Doente Terminal

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UNIVERSIDADE DO PORTO FACULDADE DE MEDICINA 0 RESPEITO NO CUIDADO DE ENFERMAGEM: PERSPECTIVA DO DOENTE TERMINAL. Cristina Maria Correia Barroso Pinto Porto,

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UNIVERSIDADE DO PORTO FACULDADE DE MEDICINA

0 R E S P E I T C U ID A DDE E N F E R M A:G E M O NO O PERSPECTIVA DO D O E N T E T E R M IN A L .

Cristina Maria Correia Barroso Pinto Porto, 2003

UNIVERSIDADE DO PORTO FACULDADE DE MEDICINA

O RESPEITO NO CUIDADO DE ENFERMAGEM: PERSPECTIVA DO DOENTE TERMINAL

Dissertao apresentada Faculdade de Medicina da Universidade do Porto por Cristina Maria Correia Barroso Pinto, sob a orientao da Professora Dr. Margarida Vieira para obteno do grau de mestre em Biotica e tica Mdica.

Porto, Fevereiro de 2003

UM MUITO OBRIGADO Ao Adelino pelo incentivo, amor e compreenso que demonstrou ao longo de todo este percurso Professora Dr. Margarida Vieira, orientadora deste trabalho, pela disponibilidade, apoio, estmulo, crtica, tempo dispensado e pelo que muito contribuiu para a realizao deste trabalho instituio hospitalar e a todos os doentes que contriburam para a concretizao deste trabalho Aos colegas, familiares e amigos em particular, pelo apoio, compreenso e incentivo que deram ao longo desta caminhada Aos colegas e professores do 1 "Curso de Mestrado de Biotica e tica Mdica, pelo esprito de solidariedade, amizade e tempo dispensado

RESUMO No pressuposto de que toda a pessoa, pela sua dignidade, digna de respeito, apresentase o respeito pelo doente terminal como princpio tico a priori a toda a relao de ajuda no acto de cuidar, especificamente no cuidado de enfermagem ao doente. Aps o enquadramento terico da problemtica em estudo, justifica-se o trabalho de investigao realizado, descritivo e de natureza exploratria, em que se pretende conhecer quais as atitudes das enfermeiras que os doentes terminais internados em unidades de cuidados paliativos, valorizam como expresso de respeito pelo sua pessoa. A informao sobre as vivncias dos doentes foram colhidas por entrevista semi- estruturada, a todos os doentes internados no ms de Outubro (20) numa Unidade de Cuidados Paliativos do norte. Da anlise realizada concluiu-se que os doentes valorizam mais atitudes que demonstram Preocupao, Ajuda, Estima, Disponibilidade, Afecto e Segurana. As atitudes referidas pelos doentes incluem-se na rea do respeito pela intimidade e dignidade, pelos direitos e valores das pessoas doentes e so congruentes com resultados de outros estudos nesta rea. Considerando o tipo de estudo e a amostra estudada, os resultados no podem ser generalizados, mas fornecem pistas de desenvolvimento para futuros estudos.

ABSTRACT Having the presupposition that every people, for its dignity, is worthy of respect, respect for the terminal patient is the ethical principle that provides a base for all the help relation, in the act of taking care, specially while nursing the patient. After the theoretical framing of the problem in study, it is justified all the investigation work already done, descriptive and of an exploratory nature, in which is pretended to know which are the attitudes of nurses towards terminal patients staying in palliative care units, value as an expression of respect for its person. Information about experiences of life of patients were collected by semi-structured interviews, done to all of the patients interned during the month of October (20) in a palliative care unit in the north. Of its analysis was reached the conclusion that patients value the most attitudes that show Preoccupation, Help, Esteem, Availability, Affect and Security. The attitudes refereed by patients are included in the area of respect towards intimacy and dignity, towards the rights and values of sick persons and are congruent with results of other studies in this area. Considering the type of study and the sample in which it fell upon, results can not be generalised, but provide clues of development for future studies.

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INDICE Fis. INTRODUO CAPTULO I Acerca do respeito pela pessoa humana 1 - A Pessoa - Entre a sade e a doena 19 24 31 40 51 53 59 66 8

1.1 - A doena terminal 1.2 - Os cuidados paliativos 2 - O dever de respeito

2.1 - O respeito como princpio tico 2.2 - O respeito como componente da relao de ajuda 2.3 - O respeito no cuidado de enfermagem ao doente terminal CAPTULO II Atitudes que manifestam respeito: a investigao realizada 1 - O problema em estudo

75 78 78 84 86 86 89 98 104 111

1.1 - Reviso da literatura 2.1 - Questo de investigao 2 -Metodologia

2.1 - Tipo de estudo 2.2 - Os sujeitos do estudo 2.3 - Tcnica e procedimento na colheita de dados 2.4 - Tratamento e anlise da informao 3 - Apresentao dos resultados

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- Interpretao dos resultados e concluses

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4.1 - Sobre o respeito pela intimidade e dignidade da pessoa 4.2 - Sobre o respeito pelos direitos e valores da pessoa CONCLUSO BIBLIOGRAFIA ANEXOS Anexo I Anexo II - Guio da Entrevista - Autorizao para efectuar a colheita de dados

Anexo III - Ficha de Sntese da Entrevista Anexo IV - Matrizes de codificao global

NDICE DE QUADROS

Quadro 1 Quadro 2 Quadro 3 Quadro 4 Quadro 5 Quadro 6 Quadro 7

- Distribuio dos doentes por sexo - Distribuio dos doentes por grupo etrio - Distribuio dos doentes por estado civil - Distribuio dos doentes por habilitaes literrias - Distribuio dos doentes por profisso - Distribuio dos doentes por religio - Frequncia das Unidades de Registo e Unidades de Enumerao pelas diferentes categorias e suas subcategorias e subsubcategorias - Frequncia das Unidades de Registo e Unidades de Enumerao pela categoria: Segurana - Frequncia das Unidades de Registo e Unidades de Enumerao pela categoria: Estima, subcategoria: Valor da Pessoa como Ser nico

Quadro 8 Quadro 9

Quadro 10 - Frequncia das Unidades de Registo e Unidades de Enumerao pela categoria: Estima, subcategoria: Valor da Pessoa como Ser Autnomo Quadro 11 - Frequncia das Unidades de Registo e Unidades de Enumerao pela categoria: Disponibilidade, subcategoria: Dar Tempo Quadro 12 - Frequncia das Unidades de Registo e Unidades de Enumerao pela categoria: Disponibilidade, subcategoria: Prontido de resposta Quadro 13 - Frequncia das Unidades de Registo e Unidades de Enumerao pela categoria: Ajuda, subcategoria: Psicolgica Quadro 14 - Frequncia das Unidades de Registo e Unidades de Enumerao pela categoria: Ajuda, subcategoria: Nas Actividades de Vida Quadro 15 - Frequncia das Unidades de Registo e Unidades de Enumerao pela categoria: Preocupao pelas Necessidades Individuais da Pessoa, subcategoria: Necessidades Fsicas, sub-subcategoria: Ambiente Calmo Quadro 16 - Frequncia das Unidades de Registo e Unidades de Enumerao pela categoria: Preocupao pelas Necessidades Individuais da Pessoa, subcategoria: Necessidades Fsicas, sub-subcategoria: Nutrio

Quadro 17 - Frequncia das Unidades de Registo e Unidades de Enumerao pela categoria: Preocupao pelas Necessidades Individuais da Pessoa, subcategoria: Necessidades Fsicas, sub-subcategoria: Dor Quadro 18 - Frequncia das Unidades de Registo e Unidades de Enumerao pela categoria: Preocupao pelas Necessidades Individuais da Pessoa, subcategoria: Necessidades Segurana, sub-subcategoria: Informao Quadro 19 - Frequncia das Unidades de Registo e Unidades de Enumerao pela categoria: Preocupao pelas Necessidades Individuais da Pessoa, subcategoria: Necessidades Segurana, sub-subcategoria: Conforto

Quadro 20 - Frequncia das Unidades de Registo e Unidades de Enumerao pela categoria: Afecto Quadro 21 - Distribuio dos entrevistados pela categoria que consideram ser a mais importante como manifestadora de respeito

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A segunda metade do sculo XX, mais concretamente a partir do termo da II Guerra Mundial , assistiu ao emergir e consolidao da reflexo biotica em todas as reas sociais e do conhecimento, assumindo-se como relacionada no " vida tomada na sua espontaneidade [...] mas vida artifwializada ou artificializvelpela aco humana, a vida que se encontra sob o poder (ou controlo) do homem" como afirma Maria do Cu Patro Neves . De facto, como refere a autora, foi o "progresso avassalador" no campo cientfico e tecnolgico, com consequncias frequentemente dramticas, que fizeram surgir a conscincia da existncia de limites. Mas se as questes da biotica surgem em todas as reas em que a cincia e a tecnologia interferem com a vida, so as questes da rea da sade que mais nos ocupam e preocupam, no s os profissionais de sade mas como tambm os cidados em geral. Marie Franoise Collire, afirma: "...desde que existe a vida que existem cuidados porque preciso "tomar conta" da vida para que ela possa permanecer. Os homens[...] sempre precisaram de cuidados, porque cuidar, tomar conta, um acto de vida" . De facto, se cuidar dos outros seres humanos um acto natural, tal no acontece3 2 1

A maior parte dos tericos e historiadores da Biotica esto de acordo em situar a sua origem na redaco do Cdigo de Nuremberga, em 1947. 2 NEVES, Maria do Cu Patro (coord.) - Comisses de tica: das bases tericas a actividade quotidiana.2 Ed., Coimbra: Grfica de Coimbra em colaborao com o Centro de Estudos de Biotica/Plo Aores, 2002, p. 29. 3 COLLIRE, Marie-Franoise - Promover a Vida, Lisboa: Lidei Edies Tcnicas Lda., Maro, 1999, p.27.

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nos cuidados profissionais da rea da sade: o cuidado no surge aqui como um acto natural, mas como um acto profissional . No se pode falar de cuidados de sade sem identificar primariamente a sua centralidade - a pessoa humana - e o contexto que lhe d todo o sentido, a sua real significao - a vida, ou mais exactamente, todo processo de viver, cuja ltima fase a morte. Os cuidados de sade no so fruto de uma mera intuio, por muito que tenham de arte, nem to s de um mero saber tcnico e cientfico que despreza tudo o que excede o prtico, o imediato. Se este desprezo existir, s poder ser fruto da ignorncia de algo estritamente necessrio a qualquer profisso na rea da sade: o reconhecimento da totalidade da pessoa humana a quem os cuidados se dirigem. A esse respeito Cidlia Frias diz-nos: "'...de facto, podemos especializar-nos, mas as pessoas que nos procuram, quer estejam em situao de doena ou no, nunca nos chegam com o corpo separado do esprito'''''. A experincia parece mostrar que o encontro entre qualquer profissional de sade e o doente se caracteriza por ser assimtrico, isto , um encontro em que ambos os intervenientes tm papeis desnivelados e explicitamente definidos: o primeiro o de prestador de cuidados, o segundo o de beneficirio desses cuidados - algum que tem o poder de ajudar e outro que precisa de ajuda. Por outro lado, sabemos que cuidar implica uma interaco, uma reciprocidade, ou seja, implica que o cuidador profissional que ajuda o outro no seu processo de crescimento e de actualizao, esteja tambm sujeito a um processo de afectao. Nesta perspectiva, o cuidar pode ser vivido como uma forma de dar sentido e significado vida daqueles que nele intervm. A representao mental de cada um dos pacientes sobre os fenmenos vivenciados, vai4

Madeleine Leininger, enfermeira e antroploga, define o cuidado profissional como "os comporta mentos, tcnicas e processos cognitivos e culturalmente aprendidos, que permitem a um indivduo, famlia ou comunidade, melhorar ou manter uma situao ou modo de vida, mais favorvel e saudvel" LEININGER, Madeleine - Caring: an essential human need (Proceedings of the three Nacional Caring Conferences), Detroit: Wayne State University Press, 1988, p.9. 5 FRIAS, Cidlia - A espiritualidade: uma dimenso a valorizar no cuidar da pessoa em fim de vida. Servir, Lisboa, 49 (6), Novembro-Dezembro, 2001, p.263. Cristina Maria Correia Barroso Pinto 10

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influenciar a relao a estabelecer com os profissionais de sade, nomeadamente com os enfermeiros, com quem passam todo o tempo de internamento. Sabemos que esta representao culturalmente definida, quer pela histria pessoal vivida, quer pelos valores culturais e pelas relaes sociais existentes. J em 1952, Peplau6

demonstrou dever existir um realce na vertente cognitiva e

comportamental da empatia teraputica, na relao interpessoal inerente aos cuidados de enfermagem. No entanto, foi desvalorizado o envolvimento emocional que, segundo Morse et ai., lhe permite no s o reconhecimento imediato da situao de sofrimento do cliente, mas tambm uma resposta reflexiva, ainda que sem premeditao, que se verifica ser sempre apropriada para o alivio do sofrimento e a manuteno ou aumento de conforto . O cuidar inserido nas experincias participadas da enfermeira e do doente, sendo fundamentadas por essa experincia mtua e estabelecidas no seu seio . E ento, exigido enfermeira um envolvimento, uma preocupao com cada um daqueles a quem se presta cuidados, exigindo-lhe a solicitude que "d ao outro o poder de ser aquilo que ele quer ser, e isto o objectivo ltimo das relaes de cuidar em . enfermagem" Este tipo de relao da enfermeira face ao doente no se aprende s nos livros, mas sobretudo atravs da experincia de relao intersubjectiva; Na medida em que cuidar afecta as pessoas envolvidas, este fenmeno permanentemente uma questo tica. E nesta ltima perspectiva do cuidar que nos situamos e a procura das suas implicaes na prtica de enfermagem que nos move na elaborao deste trabalho - tambm porque apenas considerando a exigncia tica do cuidar se faz emergir a existncia de um agir tico, pleno de responsabilidade pessoal.

' Cf. PEPLAU, Hildegard - The interpersonal relations in nursing. New York: G. P. Putman Sons, 1952 7 Cf. MORSE, J anice et al. - Beyond empathy: expenthy expressions of caring. Journal of Advanced Nursing, Oxford, n17, July, 1992, p.810820. 8 Cf. BENNER, Patricia; WRUBEL, Judith - The primacy of caring stress and coping in health and illness, Menlo Park-Addison: Wesley Publishing Company, 1989, p.49.9 6

Idem.

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Em qualquer exame atento, o respeito emerge como um aspecto fundamental e essencial da prtica de cuidados. O substantivo "respeito" em geral definido como prestar particular ateno, alta ou especial considerao; como um verbo, "respeitar" considerar o outro merecedor de estima, conter-se de interferir, preocupar-se . O respeito encontrado na literatura relativa a tica e valores humanos, onde considerado um princpio tico primrio. Alguns autores descrevem o respeito como a atitude moral central a partir da qual todos os outros princpios morais so explicados. Outros vm o respeito como um valor humano que representa justia, honra e dignidade humana. Existe ainda quem resuma a perspectiva de Kant de respeito como um " princpio de humanidade" que reconhece os humanos como agentes autnomos que por natureza tm valor intrnsecos inerentes. Outros consideram o respeito como o valor essencial dos direitos humanos e definem-no como uma inter-relao entre humanos na qual eles reconhecem reciprocamente e honram a liberdade de escolha, mrito como os humanos e oportunidade para igualdade . Estas definies de respeito reflectem os valores da dignidade humana, mrito intrnseco, autonomia, singularidade individual e autodeterminao. Estes so, sem dvida, valores que a prtica da enfermagem visa atingir e proteger interagindo respeitosamente com as pessoas.11

Tambm na Enfermagem, o respeito est presente em todos os aspectos de prtica, da investigao e da educao. Como notou por Levine "o comportamento tico no a exibio da rectido moral da pessoa em tempos de crises. E a expresso diria de um compromisso com outras pessoas e a forma como os seres humanos se relacionam uns com os outros nas suas interaces dirias " .

DICIONRIO UNIVERSAL DA LNGUA PORTUGUESA, 6 Ed., Lisboa: Texto Editora Lda., Maro, 2000, p. 1239-1240. 11 Cf f. por exemplo, DOWNIE, R; TELFER, E. - Respect of Persons, New York, 1970, 1970, ROKEACH, M. - Understanding Human Values. Medical Care, New York: [s.n.], 15 (5), 1979, p. 1219; MILNE, A. - Human Rights and Human Diversity: An Essay in Psychiatric Nursing and Mental Health Services. The Philosophy and human Rights, New Haven: State University Press, 21(1), 1986, p.98-102; MCDOUGLAS, M et al. - Human Rights and English Language, New Havem: Yale University Press, 1980. 12 LEVINE, M. - Nursing ethics and the ethical nurse. Journal of Nursing, America, 77 (5), 1977, p.846847. Cristina Maria Correia Barroso Pinto 12

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Annette Browne, citando Gaut, identifica o respeito como uma atitude necessria para aces ticas justificveis entre pessoas . Realmente, o respeito a primeira condio tica no Cdigo Deontolgico do Enfermeiro , onde todos os deveres profissionais so indexados ao respeito pelos direitos humanos em geral e aos direitos dos doentes em particular. O respeito surge tambm a partir de perspectiva transcultural, em que visto como um componente bsico do Cuidar sensvel e cultural. Sensibilidade cultural requer reconhecimento e atendimento pela diversidade cultural. Sendo assim, o respeito surge do reconhecimento do mrito da herana cultural nica de uma pessoa e da capacidade para mostrar considerao pela sua orientao cultural. Posteriormente, Leininger sugere que respeito pelos direitos culturais de uma pessoa reflecte respeito pelos direitos humanos bsicos. Mas, se o respeito devido a todos os seres humanos, pela sua dignidade, porqu estudar o respeito na assistncia a pessoas doentes na fase final da vida? Em Portugal morre anualmente cerca de 1,02% da populao . Embora algumas16 14 13

mortes possam ser sbitas ou inesperadas, outras passaram por um processo de doena e muitas delas sujeitas a internamento hospitalar. Alguns autores referem que as enfermeiras dos hospitais, so extremamente ocupadas e podem, de alguma forma, tratar inadequadamente os moribundos, dedicando portanto mais tempo aos doentes que vo recuperar. Segundo Cundiff, um estudo frequentemente citado, indica que as enfermeiras levam, em geral, o dobro do tempo a responder s chamadas dos moribundos, comparando com os outros doentes, acrescentando que osCf. BROWNE, Annette - A conceptual Clarification of Respect. Journal of Advanced Nursing, London, 18(2), March/April, 1993,p.212. 14 Cf. PORTUGAL, Ministrio da Sade - Decreto-Lei n"l04/98. Criao e Estatuto da Ordem dos Enfermeiros. Dirio da Repblica, I Srie-A, n93, Artigos 78 a 92, Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 98/04/21. 15 Cf. LEININGER, M. M. - Culture care diversity and universality: a theory of nursing. New York: National League for Nursing Press. 1991. 16 No ano de 2001 morreram 105 092 pessoas das 10 318 084 residentes em Portugal. INSTITUTO NACIONAL DE ESTATSTICA Censos 2001 [Documento www] URL http//www.ine.pt/prodserv/quadros/mostra_quadro.asp, 5 de Novembro de 2002 s 15.30h.13

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cuidados prestados aos que padecem, so geralmente muito menos investidos do que os relativos a pacientes que tm hipteses de recuperar . Pensamos que a prtica de cuidar em situaes terminais no hoje ainda equacionada convenientemente, no que respeita aos aspectos do indivduo, famlia, instituies e sociedade em geral. Durante sculos, a morte era vivida na famlia e apenas uma pequena percentagem das pessoas de qualquer comunidade morria nos hospitais. Nos nossos dias podemos dizer que a morte foi transferida para o hospital e, por esse motivo, lidar com doentes terminais e suas famlias prtica quotidiana da maior parte das enfermeira. com base nesta problemtica e nas dificuldades sentidas pelas enfermeiras acrescidas da importncia que o respeito pelo doente adquire na fase final da sua vida, que nos propomos trabalhar o respeito no cuidado de enfermagem ao doente terminal. Se a reflexo tica nos diz j o que significa o respeito e se aceita que ele devido a todos, que interesse pode ter mais um trabalho na rea? A nossa opo por estudar o respeito no cuidado de enfermagem na perspectiva do doente terminal, foi concebida tendo presente duas razes. Na primeira razo podemos salientar que como sequela inevitvel do avano cientifico e tecnolgico, verifica-se que frequentemente no existe lugar na vida moderna para se pensar na morte e no doente terminal. Como consequncia, as enfermeiras, sentindo-se impotentes perante a ltima e decisiva crise existencial, pela qual passa o doente, protegem-se, restringindo a sua aco a cuidados meramente fsicos. Sem dvida, que quando o doente tem maior probabilidade de morrer, as enfermeiras omitem o assunto "morte" e tendem a supervalorizar as tarefas essencialmente tcnicas. E, quando essa probabilidade se apresenta em situao de emergncia, mobilizam todos os esforos, expressando no final o sentimento do "dever cumprido". Ainda hoje, nas diversas unidades hospitalares, se evita o contacto com os aspectos simblicos da morte: isola-se o doente, delegam-se cuidados, no se fala com o doente, no se responde de imediato s suas solicitaes...17

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Cf. CUNDIFF, David -A p.163.

eutansia no a resposta, Lisboa: Instituto Piaget, 1997,

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facto, que demonstra existir uma certa dificuldade por parte das enfermeiras em geral a lidar com este tipo especfico de doentes. A segunda razo prende-se com o facto de termos assistido a uma participao das escolas na formao de enfermeiras, com preocupao centrada na aquisio de conhecimentos (atravs da memorizao) e de tcnicas (competncia de destreza). Dado a orientao central estar direccionada parta a doena e as intervenes face s suas alteraes, menosprezou a aquisio de condutas a adoptar perante situaes que envolvam a interaco com a pessoa doente num processo de constante desenvolvimento e mudana. Recentemente, um grupo de alunos num de seus relatrios finais de ensino clnico, decidiu denominar um captulo de seu trabalho "Uma experincia importante: o contacto com a morte" em que diziam: "A morte um tema delicado e dos mais difceis de abordar, mas infelizmente uma situao que temos que comear a encarar, porque far parte do nosso dia-a-dia como enfermeiros[...] Podemos comear por dizer que no h nenhuma faculdade ou escola que nos prepare verdadeiramente para encarar esse facto, portanto como profissionais lutamos at ao fim para manter o indivduo vivo, foi para isso que fomos treinados, para prestar cuidados que ajudem o indivduo a ultrapassar os seus problemas de sade[...] Quando isso no acontece e a morte acaba por vencer, a primeira sensao de impotncia ou mesmo de fracasso e a aceitao desta situao depende tambm do indivduo em questo, porque geralmente muito mais difcil encarar a morte de uma criana ou de um jovem, do que de uma pessoa idosa" . Atravs deste depoimento tomamos conscincia que os alunos se mostram globalmente insatisfeitos com a sua formao neste campo, manifestando igualmente as suas limitaes para cuidar de pessoas em fase final de vida. Neste momento, novos valores e novos desafios se colocam profisso e, muito particularmente aos docentes em enfermagem pois tm grande responsabilidade na mudana, no sentido de uma formao completa do aluno adequada s novas necessidades, preparando-os para actuar, no s a nvel curativo, mas sobretudo como verdadeiro educador para a sade, contribuindo assim para uma maior dignificao da pessoa humana. Formar licenciados em enfermagem ir muito alm de uma preparaoCARMO, A. P. et ai. - Uma experincia importante: o contacto com a morte: Relatrio Crtico de Actividades, Relatrio efectuado por um grupo de oito alunos no seu Ensino Clnico no servio de Medicina D do CHVNG, no perodo de 10 de Janeiro a 25 de Fevereiro de 2000, p. 10-11. Cristina Maria Correia Barroso Pinto 1518

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exclusivamente tcnica. proporcionar tambm uma slida formao humana, pautada por um sistema de valores ticos devidamente interiorizados, que o ajudaro a compreender o campo profissional de actuao e a perspectivar a forma de nele se tornar mais actuante assumindo o futuro . No podemos separar a competncia profissional da formao tica e humana da profisso. De facto, tm havido enormes avanos no desenvolvimento das capacidades cognitivas, mas tambm verdade que ouvimos e frequentemente lemos referncias a necessidades de maior humanizao dos servios de sade, e humanizar no mais do que cuidar a pessoa tendo em conta todas as suas dimenses. Importa por isso conhecer a perspectiva do doente sobre o assunto - porque s ele nos pode dizer o que o faz sentir-se respeitado. Assim, propomo-nos descrever as atitudes das enfermeiras que so frequentemente valorizadas pelo doente terminal como expresso de respeito para com ele. O estudo que efectuamos pretende assim ser um contributo, quer para profissionais quer para estudantes, para que possam orientar e melhorar as suas prticas dirigidas ao doente que se encontra em fim de vida. A nossa inteno que este estudo adquira uma aplicao prtica e que, posteriori, possa ser mais aprofundado e estendido a outros grupos ou culturas. Porque pretendemos investigar a partir da perspectiva dos sujeitos da investigao, a nossa pesquisa inserir-se- necessariamente na denominada investigao qualitativa. Reconhecemos que alguns autores utilizam definies muito limitativas de cincia, reconhecendo como cientfica apenas a investigao dedutiva e a utilizao de testes de hipteses. E muito embora Edgar Morin refira que "hoje [...] j no necessria uma grande demonstrao para saber que a arte indispensvel para a descoberta cientifica, visto que o sujeito, as suas qualidades, as suas estratgias, tero nela um papel muito maior e muito mais reconhecido" , no nos poderemos esquecer que este1 19

Cf. PORTUGAL, Ministrio da Educao - Decreto-lei 353/99. Dirio da Repblica, I Srie-A, n206, Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 99/09/03. 20 MORIN, Edgar - Cincia com conscincia, Lisboa: Mem. Martins e Europa Amrica, 1982, p.259.

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trabalho se insere na rea da Biotica, rea que no poderemos incluir nas chamadas cincias "duras", como refere Walter Osswald , Pela nossa parte, acreditamos, como Madeleine Leininger, que a investigao qualitativa, pretendendo documentar e interpretar tanto quanto possvel a totalidade do fenmeno em estudo num contexto particular e a partir do ponto de vista das pessoas estudadas, nos oferece um valioso mtodo para a compreenso das dimenses de fenmenos, que devem ser encarados numa perspectiva filosfica, histrica e cultural . Apresentamos assim um estudo centrado na anlise dos discursos dos doentes terminais sobre as atitudes da enfermeira que vivnciam como manifestadoras de respeito por si. Nesta perspectiva, o estudo exploratrio e descritivo. Temos conscincia de que um estudo no se deve limitar obteno de um conjunto de dados sobre determinada situao, mas conter concepes e pressupostos tericoprticos que constituam uma base de apoio para o trabalho emprico. Assim, este trabalho apresenta-se organizado em dois captulos. Apesar de se tratar de um estudo que pretende analisar a experincia dos sujeitos, no poderamos deixar de iniciar a reflexo com um enquadramento conceptual, um referncia terico que fundamente a anlise a informao colhida. Assim, no captulo I, apresentam-se os aspectos inerentes pessoa humana e ao cuidado e ao o dever de respeito. Inclumos a anlise do respeito como dever, sobretudo a partir da filosofia kantiana; como veremos, nas obras do filsofo, o respeito definido como o sentimento pelo qual tomamos conscincia da presena da lei moral em ns. Mas um sentimento de um gnero particular: no tem por origem na sensibilidade mas na razo prtica o nico sentimento que podemos conhecer priori; pela razo conclumos ser nosso dever respeitar a lei moral, que se traduz no respeito pelos seres humanos como fins em si prprios. O respeito surge assim como um "dever", a que nos obrigamos livremente99 91

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Cf. OSWALD, W. - "Progresso da Cincia. Sentido e limites". In ARCHER, Luis; BISCAIA, Jorge; OSSWALD, Walter; RENAUD, Michel (coord.) - Novos Desafios Biotica. Porto: Porto Editora, 2001, p. 9-12 22 Cf. LEININGER, Madeleine - Qualitative research methods in nursing, Orlando: Grume and Approaches, 1985. Cristina Maria Correia Barroso Pinto 17

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na relao com o outro. Mas o respeito tambm um componente da relao de ajuda inerente aos cuidados de enfermagem. Por isso, esta perspectiva tambm includa na primeira parte do trabalho. Veremos que pelo respeito que qualquer interveno dever ter em conta a pessoa enquanto sujeito e parceiro do Cuidado e no objecto que cuidado. No captulo II, apresentada a investigao realizada, onde se refere a metodologia utilizada, o tratamento e anlise da informao recolhida e se termina com a interpretao dos resultados e concluses. Seguindo uma orientao fenomenolgica, tentaremos entrar no mundo dos doentes terminais internados numa unidade de Cuidados Paliativos, pretendendo compreender como vivenciam e qual o significado que atribuem aos actos dos enfermeiros que manifestam respeito. E isto porque acreditmos que a compreenso do seu ponto de vista, da sua vivncia pessoal, a forma que menos distorce (ainda que possa no ser perfeita) a realidade do fenmeno em estudo.

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CAPTULO IAcerca do respeito pela pessoa humana

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A pessoa um "ser no mundo", o locus da existncia humana, ela no apenas um organismo material e fsico, mas sim um ser com percepes e vivncias, ela , simultaneamente, iam ser bio-psico-socio-culturo-espiritual. Nesta perspectiva, ela no s um corpo, mas tambm um ser com uma mente pensante que ultrapassa o espao fsico e corporal. Toda a pessoa tm, assim, um "eu interior" que constitui a sua essncia e est ligado a um forte sentimento de autoconhecimento, a um alto grau de conscincia. Dar ateno dimenso da pessoa humana, implica uma fora orientadora que engloba as capacidades que cada pessoa conserva e que lhe permitem ultrapassar e transcender as experincias de vida actuais. Estas, incluem a capacidade de ter objectivos na vida, de amar e perdoar, de iniciativa e represso, entre outras. Segundo a viso sistmica de sade, toda a pessoa s encontra-se num estado de homeostasia, ou seja, num equilbrio dinmico onde mente e corpo esto em interaco constante. Efectivamente, poderemos dizer que existe uma unidade e uma harmonia ao nvel destas duas esferas, em que a pessoa capaz de cuidar de si, utilizando a mente de forma construtiva, exprimindo suas emoes, sendo criativa ao mesmo tempo que se implica no seu meio. Esta abordagem apoia-se num estilo de vida e sustenta um estado integrado em mudana constante, centrando a responsabilidade de si. A pessoa , assim, percebida como um sistema vivo, onde seus componentes esto interligados e so independentes. Mas, esta pessoa no um ser isolado em si, ela est em integrao contnua com o ambiente que a rodeia: ambiente econmico, social, cultural e csmico. O ambiente influencia-a e ao mesmo tempo influenciado por ela. Cristina Maria Correia Barroso Pinto 20

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O corpo de cada pessoa poder ser, ento, considerado como um campo de energia, situado dentro de outros campos de energia, coagindo mutuamente quer em situao de sade quer em situao de doena. Mas, como qualquer outro ser, nascemos, crescemos e desenvolvemo-nos; criamos uma histria de vida particular e nica. E, quando a doena se apodera de ns, revela-nos entre outros o conceito filosfico de vulnerabilidade e de finitude. Nele e na sua expresso, intrometem-se a fragilidade, mas tambm a cultura, a filosofia, o social, o econmico, o laboral, as expectativas individuais, a f, o valor e o sentido que damos vida. Esta realidade para alm de abrangente, possu uma sensibilidade de contornos muito delicados, mas capaz de temperar a vida. Estar doente, no seguramente indispensvel para se poder crescer. , com certeza uma faceta inexpugnvel da nossa existncia, da qual poderemos retirar algum ensinamento. Mas, no nem nunca ser objecto almejado no nosso quotidiano, ao contrrio do aforismo que diz "espera por sofrer para crescer". Acreditando que cada indivduo um ser nico com uma experincia de vida, capaz de se adaptar, crescer e aprender, teremos de compreender que tambm ele reage de forma diferente perante as situaes que enfrenta, sendo uma delas a doena. Todos ns nascemos com determinados potenciais que nos foram transmitidos pelo material gentico. Portanto, nascemos com determinadas qualidades e caractersticas; que nos permitem viver, envelhecer e morrer. S que, em determinada altura da nossa vida, a doena pode instalar-se devido nossa programao gentica ou independentemente dela. As pessoas no adoecem todas da mesma maneira e as alteraes causadas por essa doena podem desenvolver-se a um ritmo diferente para cada um de ns, dependendo tambm de factores externos, de que so exemplo: o estilo de vida, as actividades e o ambiente. Se bem que a doena pode reverter na cura, nem sempre isso possvel e, por vezes, ela tornar-se fatal. H quem diga que nascer desde logo morrer um pouco. Mas, no fundo, morrer desde sempre a certeza que qualquer homem tem. Apesar de hoje a esperana de vida ser' . .

Cristina Maria Correia Barroso Pinto . . .

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prolongada, cada um de ns reconhece que a sua vida limitada no tempo, no entanto, todos ns vivemos recusando-o obstinadamente. A esse respeito Philippe Aries, diz-nos: "Tecnicamente, admitimos que podemos morrer, fazemos seguros de vida para preservar os nossos da misria. Mas, verdadeiramente, no fundo de ns mesmos sentimo-nos no mortais''' . Qualquer que seja a sociedade, o lugar ou a poca, a morte no mais um acontecimento insignificante; ela toca inevitavelmente no domnio privado de cada um. A morte surge como o nascer, ela , sem dvida, o que pode existir de mais ntimo, indivisvel, incomunicvel, estando aberto aos mais prximos e, por outro lado, aos que vivem em grupo, em sociedade em que o desaparecimento, nascimento dum membro do grupo toca necessariamente nos outros. A consciencializao de que todo o doente uma pessoa, sendo esta "um ser no mundo e a sede da existncia humana" *, obriga-nos a respeit-lo, aceit-lo e cuid-lo, na sua singularidade tendo em conta a sua dignidade de pessoa humana. A pessoa humana s ou doente , acometida duma dignidade inquestionvel e intocvel. Esta perspectiva implica que cada doente seja tido em conta como pessoa que , e que pela sua vulnerabilidade acentuada pelo processo patolgico, exige dos profissionais nomeadamente das enfermeiras no apenas uma resposta s suas necessidades bsicas ou mais explcitas, mas uma resposta que o respeite em toda a sua totalidade de ser pessoa. Desta forma, cuidar implica reconhecer sempre o doente no apenas como um ser humano mas como uma pessoa. Como diz Sampaio o respeito deve estar presente em toda a interaco cuidativa uma vez que: "o doente seja qualfor o seu diagnstico e prognstico uma pessoa [...] um homem vivo at ao ltimo humano, momento, com dignidade especfica de ser2

como o

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ARIES, Phlilippe - Sobre a histria da morte no ocidente desde a idade mdia, 2 Ed., Lisboa: Editorial Teorema, 1989, p.66. 24 WATSON, Jean - Nursing: Human science and human care: A theory of nursing, New York: National League for Nursing, 1988, p. 88.

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irrepetvel, sujeito de opinies e sentimentos, com uma histria..." . O importante que cada doente seja reconhecido como pessoa e receba nos cuidados de sade a qualidade humana a que tem direito, bem como a resposta afectiva indispensvel para a alegria de viver mesmo nas horas de provao. com base em todos estes aspectos que optamos neste captulo por fazer uma reviso dos aspectos tericos relacionados com o respeito que devemos pessoa humana com doena terminal. Sendo assim, este captulo divide-se em dois pontos fundamentais. No primeiro fazemos referencia a aspectos relacionados com a pessoa humana e a sua doena. No segundo ponto debruamo-nos sobre o respeito que devemos pessoa doente em fase final de vida.

25

SAMPAIO, Fernando - Um contributo para a humanizao hospitalar. Hospitalidade, AbrilJunho, 1991, p.26.

Cristina Maria Correia Barroso Pinto

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1 - Pessoa - Entre a sade e a doena Em todos os tempos e em todas as culturas encontramos descries de situaes de doena. Todos ns j ficamos doentes, ainda que no tenha passado de uma simples gripe. A doena representa um obstculo importante que dificulta ou incapacita o desenvolvimento normal do que se entende dever ser a vida humana, porque nos afecta. Portanto, ela foi e sempre ser uma preocupao constante. Poderemos perguntar: Que possibilidade tenho de estar doente? ou ento, Porque estou doente? Esta foi sempre, e ainda , nos dias de hoje, vima pergunta comum. Desde o incio da evoluo humana, tm havido registos de doenas e de seus efeitos sobre o corpo e a mente. A prpria Bblia apresenta relatos sobre mltiplas enfermidades; contudo, as ideias sobre as doenas tm sido influenciadas pela cultura dominante e pelo pensamento cientfico de cada poca. Nas primeiras teorias sobre as causas das doenas, estas eram encaradas como uma forma de possesso demonaca. Os curandeiros frequentemente usavam poes e cantos para livrar o corpo do demnio que o possua causando a doena. Em algumas pessoas eram inclusivamente feita trepanao para possibilitar que os espritos maus, apontados como causadores da doena pudessem deixar o corpo . Em diversas culturas, ainda hoje acreditam que as doenas so uma punio por pecados. Este conceito, embora que em parte possa parecer ultrapassado, no raro em pessoas que vivem nos nossos dias. Facto que pode causar um stress significativo quer para o prprio quer para seus familiares, aquando da avaliao de factos passados.26

26

Na trepanao, praticada por culturas na frica oriental, so cortados o couro cabeludo e os msculos subjacentes de modo a pr a descoberto uma grande parte do crnio. Depois disso o "doktart raspa o crnio fazendo perfuraes, enquanto que o celebrante segura sob o queixo um vaso destinado a recolher o sangue que escorre, perante a passividade dos espectadores, cf. MELZACK, Ronald; WALL, Patrick - Psicologia da dor. O desafio da dor, Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1982, p.28. Cristina Maria Correia Barroso Pinto 24

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Recordemos que, em meados do sculo XLX, a maioria da populao no tinha conhecimentos acerca das infeces bacterianas e modos de propagao das doenas, ignorando as precaues mais elementares. Assim, as motivaes espirituais e humanitrias tinham uma influencia profunda nos cuidados prestados aos doentes da poca. Com efeito, os cuidados que se dedicavam ao corpo tinham como finalidade77

manter o cuidado alma . Florence Nigthingale, graas sua educao e experincia em cuidados a doentes, revelou-se como sendo uma pessoa qualificada e disposta a enfrentar o desafio de organizar os cuidados aos doentes em hospitais militares ingleses durante a guerra da Crimea. Acompanhada de quarenta enfermeiras laicas e religiosas, Florence tentou28

adoptar nesses hospitais as condies de higiene mais elementares . Nos finais do sculo XLX, num contexto marcado por a expanso do controle das infeces, pela melhoria dos mtodos antisspticos, de assepsia e das tcnicas cirrgicas, surge uma orientao dirigida para a doena . A irradicao das doenas transmissveis tornou-se a prioridade entre os anos 1900-1950. A sade passa a ser considerada a ausncia de doena, reduzindo-se por sua vez, a uma causa nica segundo o qual orientado o tratamento. Segundo esta orientao o cuidado est baseado nos problemas, dfices ou incapacidades da pessoa. Cada profissional delimita as zonas problemticas que so de27

29

Cf. COLLIRE, Marie-Franoise - Promover a Vida, 2 Ed., Lisboa: Lidei Edies Tcnicas Lda., Maro, 1999, p.61-65. 28 Formada em matemtica, estudou as estatsticas relacionadas com as melhorias sanitrias e as taxas de mortalidade e, em menos de seis meses, as enfermeiras que com ela trabalhavam, ganharam o respeito dos cirurgies militares, em princpio opostos presena de mulheres no seio da armada inglesa. Segundo esta autora, preocupada com os problemas da sade pblica, os cuidados aos doentes eram baseados no somente na compaixo, mas tambm na observao e experincia, nos dados estatsticos, no conhecimento em higiene pblica e nutrio e tambm sobre as competncias administrativas. A actividade da enfermeira estava direccionada para o conforto da pessoa com a inteno de manter e recuperar a sade, prevenir as infeces e feridas, ensinar os modos de vida s e controlar as condies sanitrias. Os cuidados eram, assim, dirigidos a todos, sos ou doentes, independentemente das diferenas biolgicas, classe econmica, crenas e valores. Nigthingale considerava ainda a pessoa segundo a sua componente fsica, intelectual, emocional e espiritual, assim como sua capacidade e responsabilidade para alterar uma situao existente. Este potencial da pessoa era, ao mesmo tempo, conhecido na actividade da enfermeira, que orienta a sua aco tendo em conta a mudana. 29 Cf. DOLAN, J.A.; FITZPATRICK, M.L.; HERRMAN, E.K. - Nursing in Society: A Historical a Perspective, 15 Ed., Philadelphia: W.B. Saunders Company, 1983. Cristina Maria Correia Barroso Pinto 25

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sua competncia e planifica, organiza, coordena e avalia as suas aces. Em suma, nesta poca a pessoa vista como a soma de suas partes, em que cada parte reconhecida e independente, isto , comea e termina num ponto fixo, sem contacto com nenhuma outra parte. A sade um equilbrio altamente desejvel e percebida como um facto "positivo". Sendo a sade considerada contrria doena, tanto a morte como a doena devem ser combatidas a qualquer custo. Na medida em que a pessoa um todo formado por a soma de cada uma das suas partes, as componentes biolgica, psicolgica, social, cultural e espiritual esto todas interrelacionadas. A pessoa, ento considerada como um ser bio-psico-scio-culturoespiritual, pelo que pode influenciar os factores preponderantes de sade tendo em conta o contexto em que se encontra. Procura as melhores condies possveis para obter uma sade e um bem-estar ptimos. Nesta orientao, baseada na pessoa, sade e doena so duas entidades distintas que coexistem e esto em interaco dinmica. De acordo com este modelo, a sade concebida como sendo a ausncia de doena e esta conceptualizada considerando exclusivamente as perturbaes que se processam na dimenso fsica ou biolgica da pessoa. Segundo este ponto de vista, ter sade equivalente a no estar doente, o que equivale a dizer que tratar doenas significa criar sade. Esta viso redutora do estado de sade, no apoiada pela Organizao Mundial de Sade (OMS), conforme demonstrado na sua definio de 1946 e que ainda aceite actualmente: "a sade um estado de completo bem-estar fsico, mental e social e no meramente a ausncia de doena ou enfermidad'\ Nesta perspectiva, a sade definida num sentido positivo no sendo caracterizada apenas como a ausncia de doena. A definio da OMS parece ter sido baseada numa definio sugerida por um historiador da medicina, o qual contrariava uma viso sistmica do estado de sade: "A sade [...] no simplesmente a ausncia de doena: algo de positivo, uma viso alegre da vida e uma aceitao das responsabilidades que ela coloca ao indivduo" .

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SIGERIST, H.E. - Medicine and Human Welfare. New Haven: Yale University Press, 1941, p. 100. Cristina Maria Correia Barroso Pinto 26

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Ambas as definies sugerem, pois, que os critrios de sade no se podero basear apenas na dimenso biolgica, apontando claramente para a incluso das dimenses psicolgica e social. Portanto, tratar doenas no a mesma coisa que criar sade. Criar sade exige uma viso do ser humano que transcende o conhecimento especializado da biologia, pois ter de se atender complexidade e globalidade do ser humano em relao com o seu ambiente. Apesar da sua concepo multidimensional, a definio de sade da OMS tem sido criticada pelo seu sentido utpico e por no enfatizar os aspectos adaptativos da pessoa face s suas perturbaes. O conceito de uma sade positiva e perfeita parece ser mais uma expresso de boa vontade mas com pouco sentido da dialctica adaptativa do ser humano. Na verdade, o ser humano nunca conseguir atingir um estado de adaptao perfeito. O confronto com situaes problemticas e a resoluo de problemas, bem como os erros e os sofrimentos so situaes tpicas da vida das pessoas, sendo impossvel antecipar todas as situaes que podem conduzir doena ou inadaptao. Para Dubos, critico da definio da OMS, um conceito de sade que apele para um estado ideal pode tornar-se perigoso se o seu carcter inatingvel for esquecido. Longe de constituir um estado final de equilbrio, a sade parece ser melhor representada por um processo dialctico de adaptao da pessoa, na sua globalidade, s ameaas do ambiente em que vive: "A abordagem mais plausvel, consiste em definir a sade como sendo um estadofisicoe mental relativamente liberto de dor e de desconforto, e que permite pessoa funcionar to bem quanto possvel e no maior perodo de tempo, no ambiente em que a casualidade ou a escolha a colocaram^ . Nesta linha, as definies de sade e de doena parecem apenas fazer sentido quando so referenciadas em termos da actividade da pessoa num determinado contexto fsico, psicolgico e social. Isto quer dizer que estas definies no esto enquadradas no mbito de uma viso holstica da pessoa no contexto de uma determinada cultura. Paralelamente acrescentamos, que no poderemos esquecer que as significaes

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DUBOS, R. - Man Adapting. New Haven: Yale University Press, 1980, p.351. Cristina Maria Correia Barroso Pinto 27

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pessoais sobre o que significa ter ou no ter sade podem basear-se em critrios subjectivos, podendo aqui aplicar-se o aforismo "cada cabea sua sentena". Em 1978 a Conferencia Internacional sobre os Cuidados de Sade Primrios destaca a necessidade de proteger e promover a sade de todos os povos do mundo. A OMS, autora da declarao de Alma-Ata, reconhece as relaes entre a promoo, a proteco da sade dos povos e o progresso equitativo sobre o plano econmico e social. A OMS prope assim um sistema de sade baseado sobre uma filosofia em que "os homens tm o direito e o dever de participar individual e colectivamente na planificao en'y

realizao das medidas de proteco sanitria que a ele so destinadas'" . A populao , assim, um agente da sua prpria sade, participando ela mesma com o mesmo empenho que um profissional de sade. Dentro desta ptica, a pessoa considerada como um ser nico cujas mltiplas dimenses formam uma unidade. Este ser inteiro e nico, indissocivel do seu universo . A pessoa est em relao constante com o seu prprio ambiente ou seu meio prximo, ou seja exterior e interior a ela. A sade concebida como uma experincia que engloba a unidade do ser humano e do ambiente. A sade no um bem que se possui, um estado estvel ou uma ausncia de doena. Formando parte da dinmica da experincia humana, a sade integra-se na vida do indivduo, da famlia e dos grupos sociais envolvendo um ambiente particulaf .u 33

Segundo Dufresne "at finais do sculo XIX, o homem viveu sobre a terra, durante o sculo XX viveu da terra, agora toma conscincia de que vive com a terra" . Esta consciencializao modifica a concepo do ser humano, do ambiente e da sade. Dito de outra forma, a expanso dos meios de comunicao e a qualidade de seu contedo facilitam a partilha de conhecimentos a um ritmo cada vez mais rpido. As pessoas

32

ORGANIZAO MUNDIAL DE SADE - Os Cuidados de Sade Primrios, Informao da Conferencia Internacional sobre os Cuidados de Sade Primrios, Genebra, 1978 (Srie: "Sade para todos",nl), p.2. 33 Cf. MARTIN, C. - Les soins de sant primaires...une notion dchiffrer. Nursing Quebec, 4(6), 1984, p . 6 - 13 . 34 Ibidem, p.9. 35 DUFRESNE, J. - Le sommet de la terre: vivre avec la terre, La presse, 23 Mai, 1992, p.B3.

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empenham-se em assumir uma responsabilidade maior na tomada de decises no que concerne na sua educao para a sade. Esta responsabilidade tem igualmente um carcter colectivo, orientando suas directrizes para uma sade global baseada numa tecnologia que no somente tem em conta os recursos disponveis, mas tambm a dignidade do ser humano. Esta orientao de abertura sobre o mundo influencia necessariamente a natureza dos cuidados ao doente. O cuidado dirigido ao bem-estar, tal como a pessoa o define. A enfermeira tendo acumulado diversos conhecimentos, acompanha-a na sua maneira de ver a sade seguindo o seu ritmo, isto , utiliza todo o seu ser, incluindo uma sensibilidade que compreende os elementos para alm do visvel e palpvel. Intervir significa "estar com" a pessoa. Enfermeira e pessoa doente, so companheiras num cuidado individualizado. Numa esfera de mtuo respeito, a enfermeira acredita na possibilidade do desenvolvimento do seu prprio potencial. Gottlieb e Rowat defendem que em termos gerais quer a sade quer os seus hbitos se aprendem. E, a aprendizagem que feita sobre esses factos, pode ser feita em diversas situaes e em diferentes meios como so exemplo a casa, a escola, o hospital ou o trabalho36

. Estes autores consideram a pessoa integrada num sistema em interaco

constante. Sade e doena so assim expresses do processo de vida, no sendo opostas nem divididas. A sade pode ento ser vista como a realizao contnua de mim mesmo como ser humano unitrio sendo, por sua vez, a doena integrada na sade; ela , parte do processo de expanso da conscincia de mudana. As atitudes para com a doena modificam-se muito, no entanto, algumas doenas ainda acarretam consigo um estigma. Um exemplo disso so as vises que a sociedade possui de algumas pessoas com perturbaes mentais, SIDA ou mesmo com doenas venreas que so tratadas, ainda que ocasionalmente, como prias da sociedade.

Cf. GOTTLIEB, L.; ROWAT, K. - The McGill Model of Nursing: A practice - Derived Model. Advances in Nursing Science, 9(4), 1987, p.5161. Cristina Maria Correia Barroso Pinto 29

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Actualmente, ainda se atribuem critrios de valor ao conceito de sade. Assim, a sade fsica e mental considerada como uma coisa boa, desejvel e merecedora de elogios; ao passo que a m sade , muitas vezes considerada como um castigo e, em muitas culturas tida como vergonhosa e perversa. Segundo Marriner-Tomey, Martha Rogers desde 1970 que apresenta uma concepo da profisso de enfermagem que se distingue das outras pela sua originalidade. Martha Rogers evita o conceito de holismo devido m utilizao que muitos fazem do termo, preferindo o conceito de pessoa unitria, ao mesmo tempo que convida a enfermeira a desenvolver a cincia do ser humano unitrio . Marriner-Tomey acrescenta que Martha Rogers considera a pessoa como um ser que sente, pensa e capaz de participar criativamente na mudana. Considera ainda que os seres humanos so campos de energia dinmicos que se integram e interagem com os campos de energia do ambiente. Tanto o homem como o ambiente so assim, percebidos como campos de energia irredutveis, integrados uns nos outros, fazendo parte de um processo contnuo e criativo em permanente evoluo. O termo sade referido em muitos de seus trabalhos, ainda que, na realidade nunca lhe tenha atribudo uma definio concreta. Para esta autora sade um valor definido pela cultura e pelo indivduo, sendo que manifesta caractersticas . Na verdade, e de acordo com o exposto por Marriner-Tomey, o modelo de Martha Rogers influenciou muitos dos postulados actuais, e uma prova disso so os "Padres de Qualidade dos Cuidados de Enfermagem" adoptados pela Ordem dos Enfermeiros que no seu quadro conceptual que constitui a base de trabalho da qualidade do exerccio profissional dos enfermeiros nos diz:37

este uma

uma totalidade unificada srie de

Cf. MARRINER-TOMEY - Modelos y teorias en enfermera, 3 Ed., Madrid: Mosby, 1994, p.213. 38 Martha Rogers define o ser humano unitrio como sendo um ser com vontade prpria, um campo de energia que interage com o meio ambiente num permanente equilbrio, portanto a pessoa uma totalidade do ser, ela mais do que a simples soma de todas as suas partes. nesta perspectiva que faz uma clara distino entre a viso holstica (soma de todas as partes constituintes do ser: biolgica, psicolgica, social, cultural, etc.) e a viso do ser humano unitrio, cf. GONZALEZ GEORGE, Jlia a B. e col. - Martha E. Rogers: Teorias de Enfermagem: Os fundamentos prtica profissional, 4 Ed., Porto Alegre: Artmed, 2000. Cristina Maria Correia Barroso Pinto 30

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"A pessoa um ser social e agente intencional de comportamentos baseados nos valores, nas crenas e nos desejos da natureza individual, o que torna cada pessoa num ser nico, com dignidade prpria e direito a auto-determinar-se. Os comportamentos das pessoas so influenciados pelo ambiente no qual ela vive e se desenvolve. Toda a pessoa interage com o ambiente: modifica-o e sofre influencia dele durante todo o processo de procura incessante do equilbrio e harmonia" . De acordo com o quadro conceptual da Ordem dos Enfermeiros a sade vista como uma perspectiva de adaptao criativa, no sendo esttica ela um processo dinmico que se desenrola atravs de mudanas na organizao da pessoa. Quando a perturbao excede as capacidades do organismo, criando um estado de desordem, ocorrem flutuaes globais que levam a uma reorganizao do sistema. No um regresso ordem anterior mas sim uma nova ordem, mais complexa que a anterior. O novo equilbrio que emerge para resolver a perturbao no sistema, est longe de ser um retorno a um estado de equilbrio anterior (homeostasia). Trata-se pois, de uma alterao irreversvel na identidade estrutural da pessoa que consegue assimilar as perturbaes que iniciaram a transformao. Claro est que a reorganizao pode falhar, sofrendo a pessoa as consequncias disso. Por exemplo, o organismo pode sofrer um processo de falncia total levando sua morte ou, ento, o organismo no morre mas a perturbao mantm-se. Assim, o processo de perturbao do equilbrio pode criar oportunidades para uma reorganizao conduzindo a pessoa a um estado de melhor adaptao mas tambm pode dar origem a um processo degenerativo ou de desequilbrio.

1.1 - A doena terminal "...a morte do homem, a morte de cada homem, sendo um acontecimento natural no um acontecimento trivial, no nunca trivial. O fim natural da minha vida, a minha morte para mim, como ser consciente, o mais importante acontecimento da minha vida; por ser finita, por ser limitada no tempo, que a vida individual tem o grande valor que todos lhe atribumos. Viver um tempo limitado um desafio grandioso, orienta os nossos desejos e as nossas escolhas, faz-nos correr para uma meta que no39

PADRES DA QUALIDADE DOS CUIDADOS DE ENFERMAGEM Exerccio. Ordem dos Enfermeiros, Lisboa, 5, Janeiro, 2002, p.23.

A Excelncia do

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vemos mas que sabemos, de certeza certa, que est l nesse ponto sem retorno, nessafronteira invisvel entre o estar vivo e o estar morto' .

Quando retrocedemos no tempo e estudamos culturas e povos antigos, apercebemo-nos que o homem sempre abominou a doena e a morte e, muito provavelmente, sempre a repelir . At certo ponto de vista, isto bastante compreensvel e talvez se explique melhor pela noo bsica de que, em nosso nomeadamente a doena terminal, nunca possvel inconsciente, a doena, quando se trata de ns41

mesmos. inconcebvel imaginar um fim real para a nossa vida na terra e, se esta tiver um fim, ser sempre atribudo a uma interveno fora do nosso alcance. Para a maioria das pessoas, a doena uma intruso indesejada. um aborrecimento, um obstculo realizao de qualquer objectivo que se tem na vida. No entanto, h quem a considere como um desafio, onde os obstculos para a vencerem e a fraqueza conduzem a realizaes maiores que, de outro modo no teriam sido possveis conseguir. Durante os ltimos dez a quinze anos, surgiu um interesse crescente a favor aos cuidados ao doente terminal que tem sido paulatinamente incrementado no nosso pas. Poderemos dizer que actualmente ainda no dispomos de critrios rigorosos que nos permitam identificar com clareza e objectividade um doente terminal, sob o risco de um diagnstico equivocado. No entanto, existem algumas definies para este perodo evolutivo, embora todas elas incompletas ou inexactas, de tal forma que no existem dados clnicos ou analticos que nos permitam reconhecer de forma exacta e com segurana esta fase. Desta forma, para alguns autores a fase terminal comea quando a morte se sente como uma realidade prxima e a medicina dirige toda a sua aco parta o alvio dos sintomas, renunciando a cura . O perodo de tempo em que ocorre essa realidade prxima, ou seja a morte, depende da vertente do autor, h quem o defina como um perodo de dois40

42

SERRO, Daniel - O doente terminal. Geriatria, Lisboa, III (28), Maro, 1990, p.36. 41 Cf. KUBLER-ROSS, Elisabeth - Sobre a morte e o morrer, So Paulo: Martins Fontes; 1998, p.6.42

Cf. SOROKIN, Patrcia - Aproximacion Conceptual a Cuestiones Humanas: Todos Somos "Terminales", [Documento WWW] URL http://www.bioetica.org/sorokin.html 15 de Maro de 2002, p.3 de 6. Cristina Maria Correia Barroso Pinto 32

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meses, no entanto, existem autores que so mais flexveis, afirmando tratar-se de um perodo que poder ir de trs dias a seis meses. Durante muitos anos, associou-se a doena terminal ao cancro; efectivamente o cancro representa uma das principais causas de morte na actualidade. De modo que, em determinadas situaes, os critrios para a sua definio estavam relacionados com o crescimento tumoral. Assim, a doena terminal era evidente, quando o crescimento tumoral se tornasse progressivo de tal modo que no se pudesse esperar que os tratamentos especficos prolongassem a sobrevida de maneira significativa. Estas definies tendem a simplificar o problema embora que imaturas devido falta de concretizao e objectividade. Talvez de todas as definies a que mais nos agrada a que define doente terminal como a pessoa que apresenta um estado clnico que provoca uma expectativa de morte a breve prazo . Por outras palavras, poderemos dizer, que se trata de uma pessoa portadora de uma doena crnica incurvel e progressiva, que caminha irreversivelmente para um processo de morte, num perodo de tempo relativamente curto. Segundo Gonzalez Barn, Jaln e Feliu, aps instalada a doena existem diversas etapas pelas quais a pessoa passa at chegar fase terminal. Estas fazem parte de um processo evolutivo e esto relacionadas com o objectivo do tratamento. Na primeira fase a terapia orientada de modo a obter a cura da doena ou o prolongamento da vida, mediante medidas para reduo da sua causa. Esta fase protagonizada pela existncia de tratamentos especficos: tratamentos mdicos que podero ser ao mesmo tempo combinados com tratamentos cirrgicos. A inteno irradicar a doena, contribuindo assim para a cura .43

Cf. PIVA, Jefferson Pedro et ai. - Consideraes ticas nos Cuidados Mdicos do Paciente Terminal, [Documento WWW] URL http://www.cfin.org.br/revista/bio2vl/direitdeve.html, 15 de Maro de 2002, p . 2 d e l l . 44 Cf. GONZALEZ BARN, M.; J. JALN, J.; J. FELIU - Definition del enfermo terminal y preterminal: Tratado de Medicina Paliativa, Madrid: Panamericana, 1995, p.1084-1087. Cristina Maria Correia Barroso Pinto 33

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A segunda fase acontece aps esgotados os tratamentos intencionais de cura ou de prolongamento da vida, o doente mantm ainda uma esperana de vida de, pelo menos, seis meses. Durante este perodo, o doente pode permanecer quase assintomtico. Mantm uma situao clnica relativamente estvel, com sintomas menores. Aos poucos vai caminhando para um perodo intermdio, com sintomas incapacitantes e com diminuio da sua qualidade de vida, embora que com uma esperana de vida superior a dois meses. Encontra-se numa situao terminal progressiva. Aqui a teraputica especfica pode aplicar-se somente como medida paliativa. o que muitos autores chamam de fase pr-terminal . Na terceira fase ou fase terminal o doente tem uma esperana de vida curta, no superior a dois meses. Existe insuficincia de rgos ou sistemas e complicaes irreversveis e finais . Quando se trata de uma doena terminal, no , de modo algum incomum, as pessoas adoptarem uma atitude de culpa e vergonha em relao aos seus prprios sofrimentos. Existem inclusivamente pessoas que no aceitam, pura e simplesmente, conselhos ou tratamentos porque no podem admitir que esto doentes. Ao mesmo passo que se torna estranho que certas doenas sejam ocultadas muito mais frequentemente do que outras, em virtude do sentimento de culpa ser mais acentuado. s vezes, este sentimento de culpa parece quase racional e associado com a convico de que a doena poderia ter sido evitada . A atitude perante determinadas doenas mostra-nos at que ponto os nossos critrios morais esto relacionados com o processo de doena em si, atingindo por vezes uma atitude parcialmente racional. Por exemplo, nos casos em que mulheres apresentem um ndulo no seio, um corrimento vaginal ou um prurido vulvar, sexo e doena adquirem um relacionamento ntimo, tornando a atitude para com esta menos racional e a sensao de culpa mais perturbadora.46

45

Cf. Cf. Cf. 34

Idem.46

Idem.47

Idem. Cristina Maria Correia Barroso Pinto

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Por outro lado, as consequncias da doena por vezes tambm ameaam a prpria expresso da sexualidade. As alteraes que pode provocar na imagem corporal como so exemplos a queda do cabelo provocada por determinado tratamento ou mesmo alguma mutilao corporal, podero fazer com que essa pessoa doente tenha dificuldade em a suportar . Ter uma doena terminal adquire, neste mbito, provavelmente uma expresso mxima de sofrimento na pessoa. A sua gravidade, intensidade e dureza, transformam assim o meu corpo doente na minha pessoa doente. J no tenho uma doena, um corpo doente; sou uma pessoa doente. Esta passagem do ter para o ser evoca-nos a unidade da pessoa na qual se interpenetram corpo e mente. E, se o corpo di, a mente sofre. Temos conscincia de que o nosso corpo no tudo, mas tudo passa por ele: a conscincia de existir em si e de poder relacionar-se com os outros, passa pelo corpo; no e pelo corpo acontece e manifesta-se a nossa situao na histria e no espao, mas tambm nele e por ele que se revela e manifesta a minha fragilidade e incapacidade. O trabalho, a relao, a amizade revelam-se na vida fsica; tambm no e pelo corpo que temos conscincia da fragilidade. A doena altera os nossos conceitos de "senhor de si" e induz o de precariedade, o meu corpo torna-se "outro", depende dos outros, incapaz de servir, complica a vida dos outros que me servem . Para a pessoa doente, mergulhada na conscincia viva da fragilidade do corpo, a experincia que toma contornos mais ntidos a finitude . Todos sabemos, desde muito cedo, que somos finitos, mas quase diariamente devemos aprender de novo a juno entre o saber da finitude e a vivncia existencial. Se algum nos pede para responder pergunta "O que ser finito?", no teramos a mnima dificuldade em indicar que um dia teramos de morrer. Mas, principalmente na idade jovem, tal perspectiva to remota que o saber quanto ao fim da nossa vida gera habitualmente uma preocupao48 a

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49

50

Cf. MARQUES, A. Reis et ai. - Reaces emocionais doena grave. Como lidar..., l Ed., Coimbra: Ed. Psiquiatria Clnica, Dezembro, 1991, p.23-24. 49 Cf. LOPES, Pereira - O Corpo da Pessoa: Que lugar ocupa nos cuidados de enfermagem?. Nursing, Lisboa, 138 (12), Novembro, 1999, p.2024. 50 Cf. RENAUD, Isabel - A tica face a situaes limite do corpo. Brotria, Braga, 145 (6), Dezembro, 1997,p.603-613.

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fugaz e distante. Com a conscincia viva da fragilidade do corpo, a situao modifica-se insensivelmente; como se o conhecimento (saber) passasse atravs do corpo para se fixar na afectividade. A interpretao desta desordem corprea, deste caos biolgico , indiscutivelmente, muito pessoal, interior e profunda. , ou poder ser, aquilo a que chamamos a expresso do sofrimento. No somente de sofrimento fsico mas sim de sofrimento espiritual, ntimo. Relativamente ao aspecto mais ntimo, as experincias subjectivas do doente face aos sinais observveis, externos e objectivos, fazem lembrar que a cincia e a filosofia ainda no explicaram a relao entre o esprito e o corpo . Parece ser senso comum lembrar que o esprito e o corpo de uma pessoa so componentes de um todo orgnico. Mas, por vezes somos tentados, a dar prioridade a um particular que temos de sade e de doena. O erro de colocar o esprito acima do corpo, por exemplo, evidente na forma como frequentemente damos significado ou sentido doena. Por exemplo, muitas pessoas pensam que a doena ou leso castigo por um determinado comportamento, como sofrer de cancro da garganta ou do pulmo depois de fumar "anos a fio" ou como contrair SIDA atravs do uso ilegal e desprevenido de drogas. Mais subtilmente, algumas pessoas sugerem a existncia de relaes entre os traos de personalidade ou atitudes e a susceptibilidade a certas doenas ou a capacidade de lidar com elas ou mesmo ultrapass-las. O cancro, por exemplo, pensou-se estar ligado a uma personalidade que reprima a expresso de sentimentos fortes, ou ser uma resposta a emoes reprimidas . Tm sido desenvolvidas pesquisas interessantes visando no s a relao entre a doena e estados afectivos, como a depresso, optimismo e pessimismo, como tambm a51

51

deles, o qual depende

frequentemente da nossa prpria filosofia, da nossa viso intelectual e do conceito

Cf. Idem. 32 Cf. SONTAG, S. - Illness as metaphor, New York: Farrar, Straus and Giroux, 1978, p.134.

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relao entre o stress e o sistema imunolgico. Os efeitos do estilo de vida, comportamentos e escolhas alimentares (como carne mal passada, acar e gordura saturada) tm igualmente sido alvo de pesquisa. , no entanto, importante para os doentes e para os prestadores de cuidados no ignorar as bases fisiolgicas reais de muitas doenas. Enfatizar exageradamente o papel da atitude de uma pessoa, do seu estilo de vida ou comportamento para o desenvolvimento da doena pode dar azo a que se atribua um peso excessivo responsabilidade do prprio doente nesse processo. Algumas pessoas conseguem controlar melhor que outras as suas atitudes ou comportamentos, mas esse controlo no significa que a doena seja simplesmente uma escolha individual. Doena e sade no se encontram totalmente sob o nosso controlo, ver a doena como um castigo, tanto de um comportamento especfico como de um estilo de vida adoptado, pode por vezes transformar-se numa barreira aos cuidados de sade. A resposta que poderemos ter face ao estar doente, depende da situao em si, mas tambm da interpretao que cada um de ns faz dela. O significado funciona como um ncleo cognitivo que influencia respostas emocionais e motivacionais perante a doena. Cada pessoa elabora um significado que reflecte as experincias pessoais prvias, as crenas, o grau de conhecimentos e a bagagem cultural . No nos podemos esquecer que cada um de ns tem um projecto pessoal de vida. Assim, podemos imaginar que uma doena que obrigue a pessoa a levar uma vida mais protegida, no ter o mesmo significado nem ser vivnciada da mesma maneira se ocorrer numa dona de casa ou em algum que possua uma carreira profissional activa e a tenha como um de seus objectivos prioritrios. No mundo ocidental, numa sociedade marcadamente caracterizada pelo imperativo do consumo, pelo sentido de "ser bem sucedido", o doente terminal assume um papel de isolamento, dependncia, afastamento social e profissional e, talvez o mais difcil de suportar, o sentimento de inutilidade.53

Cf. DOMINGUES, Fr. Bernardo - Efeitos das doenas na vida das pessoas. Servir, Lisboa, 47 (3), Maio/Junho, 1999, p.l 14-116. Cristina Maria Correia Barroso Pinto 37

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Todos sabemos que a alterao da sade em qualquer pessoa produz uma mudana, uma alterao na sua personalidade, um desequilbrio no seu sentido de identidade. Da que numa primeira fase todos tenderamos a negar a sua existncia. Esta negao inicial funciona, segundo Elisabeth Kubler-Ross, como um "pra-choqu'' depois de notcias inesperadas e chocantes. A negao, embora contribua para o isolamento uma defesa temporria, sendo logo substituda por uma aceitao parcial. O passar do tempo faz com que gradualmente se recupere . A mesma autora afirma que frequente as pessoas acreditarem que a doena um castigo por qualquer m aco - segunda fase. Algumas pessoas que se sentem culpadas, consideram a doena um castigo merecido, outras acham que esto a ser castigados injustamente ou perguntam o que fizeram para merecer tal sofrimento. A ideia da doena ser uma forma de castigo muito frequentemente expressa em palavras, quer pelo prprio, quer por um familiar angustiado no se cansando de afirmar aos profissionais de sade a injustia que est a ser feita com seu destino. Por vezes, h quem procure um responsvel pelo seu sofrimento. Este pode ser atribudo a actos passados ou mesmo a uma pessoa em questo, o que leva a que determinadas pessoas se voltem para Deus onde encontram o conforto que necessitam ou se revoltem contra ele . A terceira fase: negociao, corresponde ao acordo que feito, muitas vezes em silncio, para que possamos adiar o desfecho final. Na realidade, a negociao, uma tentativa de adiamento, onde se inclu um prmio oferecido e se estabelece uma meta auto-imposta (por exemplo o casamento de um filho ou o nascimento de um neto). A pessoa doente assume o compromisso implcito que no pedir outro adiamento, caso o primeiro seja concedido . Quando o doente em fase terminal no pode mais negar nem esconder a sua doena, sua revolta e raiva cedero lugar a um sentimento de grande perda. Esta perda poder apresentar muitas facetas: perda de emprego, encargos financeiros acrescidos, perda da54

55

Cf. KUBLER-ROSS, Elisabeth - Sobre a morte e o morrer, 1998, p.4354.55 56

Cf. Ibidem, p.55-86. Cf. Ibidem, p.89-

90.

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sua imagem, perda de papeis familiares, etc. Estas perdas podem levar depresso quarta fase . Aps ter tido o tempo necessrio, a pessoa atingir uma fase em que nunca mais sentir depresso nem raiva quanto ao seu destino - quinta fase: aceitao. Ter podido manifestar seus sentimentos, sua inveja pelos vivos e sadios e sua raiva por aqueles que no so obrigados a enfrentar a morte to cedo. Ter lamentado a perda iminente de pessoas e lugares queridos e contemplar seu fim prximo com um certo grau de tranquila expectativa. Estar cansado e, na maioria dos casos, bastante fraco. Sentir necessidade de dormitar com frequncia e intervalos curtos. No um sono de fuga, nem um perodo de descanso para aliviar a dor ou um incmodo. E uma necessidade gradual e crescente de aumentar as horas de sono, como um recm-nascido, mas em sentido inverso. No um desanimo resignado e sem esperana "O que adianta?" ou "No aguento mais lutar!", embora se possam ouvir estas frases. No se dever confundir aceitao com um estagio de felicidade. como se a dor se tivesse esvanecido, a luta tivesse cessado e fosse chegado o momento do "repouso antes da longa viagem" . Todas estas fases to bem definidas por Kubler-Ross, tm durao varivel, um substituir o outro ou podero mesmo encontrar-se lado a lado. Mas por vezes persiste, em todas estas fases, uma nica coisa: a esperana. E essa esperana que os sustenta atravs dos dias, das semanas ou dos meses de sofrimento. a sensao de que tudo deve ter algum sentido, que pode compensar, o suportar do sofrimento por mais algum tempo. a esperana, que de vez em quando se alude de que tudo isto no passa de um pesadelo irreal; de que numa linda manh se possa acordar com a notcia de que os mdicos esto prontos para tentar um novo medicamento que parece promissor e que o vo testar em ns; de que talvez seja o escolhido, o "doente especial". esta esperana que, no fundo, tempera a vida e faz encontrar o seu verdadeiro sentido.5

51 58

Cf. Ibibem, p.91-116. Cflbidem,p.l 17-142. 39

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1.2 - Os Cuidados Paliativos " bastante provvel que o homem seja o nico ser vivo com conscincia da inevitabilidade biolgica da sua prpria morte. Este conhecimento parece, no entanto, no trazer maior parte dos homens a grande vantagem que lhes estaria inerente: a alegria suprema de estar vivo em cada dia que passa. Pelo contrrio, para esses mesmos homens, apenas um dia a menos para chegar ao fim do caminho. nossa volta, nas palavras escritas e ditas, a morte aparece sempre como oposio vida quando, no fundo, ela apenas uma parte daprpria vida" . Como j temos vindo a referir, o sofrimento da pessoa em fim de vida, est muito para alm dos seus sintomas e do plano estritamente fsico. E, no sofre s quem est a morrer, nem a quem a morte pesa, pois a sua influencia to grande que todos os que lhe esto prximos - familiares, amigos, colegas de trabalho, profissionais de sade sentem a sua presena. como se cada um de ns, perante a morte de seus semelhantes, tivesse a anteviso da sua prpria morte. No admira que a morte, envolta em densa espiritualidade, esteja presente em todas as religies, desde as origens do homem na terra. E, curiosamente, em todas elas, os ritos da morte so ritos de passagem, uma vez que a vida, na fase passada na terra, corresponderia a um estado passageiro, a caminho de uma outra realidade, apenas imaterial em funo da pobreza e da elementaridade dos nossos sentidos . Os cuidados aos doentes terminais surgiram dos hospcios ingleses, lugares onde antigamente descansavam os peregrinos, que ao longo dos sculos passaram a ser considerados lares para aqueles que, perto da morte, necessitavam de paz e de serem cuidados. Mas, porque provavelmente os mortos e moribundos, no protestaram nem tiveram capacidade reivindicativa, os cuidados aos doentes terminais sempre foram prestados

59

BERNARDO, Mrio - Histria dos Cuidados Paliativos: Dor e Cuidados Paliativos, Lisboa: Permanyer Portugal, 1999, p.3. 60 Cf. PHIOLLIER, Marguerite Marie - Dicionrio das Religies, Porto : Ed. Perptuo Socorro, 1999.

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numa base da caridade e nunca em funo de um dos mais elementares direitos do homem, o direito a "viver com dignidade at morrer". Segundo M. Nvoas Santos, j em 1935 Alfred Worcester, fez uma referencia importante nos cuidados paliativos modernos, escreveu o clssico texto "The care of the Aged, the Dying and the Dead" onde chamou a ateno para a necessidade de uma atitude perante a morte e perante os moribundos . A desiluso que se seguiu s expectativas criadas pelo aparecimento dos citostticos, na dcada de 50/60, que se mostraram ineficazes para curar a maior parte dos tumores, provocou em vrios pases, principalmente no Reino Unido, o aparecimento de um movimento destinado a apoiar os doentes terminais e a ajud-los a morrer melhor. Como reflexo mais evidente desse movimento foi inaugurado em 1967, o St. Cristhopher Hospice, em Londres, dirigido por Cicely Saunders. O ambiente criado neste hospcio, onde se prestava uma ateno global aos sintomas fsicos e aos aspectos psicolgicos, sociais e espirituais, permitiu que doentes e familiares tivessem uma melhor adaptao fase terminal da doena e a uma morte com maior dignidade. O sucesso do St. Cristhopher Hospice permitiu a difuso desta filosofia para outros hospcios e hospitais, levando criao de centros de referencia, instituio de programas especficos para cuidados domicilirios e instituio de programas de investigao e de formao profissional, assim como de voluntariado . A noo de "paliativo" conhecida em medicina desde o sculo XVII, e servia para designar toda e qualquer teraputica que actuasse sobre o sintoma e no sobre a causa. Engloba, portanto, o termo moderno de tratamento sintomtico. nesta perspectiva que a noo de medicina paliativa evoca, at ao incio do sculo XX, a da gesto de problemas sintomticos, mas com uma conotao pejorativa quanto ao efeito sobre a cura da doena.

Cf. SANTOS, Manuel Nvoa - Cuidados Paliativos y Biotica. Cuadernos de Biotica, Santiago, IX (34), 1998,p.304-321. 62 Cf. GONZALEZ BARON, M; J. JALON, J.; J. FELIU - Definition del enfermo terminal y preterminal, 1995, p.989-1022.

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O movimento dos "cuidados paliativos" definiu-se por oposio noo de medicina curativa, centralizando-se no alvio da dor e no acompanhamento no contexto do doente com cancro. Assim em 1979, a National Hospice Organisation (Estados Unidos), publica uma primeira definio que situa os cuidados paliativos a partir do momento em que j no visvel um tratamento curativo abordando igualmente a questo da qualidade de vida a oferecer a estes doentes em fase terminal do seu cancro . No entanto, a emergncia da SIDA nos anos 80, veio modificar esta definio. que perante o impasse teraputico, a abordagem paliativa foi de imediato associada aos cuidados curativos das doenas oportunistas , a tal ponto que se pde falar da especificidade dos cuidados paliativos no contexto da SIDA. Segundo Luis Portela e Isabel Neto em 1987, foi criada no Reino Unido a especialidade de Medicina Paliativa sendo esta "constituda pelo estudo e resoluo dos problemas dos doentes com doena activa, progressiva e avanada para a qual o prognstico limitado e o objectivo dos cuidados a qualidade de vida" . A OMS, em 1990, publicou uma definio de cuidados paliativos que provavelmente a mais difundida em todos os textos relativos ao tema. Segundo a ela: "Os cuidados paliativos so cuidados activos, totais, prestados aos doentes cuja doena no tem benefcio com tratamento curativo. O controlo da dor, dos outros sintomas e de problemas psicolgicos, sociais e espirituais de suprema importncia. O objectivo do cuidado paliativo a obteno da melhor qualidade de vida para o doente e sua famlia. Muitos aspectos dos cuidados paliativos podem ser tambm aplicveis numa fase precoce da doena em conjugao com o tratamento de finalidade curativa''' .64

63

Cf. JOUTEAU-NEVES, Chantai ; MALAQUIM-PAVAN, Evelyne ; NECTOUX-LANNEBERE Desafios da Enfermagem em Cuidados Paliativos, 2000, p.3. 64 Cf. MUSSAULT, P. - Soins Palliatifs et SIDA: quelles enjeux?, Bulletin de l'association JALMALV, 26, Setier, 1991. 65 PORTELA, J. Lus; NETO, Isabel Galria - Histria dos Cuidados Paliativos: Dor e Cuidados Paliativos, Lisboa: Permanyer Portugal, 1999, p.5. 66 ORGANIZAO MUNDIAL DE SADE - Alvio da dor e tratamento paliativo no doente com cancro, Genebra, 1990.

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Ao afirmar o valor da vida e ao lidar com o processo de morrer como sendo um processo normal, os cuidados paliativos no apressam nem adiam a morte, mas oferecem s pessoas um apoio rico e multifacetado ajudando-as a viver de forma to activa quanto possvel o tempo que as separa da morte, integrando sempre a sua realidade familiar e social. Segundo Gonzalez Baron, Jaln e Feliu j em 1991, um Sub-Comit para os Cuidados paliativos nomeado pelo Programa Europa Contra o Cancro, no mbito da Unio Europeia, publicou no Relatrio Final a sua prpria definio de cuidados paliativos. Sendo assim, cuidados paliativos so "-Cuidados continuados, activos, totais, aos doentes e famlias, por uma equipa multiprofissional, a partir do momento em que no h expectativas mdicas de cura e o objectivo primrio do tratamento no prolongar a vida" . O esboo, ainda que necessariamente sumrio, da evoluo nos nossos dias destes aspectos, justifica o ressurgimento da medicina paliativa, voltando a ouvir-se a clssica frase de W. Osler: "Curar - As vezes. Aliviar - Com frequncia. Consolar - Sempre" . De forma implcita na definio da OMS e explicitamente na do Sub-Comit da Unio Europeia para os Cuidados Paliativos, referida a aco de uma equipa multiprofissional para a prestao destes cuidados. Esta equipa dever ser constituda por mdicos, enfermeiros, terapeutas, assistentes sociais, religiosos e voluntrios. A multiplicidade dos elementos constitutivos desta equipa marca a diferena entre cuidados paliativos e medicina paliativa, onde os nicos intervenientes so mdicos. Desde 1994, a noo de "cuidados paliativos" tende a ser substituda pela de "cuidados continuados", que procura evitar a clivagem entre curativo e paliativo. De facto, esta concepo inspira-se no modelo dos hospices ingleses, tal como foi teorizada por Cicely Saunders.

67

GONZALEZ BARON, M; J. JALON, J.; J. FELIU - La filosofia de los cuidados paliativos del enfermo terminal, 1995, p. 1088. 68 OSLER, W. -Science and Immortality, London: Constable, 1906, p.34. Cristina Maria Correia Barroso Pinto 43

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provvel que a noo de "cuidados continuados" induza uma confuso com a de "continuidade de cuidados" que designa a coerncia entre os diferentes actores de sade no acompanhamento de um doente. E tambm provvel, que em anos futuros se produzam outras definies. As mudanas mostram que os cuidados paliativos tem a capacidade de se adaptar evoluo das mentalidades, assegurando o futuro de uma especialidade que no , nem uma revoluo, nem uma moda, mas sim uma necessidade. Para alm do necessrio formalismo das definies apresentadas h dois aspectos absolutamente essenciais relativos a este tipo de cuidados. Em primeiro lugar, todos ns teremos de trabalhar, educando e educando-nos, para que nunca mais se diga a um doente, por mais evoluda que esteja a sua doena: "No h mais nada a fazer". E evidente que, para muitos doentes, cuja doena se apresenta em fase muito avanada de sua evoluo, no temos qualquer hiptese de interferir terapeuticamente com a perspectiva de cura. Mas isso no significa que esse doente esteja condenado pela doena...e pela medicina. Todos os doentes tm o direito a serem tratados de forma a viverem com a mxima qualidade de vida possvel e, no fim, a morrerem com dignidade. Desde h muito que a defesa deste princpio nos leva a afirmar que a luta pela implementao dos cuidados paliativos uma luta em nome da dignidade humana. Por mais elaboradas que as definies se possam apresentar, os cuidados paliativos tm um contedo funcional constitudo por quatro elementos essenciais: o tratamento dos sintomas, a comunicao, o trabalho em equipa e o apoio famlia . O tratamento sintomtico um importante componente dos cuidados paliativos. De facto, no possvel resolver as necessidades sociais, espirituais e emocionais dos doentes se no forem debelados primeiro os sintomas mais incmodos. Destes, os mais frequentes so a dor e a debilidade, embora a lista dos sintomas que afectam o doente terminal seja muito mais extensa. Para alm disso, estes sintomas costumam ser

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cf. PORTELA, J. Lus; NETO, Isabel Galria Cuidados Paliativos, 1999, p.5-7.

Essncia dos Cuidados Paliativos: Dor e

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persistentes, aparecem muitas vezes associados e aumentam de intensidade medida que a doena progride . O tratamento dos vrios sintomas deve ser baseado na sua etiologia, tanto quanto esta for passvel de ser investigada por meios clnicos, uma vez que s excepcionalmente se usaro meios mais agressivos para o seu esclarecimento. Dever ser sempre tomado em conta o facto dos mesmos poderem ter causas muito diferentes e nem sempre relacionveis com a doena. De facto, tambm so frequentemente causa de sintomas nestes doentes a prpria teraputica, doenas intercorrentes e a prpria debilidade fsica e psicolgica. sempre importante valorizar os sintomas mais desagradveis em cada caso e confirmar a respectiva hierarquizao com os respectivos doentes. O plano teraputico englobar meios farmacolgicos e no farmacolgicos e dever ser simples e bem explicado, tanto aos doentes, se for o caso, como aos familiares ou acompanhantes. Um bom controlo dos sintomas dever permitir tempo para dormir e descansar, uma melhoria da capacidade e vontade de comunicar e, ainda, da actividade fsica. A comunicao com o doente, quando efectuada de forma adequada e nos tempos certos, constitui uma das bases mais slidas de uma correcta relao enfermeira-doente. Esta relao, baseada numa confiana mtua, absolutamente necessria em qualquer acto que se queira praticar. No nos podemos esquecer que de todos os profissionais de sade, a enfermeira que passa mais tempo com o doente, pelo que absolutamente necessrio comunicar. Conhecer e dominar as formas de comunicao no verbal, escutar com a maior ateno e disponibilidade possveis, informar da forma mais adequada acerca dos procedimentos a praticar, so tambm aspectos importantes que a enfermeira dever ter em conta para que possa ter uma participao afectiva no sofrimento e na realidade do doente .71

70

70

Cf. JOUTEAU-NEVES, Chantai ; MALAQUIM-PAVAN, Evelyne ; NECTOUX-LANNEBERE Desafios da Enfermagem em Cuidados Paliativos, 2000, p. 138.71

Cf. Ibidem, p.77-86.

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Se a motivao e a vontade so elementos essenciais para que a prtica se desenvolva, eles no so, contudo, suficientes. A prtica ser certamente caracterizada por um conjunto de conhecimentos, aptides e atitudes sem os quais se tornar difcil reconhecer a essncia da filosofia dos cuidados paliativos. Assim, no basta dizer que se conhecem os princpios dos cuidados paliativos; necessrio integr-los e aplic-los ao processo de tomada de deciso adequando s necessidades dos diferentes doentes e suas famlias. Dos aspectos centrais da prestao de cuidados paliativos emerge a necessidade da preparao para o verdadeiro trabalho em equipa. Gostaramos de ressaltar a importncia fulcral do trabalho em equipa para que no se considere como uma vertente de estatuto menor. Convm ter presente de que no estamos a falar de mero trabalho de grupo e que o estabelecimento de uma equipa interdiscilinar pressupe a definio de objectivos que orientam a misso no dia a dia . Mais do que as hierarquias, os poderes corporativos, as carreiras, so as necessidades do doente e famlia que orientam a tomada de decises, esparando-se dos vrios elementos da equipa o aporte dos diferentes saberes necessrios para cada caso. Trabalhar desta forma pressupe a valorizao equitativa do trabalho de todos os elementos da equipa e o reconhecimento dos verdadeiros objectivos deste tipo de trabalho - considerar o doente e sua famlia como o centro das decises. O apoio famlia dos doentes em programas de cuidados paliativos tem uma grande importncia no devendo, por esse motivo, ser descurado. O sentimento de perda mais claro e a ansiedade dos familiares aumenta, acompanhada normalmente de medo, incertezas e, por vezes, sensao de impotncia. Uma das causas de sofrimento destes doentes resulta do seu conhecimento das dificuldades com que as famlias se deparam. Logo, se eles souberem que as famlias esto a ser apoiadas esse factor de sofrimento ficar bastante atenuado. Por outro lado, quando devidamente apoiadas, as famlias readquirem a necessria capacidade e disponibilidade para poderem apoiar os doentes. Assim, a equipa funciona como um recurso de que os familiares dispem para se

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Cf. Ibidem, p.59-75.

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poderem sentir orientados, no impotentes ou abandonados, sabendo interpretar as necessidades de seu familiar e adoptando as medidas correctas . As famlias destes doentes necessitam, principalmente, de serem ouvidas e informadas. Informadas acerca da realidade, dos planos de aco e das perspectivas de evoluo da doena. Logo de seguida surgem os problemas de natureza econmica, social e laboral. Embora a abordagem de todos os aspectos relativos aos doente terminal devam ser sempre multidisciplinar, no h dvida que o apoio famlia do doente uma das tarefas que mais faz apelo a este tipo