Mendonça Lima em sua tese de

doutoramento.116

Embora, em seus textos, variadas sejam as intenções e muitas as situações

capazes de provocar a convocação do tema religioso, Saramago já com aquele

peremptório “Não há portanto Deus”, de Manual de pintura e caligrafia (p. 106),

anunciava que investiria contra a própria idéia de Deus. Apesar de H. complementar a

sua sentença afirmando que, embora fossem muitos os modos de o saber, o seu lhe

bastava, o escritor continuará investigando esses modos de saber, como é o caso do

narrador de Levantado do chão ao dizer, diante de uma criança faminta, que “a prova de

que Deus não existe é não ter feito os homens carneiros, para comerem as ervas dos

valados, ou porcos, para a bolota” (LC, p. 79).

Contudo, a par dessa investida mais geral, a principal referência, ou alvo, do

escritor português é sem dúvida o cristianismo, que, conforme observa Beatriz de

115 Diz o narrador: “A História que Tertuliano Máximo Afonso tem a missão de ensinar é como um bonsai (...), uma miniatura infantil da gigantesca árvore dos lugares e do tempo, e de quanto neles vai sucedendo”. HD, p. 15. 116 Lima não menciona Terra do Pecado “em consideração ao autor, que durante muitos anos se recusou a admitir em sua bibliografia esse romance de juventude.” Lima (2003), p.18. Também assim o fazemos.

64

Mendonça Lima, é a base da cultura ocidental e, portanto, determinante para a formação

da nossa mentalidade. A passagem de Cadernos de Lanzarote II, transcrita pela autora

da tese, para ressaltar o reconhecimento de tal circunstância por Saramago, não difere,

é, antes, aprofundada literariamente nestas palavras de H.:

[...] se no Monte das Oliveiras tivesse Jesus morrido daquela hemorragia que benignamente e não fatalmente o acometeu, haveria depois cristianismo? Não havendo, a história teria sido outra, a história dos homens e das suas obras: tanta gente que não se teria emparedado em celas, tanta gente que teria morrido de diferente morte, não nas santas guerras nem nas fogueiras com que a Inquisição respondia a si própria, ela relapsa, ela herética, ela cismática. Quanto a estas tentativas de autobiografia em forma de narrativa de viagem e de capítulo, estou que haveriam de ser diferentes também. (MPC, p. 154)

A passagem acima já aponta para um outro aspecto ressaltado por Lima e que

nos importa destacar: a preocupação de natureza ética que está na raiz do interesse de

Saramago pelo tema religioso, principalmente cristão. E essa preocupação tanto se

refere à alienação advinda da própria crença na existência de Deus, que reduz o espaço

da liberdade e da responsabilidade humanas, quanto à manipulação de tal crença a fim

de submeter os homens aos interesses dominantes. Afinal, como revela o cardeal de As

intermitências da morte, “a vantagem da igreja é que, embora às vezes o não pareça, ao

gerir o que está no alto, governa o que está em baixo. (...) a nossa outra especialidade,

além da balística, tem sido neutralizar, pela fé, o espírito curioso” (IM, p. 19-20), que é

o mesmo que dizer espírito contestador. E imediatamente lembramos do padre

Agamedes, de Levantado do chão.

Além de ser um tópico recorrente em sua ficção, Saramago nos expõe, de forma

mais sistemática, as engrenagens pelas quais os intermediários de Deus, em conluio

com os representantes do poder secular, submetem a vontade dos homens em romances

como Levantado do chão, Memorial do convento e O ano da morte de Ricardo Reis,

sem esquecer a peça teatral In nomine Dei, onde o auto-proclamado representante do

Senhor, Jan Van Leiden, assume diretamente o poder político da cidade de Münster,

com conseqüências devastadoras. Também na História do cerco de Lisboa vemos, sob

65

um outro enfoque, como a cristianíssima missão dos cruzados mal esconde o desejo de

saque e de conquista territorial. Já em O evangelho segundo Jesus Cristo, Saramago

está mais preocupado em investigar a submissão ou a alienação da vontade humana à

onipotência de Deus, mesmo que sob uma forma determinada, como a que assumiu com

o cristianismo. E a insubmissão de Jesus nos convoca a “pensar em como teriam sido os

dois últimos milênios se a humanidade não tivesse assimilado à sua história, como fatos

inquestionáveis, o martírio e a ressurreição do filho de Deus”117, como propõe – com

outras, mas não incompatíveis premissas – Beatriz de Mendonça Lima.

Mas o que nos importa sobretudo averiguar é a realização daquilo que parece ser

a proposta do novo evangelista, inscrita já nas primeiras páginas: “...tudo isto são coisas

da terra, que vão ficar na terra, e delas se faz a única história possível” (EJC, p. 13). Ao

identificar em todos os romances anteriores a O evangelho segundo Jesus Cristo a

manifestação do interesse de Saramago pelas questões religiosas, Beatriz de Mendonça

Lima destaca que já em Levantado do Chão o escritor se apropriava do texto bíblico, de

forma irônica e sistemática, incorporando-o ao contexto histórico da narrativa e

projetando-o na saga dos camponeses alentejanos, em cuja trajetória Teresa Cristina

Cerdeira da Silva, orientadora da tese de Lima, já havia identificado “uma travessia

modelar que se inicia no Gênesis (capítulo 1) e termina na Ressurreição dos mortos (...)

caminhada épica dos levantados do chão”118, passando por referências intertextuais ao

dilúvio, à Via Crucis, à Santíssima Trindade e ao nascimento do Cristo-menina, Maria

Adelaide Espada.119

117 LIMA (2003), p. 199. 118 CERDEIRA (2000), p. 242. 119 Cf. CERDEIRA (2000), p. 242-3. Beatriz de Mendonça Lima lembra que em Memorial do Convento o dogma da Santíssima Trindade foi transformado em “trindade terrestre”, formada pelo padre Bartolomeu Gusmão, Baltasar e Blimunda. Em Levantado do Chão forma ironicamente a Santíssima Trindade a aliança entre Latifúndio, Estado e Igreja.

66

Em O evangelho segundo Jesus Cristo, é a vez de a vida de Cristo ser contada

doutra maneira. E estamos diante da mesma estratégia identificada por Cerdeira, pois,

também aqui, o autor preenche as lacunas das fontes para contar uma outra história

possível dentro dos marcos legados pela tradição cristã. Também aqui o narrador

recontextualiza, parodia e subverte o discurso canônico, o texto bíblico e as diversas

vozes que se juntaram em torno dessa tradição.

Cerdeira, agora em “O quinto evangelista ou da tigela ao graal”, propõe que a

exclamação do narrador de Levantado do Chão “Glória ao homem na terra” (LC, p.

300) bem poderia servir de epígrafe a esse novo evangelho. E assim é, pois que se trata

da trajetória de um Jesus que assumiu a sua humanidade, em toda a sua glória, dor e

responsabilidade. Até porque, por outro lado, torna-se impossível glorificar nas alturas

um Deus, cujo projeto ambicioso de poder, segundo o narrador (referindo-se à matança

das crianças de Belém), padece de um pecado original: “O remorso de Deus e o remorso

de José eram um só remorso, e se naqueles antigos tempos já se dizia, Deus não dorme,

hoje estamos em boas condições de saber porquê, Não dorme porque cometeu uma falta

que nem a homem é perdoável” (EJC, p. 107).

A visão crítica de Saramago atinge contornos dramáticos especialmente no

diálogo da barca, no qual são descritos, ao longo de várias páginas, os intermináveis

sofrimentos e mortes impostos pelo cristianismo – já sucintamente lembrados por H.,

em citação anterior. Tantos eram os horrores que estavam por vir – como historicamente

vieram –, que o próprio Diabo, também presente ao debate entre Deus e Jesus, se

compadeceu dos homens e propôs submeter-se humildemente à autoridade divina,

pondo, desse modo, fim ao Mal e à necessidade de sacrificar Jesus, livrando o mundo de

suas conseqüências. Se o Diabo foi capaz de um sentimento tão humano, talvez por

entre os homens andar como Pastor, Deus permaneceu insensível e, necessitando do

67

Mal para existir, perseverou em sua ambição de criar o cristianismo para alargar o seu

império no mundo.

A boa nova cristã é virada do avesso. A crucificação de Jesus – “um revulsivo

forte, qualquer coisa capaz de chocar as sensibilidades e arrebatar os sentimentos” (EJC,

p. 314) – não se destina a redimir os homens e a estabelecer uma nova aliança, mas a

impor “uma história interminável de ferro e de sangue, de fogo e de cinzas, um mar

infinito de sofrimento e de lágrimas” (EJC, p. 319). É a partir daí que Jesus começa a

elaborar o seu próprio projeto, alicerçado na solidariedade aprendida na sua convivência

com os homens. E também com o Diabo, transformado em Pastor. Subvertida a

simbologia cristã (“o Senhor é o meu pastor”), é com ele que Jesus aprende a defender a

vida, mesmo que seja a de uma ovelha do seu rebanho.

Outra subversão operada por esse novo evangelho é a da consagração do corpo,

que preside a própria concepção de Jesus: “... a carne dele penetrou a carne dela, criadas

uma e outra para isso mesmo (...) a semente sagrada de José se derramou no sagrado

interior de Maria, sagrados ambos por serem a fonte e a taça da vida” (EJC, p. 19). É

aqui que, para os objetivos desta dissertação, entra um dos mais importantes aspectos a

destacar do percurso de Jesus, que Beatriz de Mendonça Lima leu nos marcos de um

romance de aprendizagem: o seu encontro com Maria de Magdala, uma prostituta que

no “romance de Saramago herdou alguns dos traços das diferentes personagens que se

reuniram para formar o estereótipo da ‘Madalena penitente’”.120

Foi com ela que Jesus “conheceu o amor da carne e nele se reconheceu homem”

(EJC, p. 242), ao final de um longo processo de superação de uma tradição – judaica e

posteriormente cristã – segundo a qual a carne é impura e o sexo a sede de todos os

120 LIMA (2003), p. 170.

68

males. Já em seus anos de convivência com Pastor, Jesus não conseguira rebater a

irresistível argumentação do seu primeiro mestre:

Quem criou o teu corpo, Deus foi quem me criou, Tal como é e com tudo o que tem, Sim, Há alguma parte do teu corpo que tenha sido criada pelo Diabo, Não, não, o corpo é obra de Deus, Então todas as partes do teu corpo são iguais perante Deus, Sim, Poderia Deus rejeitar como obra não sua, por exemplo, o que tens entre as pernas ... (EJC, p. 195)

Jesus ainda resistiria, tempos depois, ao imperioso desejo que lhe fez inchar o “que

tinha entre as pernas” (EJC, p. 224), diante da nudez feminina, às margens do rio

Jordão. É, enfim, em Magdala que Jesus encontra a sua mestra definitiva: “Aprende o

meu corpo (...) Aprende o teu corpo, e ele aí o tinha, seu corpo, tenso, duro, erecto, e

sobre ele estava, nua e magnífica, Maria de Magdala” (EJC, p. 235). Como em outros

romances de Saramago, o erotismo, além de ser uma forma de aprendizagem, é o

indutor da plena comunhão amorosa, para cuja experiência o homem é conduzido pelo

franco e generoso amor feminino. A ele, mais uma vez, é concedido o poder

transformador, agora o de fazer Jesus se reconhecer homem.

O novo evangelista não podia negar a instância divina para colocar nas mãos dos

homens o seu próprio destino. Mas alienar a um Deus inexistente a responsabilidade

pela vida na terra não é pior do que aliená-la a um Deus pueril e cruel. A salvação, de

qualquer forma, não existe fora do próprio homem. Como em todos os evangelhos, a

vida de Jesus é aqui, mais uma vez, exemplar. Só que, claro, Saramago inverte a

mensagem cristã, deslocando “do céu para a terra o espaço da construção da

humanidade”.121 Jesus, interessado mais em aplacar o sofrimento do que pregar o

arrependimento, vai gradativamente aprendendo com a companheira a não abdicar da

sua, no caso limitada, liberdade. Foi assim quando, por compaixão, decidiu não

ressuscitar Lázaro, pois “Ninguém na vida teve tantos pecados que mereça morrer duas

vezes” (EJC, p. 360). Dolorosamente dividido entre “o serviço de Deus e o serviço do

121 CERDEIRA (2000), p. 237.

69

povo” (EJC, p. 361), que raras vezes conseguiu conciliar, Jesus acaba por optar pela

solidariedade humana e apresenta aos discípulos o seu próprio projeto: deixar-se pregar

à cruz como um simples homem “que tivesse proclamado a si mesmo rei dos Judeus,

que andasse a levantar o povo para derrubar Herodes do trono e expulsar da terra os

romanos” (EJC, p. 367). Se o projeto de Deus representa a condenação dos homens, a

esperança de redenção nasce da autonomia reclamada por Jesus, que, mesmo sabendo

não poder ir contra a vontade divina, afirma: “mas o meu dever é tentar” (EJC, p. 367).

Jesus é agora exemplo de integral humanização, incansavelmente reclamada por

Saramago, não apenas nesse Evangelho.

Apontado pelo escritor como “a viga mestra do livro”122, o tema da culpa é

objeto especial das reflexões tanto do narrador do Evangelho segundo Jesus Cristo

quanto de Beatriz de Mendonça Lima, a partir da omissão de José no episódio da

matança dos inocentes, quando, preocupado apenas em salvar seu filho, não denunciou

a ordem de Herodes para matar as crianças de Belém. Lima contrapõe as trajetórias de

José e de Jesus, herdeiro da culpa e do conseqüente pesadelo do pai.123 A postura de

José está condensada nesta passagem da tese:

Além da omissão indesculpável – que aliás o condena para sempre ao mais que terrível peso da culpa – o erro de José foi ainda o de continuar preso à idéia de obediência a um poder transcendente. Se a culpa resgata a sua dignidade, falta-lhe ainda o salto libertador. Porque para se assumir como sujeito da história, teria de aprender a agir de acordo com a sua consciência, o que equivaleria a dar o passo que faltava para sair do limiar em que se encontrava paralisado e buscar um cominho para além da palavra sagrada e dos ensinamentos recebidos.124

122 SARAMAGO apud LIMA (2003), p. 116. 123 José foi, a partir da sua omissão na matança dos inocentes, atormentado o resto da vida por um sonho em que ia junto com os soldados matar o seu filho. Jesus herdou esse sonho, no qual a sua perspectiva era mesmo o da vítima. 124 LIMA (2003), p. 122.

70

José ainda tentaria resgatar a sua culpa, mas seria tarde. Já a postura de Jesus

constituiria o “exemplo de uma culpa tornada produtiva, pois é geradora de uma ação

sobre a História, de acordo com um projeto solidário e revolucionário”.125

O modo como o tema da culpa é abordado é uma outra radical inversão operada

por esse romance relativamente à doutrina cristã, em cuja raiz está “o humilhante

sentimento de culpa que torna obrigatórios o arrependimento e o perdão”.126 É isso que

Deus diz, a certa altura do diálogo da barca, quando expõe seu plano para atrair os

futuros fiéis da sua nova igreja. Inquirido por Jesus quanto ao modo de fazê-lo, Deus

revela como a difusão da noção de pecado, forma assumida pela culpa na tradição

judaico-cristã, será um dos pilares da nova religião: “Todo homem, respondeu Deus, em

tom de quem dá lição, seja ele quem for, esteja onde estiver, faça o que fizer, é um

pecador” (EJC, p. 314). E para garantir a introjeção do sentimento de culpa “há que

deixar as pessoas inquietas, duvidosas, levá-las a pensar que se não conseguem

compreender, a culpa é só delas” (ECJ, p. 314). Aplainado o caminho, lança-se, então, a

isca: “...a esses homens não terás de dizer mais do que Arrependei-vos Arrependei-vos

Arrependei-vos” (EJC, p. 314).

Jesus, porém, não exige o arrependimento dos homens que ele curava, pois,

conforme suas palavras, “ficar curado era como nascer de novo sem haver morrido,

quem nasce não tem pecados seus, não tem que se arrepender do que não fez”. (EJC, p.

362). Porque aqui a culpa não é conseqüência de um pecado original ou de uma

impureza congênita dos homens, muito mais inocentes, aliás, do que Deus. Ela nasce

das ações e omissões dos homens em relação à vida, especialmente dos seus

125 Ibidem, p. 122. Deve-se registrar que os pesadelos de Jesus cessaram depois do seu primeiro encontro com Maria de Magdala. Pode-se, então, interpretar que Jesus se beneficiou da solidariedade e do amor da futura companheira, para quem, sem poder segurar as lágrimas, contara o pesadelo e a sua origem. Essa interpretação torna-se mais pertinente se lembrarmos que Jesus dissera ter-se sentido quase a renascer em Magdala. 126 Ibidem, p. 201.

71

semelhantes, estando também nas humanas mãos a possibilidade de superá-la, de

corrigir os seus próprios erros.

A última frase pronunciada por Jesus, antes de morrer na cruz (como filho de

Deus e não como um revolucionário), é a síntese genial das inversões que tentamos

explicitar nos parágrafos anteriores; é a expressão precisa e concisa da perspectiva que

orientou esse novo evangelho: “Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez”

(EJC, p. 374).

Se, por ser a base da nossa formação ocidental, o cristianismo é o principal

objeto do interesse de Saramago, a visão crítica do escritor bem pode ser estendida a

outras religiões, como demonstra o narrador de História do cerco de Lisboa em relação

ao islamismo: “[...] Deus e Alá é tudo o mesmo, (...) os problemas sempre começam

quando entram em cena os intermediários de Deus, chamem-se eles Jesus ou Maomé,

para não falar de profetas e anunciadores menores” (HCL, p. 183-4). A crítica oblíqua,

presente nessa passagem, à mortandade que causam entre si cristãos e mouros revelar-

se-á inteira com a ilustração de um dos capítulos do “mar infinito de sofrimento e de

lágrimas” que Deus, no diálogo da barca, antecipou a Jesus:

[...] e foi então que, rompendo as últimas barreiras da dignidade e do recato, a fome se mostrou na cidade em sua mais obscena expressão, que menor obscenidade é a exibição dos comportamentos íntimos do corpo do que ver extinguir-se esse corpo à míngua de alimento sob o indiferente e irónico olhar de deuses que, tendo deixado de guerrear uns contra os outros por serem imortais, se distraem do aborrecimento eterno aplaudindo os que ganham e os que perdem, uns porque mataram, outros porque morreram. Pela ordem inversa das idades, apagavam-se as vidas como candeias exauridas, primeiro as crianças de colo ... (HCL, p. 316)

A intolerância religiosa, que não opõe apenas cristãos e muçulmanos, é o tema

de uma peça teatral de Saramago, na qual o autor expõe como, “em Münster, no século

XVI, como em tantos outros tempos e lugares, católicos e protestantes andaram a

trucidar-se uns aos outros em nome do mesmo Deus”. (ND, p. 9) In nomine Dei é

dedicada integralmente a essa outra veia da crítica de Saramago à religião, não única,

72

mas fecunda sementeira “da longa e, pelos vistos, irremediável história da intolerância

humana”. (ND, p. 9)

Analisadas algumas das características do universo criativo de Saramago,

tentaremos demonstrar a sua presença em Don Giovanni ou o dissoluto absolvido, peça

teatral constituída de um prólogo e de um único ato, dividido em seis cenas. Uma das

ausências mais sentidas é a do narrador, instância que, nos romances de Saramago,

comanda a maioria dos processos de apropriação discursiva e textual.127 Uma

conseqüência imediata, por exemplo, é a quase total inexistência da metalinguagem na

obra que nos ocupa, ferramenta freqüente no escritor, consciente da sua produção.

3.2 – Don Giovanni ou o dissoluto absolvido: a liberdade humana

José Saramago não poderia mesmo resistir ao convite de Azio Corghi para

escrever uma nova versão de Don Giovanni, destinada a servir de fundamento

dramático a uma nova composição operística do músico italiano, porque duas das suas

grandes tentações o convocavam: revisitar um texto consagrado da tradição literária e

confrontar o discurso religioso.

Embora pretendamos estabelecer um diálogo entre a versão saramaguiana e as

dos demais autores estudados na primeira parte desta dissertação, a fonte direta da

releitura do escritor português é, para além do libreto de Lorenzo da Ponte, a ópera

resultante da composição de Mozart. Trata-se da primeira experiência de Saramago em

recontar a história de uma personagem literária, isso se desconsiderarmos a afirmação

do revisor Raimundo Silva, já evocada anteriormente, de que “tudo quanto não for vida

é literatura”. Porque aí teríamos que admitir Jesus Cristo como uma personagem

127 Cf. CERDEIRA (2000), p. 231.

73

literária e teríamos um rigoroso precedente em O evangelho segundo Jesus Cristo,

romance cuja composição segue uma orientação a que se assemelha, em alguns

aspectos, à de Don Giovanni. E o principal ponto de contato entre essas duas obras é

exatamente o tratamento da questão religiosa, como veremos.

O tema, contudo, era pouco convidativo para o interesse de Saramago pela

História. Aliás, excetuando a referência a uma certa Burgos, retirada do texto de

Lorenzo da Ponte128, não há na peça teatral nenhuma identificação do espaço onde

decorre a ação, da mesma forma que na ópera célebre e no drama de Molière. Também

não há marcas temporais precisas, embora a presença de certos elementos tradicionais,

como o duelo com espadas, remeta a ação para o tempo em que viveram os principais

antecessores do dissoluto absolvido. A presença de referências mais modernas pode ser

integrada ao que a professora Teresa Cristina Cerdeira chama enunciação profética em

relação ao tempo do enunciado, constituindo-se em um importante veículo de

comicidade.

Não é incomum, é bem verdade, a ausência de marcadores temporais e espaciais

na ficção de Saramago, como ocorre, por exemplo, em A segunda vida de Francisco de

Assis, bem como em As intermitências da morte e nos dois Ensaios, obras em que o

autor busca expor as misérias e a grandeza da condição humana, em qualquer tempo ou

lugar. Mas aqui essa circunstância decorre principalmente do fato de o pré-texto direto

da peça ser a ópera de Mozart e Lorenzo da Ponte. Contudo, se não é uma conseqüência

da condição mítica da personagem, a ausência de marcadores temporais e espaciais

pode bem representar, desde Molière, o reconhecimento (ou a reivindicação) da

universalidade de Don Giovanni. Sua origem espanhola não se pode identificar no texto

do dramaturgo francês e, no de Lorenzo da Ponte, está consignada apenas no número 128 Exatamente nas mesmas circunstâncias do libreto de Da Ponte, essa referência é feita por Dona Elvira ao recordar os prazeres que tiveram em sua cama ela e Don Giovanni. Por ser uma recordação de outro lugar, essa referência não ajuda a situar a ação da peça.

74

discrepante de conquistas amorosas do herói naquelas terras, conforme anotado no

famoso catálogo.

Mas, como dizíamos no início, a empresa de reescrever a história de Don

Giovanni tentava Saramago. Também porque a música e a parceria com o compositor

italiano são caras ao escritor, conforme suas próprias palavras, dirigidas a Corghi: “Não

sei como lhe agradecer por tudo o que você fez (e continua a fazer), elevando a minha

literatura ao céu da música”.129 Além de outras composições derivadas de textos do

escritor português, o músico italiano compôs as óperas Blimunda e Divara, inspiradas,

respectivamente, em Memorial do Convento e In nomine Dei.130 Saramago, além disso,

não é indiferente à ópera. Em seus romances encontramos referências a esse universo,

como a convocação do caráter trágico dos heróis wagnerianos pelo narrador de A

jangada de pedra ao se referir aos galegos e portugueses que se recusavam a abandonar

a península a deriva. E a sua admiração suprema é mesmo Don Giovanni de Mozart,

conforme nos informa Saramago na apresentação do livro que contém a sua versão do

sedutor: “Se há uma ópera no mundo capaz de pôr-me de joelhos, rendido, submetido, é

esta” (p.14).

Quando Saramago, também na apresentação do seu livro, afirma a sua

resistência à proposta de Azio Corghi, aduz como razão o fato de tudo já ter sido dito

sobre o sedutor. Mas logo emenda: “Era certo que sempre havia pensado que Don

Giovanni não podia ser tão mau como o andavam a pintar desde Tirso de Molina” (p.

15). Todos esses motivos reunidos fizeram surgir Don Giovanni ou o dissoluto

absolvido, comprovando que na ficção saramaguiana tudo pode ser contado de outro

modo.

129 SEMINARA (2005), p. 93. No posfácio à edição da peça teatral de Saramago, Graziella Seminara apresenta várias correspondências entre o escritor português e o compositor italiano. 130 Cf. SEMINARA (2005), p. 91-2.

75

Antes de entrarmos na análise do texto, façamos uma advertência. Dominique

Maigueneau chama a atenção para aquilo que ele denomina a dupla leitura da

enunciação teatral, ou seja, uma peça de teatro pode ser recepcionada pelo espectador da

encenação ou pelo leitor do texto, o que acarreta significativas diferenças na atribuição

de sentido. Quando se trata de uma ópera, então, essa circunstância é ainda mais

relevante, haja vista o protagonismo da partitura musical. Nesse sentido, quando

abordamos o libreto de Lorenzo da Ponte, ressaltamos que a ausência da música

limitava a nossa análise, uma vez que o significado pleno da ópera só podia ser

apreendido perfeitamente com a integração da composição de Mozart. E foi necessário

fazer essa observação porque a ópera setecentista – e não apenas o libreto – foi decisiva

para a história de Don Giovanni, influenciando, portanto, o nosso trabalho.

Embora seja agora outro o caso e devamos abordar o objeto desta dissertação

como um texto dramático autônomo, resta o fato de que a peça de Saramago foi escrita

com um objetivo específico: o de ser parte de uma obra a ser representada e cantada nos

palcos. Conforme revelam as correspondências eletrônicas trocadas entre os artistas,

inseridas no pósfácio de Graziella Seminara, o escritor foi construindo o seu texto em

estreita conexão com a composição musical, e vice-versa. Portanto, o sentido integral ou

pretendido e o efeito estético se ressentem, na leitura, da ausência daquela outra e

poderosa componente, como declara Saramago na apresentação do seu livro: “Faltará a

música, que é sempre o melhor de tudo” (p.16).

Como abordaremos quase exclusivamente a realização textual, deixemos

registrado que Azio Corghi utiliza em seu processo criativo técnicas típicas da pós-

modernidade, como a remissão a partituras consagradas, predominando, no caso, às da

ópera mozartiana.131 Muitos efeitos perseguidos pelos dois artistas – para decifração ou

131 Cf. SEMINARA (2005), p. 99.

76

fruição da obra – só estarão plenamente acessíveis aos espectadores, de acordo, claro,

com o seu grau de conhecimento não apenas do pré-texto literário, mas também

musical.

3.2.1 – Epígrafe e prólogo: repetir para mudar

A epígrafe da obra, “nem tudo é o que parece”, confirma que Saramago foi

mesmo fisgado pelo seu pensamento de que “Don Giovanni não podia ser tão mau

como o andavam a pintar desde Tirso de Molina”. Na verdade, tal epígrafe poderia ser

aposta em toda a sua ficção, não só quando relê a história, desaloja o já dito ou interpela

a religião, mas também quando cria situações inusitadas em busca da essência humana.

Porque há, como na atitude de Saramago, um veio inconformista e inquiridor na raiz

desse provérbio, que freqüenta, por isso mesmo, outros textos do escritor, como este

onde o narrador de História do Cerco de Lisboa alerta que nem tudo o que se vinha

apresentando como de autoria de Raimundo Silva era de fato do revisor:

Estas prevenções novamente se recordam para que sempre tenhamos presente a conveniência de não confundir o que parece com o que seguramente estará sendo, mas ignoramos como, e também para que duvidemos, quando creiamos estar seguros duma realidade qualquer, se o que dela se mostra é preciso e justo, se não será apenas uma versão entre outras, ou, pior ainda, se é versão única e unicamente proclamada.” (HCL, p. 141)

Embora Don Giovanni não tenha uma única versão, as que fixaram o seu caráter não são

para o escritor justas e precisas. Como apontado na passagem acima, Joaquim Sassa,

personagem de A jangada de pedra, defende a relatividade de qualquer verdade quando

reformula o provérbio, radicalizando-o: “A minha sabedoria está-me aqui a segredar que

tudo só parece, nada é” (JP, p. 126).

A proposta da (sub)versão de Saramago é já sugerida pelo título: Don Giovanni

ou o dissoluto absolvido, indicando ser o seu principal pré-texto a ópera de Mozart e

Lorenzo da Ponte intitulada Don Giovanni ou o dissoluto punido. E não só pela evidente

77

alusão contida no título ou por se tratar de uma peça escrita para ser o suporte textual de

outra ópera, mas porque o nó da trama gira em torno do catálogo onde o criado de Don

Giovanni anota os nomes das mulheres conquistadas pelo sedutor. Lembremos que o

catálogo, embora seja provavelmente uma criação do italiano Jacinto Andréa Cicognini

(Il Convitato di Pietra, anterior a 1650), só viria a ganhar popularidade e a se tornar um

elemento consagrado da história de Don Giovanni com a ópera de Mozart/Da Ponte. O

relevo dado ao catálogo é percebido quando o leitor se depara, já no prólogo, com a

famosa ária mozartiana, integralmente repetida pela mesma personagem, Leporello,

também aqui criado do protagonista.

Como na famosa ópera, quem contracena com Leporello é Dona Elvira, só que

agora “apresentada na forma de um manequim, de um corpo à espera de ser vestido, não

com a tradicional roupagem da ingenuidade enganada, mas de uma enganadora e

dissimulada ingenuidade”132, conforme afirma Jorge Valentim e confirmaremos adiante.

No prólogo, proposto por Azio Corghi, também são enxertados outros fragmentos do

texto de Lorenzo da Ponte, como o diálogo entre essas duas personagens e o recitativo

de Dona Elvira, respectivamente, anterior e posterior à ária. Em correspondência a

Saramago, o músico italiano justifica assim a sua proposta: “devemos tornar

compreensível a reviravolta de um arquétipo cultural (o mito de Don Giovanni)

aceitando de saída o déjà vu (ária de Leporello) a fim de evidenciar melhor a sua

primeira idéia”.133 Que idéia é essa veremos ao longo da análise. Agora, interessa-nos

ressaltar que as palavras de Corghi são uma outra maneira de dizer que “Basta uma

alusão para introduzir no texto centralizador um sentido, uma representação, uma

história, um conjunto ideológico”134, como afirma Laurent Jenny sobre o estatuto da

palavra intertextual. O fato de estarmos diante de muito mais que uma alusão não 132 VALENTIM (2006), p. 377. 133 SEMINARA (2005), p.99. 134 JENNY (1979), p. 22.

78

modifica o efeito da operação intertextual, pois aqueles fragmentos evocam nos leitores

um Don Giovanni fixado pela tradição, ou seja, provocam o déjà vu. Talvez para

compensar a ausência da música e do contexto operístico, na peça teatral, em português,

a filiação à versão de Mozart/Da Ponte é enfatizada pelo aproveitamento dos enunciados

no idioma original, o italiano.

O trecho da correspondência aqui citado revela também um objetivo: o de tornar

patente a reviravolta do arquétipo cultural. Visto de outro ângulo, a função daqueles

enxertos é a de criar uma expectativa a ser frustrada no decorrer da obra, podendo-se

identificar aí uma das figuras de retórica de que se serve o processo intertextual para

alterar o texto assimilado, conforme propõe Jenny. Trata-se da elipse, “repetição

truncada dum texto ou dum arquitexto”, no caso, a que se dá “em relação a um tópico

esperado, provocando desse modo um sentimento de frustração no leitor, impaciente por

ver realizar-se o arquitexto”.135

Entremeando aqueles fragmentos textuais, há um complemento de diálogo, em

português, no qual é reforçada a indignação de Dona Elvira e o seu desejo de vingança,

já expressos nos textos assimilados de Lorenzo da Ponte. Contudo, acrescenta-se um

interesse de Dona Elvira pelo catálogo, inexistente no original:

DONA ELVIRA: Dou-te dinheiro se me deixares arrancar a folha onde está escrito o meu nome. LEPORELLO: Não posso. DONA ELVIRA: Porquê? LEPORELLO: Porque nessa folha estão escritos os nomes doutras mulheres. Se cobrasse de uma, teria de cobrar de todas. E vá lá saber-se por onde andarão elas nesta altura! O mais provável é estarem todas casadas... Os maridos não ficariam nada contentes. DONA ELVIRA: Descarado! LEPORELLO: Também nasceu com esse defeito, sim senhora. DONA ELVIRA: É de ti que estou a falar, não de Don Giovanni. LEPORELLO: A cada um o seu papel. Aos criados mandam-nos que sejamos descarados, medrosos e cobardes. Não podemos ser outra coisa. DONA ELVIRA: Dá-me esse livro. LEPORELLO: Sou um cão de guarda fiel, senhora. Descarado, medroso, cobarde, mas fiel. DONA ELVIRA: Se eu fosse homem arrancar-to-ia das mãos agora mesmo. (p. 20-1)

135 Ibidem, p. 39.

79

O interesse de Dona Elvira pelo catálogo indica, mais uma vez, o relevo que

ganhará esse elemento, o qual, apesar de consagrado pela famosa ária, não impôs

nenhuma relevante conseqüência para a versão de Lorenzo da Ponte. Ao contrário, a

peça de Saramago desenvolve-se, como já alertamos, em torno dele. E junto com o

catálogo cresce a importância de Dona Elvira, enquanto decresce a de Dona Ana,

personagens que, na interpretação de Saramago, não podiam ser “tão inocentes

criaturas” (p. 15). Vemos que o prólogo já inicia o percurso intertextual indicado por

Laurent Jenny de “Repetir para delimitar, para fechar num outro discurso”, já que “A

análise do trabalho intertextual mostra bem que a pura repetição não existe”.136

3.2.2 – Cenas 1 e 2: o novo horizonte de Don Giovanni

A primeira marcação de cena reforça a importância do catálogo, pois o leitor é

informado de que Don Giovanni o folheia saudosa e melancolicamente. Seu primeiro

enunciado evoca a famosa ária: “Espanha, Turquia, França, Alemanha, Itália, tudo

somado...” (p. 27). Há uma mudança significativa no perfil do protagonista, que não é

mais aquele jovem arrojado e voltado exclusivamente para o instante, para quem é

alheia qualquer reflexão sobre o passado ou qualquer avaliação crítica sobre a sua

própria conduta. Como uma parte significativa dos protagonistas de Saramago, Don

Giovanni é um homem maduro, como ele mesmo diz (ou lamenta): “Antigamente era

mais rápido na conquista, mais veloz no triunfo, mais conclusivo na retirada. E ainda

por cima tive de matar o idiota do Comendador. Don Giovanni está a fazer-se velho” (p.

28).137 Mesmo que o envelhecimento da personagem não seja a razão em que se apóia o

136 Ibidem, p. 44. 137 Por curiosidade, pesquisamos as idades de alguns protagonistas anteriores: Ricardo Reis tem 48 anos; o revisor Raimundo Silva, mais de cinqüenta; o violoncelista de As intermitências da morte fez cinqüenta, quando deveria ter morrido aos 49 anos; o Sr. José de Todos os nomes tem 25 anos de serviço no

80

autor para conferir um novo caráter a Don Giovanni, como veremos adiante, essa

característica não pode ser desconsiderada, inclusive porque ela sublinha o simbolismo

do catálogo. É o passado que justifica a fama do incrível conquistador, que, na versão de

Saramago, não seduzirá nem tentará seduzir nenhuma mulher.

Vimos, no início deste trabalho, como na origem de Don Giovanni foi

assimilado um tema popular de fundo moral e religioso, associado à profanação dos

mortos, chamado convite macabro ou duplo convite. Esse tema, diluído ao longo do

tempo, ainda ecoa nas versões de Molière e Lorenzo da Ponte. No primeiro, de uma

forma artificial e abrubta, já que o autor, além de ter sido influenciado pela Comédia

dell’Arte, aproveitou a popular história de Don Juan como pretexto para fazer uma

crítica à sociedade da época, sendo o seu principal alvo a hipocrisia moral, de inspiração

religiosa. Mas Lorenzo da Ponte e Mozart recuperam, mesmo que de forma ambígua e

atenuada, o fundo religioso da história do sedutor, realizando uma integração mais

orgânica do convite macabro, embora se deva reconhecer que o libretista possivelmente

apenas incorporou uma situação dramática tradicional e capital do enredo, sem

necessariamente atentar para a sua origem popular e supersticiosa.

Na versão de Saramago, o convite macabro é apenas uma reminiscência evocada

pelas palavras do Comendador: “Convidaste-me a jantar e aqui me tens” (p. 28). Isso

decorre da opção do escritor em começar a sua peça por onde terminaram as principais

versões, com o objetivo de subverter os cânones tradicionais, ou, na expressão de Azio

Corghi, dar uma reviravolta ao arquétipo cultural. Com efeito, a cena inicial da peça de

Saramago corresponde à última de Lorenzo da Ponte, quando o Comendador,

comparecendo ao jantar, a convite do sedutor, entra na casa de Don Giovanni e lhe

Conservatório de Registro Civil; Camões, protagonista da peça teatral Que farei com este livro?, é um homem a entrar na velhice; o jornalista Torres, da peça A noite, diz que vai pra velho.

81

inflige o castigo infernal – a rigor, há ainda uma última cena, na qual se extrai uma

espécie de moralidade, como nas versões de Molina e de Molière.138

Saramago evoca a gravidade do desenlace trágico da ópera setecentista ao fazer

a estátua pronunciar seqüencialmente: “Aqui estou”, “aqui me tens”, “O dia é hoje” (p.

28-9). Mas a reviravolta do arquétipo cultural começa imediatamente após essa entrada

solene do Comendador, seguindo-se um diálogo em que o humor desestabiliza aquela

atmosfera139:

COMENDADOR: O dia é hoje. DON GIOVANNI: Como queiras. Mas senta-te, por favor, não gosto de ver ao meu lado pessoas mais altas do que eu. COMENDADOR: Não posso sentar-me. DON GIOVANNI: Porquê? COMENDADOR: Uma estátua tem de ficar para sempre como a fizeram. A mim fizeram-me em pé, por isso não me posso sentar. É uma questão de articulações. DON GIOVANNI: Vais estar em pé por toda a eternidade? Isso cansará muito, suponho. COMENDADOR: Não sei. A eternidade, para mim, só agora é que começou.

Ressalte-se que, no texto de Lorenzo da Ponte, não há, nem poderia haver, gracejos

entre Don Giovanni e o Comendador; apenas a covardia ostensiva de Leporello, aqui

ausente da cena, constitui-se num tênue contraponto à gravidade da situação.

A estátua ainda tenta reassumir a sua função moralizante e exige o

arrependimento do pecador. Acusado de ter violado a filha do Comendador, Don

Giovanni nega a consumação da burla e a tentativa de violação, esclarecendo que Dona

Ana descobrira a tempo não se tratar do noivo Don Otávio140, “a quem pelos vistos,

costuma receber no seu quarto, às ocultas do pai. Ou tu sabias, e calavas? Também por

respeito?” (p. 33). O mais importante dessa fala de Don Giovanni é a introdução da

138 No libreto de Da ponte, não há duplo convite (forma completa e original do tema folclórico), pois o Comendador inflige a morte a Don Giovanni já no primeiro jantar, na casa do pecador. Na peça de Tirso de Molina, o castigo é imposto ao impenitente junto à tumba do Comendador, pois o tema folclórico foi incorporado na sua versão completa. Na de Molière, há o segundo convite, mas Don Juan não comparece e a estátua retorna à casa do sedutor e lhe inflige o castigo. Tanto Molina como Molière também inserem uma última cena, na qual se extrai uma moralidade, irônica no caso do dramaturgo francês. 139 No pósfácio do livro, Graziela Seminara revela que a música de Azio Corghi reforça essa situação. Aliás, o tema musical do Comendador se reveste de um espírito carnavalesco que, junto com o texto, corrói a autoridade e a imponência da personagem. Cf. SEMINARA (2005), p.107. 140 Em Molina e Lorenzo da Ponte, Don Giovanni toma o lugar do noivo e é repelido por Dona Ana. Em Molière não há o episódio, pois Dona Ana sequer existe.

82

glosa à hipocrisia, ponto de contato entre o texto de Saramago e o de Molière. Só que

agora o Comendador representará metonimicamente a hipocrisia social e religiosa,

diferente da versão francesa, onde a personagem é inconsistente, não tendo outra função

senão a de castigar o libertino. As imprecações do Comendador, “És um miserável

pecador, mereces ser castigado” (p.33) e “Arrepende-te” (p.34), Don Giovanni revida

assim:

Nunca perante ti, hipócrita. Conheço bem os da tua espécie. Andais pela vida a distribuir palavras que parecem jóias e afinal são enganos, colocais com fingido amor a mão sobre a cabeça das criancinhas, desviais das tentações da carne os vossos olhos falsamente pudicos, mas lá por dentro roei-vos de despeito, de ciúme, de inveja. Alimentais-vos da vossa própria impostura e quereis fazê-la passar por virtude sublime. A gente como vós cospe-a Deus da Sua boca.

Além de se aproximarem das proferidas pelo Don Juan de Molière, essas

palavras nos trazem à memória outros textos de Saramago, como aquele em que o

narrador de História do cerco de Lisboa ironiza os ciúmes do revisor Raimundo Silva,

que imagina uma cena não acontecida entre Maria Sara e o diretor literário da editora:

“Foi só um apalpão, senhor revisor, foi apenas um beijo, senhor revisor. Não importa,

foi de mais, em nome da minha própria e incurável inveja vos condeno, (...) o mais

provável é estarem a rir-se do moralista hipócrita” (HCL, p. 148).

Se o Comendador não chega a ser o vigarista alcoviteiro da narrativa de Gonzalo

Torrente Ballester, que também faz uma severa crítica à hipocrisia, pelo menos sua

imponente exemplaridade se esvaiu, preparando o terreno para o novo horizonte da

tradicional história. É pela interversão da situação dramática, uma das figuras da

intertextualidade apontadas por Laurent Jenny, que Saramago assenta esse novo

horizonte, modificado “o esquema das ações da narrativa recuperada”.141 Antes, porém,

a peça parece inclinar-se para o mesmo desfecho trágico, o que servirá para evidenciar a

reviravolta do arquétipo:

141 JENNY (1979), p. 42.

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COMENDADOR: Não sabes nada de Deus, incrédulo, não ofendas o Seu santo nome. Fica-te com o teu único senhor, fica-te com o Demónio. Ao inferno, maldito. DON GIOVANNI: A minha hora ainda não chegou, e se o meu destino for realmente o inferno, espero, se há justiça, encontrar-te lá quando entrar. COMENDADOR: A tua justiça não é a de Deus, eu já estou no paraíso. Pela última vez, arrepende-te. DON GIOVANNI: Não. COMENDADOR: Arrepende-te. DON GIOVANNI: Não. COMENDADOR: Assim o quiseste, assim o terás. Que as portas da morada do Demônio se abram então para ti, que te abrasem as chamas do castigo eterno, que sofras mil anos de torturas por cada uma das vítimas da tua concupiscência. Vai, maldito, o inferno espera-te, tu já não és deste mundo. Vai! (p. 34-5)

A estátua de bronze, cada vez mais irada diante do seu fracasso e das galhofas de

Don Giovanni, repete duas vezes a imprecação “Vai!” e, com desespero, tenta ainda

uma última vez: “Vai, maldito, vai! Ordeno-te que vás!” (P.36), enquanto as marcações

cênicas vão informando ao leitor sobre as chamas que, como nas obras de Molina,

Molière e Mozart, ameaçam tragar o protagonista. Só que na versão de Saramago elas

vão diminuindo até se transformarem, na última maldição, numa insignificante labareda,

que logo desaparece. Enfim, a estátua, contrariando a tradição, fracassa na sua tentativa

de infligir a condenação eterna ao impenitente, que, rindo às gargalhadas, ironiza:

“Acabou o gás” (p. 36).

O esquema da ação foi modificado, não se efetivando a punição, consumada no

texto recuperado. Ao alterar o desfecho da cena – ou, em outras palavras, ao “re-

enunciar de modo decisivo certos discursos cujo peso se tornou tirânico”142 –,

Saramago, além de operar a interversão acima indicada, impõe um novo significado ao

texto, produzindo o que o teórico chama de “desvio cultural” da intertextualidade:

Repetir para delimitar, para fechar num outro discurso, (...) Sendo o esquecimento, a neutralização dum discurso impossíveis, mais vale trocar-lhe os pólos ideológicos. (...) Abre-se então o campo duma palavra, nova, nascida das brechas do velho discurso, e solidária daquele. Quer queiram quer não, esses velhos discursos injectam toda a sua força de estereótipos na palavra que os contradiz, dinamizam-na. A intertextualidade fá-los assim financiar a sua própria subversão.143

142 Ibidem, p. 44. 143 Ibidem, p. 44-5.

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Laurent Jenny observa que as interversões são encontradas, “particularmente, na

intertextualidade parodística”.144 E é em geral pela paródia que Saramago quebra “a

argila dos velhos discursos”145, não sendo diferente nesta peça teatral. É de forma

paródica, por exemplo, que a personagem do Comendador é retomada no texto de

Saramago, identificando-se nesse processo uma outra forma de interversão, a de

qualificação: a personagem é qualificada antiteticamente, passando de imponente

vingador da moralidade, portador da justiça divina, à impotente amaldiçoador,

representante da hipocrisia social e religiosa. Ao ser ridicularizado, junto com os valores

que ele representa, o Comendador perde a sua solenidade e ganha uma jocosidade que o

acompanhará pelo resto da peça. O contrário ocorre com Don Giovanni, também

especial objeto de tal interversão, conforme o projeto do autor:

O importante é a dignidade de quem é capaz de dizer NÃO quando não só a sua vida mas também a salvação da sua alma se encontram em perigo. É certo que Don Giovanni é um fraco com as mulheres, mas “compensa-o” bem com a sua força ética no momento em que é tentado pela facilidade hipócrita do perdão. Estamos perante um paradoxo: Don Giovanni, o sujeito imoral por excelência, é um homem fiel à sua própria responsabilidade ética.146

Essa idéia do autor suscita uma questão instigante, mas que deixaremos para

abordar adiante. Voltemos, por ora, ao confronto entre Don Giovanni e o Comendador,

cada um representando um tipo de discurso bem delimitado. Avançando para a segunda

cena, Don Giovanni diz consigo mesmo: “O pobre velho ainda era dos que acreditavam

no poder justiceiro das maldições” (p. 43). E logo adiante, dirigindo-se à estátua,

interpela: “Ainda crês na existência do inferno?” (p. 43). Na mesma seqüência, parece

que estamos a ouvir o próprio autor pela boca de Don Giovanni, o qual, após afirmar

que “a morte dos malvados não é para o inferno que se abre, mas para a impunidade” (p.

43), reafirma o novo horizonte proposto:

Se queres saber a minha opinião, o ser humano é livre para pecar, e a pena, quando a houver, aqui, ouves-me?, aqui na terra, não no inferno, só virá dar razão à sua liberdade. Nunca se

144 Ibidem, p. 41. 145 Ibidem, p. 48. 146 SEMINARA (2005), p. 96.

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pronunciaram palavras mais vãs do que quando se disse: “Deus te dará o castigo.” Seria para chorar se não fosse para rir. (p. 44)

O Comendador não argumenta, apenas tenta invocar a sua antiga autoridade,

aquela que, junto à sua sepultura e diante dos risos do imoral sedutor, ainda tinha no

libreto de Lorenzo da Ponte, ao qual o leitor é remetido pelo aproveitamento da frase na

forma e no idioma original: “Di rider finirai prima dell’ aurora” (p. 44). A inadequação

do enunciado é apontada por Don Giovanni, que aproveita para, mais uma vez, troçar do

Comendador: “Veremos. O último a rir será sempre o que ri melhor. Tu já estás fora da

comédia. Não passas de um adereço” (p. 44). Repetida a sentença, nova galhofa:

“Nunca te disseram que a repetição faz perder o efeito dramático?” (p. 44).147

Dominique Maingueneau salienta que “Confrontado a indícios pertinentes, o

leitor ativará o roteiro correspondente, se a sua familiaridade com o intertexto literário

for suficiente. Disso resulta que o percurso de leitura será muito variável”.148 Então,

além de conhecer a ópera de Mozart/Da Ponte, melhor seria se o leitor também

conhecesse o texto e o contexto de Tirso de Molina, a fim de integrar à sua

interpretação, realçando dessa maneira o contraste existente na peça de Saramago, todo

o peso do discurso moralizante e religioso do frade espanhol.

Como sintetizou Graziella Seminara, “A laicização do universo de Don

Giovanni, a reintegração dos temas essenciais da responsabilidade moral, da culpa e do

castigo no horizonte existencial da pessoa humana acabam por constituir, portanto, um

nó central da releitura saramaguiana do mito”.149 A laicização do universo de Don

Giovanni é percebida logo nas primeiras cenas, quando as falhadas chamas não são

capazes de tragar o antigo burlador, expondo o anacronismo do Comendador (“O pobre

velho ainda era...”), representante da ordem religiosa antiga, que pressupunha, como no 147 Esses dois enunciados de Don Giovanni são uns dos poucos exemplos de metalinguagem da peça. Embora não sejam reflexões sobre a sua própria produção, muito comuns em Saramago, o escritor não deixa, pelo menos, de jogar com as regras do gênero. 148 MAINGUENEAU (1996), p. 50. 149 Ibidem, p. 100.

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tempo de Molina, a ampla crença na condenação eterna e no fogo do inferno.

Subvertendo o cânone religioso da peça do século XVII, que subjaz ambiguamente na

ópera setecentista, Saramago institui um novo contrato de leitura: as maldições e todo

tipo de discurso apoiados na dimensão sobrenatural perderam a legitimidade, impondo-

se agora o discurso laico, centrado no homem, do qual Don Giovanni é o portador.

Como em O evangelho segundo Jesus Cristo, são os pilares da tradição judaico-

cristã que estão a ser confrontados, como as noções de pecado, punição e

arrependimento. Semelhante àquele romance, nesta peça também o que se afirma é a

liberdade e a responsabilidade humanas. O que conta não são os duvidosos desígnios

divinos, tão indecifráveis e contraditórios que nem os seus mais credenciados

intérpretes são capazes de explicar coerentemente, como o escriba do Templo de

Jerusalém. Como disse o inconformado israelita ao escriba, “Só o querer do homem é

verdadeiro querer” (EJC, p. 171). O que conta mesmo é a vontade dos homens, a que

está na hóstia consagrada, que move o mundo, sustenta as estrelas e faz voar a passarola

no Memorial do convento. 150

Como vimos mais acima, para Saramago, o seu protagonista possui a dignidade

e a responsabilidade ética de quem “é capaz de dizer NÃO quando não só a sua vida

mas também a salvação da sua alma se encontram em perigo”. É a mesma dignidade

que, em O evangelho segundo Jesus Cristo, anima a figura do Mau Ladrão, “rectíssimo

homem afinal, a quem sobrou consciência para não fingir acreditar, a coberto de leis

divinas e humanas, que um minuto de arrependimento basta para resgatar uma vida

inteira de maldade ou uma simples hora de fraqueza” (EJC, p. 10-1). Como parecem

próximas as palavras do Don Juan de Zorrlla: “Impossível! Em um momento/apagar

trinta anos malditos/de crimes e delitos” (ZORRILLA, p. 164).151 Ou estas do

150 Cf. SILVA (1989), p. 60. 151 No original: “¡Imposible! En un momento/borrar treinta años malditos/de crímenes y delitos!”

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protagonista de Gonzalo Torrente Ballester: “não posso cometer um homicídio com o

propósito de me arrepender em seguida. Seria uma hipocrisia inútil, uma fraude”

(BALLESTER, p. 174).152 Porém, mais do que demonstrar um fundo comum entre a

criação de Saramago e a desses dois escritores espanhóis (inexistente, no caso de

Zorrilla), o que se quer no momento é discutir a questão do arrependimento na história

do nosso herói.

Ao primeiro Don Juan não foi concedida a oportunidade do arrependimento,

pois o sentido moralizante da peça de Tirso de Molina assentava sobre o argumento

teológico contra-reformista, segundo o qual o arrependimento, sem as boas obras, não é

capaz de redimir os pecados. Ao ser surpreendido ainda jovem pelo castigo divino, Don

Juan pede que o deixem chamar quem o confesse e absolva, recebendo da estátua do

Comendador a definitiva resposta: “não há tempo; já acordas tarde” (MOLINA, p.

241).153

Já a partir de Molière esse argumento teológico é anulado pela introdução da

possibilidade do arrependimento redentor. Enquanto o protagonista de Molina quer se

arrepender e não pode, os de Molière e Lorenzo da Ponte podem e não querem, assim

como o Don Giovanni de Saramago. Só que nas obras daqueles escritores o que anima a

recusa do sedutor é o seu orgulho, herança daquele primeiro “gran burlador de España”.

É o que se depreende, por exemplo, das seguintes palavras dos protagonistas,

respectivamente, de Molière e Lorenzo da Ponte: “Não, não, aconteça o que aconteça,

152 No original: “no puedo cometer un homicidio con el propósito de arrepentirme luego. Sería una hipocresía inútil, una trampa”. 153 No original: “No hay lugar; ya acuerdas tarde”. Lembremos do enunciado constantemente repetido “Tan largo me lo fiáis”, que significava a crença do protagonista na possibilidade de redenção com o simples arrependimento na velhice.

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ninguém poderá dizer que o meu orgulho cedeu ao meu arrependimento”154 e “Jamais,

em tempo algum, qualquer pessoa teve motivos para me acusar de covarde”.155

Muito diversa é a postura do Don Giovanni de Saramago: “... o ser humano é

livre para pecar, e a pena, quando a houver, aqui, ouves-me?, aqui na terra, não no

inferno, só virá dar razão à sua liberdade” (p. 44). A diferença entre ele e seus

antepassados – os de Molière e Da Ponte – não é o fato de se negar ao arrependimento,

mas aquilo que o inspira a isso: “a dignidade de quem é capaz de dizer NÃO quando

não só a sua vida mas também a salvação da sua alma se encontram em perigo (...) a sua

força ética no momento em que é tentado pela facilidade hipócrita do perdão”. Porém,

conquanto sobressaiam no texto a dignidade e a responsabilidade ética apontadas por

Saramago na sua personagem, cremos ser problemática a concretização de tal idéia. Em

primeiro lugar, porque Don Giovanni agora desdenha de forma ostensiva da punição

divina. É verdade que ele profere frases como estas, dirigidas ao Comendador: “A gente

como vós cospe-a Deus da Sua boca” (p. 34) e “se o meu destino for realmente o

inferno, espero, se há justiça, encontrar-te lá quando entrar” (p. 34-5). Mas a ironia

dessas palavras é reforçada quando as comparamos a estas outras, que parecem fixar o

ateísmo da personagem: “Nunca se pronunciaram palavras mais vãs do que quando se

disse: ‘Deus te dará o castigo’” (p. 44). Então, essa circunstância tende a não colocar no

horizonte do protagonista a questão da salvação da sua alma. Em segundo lugar, Don

Giovanni também não acredita mais em maldições, como já visto, o que retira da estátua

do Comendador o poder de ameaçar a sua vida.

154 MOLIÈRE (1997), p. 130. Isso é o que diz Don Juan quando o espectro de uma mulher, incitando-o a aproveitar a misericórdia divina, exige-lhe o arrependimento, na cena imediatamente anterior ao desfecho trágico. Note-se que não é a estátua do Comendador que oferece a possibilidade de arrependimento. 155 DA PONTE (1991), p. 145. É o que diz Don Giovanni quando a estátua o convida para jantar em sua sepultura. Entretanto, não haverá novo encontro, pois já na mesma cena o pecador é lançado às chamas infernais.

89

Cremos identificar na versão de Gonzalo Torrente Ballester a concretização mais

cabal dessa idéia de Saramago. Isso e o fato de os dois escritores possuírem perspectivas

semelhantes foram motivos determinantes para que a trouxéssemos a este trabalho. Um

ponto de contato pode ser percebido na caracterização dos protagonistas, pois ambos

desprezam o homem que disfarça o pecado sob a capa de uma aparente virtude. Se não

chegamos a afirmar que o Don Giovanni de Saramago recusa, como o Don Juan de

Ballester, o arrependimento hipócrita, é pelos mesmos motivos expostos no parágrafo

anterior, ou seja, se a estátua não é representante de Deus, ela não pode conceder o

perdão. Mas, em ambas as versões, também os papéis das duas principais personagens

foram trocados: o sedutor é marcado pela dignidade e responsabilidade ética, enquanto

o Comendador representa a hipocrisia. Mas o mais relevante é que tanto Ballester

quanto Saramago destacam a questão da responsabilidade e da liberdade humanas,

apesar de o primeiro o fazer no âmbito das doutrinas cristãs, problematizando-as,

enquanto José Saramago as contesta integralmente.156 E, do mesmo modo que o Don

Giovanni de Saramago reivindica a liberdade do homem para pecar, o Don Juan de

Ballester, apesar de animado pelo desmedido orgulho dos Tenorios, afirma que “ante

esta prova da minha liberdade, e por ficar bem para Deus, elejo desde agora mesmo o

pecado” (BALLESTER, p. 235-6).157 E o sustentará sempre, tendo a dignidade de dizer

NÃO quando – agora com certeza, pois é um crente fervoroso e profundo conhecedor

da teologia – a salvação da sua alma se encontra em perigo. Enfim, a proposta do

escritor espanhol também se assemelha à de Saramago relativamente ao castigo, pois

Don Juan, abandonado por Deus e pelos demônios, terá que cumprir a sua pena aqui

156 Assim como não o fizemos em relação à obra do escritor espanhol, também não ousamos tentar descobrir na versão de Saramago influências do existencialismo ateu de Jean-Paul Sartre. Registre-se apenas que o pensamento de Saramago, como o do filósofo francês, é marcado, condicionando o conjunto da sua produção, pela idéia de responsabilidade e liberdade humanas, excluída a possibilidade de aliená-las a um Deus inexistente, ou cruel, como em O evangelho segundo Jesus Cristo. 157 No original: “ante esta prueba de mi libertad, y por dejar quedar bien a Dios, elijo desde ahora mismo el pecado”.

90

mesmo na terra: “Morri como Don Juan, e o serei eternamente. O lugar onde o seja, que

importa? O inferno sou eu mesmo” (BALLESTER, p. 350).158

É curioso notar que as visões tão opostas de Tirso de Molina e de Saramago se

tocam pelo menos na negação ao arrependimento de última hora. Mas em História do

cerco de Lisboa temos um bom exemplo do que o segundo pensa sobre as boas obras

pregadas pela igreja católica: “Que o melhor pago, meu senhor, é no céu que está, e lá,

para conquistar a cidade do paraíso, outras torres se necessitam, as das boas obras, como

esta que nos prometemos de não deixar aqui um mouro vivo se se obstinarem na teima

de não se renderem” (HCL, p. 280).

3.2.3 – Cenas 3 e 4: o castigo terreno

Assentado o novo horizonte da ação, à estátua do Comendador resta unir-se às

vítimas dos ultrajes de Don Giovanni, as quais, sob a liderança de Dona Elvira, lançam-

se à vingança nas cenas três e quatro da peça. Mas antes da entrada da esposa

abandonada em cena, a estátua continua sendo alvo de galhofas, agora do criado de Don

Giovanni, em cuja fala identificam-se dois procedimentos característicos da escrita de

Saramago, sendo eles o aproveitamento de frases feitas (na forma definida pelo revisor

Raimundo Silva em citação anterior) e a enunciação profética: “Agora que estamos

sozinhos, com as paredes por únicas testemunhas, e uma vez que, contrariamente ao

dito, elas não terão ouvidos enquanto não forem inventados os microfones, dá-me Vossa

Comendadoria licença que lhe faça uma pergunta?” (p. 53). No diálogo abaixo, a

repetição do inusitado e pretensamente respeitoso pronome de tratamento já instila uma

158 No original: “He muerto como Don Juan, y lo seré eternamente. El lugar donde lo sea, ¿ qué más da? El infierno soy yo mismo”.

91

intenção irônica, que se completa com o contrastante conteúdo dos enunciados de

Leporello:

LEPORELLO: Com todo o respeito que devo a Vossa Comendadoria, tenciona a estátua de Vossa Comendadoria ficar em casa do meu patrão para sempre? COMENDADOR: E a ti, imbecil, que te interessa? Por que queres tu sabê-lo? LEPORELLO: É que se Vossa Comendadoria veio para ficar, então eu rogaria à estátua de Vossa Comendadoria, por alma de quem lá tenha, o favor de se afastar um pouco para aquele lado porque está a empatar o caminho COMENDADOR: Semelhante atrevimento, semelhante insolência não se pagariam nem com cinqüenta chicotadas. A ti o que te vale é eu estar morto. LEPORELLO: Felizmente, senhor. (p. 54)

Quando Dona Elvira entra em cena, traz um embrulho nas mãos, segundo

informação do autor. Depois de contracenar brevemente com Leporello e em seguida

com a estátua159 – quando se apresenta com “Uma das pobres vítimas de Don Giovanni”

(p. 57) –, Dona Elvira, parecendo ser a mesma mulher disposta ao perdão, reivindica o

amor do pérfido sedutor:

DONA ELVIRA: Dás-me a vida se me devolves o teu amor, rouba-la se não me recebes nos teus braços. DON GIOVANNI: E na minha cama. DONA ELVIRA: Sim, na tua cama. Recorda as horas deliciosas que gozámos na minha, ouvindo os sinos da catedral de Burgos. Não posso ouvir um sino sem me arrepiar toda. DON GIOVANNI: Cuidado com as expansões. Esse senhor que aí está, mal-encarado, pertence à seita dos puritanos ortodoxos. Quanto a nós, já te disse que está tudo acabado. DONA ELVIRA: Queres que te implore de joelhos? Queres que me arraste aos teus pés? O amor aceita tudo, e eu amo-te. (p. 59-60)

Mas Don Giovanni intui bem ao dizer, antes de se retirar, que “Noutro tempo, talvez

sim, mas agora os teus discursos soam a falso” (p. 60). O leitor, que já vinha sendo

alertado para a artificialidade da personagem pelas marcações cênicas, é agora

informado de que o mal-estar de Dona Elvira, após a saída de Don Giovanni, é apenas

fingimento. Na verdade, o fingido mal-estar – ou o fanico, como dirá posteriormente

Leporello – é um estratagema para afastar o criado, a quem pede água e sais, 159 O diálogo entre Dona Elvira e a estátua do Comendador tem aspectos interessantes, porém secundários, que preferimos referir nesta nota. 1) A seguinte frase de Dona Elvira reforça o anacronismo da presença do Comendador, resgatando ao mesmo tempo a afirmação de Don Giovanni de que a estátua estava fora da comédia, resumindo-se a um adereço: “Realmente tinha-me parecido que era uma estátua, mas pensei que fazia parte da decoração” (p. 57). 2) Reforça-se a perda da mejestática expressão do Comendador: “Tal como a minha filha. Dona Ana na sociedade, Aninhas para a família” (p. 57). 3) Inserção de um costume anacrônico: “É o que sucede quando não se lêem os jornais todos os dias” (p. 58). 4) Reforça-se o anacronismo da maldição quando o Comendador diz que seus métodos estavam desatualizados e Dona Elvira confirma: “Isso foi chão que deu uvas, Comendador” (p. 59).

92

permitindo-lhe, sob a cumplicidade do Comendador, substituir o catálogo das

conquistas amorosas por um livro igual, conteúdo, afinal, do embrulho que trazia.

Completada com sucesso a primeira parte do premeditado plano de vingança, a

dissimulada mulher desenrola cinicamente um rançoso discurso de amor desiludido,

recheado de clichês, que acentuam o tom afetado: “Vou-me embora para sempre.

Murchas, deixo aqui as minhas esperanças, caducas, as minhas ilusões. A vida deixou

de ter sentido para mim. Quem sabe? Talvez vá acabar os meus dias num convento” (p.

62). A artificialidade das suas palavras, seguida da sua dramática saída, mereceu a

seguinte observação irônica de Leporello: “Desconfio que se fosse actriz ninguém a

chamaria para lhe oferecer um contrato...” (p. 62).160

Convocamos com detalhes a atuação de Dona Elvira para demonstrar que

também sobre ela incide a interversão de qualificação. Ela não é mais aquela inocente

criatura, na qual, como vimos, Saramago nunca acreditou. Devemos ressaltar, porém,

que o desejo de vingança é uma das marcas da personagem desde Molière, responsável,

senão pela sua criação, pela sua assimilação na história do sedutor. No texto do

dramaturgo francês, entretanto, Dona Elvira, que tem apenas duas participações, termina

por perdoar o traidor e, antes de se retirar para um convento161, suplica-lhe o

arrependimento. Na ópera de Mozart/Da Ponte, a personagem é muito mais complexa,

dividida entre o desejo de vingança e o amor, como é exposto em um dos seus

recitativos:

Ah, não, a cólera dos céus e a justiça não podem tardar! Posso antever o golpe fatal, desabando como um raio sobre a cabeça dele, e um abismo se abrindo diante dos seus passos. Pobre Elvira! Que sentimentos contraditórios estão em conflito na tua alma! Por que esses suspiros e essa angústia? (DA PONTE, p. 121)

160 Leporello ainda complementa: “Que opina Vossa Comendadoria sobre a representação de Dona Elvira? Pareceu-lhe sincera?”, seguindo-se a pergunta da estátua: “Sincera como representação, ou como realidade?”, a qual tem esta resposta: “Como representação, a realidade não conta aqui pra nada” (p. 62). Mais uma vez, o texto joga com elementos da arte cênica. 161 Na peça de Molière a ida para um convento é subentendida, pois a personagem diz que foi tocada pelo Céu e que se retirará do mundo. Aliás, ela se transforma em mensageira do Céu, advertindo Don Juan sobre o iminente castigo.

93

Apesar de denunciar a Dona Anna e a Don Ottavio a impostura de Don Giovanni, a

dilacerada mulher é realmente uma inocente criatura, pronta para acreditar em todos os

embustes do amado. A contradição dos sentimentos de Dona Elvira continua até o fim,

quando, depois da morte de Don Giovanni, ela diz que terminará os seus dias em um

convento.

Na altura em que paramos da peça de Saramago, já era clara a impostura, não do

sedutor, mas de Dona Elvira e a certeza de que a possibilidade de sua ida para um

convento era apenas uma irônica referência à fala da infeliz personagem de Lorenzo da

Ponte. A contradição de seus sentimentos está presente apenas no prólogo da peça, no

seguinte diálogo, que antecede a retomada da “ária do catálogo” por Leporello:

DONA ELVIRA: Vou-me embora. LEPORELLO: Não vá, senhora. Deixe que lhe explique melhor o que está no livro. DONA ELVIRA: Não quero. LEPORELLO: Tem medo de sentir ciúmes? DONA ELVIRA: Não. LEPORELLO: Ou sim? DONA ELVIRA: Não. Talvez. Sim. (p. 22)

A contradição dos sentimentos de Dona Elvira na abertura da peça insere-se, todavia, na

estratégia sugerida por Azio Corghi de aceitar o déjà vu, não se confirmando como uma

característica da nova personagem, que agora é plana, movida apenas pelo desejo de

vingança. Dela, ninguém poderia dizer, por exemplo, o que dizem Dona Anna e Don

Ottavio na ópera de Mozart/Da Ponte: “Céus, quanta nobreza! Quanta doçura e quanta

majestade! Esta palidez e estas lágrimas me enchem de piedade” (DA PONTE, p. 55).

Função concedida à filha do Morto naquela ópera, agora é Dona Elvira quem organiza

as forças da vingança, desta vez indubitável e definitivamente terrenas.

Ao retornar à casa de Don Giovanni, Dona Elvira traz Dona Ana e Don Otávio,

personagens aqui bastante esvaziadas, embora com a importante função, principalmente

a filha do morto, de corroborar e testemunhar o que fora planejado pela primeira. Dona

Ana parece querer apresentar-se com a antiga solenidade que caracterizava a

94

personagem de Lorenzo da Ponte, suscitando, contudo, o riso dos leitores ao se dirigir

nestes termos à estátua do Comendador: “Pai, meu querido e chorado pai, por que foi

que vieste do campo-santo a este antro ignóbil onde a maldade se multiplica como a

rainha da colmeia às abelhas? Que foi que te fez abandonar o silêncio e a fatal

imobilidade da morte?” (p. 73). Reforçando a afetação e a inadequação dessas palavras,

o tom mudará radicalmente logo em seguida, quando, depois de a estátua reafirmar a

desatualização dos seus métodos, frustrando o objetivo que o levara a casa de Don

Giovanni, o plano de vingança se revela quase inteiro:

DONA ANA: Enganas-te, pai, o inferno existe mesmo. Don Giovanni não precisará de morrer para cair no inferno, o inferno será a sua própria vida a partir deste momento. COMENDADOR: Que queres dizer? Dás-me uma alma nova! DONA ANA: Elvira, minha amiga, conta-me, alguma vez amaste a Don Giovanni? DONA ELVIRA: Não. DONA ANA: Alguma vez foste para a cama com ele? DONA ELVIRA: Nunca. DONA ANA: Ele afirma que sim. DONA ELVIRA: Mente. DON GIOVANNI: Que comédia é esta? Aonde quereis chegar, demónios? DONA ELVIRA: Ana, minha amiga, conta-nos agora o que realmente se passou no teu quarto. DONA ANA: Ao princípio, pensei que se tratava do meu noivo, Don Octávio aqui presente, e o desejo dispôs-me logo para os jogos do amor, mas não tardei muito a aperceber-me de que o homem que me apertava nos braços era impotente. Ora, devo esclarecer, com o meu saber de experiência feito, que o meu Don Octávio, de impotente, não tem nada. Empurrei de cima de mim o desgraçado e então vi quem era. O resto já sabem. Fugiu, meu pai cortou-lhe o passo e isso custou-lhe a vida. Para matar um velho, Don Giovanni ainda serviu, mas não para levar uma mulher ao paraíso. (p. 73-4)

A última intervenção de Dona Ana evoca um conjunto de enunciados de sua

antecessora dapontiana. Mas Saramago retoma o texto anterior parodicamente,

rasurando o recato suposto na personagem da ópera setecentista. Se não falamos de

qualificação antitética em Dona Ana é porque, além de ser agora uma personagem

totalmente esvaziada, ela nunca foi exatamente uma inocente criatura. Mesmo que se

lhe queira descobrir um amor latente por Don Giovanni, Dona Ana é na célebre ópera a

encarnação do desejo de vingança.162 E, se no texto de Da Ponte há um recato suposto

162 Como ressalta Jean Rousset, entre os românticos houve a tendência em ver na personagem de Da Ponte um amor secreto por Don Giovanni. Embora afirme que essa interpretação extrapola o pensamento de Mozart, Rousset admite que na ópera Dona Ana e Don Giovanni parecem ligados por laços afetivos.

95

na personagem, muito diferente é na peça de Molina, onde já se insinuava o que agora

ela deixa claro com a convocação de um verso de Camões, o que não poderia mesmo

faltar em uma obra de Saramago: “Ora, devo esclarecer, com o meu saber de

experiência feito, que o meu Don Octávio, de impotente, não tem nada” (p. 74).

Dona Ana, agora, une-se a Dona Elvira na acusação: “A tua apregoada vida de

sedutor é que é uma falsidade do princípio ao fim, um invento delirante, nunca seduziste

ninguém, farejas como um cão fraldiqueiro as saias das mulheres, mas nasceste morto

entre as penas” (p. 75). Quando Don Giovanni pede a Leporello o catálogo, para atirar-

lhes “com a verdade à cara” (p. 76), suas páginas estão em branco, os nomes das

mulheres desapareceram. Burlado, esse é o castigo terreno do outrora burlador de

Sevilha. Fechando a quarta cena, o Comendador triunfante profere a sentença: “Agora,

sim, caíste no inferno” (p. 78). Essa frase confirma o que já havia dito Dona Ana: “Don

Giovanni não precisará de morrer para cair no inferno, o inferno será a sua própria vida

a partir deste momento” (p. 73). E os dois enunciados nos remetem para a conclusão do

protagonista de Ballester: “O inferno sou eu mesmo” (BALLESTER, p. 350).

O catálogo, portanto, é, no termo utilizado por Laurent Jenny ao definir o

processo intertextual denominado amplificação, um “tópoi” ampliado na nova versão, já

que a sua presença era pontual no texto de Lorenzo da Ponte. Mas, conquanto sem

conseqüências para a trama, esse elemento foi alçado pela ópera setecentista a símbolo

das extravagantes conquistas amorosas de Don Giovanni, o que tornou possível ser a

troca dos livros o instrumento de punição do sedutor e a convocação da “ária do

catálogo”, no prólogo da peça, a forma de suscitar o déjà vu proposto por Corghi.

Saramago, nesse sentido, transforma o “texto original por desenvolvimento das suas

Camen Becerra Suárez, por sua vez, formula a hipótese de Hoffmam, entre outras razões, ter descoberto o secreto amor de Dona Ana na sua resposta a Don Ottavio, que depois da morte de Don Giovanni pede que ela recompense o seu amor: “Meu querido, agora, preciso de apenas um ano para consolar o meu coração” (DA PONTE, p. 151). O que a teria inspirado não foi o luto pelo pai assassinado, mas por Don Giovanni.

96

virtualidades semânticas”163, fazendo sua peça girar em torno do famoso e simbólico

livro.

Antes de passarmos para as últimas cenas, ainda queremos destacar que Don

Octávio também não foi poupado na peça de Saramago. Na apresentação do livro, o

autor diz que essa personagem “mal consegue disfarçar a cobardia sob as maviosas

tiradas que no texto de Lorenzo da Ponte vai debitando” (p. 15). A sua breve passagem

pela peça – três falas no total, uma delas em conjunto com as outras vítimas do

protagonista – parece pouco justificada, servindo apenas, mas de forma cabal, para a

concretização daquele pensamento do autor164:

DON GIOVANNI: Leporello, a minha espada. Vou matar um idiota que desde que isto começou não tem feito outra coisa que esconder-se atrás das saias da sua mentirosa amásia... DON GIOVANNI (para Don Octávio): Defenda-se, senhor! DON OCTÁVIO: Não cruzarei o ferro com um falso e um caluniador, seria envergonhar os meus antepassados. Não mancharei a minha honra. DON GIOVANNI: A minha espada é que vai ser manchada pelo teu sangue de poltrão. Se não te defendes, escarro-te na cara, miserável. Pode ser que com essa última provocação a tua honra se digne dizer-te o que é tua obrigação fazeres. Pela última vez te ordeno, defende-te! (p. 77)

Don Octávio está morto. Mas suas palavras, “... cada dia que vivas será como uma

morte para ti” (p. 76), as únicas que poderiam justificar o desafio sofrido, ainda

continuarão a pertubar Don Giovanni.

3.2.4 – Cenas 5 e 6: a absolvição

Não havíamos ainda mencionado, mas no final da segunda e da terceira cenas

irrompe na casa de Don Giovanni o camponês Masetto, personagem que no texto de

Lorenzo da Ponte é o alvo preferencial, ao lado de Leporello, das ameaças e dos

163 JENNY (1979), p. 39. 164 No libreto de Lorenzo da Ponte, Don Ottavio, embora bem mais desenvolvido, é pouco mais do que uma sombra de Dona Anna. Mas é a sua presença que impõe uma ameaça terrena ao sedutor, criando a atmosfera de um iminente confronto entre ele e Don Giovanni. Só que não há sequer o duelo: Don Ottavio permanece vivo e o sedutor é castigado pelo Céu.

97

“punhetaços” do protagonista, herança da Comédia dell’Arte, cuja influência ainda pode

ser sentida, na peça de Saramago, principalmente nas adjetivações – como “imbecil”,

“estúpido”. Apesar de ser uma personagem com um número significativo de

intervenções, a principal função do ciumento Masetto parece ser a de criar no leitor a

expectativa quanto à entrada em cena da sua amada Zerlina, mulher que, como na ópera

de Mozart/Da Ponte, o conquistador não lograra seduzir.165,

Em suas duas primeiras participações, Masetto fora à casa do sedutor em busca

da amada desaparecida. À pergunta de Don Giovanni, “Por que pensaste que a tua

Zerlina tinha vindo para aqui?” (p.45), o ciumento camponês responde: “Porque

enquanto existir Don Giovanni, tudo é possível” (p. 46). Mas Don Juan refuta, mais

adiante, a possibilidade de Zerlina tomar a iniciativa de vir ao seu encontro, insinuada

por Leporello:

LEPORELLO: O pobre Masetto, coitado, anda com a ideia fixa de que a sua Zerlina veio para aqui. Já são duas vezes que vem cá perguntar. Imagino que algum motivo ela lhe terá dado para que ele pense assim. DON GIOVANNI: Seja ele qual for, não a trouxe a esta casa. LEPORELLO: Até agora, senhor, até agora. DON GIOVANNI: Leporello, és um ignorante, não entendes nada de psicologia feminina. Uma mulher que se negou uma vez poderá não negar-se segunda, mas nunca o faria por iniciativa própria, esperaria até que a rodeassem de novas súplicas, de novas implorações, em suma, de novas manobras de sedução. Então, sim, içaria a bandeira branca que já tinha preparada. (p. 69-70)

Don Giovanni ainda guarda na memória as marcas de um tempo em que

“Transformadas em objeto de uso, de trabalho e de prazer, às mulheres cabia a

passividade e a subserviência”.166 É verdade que José Cardoso Pires alerta para o fato de

que o nosso herói, ao contrário de ser um representante da cultura marialva (à qual a

citação da professora Teresa Cristina Cerdeira se reporta), é uma ameaça aos valores

tradicionais. Contudo, para além de ter nascido na machista Espanha, e no século XVII,

165 No libreto de Lorenzo da Ponte, há a cena em que Don Giovanni tenta seduzir Zerlina, que quase cede à ousadia do conquistador. Quem contribui para o malogro da tentativa é Dona Elvira ao denunciar, também nesse caso, a impostura de Don Giovanni. Aqui, Zerlina é sempre citada, mas só aparece na quinta cena. 166 SILVA (2000), p. 214.

98

também é certo que Don Giovanni, em todas as suas típicas reencarnações, sempre se

deparou – e disto se aproveitou – com uma situação de inferioridade da mulher, cuja

honra sequer lhe pertencia, como ressalta Renato Janine Ribeiro no ensaio A política de

Don Juan.167 De qualquer forma, cabia ao homem a conquista, e Don Giovanni é o

conquistador por excelência.

As próprias palavras de Don Giovanni, acima transcritas, não indicam que ele

veja nas mulheres meras vítimas a serem subjugadas; não autorizam vermos nele um

representante da cultura marialva. Mas, conquanto menos escandalizada, a sua

perspectiva não está muito distante daquela que é glosada ironicamente pelo narrador de

A jangada de pedra, quando, diante da melindrosa questão de se saber como se

acomodariam os quatro companheiros na casa de Joaquim Sassa, Joana Carda diz que

ela e José Anaiço ficarão juntos: “...em verdade está o mundo perdido se já as mulheres

tomam iniciativas deste alcance” (JP, p. 163). Ainda na passagem acima transcrita, há

uma intenção irônica do autor, a qual, entretanto, só se completará mais adiante, quando

o dissoluto for absolvido.

Por enquanto, é a vez de o Comendador troçar do duvidoso sedutor: “Vencido,

Don Giovanni?” (p. 81). Mas não por muito tempo, pois entra finalmente em cena a

constantemente citada, e sempre ausente, Zerlina, para surpresa do sedutor:

DON GIOVANNI: Zerlina. Que fazes aqui? (Don Giovanni corre à porta, traz Zerlina pela mão.) DON GIOVANNI: Não esperava tornar a ver-te. (Mudando de tom.) Masetto tem andado à tua procura. Já veio duas vezes perguntar por ti. Não sei por que se lhe meteu na cabeça que poderias estar em minha casa... ZERLINA: Não precisa fingir, todos sabemos porquê. Tentou seduzir-me e eu estive a ponto de ceder. E ele teve medo de que eu tivesse vindo entregar-me por minha livre vontade. (p. 83)

Ao contrário do que diz Zerlina, nada indica que Don Giovanni estivesse a

fingir, mais um dado a reforçar a interversão de qualificação apontada anteriormente.

Em primeiro lugar, porque conhecemos a sua opinião sobre a possibilidade de Zerlina 167 Cf. RIBEIRO (1988), p. 14.

99

procurá-lo para entregar-se espontaneamente, o que é reforçado pela informação do

autor sobre o desconcerto do nosso herói imediatamente após aquela ousada fala da

humilde mulher. Em segundo lugar, porque Don Giovanni mostra-se dono de uma

integridade ética que não se restringe à sua postura diante da “facilidade hipócrita do

perdão”, postura, aliás, duvidosa, de acordo com a nossa interpretação anterior. Mas é o

que se percebe no caso do reencontro com Dona Elvira: ele não pretende divertir-se a

custa dela, como o protagonista de Lorenzo da Ponte, e tampouco lhe nega a

possibilidade de reconciliação no tom explicitamente afetado e irônico do herói de

Molière, que ainda tenta seduzi-la posteriormente (nas outras versões a esposa

abandonada não existe). Apesar de um certo sarcasmo anterior, ele diz francamente: “Se

não te retiras, terei de retirar-me eu. É inútil tudo quanto aqui se diga” (p. 60).

Embora o seu passado não seja negado, não se pode afirmar que esse novo Don

Giovanni tenha agido com a falta de escrúpulo que caracteriza especialmente o

protagonista de Tirso de Molina e que não é alheia nem ao de Molière nem ao de

Lorenzo de Ponte. A tentativa de burlar Dona Ana é o exemplo mais concreto, embora

não possamos comparar o episódio com a versão francesa, na qual Dona Ana sequer

existe. Com efeito, na peça de Molina, o burlador toma intencionalmente o lugar do

noivo168, que lhe confidenciara o encontro acertado. Na famosa ópera, ele age sob

disfarce e chega a ser acusado por Leporello de violentar a filha do Comendador.

Apesar de negar a consumação, Dona Ana confirma, mais adiante, a tentativa de

violação, o que pelo menos parece condizer com a sua enérgica e indignada reação

quando da ocorrência do fato, na primeira cena. Já o protagonista de Saramago não

toma o lugar de ninguém, não se disfarça, nem é acusado de tentativa de violação pela

mulher, não nos permitindo duvidar da sua resposta à acusação do Comendador: “Duas 168 Na peça de Molina, o noivo de Dona Ana é o Marquês de La Mota, amigo de Don Juan. Existe um Duque Octavio, que, entretanto, é amante da Duquesa Isabela. Don Juan também se passa pelo Duque ao burlar Isabela no palácio do rei de Nápoles, cena que abre a peça de Molina.

100

mil e sessenta e cinco disso a que chamaste faltas ou infâmias. Mas toma nota nessa tua

dura cabeça de que o estupro nunca foi uma actividade sexual do meu gosto. Don

Giovanni é um cavalheiro, não viola, seduz” (p. 33).

Saramago, nesse ponto, confere ao seu herói um perfil muito mais próximo do

arquétipo cultural, se comparado com as personagens das três mais importantes versões:

“Don Giovanni é um cavalheiro, não viola, seduz”. Parece ser essa a imagem que

importava ao autor imprimir no seu protagonista, pois, em entrevista ao jornal Folha de

São Paulo, ele justifica deste modo a absolvição de Don Giovanni: “Condeno, sim, a

hipocrisia pessoal e social que pretendia condenar um homem ao inferno só, como se

costuma dizer, por ter sorte com as mulheres”.169 Retirada a carga de embusteiro, o

herói parece mais apto à absolvição, o que ocorrerá pela intervenção de Zerlina. Mas foi

preciso que a camponesa soubesse da existência, da substituição e da destruição do

verdadeiro catálogo, para se decidir a procurar Don Giovanni. Esse, ao saber da trapaça

e da destruição do símbolo das suas viris empresas, exclama, deixando-se cair numa

cadeira: “Enganado! Miseravelmente enganado! (Mudando de tom) E então resolveste

vir aqui para te rires de Don Giovanni... Tu também” (p. 85).

Enganado estava o protagonista ao chegar a tal conclusão, pois Zerlina supera a

condição de vítima vingativa do agora decaído sedutor e exerce a solidariedade que

caracteriza especialmente as personagens femininas de Saramago170: “Não vim para me

rir de ti. Vim porque havias sido humilhado, vim porque estavas só, vim porque Don

Giovanni se tinha tornado de repente num pobre homem a quem haviam roubado a vida

e em cujo coração não restaria senão a amargura de ter tido e não ter mais” (p.85-6).

Também aquele seu irônico engano de negar à mulher a possibilidade de entregar-se

“por iniciativa própria” será agora desfeito. Invertem-se os papéis impostos – senão, no 169 Folha de São Paulo, caderno Ilustrada, 02 de abril de 2005. 170 Embora em outro contexto, a solidariedade é uma característica especialmente marcante, por exemplo, na mulher do médico, de Ensaio sobre a cegueira.

101

caso, pela cultura marialva – pela tradição donjuanesca: perdida, junto com o catálogo, a

aura de conquistador, é a vez de o nosso herói entregar-se, trêmulo, à Zerlina:

DON GIOVANNI: Já viste esse homem, agora podes ir-te. Don Giovanni está tão morto como Don Octávio. ZERLINA: Não irei. DON GIOVANNI: Que queres que faça contigo? ZERLINA: É tempo de que eu te conheça e me conheça a mim. DON GIOVANNI: E Masetto? ZERLINA: Não amo Masetto, amo-te a ti. DON GIOVANNI: Tremem-me as mãos. Este não é Don Giovanni. ZERLINA: Este é Giovanni, simplesmente. Vem. (p.86)

Graziella Seminara afirma que a supressão do título de “Don”, como vemos

acima, “dá lugar a um renascimento no sentido da libertação do peso do ‘mito’”171,

interpretação autorizada por Saramago ao dizer, em correspondência ao compositor

italiano, que “No lugar de Don Giovanni vai nascer Giovanni, outro homem”.172 Mas é

também o próprio escritor quem demonstra a substancial concorrência do destino do

catálogo – queimado o verdadeiro, por Dona Elvira; lançado à chaminé, por Leporello,

o falso173 – para a humanização do herói. Naquela mesma correspondência, Saramago

recusa a proposta de o criado de Don Giovanni iniciar um novo catálogo, inscrevendo o

nome de Zerlina: “Mas você se esqueceu de que aquilo que chama de “novo catálogo”,

isto é, o livro de páginas brancas, foi queimado (...). Tal “auto-de-fé” significa que, para

Don Giovanni, vai começar outra vida. Acabaram-se os catálogos com os nomes das

mulheres”.174

Enfim, se até Jesus Cristo, sob a pena de Saramago, assume a sua humanidade, não

poderia ser diferente com Don Giovanni.

Dissemos mais atrás que a perspectiva do espanhol Gonzalo Torrente Ballester

assemelhava-se à do escritor português. Entretanto, é igualmente verdade que os

percursos de seus protagonistas são exatamente opostos. Assim como Carmen Becerra 171 SEMINARA (2005), p. 115. 172 Ibidem, p. 114 173 Informação do autor no início da sexta e última cena. 174 SEMINARA (2005), p. 114

102

Suárez viu na obra do espanhol a remitificação de Don Juan, provavelmente veria o

processo inverso na peça de Saramago, pois, enquanto o primeiro morre para tornar-se

um mito, o segundo ganha uma nova vida, livre daquele peso. E cremos que Jean

Rousset não haveria de discordar, já que não resta agora nenhuma das invariantes por

ele apontadas, nem o Grupo feminino, nem o Morto e nem mesmo, supõe-se, o

Inconstante. Só que o papel de desequilibrar a estrutura do tema, atribuído no século

XIX à Dona Ana, é agora de Zerlina: irrompendo na penúltima cena, impõe-se sobre

todo o Grupo feminino e, salvando o decaído e trêmulo Don Giovanni, faz em pedaços a

estátua de bronze.

Vimos que o Romantismo, além de tender a substituir o Grupo feminino por

uma única e predestinada mulher, estabeleceu uma certa cumplicidade com Don Juan,

em quem os escritores se projetavam, resultando na tendência à salvação do herói.

Saramago – que, embora longe da exaltação romântica do eu, projeta-se na personagem

– não foi, portanto, o primeiro a absolver Don Giovanni ao fazer “nascer Giovanni,

outro homem, que o amor perdoou.”175 Foi também amor, inclusive, o instrumento de

salvação do protagonista do romântico Zorrilla, como verbaliza a heroína redentora,

Dona Inês: “...o amor salvou Don Juan” (ZORRILLA, p. 171).176 Contudo, bem distante

estamos agora do argumento teológico do texto oitocentista, segundo o qual “um ponto

de contrição/dá a uma alma a salvação” (ZORRILLA, p. 167)177 ou que a outorga à

intervenção de um justo, Dona Inês. Do protagonista de Saramago não se exige o

arrependimento e muito menos ele diria, como o outro, “Clemente Deus, glória a Ti!”

(ZORRILLA, p. 173).178 Trata-se, afinal, de um escritor que proclama a glória do

homem, aqui mesmo, na terra.

175 SEMINARA (2005), p. 114. 176 No original: “...el amor salvó a don Juan”. 177 No original: “un punto de contrición/da a un alma la salvación”. 178 No original: “¡Clemente Dios, gloria a Ti!”

103

Muito distante estamos também do etéreo e idealizado amor dos românticos. A

perspectiva de Saramago é a da comunhão amorosa, aquela que, para ser plena,

reivindica o espaço sagrado do corpo. Dos corpos, por exemplo, de Jesus e Maria de

Magdala, que fizeram o filho de Deus reconhecer-se homem. É esse mesmo amor da

carne que fará Zerlina conhecer-se: “É tempo de que eu te conheça e me conheça a

mim” (p.86). Amor, ao mesmo tempo, sem a interdição da repressiva cultura judaico-

cristã, que está lá na raiz da criação de Tirso de Molina, como vimos. Por isso podem

M. e H. olhar a sua nudez “sem vergonha, porque o paraíso é estar nu e saber” (MPC, p.

270), por isso é sem culpa o amoroso pensamento de Ouroana: “Mogueime dirá, Não há

outro paraíso, e eu responderei, Assim não foram Eva e Adão porque o Senhor lhes

disse que haviam pecado” (HCL, p. 300). Enfim, enquanto o sublimado amor de

Zorrilla é capaz de livrar Don Juan das chamas do inferno, o sublime amor de Saramago

– além de absolver, na terra, Don Giovanni – faz arderem os amantes, rodopiarem todos

os planetas e as paredes do apartamento de H., faz abrirem-se para Maria Sara e

Raimundo Silva todas as comportas do dilúvio.

Aquém de uma possível investigação sobre a semelhança entre o pensamento de

Saramago e o dos filósofos ilustrados do século XVIII, não podemos deixar de assinalar

como coincidem as perspectivas do autor de Evangelho segundo Jesus Cristo e de

Diderot, pelo menos o autor destes fragmentos, extraídos do livro de Paulo Jonas de

Lima Piva:

Se a nossa religião não fosse uma triste e chata metafísica (...); se esse abominável cristianismo não fosse estabelecido pela morte e pelo sangue; (...) se nossas idéias de pudor e de modéstia não tivessem proscrito a visão dos braços, das coxas, das mamas, dos ombros, toda a nudez; se o espírito de mortificação não tivesse murchado essas mamas, amolecido essas coxas (...); se a virgem Maria tivesse sido antes a mãe do prazer do que a mãe de Deus, se tivessem sido seus belos olhos, suas belas mamas, suas belas nádegas que tivessem atraído o Espírito Santo (...); se a Madalena tivesse tido alguma aventura galante com o Cristo; se, nas bodas de Canaã, o Cristo meio embriagado, um pouco não conformista, tivesse percorrido o colo de uma das meninas do casamento e as nádegas de santa Joana ...179

179 Apud PIVA (2003), p. 57-8.

104

E tampouco o alicerce moral do filósofo parece diferir daquele que testemunhamos na

ficção de Saramago:

Ao invés de edificar a moral sobre noções transcendentes como a de Deus e a da espiritualidade e imortalidade da alma, Diderot apregoa alicerces extremamente opostos. Sua moral materialista adota, com moderação, a imanência dos pendores naturais, isto é, as paixões e os desejos, em última instância, a fisiologia como fundamento.180

Assim como para os escritores libertinos – entre os quais Luiz F. Franklin Matos

inclui Diderot, o autor de Les bijoux indiscrets (1748) –, o erotismo para Saramago é

também uma forma de confrontar a moral tradicional, cuja base é religiosa. O narrador

de A jangada de pedra, embora se refira aos momentos de crise, levanta, inclusive, a

hipótese de que o livre exercício da carne “é o que mais convém aos interesses

profundos da humanidade e do homem, ambos costumadamente aperreados de moral”

(JP, p. 226). Ainda mais aperreados de moral eram os portugueses do século XVIII,

época dos transgressores Baltasar e Blimunda, os quais – dentro da instável, mas

pousada passarola – oferecem-nos um dos mais belos exemplos da poesia que sempre

acompanha o erotismo nas páginas de Saramago:

Em profunda escuridão se procuram, nus, sôfrego entrou ele nela, ela o recebeu ansiosa, depois a sofreguidão dela, a ânsia dele, enfim os corpos encontrados, os movimentos, a voz que vem do ser profundo, aquele que não tem voz, o grito nascido, prolongado, interrompido, o soluço seco, a lágrima inesperada, e a máquina a tremer, a vibrar, porventura não está já na terra, rasgou a cortina de silvas e enleios, pairou na alta noite, entre nuvens, Blimunda, Baltasar, pesa o corpo dele sobre o dela, e ambos pesam sobre a terra, afinal estão aqui, foram e voltaram. (MC, p. 262)

Mas o erotismo é apenas uma das faces do amor de Saramago. A outra é a

solidariedade e o respeito mútuos, possíveis apenas pela superação do opressivo poder

masculino. A professora Teresa Cristina Cerdeira demonstra que na escrita de Saramago

a opção pelo feminino integra-se ao projeto do escritor de revisão da cultura portuguesa,

no contexto de um país pós-74, apontando “para um sentido mais radical do processo

revolucionário, lá onde a questão ideológica ou política é ultrapassada para se chegar a

180 PIVA (2003), p. 56-7.

105

rasurar um modelo cultural de raízes patriarcais”.181 Cerdeira identifica nos romances

que vão de Manual de pintura e caligrafia até Todos os nomes182 as mulheres que, no

espaço textual, conquistaram o lugar que lhes fora negado pela cultura marialva, que

modelou as relações sociais desde o século XVII até o Estado Novo português.

Mulheres às quais se vem juntar Zerlina. Embora não seja uma personagem

desenvolvida na peça de Saramago, sua ação sobre o tema do conquistador é tão

revolucionária quanto à de M., na Revolução dos Cravos, ou à de Maria Adelaide

Espada, na revolução agrária.

Mas Zerlina insere-se num contexto mais amplo, aquele para o qual, mais além

do aspecto pátrio, o escritor português aponta ao colocar na boca de Simeão estas

palavras: “Se a lei não tivesse feito calar as mulheres para todo o sempre, talvez elas,

porque inventaram aquele primeiro pecado de que todos os mais nasceram, soubessem

dizer-nos o que nos falta saber” (EJC, p. 49-50). Talvez por isso sejam geralmente os

homens os aprendizes e mestras as mulheres, na ficção de Saramago, situação que não

se encontra apenas na relação entre Jesus e Maria de Magdala, mas também, embora em

variados graus, na de H. e M., Baltasar e Blimunda, Maria Guavaira e Joaquim Sassa,

Ricardo Reis e Lídia, sem falar na mulher do médico, guia de cegos, mais cegos ainda

os homens. Inspirados por uma mulher – mesmo que desconhecida, como em Todos os

nomes – ou sob o influxo direto do generoso amor feminino, a vida dos homens se

transforma. Deixemos em paz o filho de Deus e ofereçamos como exemplo Raimundo

Silva, que ultrapassa a condição de revisor e dá conseqüência ao seu “não”, assim como

Don Giovanni supera a sua condição de mito e se transforma em outro homem.

181 CERDEIRA (2000), p. 216. 182 O ensaio intitulado Mulheres e revolução: a cultura marialva posta em questão foi escrito em 1995 e atualizado em 1999. Embora a professora não analise os Ensaios, é citada a mulher do médico, personagem das duas obras.

106

Don Giovanni agora já sabe que as mulheres tomam, sim, a iniciativa. Na obra

de Saramago é assim geralmente, desde que H. reconheceu, apesar de parecer o

contrário, que fora a secretária Olga quem o havia seduzido. Já que o narrador explicita

e resume a história da sedução, peguemos o exemplo de Maria Sara “que em todas as

circunstâncias, desde o princípio, tomou as rédeas e a iniciativa, sem contemplações”

(HCL, p. 233). O comando, definitivamente, é das mulheres, como tem consciência

Maria Guavaira, que diz a Joaquim Sassa: “puxei o fio e vieste até à minha porta, até à

minha cama, até ao interior do meu corpo, até à minha alma” (JP, p. 187).

Em correspondência ao compositor italiano, Saramago confirma aquele

pensamento de H., negando até as anteriores e famosas conquistas do pretenso

conquistador: “A minha idéia é que Don Giovanni, ao contrário do que sempre se diz,

não é um sedutor, mas antes um permanente seduzido”,183 como é explicitamente o caso

do Don Juan de Lord Byron. E também, pelo menos em relação à Zerlina, o do Don

Giovanni de Saramago, que, na sexta e última cena, transforma essa idéia numa espécie

de moralidade da sua peça, não no sentido moralizante do desfecho das obras de Molina

e de Da Ponte (Molière é irônico). Novamente à procura da amada, Masetto troca o

seguinte diálogo com Leporello:

MASETTO: Então é verdade que Zerlina está aí dentro? LEPORELLO: Talvez sim, talvez não. Já te disse que não sei. Mas se ela está onde decidiu, então, caro Masetto, tira o sentido dela, não lhe tornarás a tocar nunca mais. MASETTO: Hei-de vingar-me. LEPORELLO: Não vale a pena, Masetto, não percas o seu tempo. Deus e o Diabo estão de acordo em querer o que a mulher quer.” (p. 90)

Mas não se pode esquecer que o principal pilar do projeto do escritor português

é a afirmação da liberdade humana. E é isso que ele declara quando questionado, em

entrevista ao Jornal Folha de São Paulo, sobre o que propunha de novo em relação às

outras versões de Don Juan:

183 SEMINARA (2005), p. 95

107

Salvo na versão de Byron, que de certa forma regenera Don Giovanni, todas as outras o condenam. Eu, permita-se-me o pronome aparentemente imperioso, não só o não condeno, como o absolvo, e não só o absolvo, como o deixo livre para pecar outra vez, se assim tiver de ser...184

Apesar de não constar do texto de Saramago, sabemos por Graziella Seminara

que os últimos compassos da ópera, aprovados pelo escritor, são cantados por Dona

Elvira: “Absolvido, mas... por quanto tempo?”185 Don Giovanni está livre para pecar

novamente, se assim decidir.

184 Folha de São Paulo, caderno Ilustrada, 02 de abril de 2005. 185 No original: “Assolto ma ...per quanto tempo?” (Nossa tradução) SEMINARA (2005), pág. 117.

108

4 – Conclusão

Terá a carreira de Don Giovanni chegado ao fim? Como vimos, Jean Rousset e

Carmen Becerra Suárez entendem que isso já havia ocorrido no século XIX, surgindo

no seu lugar uma diversificada prole de tipos donjuanescos, afastados do tradicional

argumento religioso. Mas essa interpretação baseia-se na perspectiva da condição mítica

do herói, perspectiva, aqui, apenas subsidiariamente adotada, por influência desses

estudiosos, duas das principais fontes teóricas da primeira parte desta dissertação, na

qual foi apresentado o percurso da personagem entre os séculos XVII e XX.

Independente do caráter mítico do herói, o certo é que, durante esses mais de

trezentos anos, modificaram-se substancialmente os valores e as crenças que fizeram

nascer o primeiro Don Juan como instrumento de um sermão edificante, através do qual

o escritor e religioso seiscentista, defendendo as teses contra-reformistas em oposição às

protestantes, pretendeu demonstrar didaticamente ao seu público o destino daqueles que

se comportassem como o seu protagonista: as chamas do inferno. Ainda no século

XVII, foi preciso que a personagem fosse assimilada pela Comédia dell’Arte italiana

para que ela pudesse ganhar rapidamente os palcos de outros países da Europa, quer

fossem eles protestantes, quer fossem menos rigidamente submetidos à tutela da

inquisitorial Igreja Católica. Embora recupere o fundo religioso do tema, que havia sido

completamente anulado pelos comediantes italianos, Molière o faz de forma

inconsistente, pois sua peça constitui-se numa sátira social, onde o principal alvo é a

hipocrisia inspirada justamente pela moral ditada pela religião.

Se é verdade que Mozart e Lorenzo da Ponte recuperaram a importância do

Morto, integrando de forma mais orgânica a presença da estátua de pedra, também é

certo que o argumento religioso não é mais o tema central da ópera, a ponto de uma das

109

personagens, Don Ottavio, se demonstrar surpresa com o castigo imposto pelo Céu,

como poderia ser o caso do público da época. Mas coube aos românticos a função de

extrair, a partir da influência da célebre ópera, novos significados da história do antigo

burlador de Sevilha. O sentido moralizante original não podia conviver com a tendência

à glorificação do herói, atormentado agora mais com o amor do que com o castigo

infernal. O espanhol Zorrilla foi uma das exceções, pois voltou a colocar o argumento

teológico como a viga-mestra da sua obra, mas com o objetivo de conferir ao amor um

poder transcendente.

Se Gonzalo Torrente Ballester – na metade do século passado, quando Don Juan

já vinha sendo destrinchado pela psicanálise – pôs a questão religiosa no centro da sua

narrativa, o fez para problematizá-la e para sustentar a liberdade humana. Hoje, de fato,

parecem inconciliáveis os pressupostos que fizeram nascer a personagem de Tirso de

Molina com os valores e as crenças de um mundo menos aperreado de religião e de

moral religiosa, onde castigos infernais e mortos retornados dificilmente conseguem

assombrar os leitores ou os espectadores, onde a sexualidade é menos transgressiva,

onde a mulher vai vencendo os últimos obstáculos à sua liberdade, seja no campo

sexual, seja em qualquer outra área dos seus direitos. Embora, claro, nada disso seja

uma verdade absoluta, nem uma realidade para todos.

Seja como for, essa é a realidade do universo de José Saramago e ela está

presente na sua peça teatral. Aliás, o confronto entre o Comendador e Don Giovanni é o

confronto entre a nova ordem e a antiga, de onde o autor, inclusive, extrai grande parte

dos efeitos cômicos da peça, especialmente pela exposição do anacronismo da estátua

vingadora. Se para Molina o Comendador era o portador dos valores que importava

sustentar, agora é Don Giovanni quem, embora não tenha a função de ser exemplar,

encarna a perspectiva do autor. Faltava ao sedutor aprender que a mulher pode, sim,

110

tomar a iniciativa; faltava assumir a sua humanidade, como Jesus Cristo, através do

generoso amor feminino.

Essas são algumas marcas do universo ficcional de Saramago que este trabalho

identificou em Don Giovanni ou o dissoluto absolvido, ao lado de outras, entre as quais

se destaca a afirmação da responsabilidade e principalmente a liberdade humanas. Para

cumprirmos esse outro objetivo, revisitamos algumas obras do escritor e procuramos

identificar perspectivas e procedimentos presentes na peça teatral.

José Saramago reabilitou e absolveu o antigo pecador, deixando-o livre para

pecar de novo, idéia que não está no texto, mas na ópera, que, como vimos, termina

deixando um espaço de ambigüidade sobre o futuro de Don Giovanni. Mas, pelas suas

próprias palavras, o dissoluto absolvido tem pouca chance de retomar a fulgurante

carreira de sedutor: “Antigamente era mais rápido na conquista, mais veloz no triunfo,

mais conclusivo na retirada (...) Don Giovanni está a fazer-se velho” (p. 28).

Como ele, o ancestral burlador talvez tenha que se adaptar à nova realidade. Sua

carreira pode estar encerrada como mito – e a versão de Saramago a encerra novamente

–, mas não como uma personagem que há quase quatro séculos desperta o interesse de

tantos artistas e, mais recentemente, de psicólogos e filósofos. Como contar histórias é a

arte de contá-las novamente, estão aí a obra de Saramago e as versões cinematográficas

para provar a vitalidade de Don Juan. E também o romance do brasileiro João Gabriel

de Lima, que, se não fosse anterior à peça do escritor português, bem poderia ser a sua

continuação. Se José Saramago, como ele diz, não só absolveu o dissoluto como o

deixou livre para pecar de novo, no romance de Lima o encontramos exercendo essa

liberdade num mundo alheio ao sobrenatural, nas ruas da moderna cidade de Sevilha. E

já consciente pelo menos de que, senão foi sempre assim, “Hoje em dia, a capacidade de

seduzir é prerrogativa das mulheres” (LIMA, p. 110), como ele afirma em entrevista à

111

jornalista que o havia burlado. O protagonista de João Gabriel de Lima também conclui

que está envelhecido e que “talvez fosse hora de sair de cena” (LIMA, p. 124). Mas não

se enganou quando, antes de morrer, teve este último pensamento:

A única eternidade possível é a da memória. E essa parecia garantida. Algumas mulheres, claro, o esqueceriam. Mas tinha 1301 chances de que, pelo menos em alguns casos, isso não ocorresse. Que, ao contrário, suas histórias fossem contadas para amigas e destas para outras amigas, amantes e destes para outros amantes, filhos e destes para netos e bisnetos. Era uma reflexão tranqüilizadora.186

Para quem já morreu tantas vezes, provavelmente essa não será a última. Seja como for,

esta foi a sua maneira de burlar a morte: apossar-se da memória alheia. E teve êxito.

186 LIMA, João Gabriel de. O burlador de Sevilha. Op. cit., p. 125.

112

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