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ALEXANDRE CERULLO
DIREITO MATERIAL COLETIVO: UMA PROPOSTA DE SISTEMATIZAÇÃO JUS-FILOSÓFICA
MESTRADO EM DIREITO
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA SÃO PAULO
2008
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP
Alexandre Cerullo
Direito material coletivo: uma proposta de sistematização jus-filosófica
MESTRADO EM DIREITO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em direito das relações sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação da Professora Doutora Regina Vera Villas Boas.
São Paulo 2008
DEDICATÓRIA
Ao supremo Deus que, mesmo diante de
sua infinita magnitude, inclinou seus olhos
misericordiosos para mim e, em toda a
minha insignificância, me agraciou com a
sua Justiça na pessoa de seu Filho e meu
salvador Jesus Cristo.
Aos meus amados pais, Cláudio Cerullo e
Ivone Serigatto Cerullo, que também
inspirados por Deus, com dedicação e amor
imensuráveis, me forjaram e deixam a
impossível missão de superá-los.
AGRADECIMENTOS
A Deus por me levantar da multidão e permitir
que chegasse onde muitos gostariam de estar.
À Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo que me acolheu e inseriu na melhor das
academias jurídicas.
Aos Professores Doutores Suzana Catta Preta
Federighi, Frederico da Costa Carvalho Neto,
Maria Helena Diniz, Paulo de Barros Carvalho,
Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida e
Haydee Maria Roveratti que neste árduo
caminho para a titulação de mestre, cada qual
em sua seara, me receberam como par e
ministraram lições raras.
À Professora Doutora Regina Vera Villas Boas
pela coragem, entusiasmo e comprometimento
que acolheu este projeto, pela orientação e
lições ministradas com dedicação ímpar, por ter
me dado como norte a sua sabedoria, definindo
os rumos precisos para a realização deste
estudo.
RESUMO
Autor: Alexandre Cerullo
Título: Direito material coletivo: uma proposta de sistematização jus-
filosófica.
O objetivo desse estudo é apresentar sistematicamente o direito material coletivo e, por sua natureza e particularidades, demonstrar que compõe o ordenamento jurídico brasileiro ao lado do direito privado e do público, como novo ramo do direito.
Com a inserção do direito material coletivo, justifica-se esse estudo frente
à necessidade de examinar a nova ordem jurídica brasileira e pela carência de sistematização desse novo ramo do direito, ainda que nos moldes aqui propostos, que desvende pontos comuns das principais legislações que o compõem, formando um só corpo.
A hipótese pesquisada, em plano de fundo, considera a quebra de
paradigmas e a insuficiência do direito privado e do público na tutela de bens e direitos coletivos. No plano principal, propõe e indica particularidades do direito material coletivo que melhor atendam às respostas exigidas pela coletividade que, também pela sua natureza, não se assemelham àquelas do particular ou do Estado. A partir daí, se tornam coesas e melhor servem de instrumentos para atender às suas necessidades, qualificando-o como novo ramo do direito.
O procedimento teórico-metodológico propõe sua sistematização
utilizando a teoria holística do direito (filosofia holística) e demonstra que o atual paradigma não está fundado em teorias lineares ou reducionistas, mas todos os problemas sociais a serem enfrentados pela ciência do direito fazem parte de um único problema, a sustentabilidade da vida humana. Daí consideraremos o direito privado e o público para as questões lineares ou reducionistas e o direito material coletivo, como novo ramo do direito, com predicados ímpares, para as holísticas.
Em seguida, faz-se exame dos principais diplomas legais coletivos,
confrontando-os com os paradigmas anteriores e o atual, sua evolução e busca seu enquadramento no novo ramo do direito e, concluindo, verifica-se que o direito material coletivo vem complementar o ordenamento jurídico brasileiro, compondo uma trilogia com o direito privado e o público.
Palavras-Chaves: Direito material coletivo – Paradigma holístico - Sistematização - Teoria holística do direito – Gestão da mudança – Lei principiológica – Semiótica – Identidade coletiva – Mecanismo de proteção – Limites de poder - Democracia – Ética holística – Meio ambiente – Relações trabalhistas – Propriedade – Boa-fé – Função social – Dignidade da pessoa humana – Bens públicos – Publicidade – Contratos – Hermenêutica – Controle estatal – Ponto de mutação.
ABSTRACT
Author: Alexandre Cerullo
Title: The community material law: A proposal for a legal-philosophical
systematization.
This study aims at introducing the community material law in a
systematic way and at showing – given its nature and particularities – it is part of the Brazilian legal system along with the private and public laws, being established as a new branch of law.
Thus, this justifies the study due to the need of examining the new
Brazilian legal system and to the lack of systematization of the new branch, disclosing common points of the main legislations it comprises, forming a sole body.
As a backdrop, the event surveyed takes into consideration the
breaking of paradigms and the deficiency of the private and public laws in protecting goods, and collective rights. At the forefront, it proposes and indicates particularities of the community material law that best meet the responses expected by the community that, also due to their nature, are not similar to those of the individuals and the State. Based on that, they become cohesive and are better tools to meet their needs, qualifying it as a new branch of law.
The theoretical-methodological procedure proposes its systematization
by using the holistic theory of law (holistic philosophy) and shows that the current paradigm is not based on linear or reductionist theories, but that all the social problems faced by the science of law are part of a sole issue: human life’s sustainability. This is why the private and public laws are regarded for linear or reductionist questions, and the community material law is regarded as a new branch of law, with unique qualities for holistic matters.
Then, the major pieces of collective legislation are examined and
compared with the previous paradigms and the current one. The evolution is analyzed as well as an attempt is made in order to categorize the new branch of law. In conclusion, we observe that the community material law complements the Brazilian legal system, forming a trilogy with the private and public laws.
Key words: Community material law – Holistic paradigm - Systematization – Holistic theory of law – Institutionalization – Change management – Legal nature – Principiological law – Semiotics – Collective identity – Collective subject – Protection mechanism – Hypo sufficient – Limits of power – Democracy – Holistic ethics – Environment – Labor relations – Property – Good faith – Social function – Human being dignity – Public goods – Publicity – Information – Contracts – Hermeneutics – State control – Justice – Mutation point.
RIASSUNTO
Autore: Alexandre Cerullo
Titolo: Diritto Materiale Collettivo: una proposta di sistemazione diritto-
filosofica.
L’obiettivo di questo studio è quello di presentare sistematicamente il diritto materiale collettivo e, a secondo della sua natura e particolarità, vuol dimostrare che compone l’ordinamento giuridico brasiliano accanto al diritto privato e al pubblico, come nuovo ramo del diritto.
Con l’inserzione del diritto materiale collettivo questo studio si giustifica
davanti alla necessità di esaminare il nuovo ordinamento giuridico brasiliano e la mancanza di sistemazione di questo nuovo ramo del diritto, dentro dei modelli qui proposti che sveli aspetti comuni delle principali legislazioni che lo compongono, creando un solo corpo.
L’ipotesi che va ricercata considera la rottura di paradigme e l’ insufficienza
del diritto privato e del pubblico nella tutela di beni e diritti collettivi. Nel piano principale propone e indica particolarità del diritto materiale collettivo che possano rispondere più adeguatamente alle risposte richieste dalla collettività che, a causa della sua natura, non si assomigliano a quelle del privato o dello Stato. Da questo punto diventano coese e servono di strumenti per rispondere alle loro necessità, qualificandolo come il nuovo ramo del diritto.
La procedura teorica-pedagogica propone la sua sistemazione utilizzando
la teoria olistica del diritto ( filosofia olistica) e dimostra che l’attuale paradigma non è fondato nelle teorie lineari o riducibili, ma in tutti i problemi sociali che saranno affrontati dalla scienza del diritto che fanno parte di un unico problema, la sostenibilità della vita umana. Così saranno considerati il diritto privato e il diritto pubblico per le questioni lineari o riducibili e il diritto materiale collettivo come un nuovo ramo del diritto con predicati dispari per le olistiche.
Così si fa un esame dei principali diplomi legali collettivi confrontandoli con
i paradigmi anteriore e attuale, la loro evoluzione cerca la sua enquadratura nel nuovo ramo del diritto e, per conclusione, si verifica che il diritto materiale collettivo complementa l’ordinamento giuridico brasiliano, componendo una trilogia con il diritto privato e pubblico. Parole-chiave Diritto materiale collettivo – Paradigma olistico – Sistemazione – Teoria olistica del diritto – Istituzionalizazzione – Gestione del cambiamento – Natura giuridica – Legge principiologica – Semiotica – Identità collettiva – Soggetto collettivo Meccanismo di protezione- Ipossufficiente – Limiti del potere- Democrazia – Etica olistica – Mezzo ambiente – Rapporti del lavoro – Proprietà – Buona fede – Funzione sociale – Dignità della persona umana – Beni pubblici – Pubblicità – Informazione – Contratti – Ermeneutica – Controllo Statale – Giustizia – Punto di mutazione.
SUMÁRIO
PRIMEIRA PARTE
CONSOLIDAÇÃO DO DIREITO MATERIAL COLETIVO
I. INTRODUÇÃO ...................................................................................................11
II. FILOSOFIA HOLÍSTICA DO DIREITO: TEORIA E SISTEMA ...........................18
III. TRANSPOSIÇÃO DE PARADIGMAS: GESTÃO DA MUDANÇA PELO DIREITO
MATERIAL COLETIVO .............................................................................................39
IV. INSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO MATERIAL COLETIVO ...................48
V. NATUREZA JURÍDICA DO DIREITO MATERIAL COLETIVO...........................54
VI. INTERESSE E DIREITO MATERIAL COLETIVO: CONCEITOS E
DIFERENÇAS ...........................................................................................................65
VII. TITULARES DE DIREITOS: SEMIÓTICA, ELEMENTOS DE AFETAÇÃO E
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO COLETIVO..............................................................73
VIII. DIREITO MATERIAL COLETIVO: MECANISMO DE PROTEÇÃO ................87
IX. DIREITO MATERIAL COLETIVO: LIMITADOR DE PODER..........................99
X. DIREITO MATERIAL COLETIVO E A BOA-FÉ................................................106
SEGUNDA PARTE
TEMAS FUNDAMENTAIS DO DIREITO MATERIAL COLETIVO
XI. DIREITO MATERIAL COLETIVO E A DEMOCRACIA .................................110
XII. DIREITO MATERIAL COLETIVO E A ÉTICA...............................................119
XIII. DIREITO MATERIAL COLETIVO E AS RELAÇÕES TRABALHISTAS........124
XIV. DIREITO MATERIAL COLETIVO E A PROPRIEDADE ...............................131
XV. DIREITO MATERIAL COLETIVO E O ACESSO AOS BENS PÚBLICOS....137
XVI. DIREITO MATERIAL COLETIVO: NOVA TEORIA CONTRATUAL..............141
XVII. DIREITO MATERIAL COLETIVO: PUBLICIDADE E INFORMAÇÃO...........152
XVIII. DIREITO MATERIAL COLETIVO E A SAÚDE .........................................169
XIX. DIREITO MATERIAL COLETIVO: CONTROLE ESTATAL PELO PODER DE
POLÍCIA ..................................................................................................................175
XX. DIREITO MATERIAL COLETIVO E A JUSTIÇA ..........................................180
CONCLUSÃO..........................................................................................................189
BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................210
11
I. INTRODUÇÃO
Este estudo busca uma proposta de sistematização do direito material
coletivo à luz da filosofia holística e oferece à comunidade acadêmica, pensadores e
operadores do direito reflexões jurídicas práticas e conceituais do atual cenário
jurídico brasileiro, tomando como ramo autônomo do direito.
A sua sistematização é construída a partir da averiguação da quebra de
paradigmas e da aplicação da filosofia holística à ciência do direito e, em sua
essência, promove uma equação composta desses dois elementos a ser decifrada,
tanto no plano da doutrina e da principiologia, tendo por produto a insuficiência do
direito público e privado para tutelar as temáticas coletivas.
Essa equação não se baseia na mera análise dos diplomas legais
coletivos, como a princípio poderia parecer, mas, diante da carência de material
doutrinário e jurisprudencial acerca do direito material coletivo (de maneira
consolidada), partiremos da demonstração da quebra de paradigmas.
Estudaremos a evolução paradigmática, sobretudo visualizando-a a partir
dos conceitos lineares da filosofia de Renée Descartes para a holística, concebida
para as ciências por Fritjof Capra. 1
1 Fritjof Capra é Ph. D. pela Universidade de Viena e realizou pesquisas sobre Física de alta energia, além de seus muitos ensaios técnicos sobre suas pesquisas, fez também muitas conferências e publicou vários trabalhos sobre as implicações filosóficas da ciência moderna.
12
Os ideais científicos e filosóficos de Descartes adotam para o universo a
figura de uma máquina, dividido em peças separadas e isoladas, aplicando visão
reducionista do todo e, de igual modo, o fez com a natureza, reduzida à condição de
coisa a serviço e deleite do homem.
Na sua visão, o reducionismo justificava todos os problemas sócio-
econômicos que afloravam e dominou todas as ciências, inclusive a do direito, até
nossos dias.
Não propomos o falecimento dessa teoria, mas a aplicação da filosofia
holística, pois a primeira seria insuficiente para justificar e solucionar os problemas
sociais contemporâneos, principalmente porque adota análise e visão reducionista,
mecânica e linear para grandezas essencialmente globais.
Diante da socialização do direito, sugerimos que a tradicional dicotomia
que alicerça o ordenamento jurídico firmada no direito público e privado, há muito
influenciada pelo olhar cartesiano, está ultrapassada e apresentamos a filosofia
holística do direito de modo a melhor conceber estes novos conceitos contidos nos
fundamentos do direito material coletivo.
Nosso campo de estudo será a movimentação social e o poder de
negociação entre os diversos grupos sociais, mas, sobretudo, buscar os
fundamentos do direito material coletivo, como mecanismo de legitimação jurídica e
social.
13
Ainda dentro da filosofia holística aplicada à ciência do direito, a
introduziremos ressaltando as particularidades do direito material coletivo.
Toda essa visão mecanicista e reducionista calcada em substratos
materialistas torna-se hoje obsoleta à medida que valores essenciais para a própria
viabilidade da vida humana, como o meio ambiente e o consumo responsável e
sustentável, põe em risco todo um ecossistema do qual o homem faz parte.
A ciência do direito também passou por este processo mecanicista e
reducionista de outrora preferindo segregar partes do todo, contudo, o direito privado
e o público, com suas especializações e especificações que atendem ao particular e
ao Estado, atualmente, porém, no atual paradigma verifica-se valores de conjunto,
que se inter-relacionam e, principalmente, extrapolam esses limites e não pertencem
a este ou aquele, mas a todos.
A filosofia holística, inclusive aplicada à ciência do direito, contrapõe
àquela sugerida por Descartes porque consagra a busca do imaterial e condiciona
uma visão preservacionista da realidade humana.
Reservamos ao direito público ou privado às questões lineares que ainda
existem e o direito material coletivo para as holísticas.
Assim, dividiremos este estudo em duas partes, cada uma com dez
capítulos, a saber:
14
Denominada “Consolidação do direito material coletivo”, a primeira parte, a
partir deste intróito (cap. I) até o estudo da boa-fé no direito material coletivo (cap.
X), tem por objetivo, traçar limites materiais e, como toda consolidação, busca fundir
e construir o arcabouço do direito material coletivo brasileiro através de seus
elementos que se apresentam esparsos em diversos diplomas legais.
Mostraremos o alicerce da legislação material coletiva, permitindo que se
atribua consistência para, a partir dela, buscarmos sua aplicação em temas
holísticos selecionados (segunda parte).
Substituiremos a visão etérea ou esparsa que se tem das legislações e
codificações coletivas em estudo e identificaremos o direito material coletivo como
produtor autônomo de regras frente aos demais ramos do direito.
A segunda parte, denominada “Temas fundamentais do direito material
coletivo”, compreende os capítulos XI a XX e permitirá a averiguação dos preceitos
máximos estudados em sua consolidação. Esses temas foram escolhidos por
representarem em sua totalidade questões holísticas presentes em todos os
diplomas legais coletivos, permitindo a prova da autonomia desse ramo do direito em
relação aos demais.
Poderiam suscitar que esta sistematização, de sua consolidação aos
temas fundamentais, seja uma divisão arbitrária, todavia, como dissemos de início,
esta é uma “proposta de sistematização” e não o esperamos esgotar apenas num
discurso.
15
Diante de toda a complexidade das questões coletivas, a carência de
doutrina, dividindo com a jurisprudência inúmeras dúvidas e divergências, ao fazê-lo
em uma única oportunidade, nos aproximaria muito mais de um “curso” de direito
material coletivo a uma “proposta de sistematização”.
De qualquer maneira, arbitrária ou não, acreditamos obter neste singelo
estudo, visão sistemática enfocando uma nova filosofia jurídica (holística) que
fundamenta o direito material coletivo. Os temas escolhidos para a segunda parte
deste estudo, sem prejuízo de outros que poderiam ser eleitos, são suficientes para
sua justificação como ramo autônomo do direito.
Importante ainda, é nossa posição acerca da ciência do direito que não
pode ficar alheia a essas mudanças e, instrumentada pelo direito material coletivo,
deixar de enfrentar questões como a degradação ambiental, o consumo
desenfreado, etc., em suma, apresentando soluções holísticas para problemas
holísticos (direito material coletivo) e lineares para os lineares (direito público e
privado).
Através da filosofia holística buscaremos desvendar os predicados do
direito material coletivo brasileiro como seu instrumento e demonstrar que o
reducionismo, o mecanicismo e a semiótica linear fundada exclusivamente no direito
público e o privado não são mais suficientes para a totalidade dos problemas que
nossa sociedade vive atualmente.
16
Em conclusão, remeteremos o cientista a essa discussão, inclusive o
cientista do direito, à insuficiência dessa tendência mecanicista e reducionista (que
não deve ser desprezada totalmente porque existem problemas sociais a serem
tutelados pelo direito que devem ser solucionados à vista desses conceitos), mas
são próprios do direito privado e do público e, insuficientes, para o coletivo.
O estudo dos predicados do direito material coletivo suprirá essa lacuna e,
por conseguinte, constituindo a filosofia holística do direito, onde o mesmo
apresentaria ambas as linguagens, linear e global formando uma rede dinâmica e
orgânica relacionada.
Daí porque fundamentar esta teoria jurídica no holismo concretizado pelo
direito material coletivo.
A seleção de teorias e práticas coletivas aqui selecionadas dá sentido aos
inúmeros atos de grupos sociais, contribuindo para repensar a teoria no campo
social em que a experiência, principalmente, transforma o direito em mecanismo de
gestão da mudança paradigmática.
A sistematização, ao estabelecer uma harmonia teórica, já que o direito
processual coletivo avançou prematuramente em relação ao direito material coletivo,
torna-se elemento central de transformação reducionista e linear para o holístico, da
visão essencialmente individual para a coletiva.
17
A questão que sempre sugeriu a inscrição das idéias aqui declinadas diz
respeito à deficiência do direito e de seus agentes em reconhecer efetivamente a
identidade do direito coletivo material brasileiro como novo e autônomo ramo do
direito e ousamos indicar a quebra da dicotomia tradicional firmada entre direito
público e privado e, sugerimos, cada um com suas próprias características, um
relacionamento intersubjetivo.
Sendo esta a problematização, dissertar sobre as peculiaridades do direito
material coletivo, de forma sistemática, é o desafio do presente estudo, que ora se
inicia, tendo por norte o rigor técnico e científico, que poderá desvendar os caminhos
que a sociedade e a ciência do direito almejam.
18
II. FILOSOFIA HOLÍSTICA DO DIREITO: TEORIA E SISTEMA
Mesmo que pareça inoportuno trazer logo no início da abordagem
sistêmica uma tese que proclame a autonomia do direito material coletivo, essa
necessidade aflora fundamentalmente porque também aqui se faz mostrar que as
teorias jus-filosóficas merecem re-análise pelas diferenciações obtidas a partir dos
fundamentos deste novo ramo do direito.
Desse modo, para apresentarmos essa nova teoria jus-filosófica,
propositalmente nos situaremos em uma zona de intersecção, a saber, das filosofias
jurídicas fundadas na concepção essencialmente linear da dicotomia direito público-
privado para a filosofia holística calcada nas diretrizes fundamentais do direito
material coletivo.
Como assinala Marçal Justen Filho, ao comentar as mudanças
experimentadas pela sociedade que reverteram as perspectivas de outrora e que
deslocou “a primazia do individual para o coletivo; da vontade para a norma jurídica;
da liberdade para a cooperação...”, 2 podemos abstrair que nosso ordenamento
jurídico, com o passar do tempo e o dinamismo das relações sociais, valorizou aquilo
que substancia a integração e a coletividade.
2 JUSTEN FILHO, Marçal. Desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1987, p. 39.
19
Em poucas palavras, para emoldurar apenas a dicotomia do direito
público-privado, vamos nos ater à movimentação social vivida nos séculos XVII e
XVIII, nos ideais científicos de Renée Descartes.
Poderíamos retroceder ainda mais no tempo buscando outros tantos
subsídios e filosofias para justificar nossas proposições, todavia, como não
objetivamos uma relação essencialmente histórica, entendemos que a eleição dos
séculos XVII e XVIII se mostra ideal porque nessa época houve o rompimento dos
pensamentos naturalistas para o da razão, aliando-se a tal momento ricos
pensamentos jurídicos que foram verdadeiramente influenciados pelas teorias
cartesianas.
Toda a concepção de mundo e de homem de Descartes se baseava na
divisão da natureza em dois domínios opostos, a saber, o da mente ou espírito (res
cogitans) e o da matéria (res extensa). Seu ponto de referência comum a estas duas
realidades era Deus, criador de todas as coisas, mas bipartindo a realidade em
ciências humanas (res cogitans) e as naturais (res extensa).
Descartes associou o universo à figura de uma máquina e, para facilitar
seu estudo, dividiu-o em peças separadas e isoladas, aplicando uma visão
reducionista do todo e, de igual modo, a natureza funcionava mecanicamente de
acordo com leis da matemática, aplicando uma visão linear para justificação dos
problemas sócio-econômicos que afloravam, sobretudo pelo rompimento da
Revolução Científica e da Revolução Industrial.
20
Esse quadro tornou-se dominante nas ciências até nossos dias, inclusive
a ciência do direito, e passou a orientar a observação epistemológica e a produção
científica até que a física do século XX (Física das Partículas e Teoria da
Relatividade) passou a questionar seus pressupostos mecanicistas básicos.
Na tentativa de construir uma ciência natural completa, Descartes ampliou
sua concepção de mundo ao reino biológico onde plantas e animais nada mais eram
que simples máquinas.
Essa concepção era tão forte que criou raízes profundas com
conseqüências não só a nível biológico e, apenas para citarmos alguns exemplos,
permitiu-se a manipulação comercial de animais sem consideração ética alguma já
que era reduzida à condição de coisa a serviço e deleite do homem. Na biologia e
medicina, o corpo humano também era uma máquina, diferenciada porque seria
habitada por uma alma inteligente.
Portanto, o objetivo do pensamento filosófico da ciência de Descartes era
a de usar seu método analítico para formar uma descrição racional completa de
todos os fenômenos naturais num único sistema preciso de princípios mecânicos
regidos por relações matemáticas.
Como não propomos o falecimento dessa teoria, mas apenas a sua
insuficiência em justificar e solucionar os problemas sociais contemporâneos,
principalmente porque adota análise e visão reducionista, mecânica e linear para
21
grandezas essencialmente globais ou holísticas. A filosofia cartesiana para o mundo
presente mostra-se limitada.
Buscando abarcar estes novos conceitos contidos nos fundamentos do
direito material coletivo e inseri-los na concepção holística, retomando a evolução
jurídica observada por Marçal Justen Filho que citamos anteriormente. O direito
também passou ou ainda passa por um processo de socialização calcado na
solidarização das normas jurídicas, alinhando-se paralelamente às concepções
clássicas pertencentes ao direito normativista, por exemplo.
Nossa Carta Política de 1988 incorporou, em sua essência, valores
sociais próprios do Estado Democrático de Direito e estabeleceu a solidariedade
para edificação de uma sociedade justa, pois todos têm de buscar, num somatório
de forças, sem boicotes e subterfúgios, atender os meios éticos.
Dessa forma, nosso campo de estudo, por ser o direito antropocêntrico,
será mais uma vez a movimentação social e o poder de negociação entre os
diversos grupos sociais, mas, sobretudo, buscar os fundamentos do direito material
coletivo, como mecanismo de legitimação jurídica e social.
Para efeitos deste estudo, passaremos, a partir deste momento, empregar
a visão holística à ciência do direito e, especificamente, ao direito material coletivo
como divisor de águas entre as particularidades do direito público e privado.
22
Mas, por que adotar uma linha filosófica holística em detrimento de
qualquer outra?
Para respondermos a esta pergunta, trataremos de examinar a ciência do
direito afirmando inicialmente que esta ciência, como todas as demais, sofreu e
ainda está a sofrer influência da linguagem reducionista e mecanicista de Renée
Descartes e, relembrando, com o surgimento da Revolução Científica e da
Revolução Industrial, centrou-se a civilização na busca da tecnologia e estereotipou-
se o acúmulo de riquezas e de consumo em massa através de meios de produção
sem a devida preocupação com valores ecológicos e humanos, segregando o
próprio homem de valores éticos.
Naquele período de transição das ciências naturais em direção ao avanço
tecnológico, de consumo em massa e de acúmulo de riquezas, marco em que
Renée Descartes dividiu as ciências em exatas e humanas, reflete hoje a nítida
divisão de classes sociais e a especialização em diversas áreas, como a medicina, o
direito, a matemática, em detrimento das demais. Comparou todo o sistema
científico a uma grande engrenagem e reduziu-o em partes, muito embora todas as
ciências façam parte de um mesmo processo intelectual da humanidade.
Toda essa visão mecanicista e reducionista calcada em substratos
materialistas torna-se hoje obsoleta à medida que valores essenciais para a própria
viabilidade da vida humana, como o meio ambiente e o consumo responsável e
sustentável, põem em risco todo um ecossistema do qual o homem faz parte.
23
A ciência do direito também passou por este processo mecanicista e
reducionista de outrora preferindo segregar partes do todo, descobrindo-se
especializações e especificações que atendiam ao particular e ao Estado, como a
grande divisão representada pelo direito privado e pelo direito público.
Maria Helena Diniz, ao estudar a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen,
provando as preocupações aqui externadas quanto à visão reducionista e
mecanicista dos estudos voltados para a ciência do direito, afirma que “a maioria dos
autores apresenta como objeção à teoria de Kelsen o seu caráter fragmentário, ou a
sua visão parcial do direito. Isto porque o direito não se compõe só de normas; há
algo mais: valores, fatos sociais, comportamentos humanos etc., não sendo
apropriado defini-lo apenas por um de seus elementos.” 3
Diante desse quadro, como indagaremos e colocaremos em prova
durante todo este trabalho, o direito fundado em linguagem binária de lícito/ilícito,
ter/não ter, proibido/permitido, 4 numa semiótica linear, está apta a atender e tutelar
valores essencialmente globalizados e holísticos, persistindo nesta visão
mecanicista e reducionista?
A filosofia daquela época, que influenciou a ciência do direito segregando-
o em dois grandes ramos (público e privado), que busca estudar as ciências em
unidades reduzidas e mecânicas, esquecendo-se do conjunto e de valores que se
inter-relacionam, está apta a solucionar problemas sócio-econômicos e culturais que
3 DINIZ, Maria Helena. A ciência jurídica. São Paulo: Ed. Saraiva, 2003, p. 53. 4 CAMPILONGO, Celso Fernandes. O direito na sociedade complexa. São Paulo: Ed. Max Limonad, 2000, p. 82.
24
extrapolam o limite do particular e do Estado, que não pertencem a este ou aquele,
mas a todos?
A condição imposta por Descartes exagera na busca do material e
condiciona uma visão degradadora da realidade humana onde, em que pese os
avanços tecnológicos e materiais obtidos desde aqueles anos, hoje reflete
conseqüências danosas para a harmonia social, econômica, psíquica, laborativa,
jurídica.
Se antes os problemas sócio-econômicos e culturais eram vistos de forma
linear e por isso a ciência do direito buscava soluções também lineares, observamos
hoje que os problemas fazem parte do todo e as soluções, portanto, devem seguir a
mesma semiótica e trazer respostas que reflitam em todos os segmentos através da
filosofia holística.
A filosofia apresentada por Descartes, por idealizar uma realidade
degradadora de um mundo mecanicista, materialista, segregando tudo, inclusive as
ciências em segmentos menores que, reiteramos, influenciou a ciência do direito,
com extrema fragmentação em especialidades, a subordinação da natureza e de
todos os seus recursos aos anseios materiais humanos, a ideologia do consumo
desenfreado e do acúmulo de riquezas (inclusive para ascensão social), não pode
prevalecer.
A humanidade, para a sua própria vitalidade, exige uma nova postura. A
ciência do direito não pode ficar alheia a estas mudanças e deve, associada às
25
demais ciências, de maneira holística, sanar os trágicos problemas da atualidade,
como a degradação ambiental, o consumo desenfreado, a comercialização da
saúde, o rompimento de princípios bioéticos, enfim, apresentar uma visão global e
interligada por todas as ciências, apresentando soluções holísticas para problemas
holísticos e lineares para os lineares.
E é dessa forma que sugerimos a teoria holística para a ciência do direito
e para o direito material coletivo. Através dela buscaremos desvendar os predicados
do direito material coletivo brasileiro e demonstrar que o reducionismo, o
mecanicismo e a semiótica linear fundada exclusivamente no direito público e o
privado não são mais suficientes para a totalidade dos problemas que nossa
sociedade vive atualmente.
Em suma, o quadro científico que ainda vivemos remete o cientista do
direito a esta tendência mecanicista e reducionista. Não que esta visão deva ser
desprezada totalmente, pois, como relatamos, existem problemas sociais a serem
tutelados pelo direito que devem ser solucionados à vista desses conceitos, mas,
como pregamos, são próprios do direito privado e do público, mas insuficientes para
o direito coletivo.
Verificamos a existência de valores que não podem ser tomados na forma
reducionista ou mecanicista porque, pelas suas próprias características, fazem parte
de um todo.
26
Dessa maneira, a proposta feita é da leitura da ciência do direito e do
material coletivo, obviamente sem abandonar as características próprias dos direitos
público e privado, mas quebrando a filosofia do direito essencialmente fundada
nessas duas vertentes que buscam soluções para problemas lineares e instituindo a
filosofia jurídica global (holística).
Nesse mesmo sentido se aliam os pensamentos de Emília Simeão Albino
Sako ao estudar a ciência do direito e seu poder de transformação, afirmando que “o
direito recebe ao mesmo tempo em que transmite ao meio social influências,
renovando-se a cada dia, tornando-se atual. A visão do ordenamento jurídico como
sistema vivo e em constante evolução somente é perceptível numa dimensão
circular, sistêmica, não-linear. As ações humanas são regidas por expectativas que
encontram no sistema jurídico seus marcos delimitadores, sendo um deles, as
regras jurídicas. Como no sistema existem apenas marcos delimitadores de conduta,
nem todas as ações e expectativas nascidas do convívio social, resultado do inter-
relacionamento – homem x meio – são reguladas expressamente. Assim, diante da
impossibilidade da regulamentação legal completa das condutas humanas, o direito
só pode ser compreendido a partir de uma dimensão circular, sistêmica, não-linear.”5
A teoria holística do direito, portanto, analisaria o ordenamento jurídico,
não somente em partes constituintes de um todo, mas o modo global como se
expressa. O direito material coletivo o elo que faltava para que houvesse a
transposição da linguagem cartesiana para a holística.
5 SAKO, Emília Simeão Albino. Os novos paradigmas do direito e o poder transformador da jurisdição. Revista Scientia Iuris. Revista do curso de mestrado em direito negocial da Universidade Estadual de Londrina. Paraná 2001/2002, v. 5-6, p. 251.
27
Partindo do fato que em toda sociedade deve haver uma solidariedade
que implique que a atuação de cada indivíduo tenha reflexos positivos na ordem
global, pressupondo também que cada um, no uso de sua autonomia, beneficie o
conjunto, que cada pessoa deve agir, não apenas com os outros, mas para os
outros, estudaremos as particularidades do direito material coletivo justamente para
inseri-lo como elemento faltante deste todo, o ordenamento jurídico brasileiro.
Ressaltamos mais uma vez que, ao estudarmos separadamente os
predicados do direito material coletivo, não abandonamos consequentemente a
análise do todo (ordenamento) porque o sistema inteiro (holos) possui características
que vão bem além que a mera soma das partes individualmente.
Assim, se tomarmos o ordenamento jurídico como um grande quebra-
cabeça, ao insistirmos no seu estudo fundado apenas na dicotomia direito público-
privado, que abarcam predicados lineares para solução de problemas lineares,
questões que envolveria o todo, por exemplo, o meio ambiente, o consumo em
massa, bioética, tutela do idoso e da criança e do adolescente, nos contariam muito
pouco.
Todavia, agora com o estudo dos predicados do direito material coletivo,
introduzindo-o ao todo, presumiremos estar suprindo essa lacuna e, por
conseguinte, constituindo a teoria holística do direito, onde o mesmo apresentaria
ambas as linguagens, linear e global formando uma rede dinâmica e orgânica
relacionada.
28
Diante dessa nova filosofia, não se pode estudar a ciência do direito na
forma essencialmente mecânica, porque todas as ciências estão cada vez mais
evoluindo para processos de transformação, síntese e de complexidade que
culminarão em sistemas de elevada dinamicidade, como o sistema jurídico que
possui instâncias de racionalidade superiores aos conceitos unicamente lineares.
Oportuno trazermos as considerações de Ernesto Grün demonstrando
sua visão conclusiva da ineficiência do direito frente às novas relações sociais e
diante do novo paradigma, ao afirmar que “ahora nos encontramos en un nuevo
momento de bifurcación, los sistemas jurídicos de la modernidad, de los Estados
nacionales, están en crisis. La época posterior a la Segunda Guerra Mundial, estos
últimos cincuenta años, han traído profundas transformaciones, en todas las áreas
del conocimiento y la tecnología, se han complejizado tanto las relaciones sociales,
por el crecimiento absolutamente extraordinario de los medios de comunicación (el
avión, el satélite, la televisión, el fax, el correo electrónico, Internet, etc.), la
economía global y la explotación de los recursos naturales frente a la explosión de la
población, todo ello ha hecho surgir nuevas funciones que el derecho debe asumir
no solamente a nivel del sistema social, sino también del ecológico por lo que están
dadas las condiciones para que, sometido a todas estas influencias del entorno
social y natural, se transforme, su estructura devenga diferente, sus funciones se
amplíen y modifiquen. El sistema jurídico mundial, y sus subsistemas nacionales
están otra vez lejos del equilibrio.” 6
6 Ernesto Grün, professor titular de Teoria Geral e Filosofia do Direito da Faculdade de Direito e Ciências Sociais de Buenos Aires, em discurso apresentado sob o título El derecho posmoderno: um sistema lejos del equilíbrio no XVIII Congresso Mundial de La Asociación de Filosofia Del Derecho y de Filosofia Social em agosto de 1.997 em Buenos Aires (Argentina).
29
Se dos encontros sociais interativos encontramos recursos individuais e
coletivos para firmar ou reafirmar a titularidade de direitos, tomando por base
conflitos estruturais que mobilizam os indivíduos ora em sentido privado, com sua
relação com o Estado e vice-versa e, finalmente, solidariamente com seus pares na
busca de interesses que lhes são comuns, o direito material coletivo é a razão
instrumental que impõe ponto de equilíbrio a essas relações jurídicas que não
recebem, por suas peculiaridades, tutela adequada do direito público ou do privado e
o agregam ao todo (holos).
Daí porque fundamentar esta teoria jurídica ao holismo concretizado pelo
direito material coletivo.
O direito material coletivo não retira o direito privado ou estatal, mas
apenas lhe dá contornos de forma que não fira os interesses propriamente coletivos.
E é com este espírito que devemos analisar o tema relacionando-o à teoria holística
do ordenamento jurídico, não como mecanismo de barrar a criação, o aviamento
pessoal/empresarial ou estatal, mas que essa atividade social seja exercida de tal
modo que sejam respeitadas todas as garantias individuais, mas sem afetar de
forma negativa a coletividade e milite também em favor desta.
Nos últimos tempos esse modelo centrado na divisão do ordenamento
jurídico em direito público e privado, vem sendo substituído por uma estrutura de
rede grupal, cujo vínculo entre os indivíduos ocorre por intermédio de uma rede
comum de interesses.
30
A grande novidade, sob o aspecto jurídico, é o fato que esses grupos
coletivos, difusos e individuais homogêneos conservam uma estrutura de controle
social sob a forma de conjunto de interesses comuns, fundados em contratos de
colaboração social.
O direito material coletivo inserido num ordenamento jurídico holístico,
como razão instrumental para a tutela coletiva, que não está fundado
exclusivamente na função final punitiva das leis, mas da promoção social, alcança
vantagens como a redução dos riscos sociais em relação às ações do particular ou
do Estado.
Alcança-se também uma melhor reorganização social da coletividade
minimizando custos para a defesa de seus interesses e direitos (inclusive em juízo),
repartição de riscos e desequilíbrios sociais com toda a sociedade, possibilitando a
equalização do tratamento isonômico entre as partes.
O direito material coletivo num ordenamento jurídico holístico, como razão
instrumental, elabora justamente o cálculo que condiciona, motiva e determina as
relações sociais envolvendo bens que não são dos particulares ou do Estado,
aplicando-se a primazia da prevenção e agregação de valores sociais e, também, a
punição para o infrator.
Por isso que a re-adequação do ordenamento jurídico, numa visão
holística, alcançaria, talvez, uma tricotomia público-privado-coletivo.
31
Utilizamos a expressão “talvez”, não no sentido de dúvida, pelo menos até
os limites propostos, diante desta nova temática, mas como um convite aberto para
a discussão e a predisposição para recepção dessas novas idéias e o respeitoso
combate às que aqui se fazem presentes.
Em suma, gradativamente, se fizeram mostrar pressupostos estruturais
diferentes dos modelos até então existentes.
Portanto, nossa delimitação sistêmica e de plano de estudo, centrará o
tema nas características específicas e autônomas do direito material coletivo
alocando-o na teoria holística do direito.
Considerando que o presente estudo se direciona à análise dos
fundamentos do direito material coletivo, necessário se faz, ainda que em breves
palavras, nos atermos ao próprio conceito de sistema, sua organização e suas
relações.
A análise do sistema do direito material coletivo delimita-se aos seus
fundamentos e a maneira como se organizam e, portanto, obrigatório demonstrar a
abrangência do termo “sistematização”, principalmente voltando o termo para os
sistemas sociais, responsáveis pela evolução dos próprios conceitos do direito.
A sistematização, portanto, assim como proposto, também deve ser
tratada de maneira a demonstrar a evolução da forma mecanicista para a holística e
ser capaz de diagnosticar processo ou processos de reflexão crítica de elementos e
componentes dos fundamentos do direito material coletivo. Seu propósito é provocar
elucidação de semelhanças entre eles, utilizando a reflexão como processo
32
metodológico que se baseia na idéia de organizar ou de ordenar um conjunto de
elementos que até este momento se mostravam esparsos e desordenados.
Ao sistematizarmos o direito material coletivo estaremos automaticamente
sistematizando práticas sociais, ou seja, ainda que não nos apeguemos a uma
experiência em particular, desvendamos práticas sociais efetivas.
A eficácia de sua tutela, até mesmo para uma melhor aplicação do direito
processual coletivo, com a sistematização, está condiciona e obriga os agentes do
direito percorrerem um processo de aprendizagem e de geração de novos
conhecimentos a partir dessas próprias experiências sociais, capturando dados
anteriormente dispersos, de forma que se desenvolva capacidade para tomar
melhores decisões, seja na esfera teórica ou prática.
Ao sistematizar o direito material coletivo, nesse raciocínio, estaremos
não somente revelando esse ramo do direito, mas também interferindo em
processos sociais e desvendando as propriedades do todo, que nenhuma das partes
isoladas possui.
As partes isoladas que destacaremos ao longo deste estudo, extraídas
dos principais temas coletivos, se interagem e se relacionam, mas não são ou estão
isoladas, demonstrando que a natureza do todo é sempre diferente da mera soma
das partes.
33
A seleção de teorias e práticas coletivas aqui selecionadas dá sentido aos
inúmeros atos de grupos sociais, contribuindo para repensar a teoria no campo
social em que a experiência, principalmente, transforma o direito em mecanismo de
gestão da mudança.
A sistematização, ao estabelecer uma harmonia teórica, já que o direito
processual coletivo avançou prematuramente em relação ao direito material coletivo,
torna-se elemento central de transformação reducionista e linear para o holístico, da
visão essencialmente individual para a coletiva.
Paulo de Barros Carvalho descreve sistema como aquele “que aparece
como o objeto formado de porções que se vinculam abaixo de um princípio unitário
ou como a composição de partes orientadas por um vetor comum. Onde houver um
conjunto de elementos relacionados entre si e aglutinados perante uma referência,
teremos a noção fundamental de sistema.” 7
Bresciani Filho e D’Ottaviano definem sistema como “uma entidade
unitária, de natureza complexa e organizada, constituída por um conjunto não vazio
de elementos ativos, que mantém relações com características de invariância no
tempo, que lhe garantem sua própria identidade. Nesse sentido, um sistema consiste
num conjunto de elementos que formam uma estrutura, a qual possui uma
funcionalidade.” 8
7 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 12ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva. 1999, p. 128. 8 BRESCIANI FILHO; D’OTTAVIANO. Conceitos básicos de sistema. Campinas: UNICAMP, 2000, p. 283.
34
Jarbas Maciel, por seu turno, prefere dividir a definição de sistema de
duas formas, a interna e a externa, sendo que a primeira é “o conjunto de elementos
quaisquer ligados entre si por cadeias de relações, de modo a constituir um todo
organizado” e, externa, como “um todo organizado, dinamicamente relacionado com
o meio exterior (isto é, continuamente sujeito a mudança) e que apresenta, em
qualquer momento, um determinado modo de ação ou comportamento.” 9
Associando essas definições, destacamos que este estudo enfrenta os
conceitos de mudança da ciência do direito e do ordenamento jurídico brasileiro em
relação aos fundamentos das legislações coletivas.
Dessa forma, buscamos uma disposição metódica entre as partes, seus
componentes, elementos e os sujeitos que compõem os fundamentos do direito
material coletivo, bem como a relação entre si e suas atividades.
Outra importante consideração acerca da sistematização e do estudo do
direito material coletivo é a intenção de provar que se trata de um sistema
verdadeiro, isto é, que a relação entre seus elementos e componentes possui
relação de interação, detém pontos de intersecção de forma a configurar um
conjunto harmônico.
Toda essa organização metódica será realizada sempre de modo a
enquadrá-la na visão holística do direito, pois todo sistema possui um funcionamento
próprio que varia com suas características particulares e, no caso, partindo da
9 MACIEL, Jarbas. Elementos de teoria geral dos sistemas. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1974, p. 15.
35
premissa que é ramo autônomo do direito, destacaremos que seus fundamentos
combinam em sistema de círculo recorrente, ou seja, nos dizeres de Bresciani Filho
e D’ottaviano “que se identificam por um processo no quais os efeitos de uma
relação, ou o produto de um sistema, afeta o processo de produção desse produto,
ou, ainda, o estado final de um sistema gera ou modifica o estado inicial desse
mesmo sistema, ou ainda mais, os efeitos retroagem sobre as suas causas.” 10
Nessa dinâmica, como leciona Fritjof Capra11, utilizaremos critérios-chave
de aplicação do pensamento sistêmico, a saber:
a) Mudança das partes para o todo: é o critério mais amplo e
aplica a impossibilidade de reduzir o todo a partes menores, pois suas propriedades
são integradas e interagem entre si;
b) Capacidade de deslocamento: transposição da própria
atenção de um lado para outro entre os níveis sistêmicos, pois ao longo da
dissecação do todo poderemos encontrar subsistemas que possuem propriedades
singulares;
c) Pensamento contextual: as propriedades das partes não são
intrínsecas, mas só podem ser entendidas dentro do contexto do todo maior e,
d) Mudança de objetos para relações: os próprios objetos ou
elementos são redes de relações, embutidas em redes maiores.
10 Op. Cit., p. 302. 11 CAPRA, Fritjof. A teia da vida. São Paulo: Ed. Cultrix/Amana-Key, 1996, p. 46.
36
Nesse mesmo raciocínio seguem as considerações de Walter Buckley ao
afirmar que “ao subirmos de nível, as relações das partes se tornam mais flexíveis e
a estrutura mais fluída, à medida que se fundem com o processo e aumenta a série
de comportamentos alternativos franqueados aos componentes. Enquanto as
relações entre os componentes do sistema mecânico são primordialmente uma
função de considerações espaciais e temporais, e de transmissão de energia de um
componente ao outro, as inter-relações que caracterizam os níveis mais elevados
passam a depender cada vez mais da transmissão da informação.” 12
Antonio Menezes Cordeiro, prefaciando obra de Claus-Wilhelm Canaris
afirma que “o papel do sistema no Direito vai, porém, bem mais longe. Enquanto
realidade cultural, o Direito deve ser conhecido, para ter aplicação. A aprendizagem
dos fenômenos jurídicos torna-se, assim, indispensável.” E conclui que “a idéia de
sistema é, assim, a base de qualquer discurso científico, em Direito. A seu favor
depõem aspectos como os da necessidade de um mínimo de racionalidade na
dogmática, o da identificação das instituições com sistemas de ações e de
interações ou do próprio Direito como um sistema de comunicações, o do apoio
sociológico da estruturação jurídica, o do tipo de pensamento dos juristas, etc.” 13
12 BUCKLEY, Walter. Sociologia e a moderna teoria dos sistemas. São Paulo: Ed. Cultrix/Ed. da Universidade de São Paulo, 2000, p. 76. 13 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Introdução e tradução de Antonio Menezes Cordeiro. 2ª ed. – São Paulo: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, p. LXV/LXI.
37
Ainda nesse sentido, Roque Carraza preleciona que “sistema, pois, é a
reunião ordenada das várias partes que formam um todo, de tal sorte que elas se
sustentam mutuamente e as últimas explicam-se pelas primeiras.” 14
Muito embora os sistemas sejam diversificados, aquele que nos interessa
é o que guarda relação mais íntima com a espécie de organização dos componentes
que envolvem relações sistemáticas e que, ao circularem, formam semelhantes e se
justificam dentro do direito material coletivo.
Um padrão, resultado do mapeamento do direito material coletivo e da
configuração de seus elementos, será detectado tomando sempre por base as
relações de características deste sistema e sua maneira de auto-organização.
Devido à interação e relação entre os subsistemas ou elementos que
compõem este sistema, notaremos uma organização em forma de redes de
comunicação que podem adquirir a capacidade de regular a si mesma, corrigindo
seus próprios erros e se organizando, onde, segundo Humberto Maturana15, os
componentes que especificam a organização circular também devem ser produzidos
e mantidos por ela, portanto, a função de cada componente é ajudar a produzir e a
transformar outros componentes enquanto mantém a circularidade da rede, é a
organização do sistema através da autopoiese16.
14 CARRAZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 11ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1998, p. 30. 15 MATURANA, Humberto/VARELA, Francisco. Autopoiesis and cognition. D. Reidel, Dordrecht, Holanda. 1980, p. 35. 16 1.Construção do sistema por si próprio. 2.Auto-referência dos elementos sistêmicos em momentos interdependentes: a auto-referência elementar ou de base; a reflexidade, que diz respeito à referência de um processo a si mesmo, e a reflexão, que é relativa à referência do sistema à sua própria identidade (Luhmann). 3.Enlace hipercíclico de elemento, processo, estrutura e identidade (Teubner). DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. 2ª ed., vol. 1. São Paulo: Ed. Saraiva, 2005, p. 418.
38
Assim, não nos preocuparemos apenas na detecção de causa e efeitos
das legislações e codificações coletivas, mas através das inter-relações, mensurar,
de forma fidedigna, as conseqüências de uma sobre as outras. Avaliaremos as
partes deste sistema e sua interação de modo a configurar a coerência de uma
organização absolutamente isenta de qualquer ideologia senão nos rigores
científicos, diagnosticando a autonomia do direito material coletivo.
A necessidade de se fazer um estudo harmônico dos elementos dos
fundamentos do direito material coletivo, desvenda a evolução do próprio sistema
jurídico brasileiro.
Diante dessa metodologia17, olhamos o interior do direito material coletivo
e o decompomos de forma a desvendar seus fundamentos e elevá-lo à condição de
ramo autônomo do direito e elo que faltava para transpor a semiótica linear para a
holística no direito brasileiro.
17 “Procedimentos metodológicos são conjuntos de regras e procedimentos estabelecidos para realizar uma pesquisa ou ação. Diz respeito ao método a ser utilizado diante dessa pesquisa e as etapas a serem cumpridas, como o levantamento de dados, coleta de material, análise de informações, critérios para a seleção das pessoas que irão participar, dentre outros.” KISIL, Rosana. Elaboração de projetos para organizações da sociedade civil. São Paulo: Global Editora. Coleção: Gestão e Sustentabilidade, 2001, p. 70.
39
III. TRANSPOSIÇÃO DE PARADIGMAS: GESTÃO DA
MUDANÇA PELO DIREITO MATERIAL COLETIVO
Paradigma significa modelo ou parâmetro de referência. Em termos
científicos são estruturas norteadoras, conceitos ou idéias para serem seguidos de
maneira geral e comum, servindo de instrumento teórico e prático de valoração de
determinada verdade, de sua validação e reconhecimento.18
Nesse sentido, ao longo deste estudo e em todos os capítulos desta
sistematização sugerida, buscaremos demonstrar o declínio do paradigma
sedimentado no direito público e privado e a necessidade de enquadrarmos os
estudos jurídicos alicerçados no paradigma holístico, do qual o direito material
coletivo faz parte.
Quando definimos os limites deste trabalho, nunca foi nossa intenção nos
atermos a dados históricos, ou seja, apenas preferimos elaborar um corte
epistemológico fazendo enfoque exclusivo aos fundamentos do direito material
coletivo, até porque, objetivamos demonstrar a sua autonomia.
Por trazer o direito material coletivo conceitos em quase sua totalidade
contemporâneos, preferimos apenas demonstrar a transposição de paradigmas e
situar o direito material coletivo no novo paradigma holístico.
18 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1999, p. 1.032.
40
Dentro desse novo paradigma holístico, situaremos o direito material
coletivo em novo capítulo da história, não do ponto de vista secular, mas pontual,
como gestor de mudança dessa nova conjuntura.
Desta forma, nos aproximaremos da lição trazida por José Reinaldo de
Lima Lopes ao afirma que “como o direito, a história pode cumprir, nos momentos de
mudança, um papel legitimador do ‘status quo’, um papel restaurador e reacionário,
ou ainda um papel legitimador no novo regime, ou, se procurarmos uma expressão
mais neutra, um papel crítico.” 19
O século XX se caracteriza pela consolidação do capitalismo e o consumo
em massa. Concomitantemente, inicia a necessidade de quebra do paradigma
individualista, pois observamos a mitigação de valores coletivos que comprometem o
sistema de organização social, por exemplo, com relação ao consumo responsável,
meio ambiente sustentável, saúde, etc.
Havia a necessidade, portanto, de inclusão de novos valores e interesses.
De fato, as lutas sociais protagonizadas pelos mais diversos grupos
sociais, aceleraram o processo de crise dos velhos paradigmas fundada
exclusivamente no direito subjetivo onde cabia apenas ao indivíduo buscar e
defender seus direitos e interesses.
19 LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história – Lições introdutórias. 2ª ed. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 18.
41
Essas diversas manifestações de incompatibilidade para a tutela dos
direitos e interesses de uma coletividade, implicaram e ainda implicam na busca de
novo paradigma que compreenda a nova realidade da sociedade em
desenvolvimento, absorvendo e adaptando os seus mecanismos de controle, desta
feita, mediante legislações coletivas que despontavam e eram inseridas no sistema
jurídico.
Esses conflitos de valores e interesses obrigam ao processamento de
tutela por meio dos códigos e legislações próprias.
Nessas condições estruturais, a função do direito, ao se legislar e codificar
as diversas legislações coletivas, ainda que esparsas, é possibilitar a produção de
certeza de sua tutela através da estabilização social.
No Brasil, em particular, o reflexo dessa vibração social levou à legislação
e codificação, com preocupação essencialmente processual coletiva, talvez devido à
emergência da tutela de novos direitos e interesses, primeiro, através da Lei
7.347/85 (Lei de Ação Civil Pública), consolidando-se com a Constituição de 1988 e,
posteriormente, com a Lei 8.078/90 (Código Brasileiro de Defesa do Consumidor).
Dentre essas legislações pioneiras, destacamos que o Código Brasileiro
de Defesa do Consumidor conceituou três formas de manifestação de interesses e
direitos coletivos: difusos, coletivos e individuais homogêneos (artigo 81, incisos I a
III).
42
Diante desse quadro em ebulição, estaria o direito preparado para firmar-
se neste capítulo da história como gestor dessa mudança de paradigma?
O direito atual, fundamentalmente pelo advento do direito material coletivo,
que transformou a semiótica jurídica exclusivamente linear para holística, assumiu o
exercício do planejamento na busca da redução de incertezas.
Note que falamos em redução e não eliminação das incertezas já que a
incerteza é característica das movimentações sociais. Há, na verdade, o controle
das incertezas e, consequentemente, da diminuição dos riscos.
Dessa forma, o direito, além de ciência, é mecanismo organizacional e de
gestão da mudança. E assim se deve postar neste período.
Seja no direito ou em qualquer outro segmento organizacional, as
incertezas e diminuição dos riscos sociais ocorrem desde que os agentes se
apliquem na solução dos problemas mediante o uso da criatividade e da inovação.
Como muito bem prelecionam Parker & Stacey, ao tratar da gestão de
sistemas administrativos, afirmam que “se os sistemas humanos, por sua
criatividade, são do tipo não-linear (...) aqueles que acreditam que o futuro a longo
prazo das economias e das empresas pode ser planejado terão de abandonar seus
programas.” 20
20 PARKER, David / STACEY, Ralph D. Caos, administração e economia: as implicações do pensamento não-linear. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1995, p. 30.
43
Trazendo estas preocupações analogamente ao direito, o paradigma
vigente impõe aos cientistas e a todos os operadores a necessidade de adaptação
ao ambiente externo (necessidades e conflitos sociais), senão imediata, o mais
rápido possível, de forma a implicar em menor conflito.
Isso se faz impondo esforço orientado em sentido ao equilíbrio. O advento
do direito material coletivo colabora de maneira fértil na solução de problemas que
até então eram tratados apenas em sentido linear, individualista.
O direito, ao assumir a função de gestor dessa mudança de paradigma,
deve adaptar-se aos conceitos de planejamento para incorporar outros valores que
completam sua estrutura de forma a atingir, em curto espaço de tempo, maior
eficácia da tutela criada aos anseios sociais.
Não podemos atualmente falar em gestão de mudança, ainda que inserida
na ciência do direito, sem tratarmos das questões da informação, ou seja, que ocorra
abertura completa às informações, principalmente àquelas vindas do meio externo
(social) e que levem nossas organizações (por exemplo, Poder Legislativo,
Executivo e Judiciário) ao aprendizado.
O melhor fluxo de informação leva à riqueza de interpretações, que por
sua vez levam a uma reflexão compartilhada entre as organizações e, finalmente, a
ampliação, realimentação dos sistemas, uma legislação mais bem elaborada a fim
de atender as necessidades sociais.
44
Outro fator importante, próprio do Estado Democrático de Direito, diz
respeito à liberdade das nossas organizações em exercer o debate sobre as
informações, tornando complexa a discussão sobre os problemas sociais,
culminando em maior flexibilidade e possibilidade de escolha no momento de
legislar, ou seja, utilizar os procedimentos legislativos como mecanismo de
estratégia.
O direito, ao aviar a interação entre as organizações e a interação entre
seus próprios sistemas, agora fundada na tricotomia direito público-privado-coletivo,
possibilitaria o surgimento de novos e mais complexos padrões legislativos (sentido
amplo) e, consequentemente, de comportamento social, conduzindo a novas
direções estratégicas.
Questão imprescindível para o novo papel do direito se relaciona com a
hierarquização das questões ou dos problemas sociais. Com efeito, pequenas
causas podem gerar grandes efeitos e, por conta disto, necessita de elaboração de
estratégias e táticas legislativas de forma a corresponder à altura às necessidades
sociais.
Até o presente momento temos relatado a complexidade das questões
sociais e das nossas legislações (partindo do linear para o holístico), mas
atualmente tem o direito metodologia formal de planejamento de maneira a sorver
este novo paradigma e servi-lo?
45
Muito embora tenhamos visto algumas importantes contribuições, a
resposta é negativa.
É importante salientar que, para ser capaz de trazer soluções, mesmo o
surgimento do direito material coletivo sendo evidentemente um grande avanço, o
direito deve autoconhecer-se, isto é, importante reconhecer que todos os agentes do
direito devem, cada qual em sua seara, comportar-se como pesquisadores e
cientistas que estudam suas próprias organizações, inclusive impondo a importante
influência cultural que cada elemento dessa organização possui.
O engajamento no autoconhecimento das organizações fomenta as
atitudes, sentimentos e, principalmente, mecanismos de defesa da sociedade.
Fomentam também processos criativos de mudança e permitem que os agentes
militem construtivamente.
E é neste sentido o ensinamento de Sylvia Constant Vergara, pois, ao
prefaciar obra de Ruben Bauer, afirma que “as próprias ciências naturais estão
redefinindo sua compreensão do mundo, assumindo o indeterminismo, a
complexidade e a subjetividade como elementos vivos da prática científica. A
proposta de Bauer é para a construção de uma ciência das organizações que nos
facilite compreender e lidar com incerteza, contradições, pluralidade, turbulência,
conexões. E mais: que nos leve à cooperação, ao diálogo, à convivência com o
ambiente natural; que nos leve a organizações mais humanizadas.” 21
21 BAUER, Ruben. Gestão da mudança – Caos e complexidade nas organizações. São Paulo: Editora Atlas, 1999, p. 14.
46
Dessa maneira, o atual paradigma, este que vivemos, revela a
necessidade do direito não ser visto apenas como ciência, mas também investir-se
como organização e gestor de mudanças.
Ruben Bauer conclui que “é preciso que essa emergência do novo se
torne uma possibilidade organizacional, um atributo da organização como um todo,
que possa surgir espontaneamente (e continuamente) na presença de condições
propícias. Se o futuro dos ambientes é imprevisível, para onde escolheríamos tentar
dirigir o processo de mudança organizacional? Ao contrário, devemos tentar facilita-
lo, e criar condições para que ele possa emergir de forma congruente com as
macroemergências ambientais.” 22
Tudo isto significa a necessidade do advento de uma nova organização
(inclusive em sentido estatal-corporativo) do direito, até porque, continuamos a
verificar a inflação de entraves administrativos, processuais e, essencialmente,
porque o direito milita ainda como mecanismo de emergência ao dar respostas em
tempo de crise e situações de extrema instabilidade, tornando simplista o processo
legislativo em relação aos termos acima propostos.
Assim como não podemos ignorar a existência de problemas, não
podemos deixar de exaltar a maneira heróica como o direito brasileiro tem militado
em favor da sociedade, todavia, este novo paradigma é de construção de nova
teoria das organizações jurídicas e administrativas, completada pelo direito material
coletivo, que não temos pretensão de firmá-la, primeiro, porte outros com mais
22 Op. Cit., p. 176.
47
propriedade poderão fazê-lo oportunamente e, segundo, é discussão complexa que
este estudo não comporta.
48
IV. INSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO MATERIAL COLETIVO
Devemos investigar a institucionalização do direito material coletivo como
instrumento de gestão de mudanças do ordenamento jurídico e do quadro
paradigmático.
Não enumeraremos, entretanto, este ou aquele diploma legal que tenha
debutado as questões de tutela coletiva no ordenamento jurídico brasileiro,
essencialmente porque as legislações coletivas são esparsas e a investigação seria
morosa.
O direito material coletivo é também sujeito institucional e tal averiguação
se justifica porque todo elemento dessa espécie delimita novas relações e novas
referências sociais, justamente buscando outros horizontes jurídicos, tudo isto
propriedades primordiais das quebras paradigmáticas.
Agregando os conceitos prévios trazidos, o direito material coletivo, como
sujeito institucional, é essencialmente provocativo e delimita um projeto de visão
múltipla, justamente para a defesa de valores e interesses holísticos e,
automaticamente, inserindo na sociedade a responsabilidade social, muito embora
seus valores éticos estejam vulneráveis.
Observávamos, até pouco tempo, quer pela análise doutrinária e
jurisprudencial, antes de visualizarmos com maior nitidez o direito material coletivo
49
no ordenamento jurídico, que aparentemente existia um hiato entre o indivíduo
(cidadão) e o Estado que, até seu advento, era considerado vago.
Muito embora nunca estivesse vago verdadeiramente, era visto apenas de
forma linear, ou seja, limitada. Na verdade sempre foi ocupado pelos legitimados
pelo direito material coletivo que apenas necessitavam de um sujeito institucional,
sobretudo, mobilizador, para deixarem a vida latente.
Nesse sentido é que preleciona Ricardo Luis Lorenzetti afirmando que “os
grupos têm sido tratados, desde sempre, como situações de exceção, porém,
adquirem, agora, relevância institucional; interessam como problema da organização
social.” 23
A responsabilidade social aqui referida tem, portanto, como sujeito
institucional, o direito material coletivo que é alicerce na construção de uma
plataforma jurídica completa e adequada para harmonia desse processo sócio-
econômico e cultural e na tutela de bens e direitos coletivos.
Chamaríamos o direito material coletivo de sujeito indutor ou condutor ao
invés de sujeito institucional?
A resposta seria positiva não fosse a delimitação organizacional que
retratamos no capítulo anterior, pois elevamos a ciência do direito como um dos
mecanismos organizacionais da sociedade (gestor de mudanças paradigmáticas,
23 Lorenzetti, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. 177.
50
para as questões coletivas, instrumentado pelo direito material coletivo) e, portanto,
considerá-lo mero indutor ou condutor de determinado processo de rompimento
social seria restringi-lo a uma ação de singela inspiração, com caráter
primordialmente passageiro, finito, temporânea, esporádica ou momentânea.
Ao considerá-lo como sujeito institucional, elemento da ciência do direito
como segmento organizacional da sociedade, o elevamos à condição de criador,
como estrutura que exprime as necessidades sociais básicas, exarando, diferente da
indução ou condução, caráter de permanência e é facilmente identificado pelo valor
de seus códigos de conduta expressos nas legislações que compõem o direito
material coletivo.
Por isso Lorenzetti conclui suas idéias atribuindo ao papel da coletividade
na organização social um nível paralelo, delineado junto ao particular e o Estado,
atestando que “ocupa um primeiro plano seu papel como contrapoderes sociais, isto
é, como modo de organizar o indivíduo isolado em torno de um determinado
interesse supra-individual ou difuso, a fim de lograr um poder para contrabalancear o
que tem as grandes organizações que representam a outros interesses. Essa é a
idéia que sustenta a criação dos partidos políticos, sindicatos, das associações de
consumidores, de defesa de direitos humanos, do meio ambiente.” 24
E aquilata: “Desta maneira se constitui um nível intermediário de
organizações entre o Estado e o indivíduo. Elas permitem a defesa de interesses
24 Op. Cit., p. 177.
51
específicos e a negociação em condições igualitárias, e, ainda mais, a celebração de
contratos coletivos, como os de trabalho ou de consumo.” 25
O nível intermediário que o autor denomina não se refere à hierarquia,
mas apenas a uma posição social que não diz respeito ao indivíduo (privado) e o
Estado (público) e denota-se desse ensinamento que não estamos falando apenas
da quebra de um paradigma, mas da inserção de uma cultura emancipatória em
certo segmento social, no caso, da coletividade legitimada pelo direito material
coletivo.
É emancipatória porque toda quebra situacional demanda coragem dos
elementos que compõem esse grupo legitimado, tudo para impor eqüidade na busca
de seus interesses.
Ao tratar da cultura emancipatória, Aldaíza Sposati, ao discutir os
movimentos utópicos da contemporaneidade, afirma que “este processo supõe uma
subjetividade coletiva para além do individual. Portanto, se estamos desenvolvendo
uma proposta de alteração paradigmática, pautada na emancipação e no
ambientalismo, a questão da subjetividade coletiva ganha destaque.” 26
A autora arremata dizendo que “não basta propormos algo como o certo, é
preciso hegemonizar uma idéia não pela dominação, mas pela possibilidade da
construção de um desejo do novo. É fundamental esse processo, pois, se não
ocorre a incorporação do desejo no plano da subjetividade, a alteração pretendida 25 Ibidem, p. 177. 26 SORRENTINO, Marcos (org.). Ambientalismo e participação na contemporaneidade. São Paulo: EDUC/FAPESP, 2002, p. 24.
52
não alcança o imaginário coletivo, o desejo da sociedade e, consequentemente,
torna-se descartável.” 27
Assim, o direito material coletivo, como sujeito institucional, participante da
gestão da mudança da ciência do direito e assume papel emancipatório e
mobilizador da coletividade, legitimada na participação desse processo de mudança,
ou seja, calcado em uma nova concepção e dimensão sócio-econômica e cultural,
defende novas propostas com argumentação, com capacidade de decisão e
construção coletiva.
Tratamos até o momento, de apresentar justamente o surgimento de
novas relações institucionais (holísticas) com a quebra do paradigma fundado
exclusivamente na semiótica linear. Essas novas relações representam, ainda nas
palavras de Aldaíza Sposati, um novo “saber militante“ 28 que, concebido por
Boaventura de Souza Santos, tem a função maior de estimular a mudança e a
transformação.
Justamente nos capítulos anteriores temos apregoado a necessidade do
cientista do direito e dos demais agentes militantes a ousadia de transformar a
ciência do direito, calcada no direito material coletivo, em mecanismo de gestão da
mudança.
27 Op. Cit., p. 24/25. 28 Op. Cit., p. 11.
53
A ciência do direito, instrumentalizada pelo direito material coletivo, como
apregoado no capítulo anterior, é gestora de mudanças. O direito material coletivo é
co-autor da transição paradigmática ou de transição do linear para o holístico.
E é neste ponto que se institucionaliza o direito material coletivo, como um
dos sujeitos institucionais da ciência do direito, gestora da mudança ao lado de
outras ciências (política, economia, filosofia, antropologia, etc.) e, nas palavras de
Boaventura, citado pela indigitada autora, “não se trata, portanto, de examinar a
questão sob sua dimensão finita ou, então, de um planejamento de uma ação com
um término temporalmente delimitado. (...) destacando a capacidade provocativa de
um projeto em disseminar, semear idéias, conceitos, visões multiplicadoras de
elementos para um novo paradigma de defesa a vida, a natureza, do meio ambiente.
Por isso, um projeto de desenvolvimento humano.” 29
29 Op. Cit., p. 12.
54
V. NATUREZA JURÍDICA DO DIREITO MATERIAL COLETIVO
Os capítulos iniciais deste estudo retratam o processo de transposição
paradigmática, do linear ao holístico, e delimita as questões jus-filosóficas, sócio-
culturais e econômicas que lotam o direito material coletivo no ordenamento jurídico
brasileiro, como um dos sujeitos institucionais na ciência do direito, gestor da
mudança.
Neste capítulo, com a definição da natureza jurídica do direito material
coletivo, precedendo exame a alguns dos diversos temas holísticos, iniciaremos uma
investigação propriamente jurídica das propriedades exclusivas do direito material
coletivo que o tornam um ramo autônomo do direito.
Mas, por que iniciar este percurso com a definição da sua natureza
jurídica?
Não podemos nos afastar que o propósito central desta dissertação é uma
sistematização para agrupar e externar as qualidades ímpares do direito material
coletivo e, por assim ser, devemos buscar em seu nascedouro, as características
primazes que tornam as diversas legislações de tutela de bens e direitos coletivos
semelhantes.
55
Relembrando conceitos trazidos no capítulo II, quando tratamos da
questão da sistematização, vimos que sistema, grosso modo, é a reunião de
elementos relacionados entre si, com vetor comum.
Aqui observaremos que a natureza jurídica de qualquer instituto jurídico é
a convocação geral para reunião de todos os elementos entre si relacionados em
sistema, no caso, do direito material coletivo.
Maria Helena Diniz define “natureza jurídica” com duas variantes:
“NATUREZA JURÍDICA. Filosofia do direito.
1. Significado último dos institutos jurídicos.
2. Afinidade que um instituto jurídico tem, em diversos pontos, com uma grande
categoria jurídica, podendo nela ser incluído a título de classificação.” 30
A semelhança do conceito de sistema e de natureza jurídica não é mera
coincidência, pois, com efeito, ambos enumeram as afinidades de elementos
singulares, investigando semelhanças para agrupamento e formação do todo.
Daí porque não caminhar com este estudo sem obrigatoriamente convocar
todos os elementos que compõem o direito material coletivo, relacionados entre si
por algum teor de afinidade, constituindo o todo deste ramo autônomo do direito,
iniciando-se pela definição de sua natureza jurídica.
30 Diniz, Maria Helena. Dicionário jurídico. 2ª ed. rev., atual. e aum. São Paulo. Saraiva, 2.005, p. 381.
56
Para definir a natureza jurídica do direito material coletivo, nos apoiaremos
nos comentários de Nelson Nery Junior 31 ao estudar a proteção contratual no
Código de Defesa do Consumidor. 32
Vamos nos ater à investigação de uma natureza jurídica única que
contemple todas as legislações e codificações materiais coletivas que se encontram
atualmente na forma esparsa.
Em que pese cada uma dessas legislações possuírem particularidades, a
natureza jurídica aqui apresentada, seja definida como significado último deste
instituto ou afinidade de todos os elementos que o compõem, por exemplo, do
microssistema de proteção ao consumidor, do meio ambiente, do idoso, da criança e
do adolescente, enfim, se mostra como ponto de intersecção entre eles.
Essa intersecção mostra uma única natureza jurídica e nos leva à imediata
conclusão que todas elas estão situadas em um mesmo patamar, sem relação de
importância ou hierarquia.
Para definir a natureza jurídica do direito material coletivo vamos nos ater
à especificação e qualificação das legislações e codificações que as compõe.
31 Faremos referência contínua neste capítulo a Nelson Nery Junior, pois é na condição de analista de seu pensamento que apresentamos esta reflexão. Muito embora as considerações trazidas por Nery Jr. estejam relacionadas à legislação consumerista (uma das legislações de tutela de interesses e direitos coletivos), especificamente da proteção contratual, alargaremos seus conceitos para todas as demais legislações que também, de alguma forma, tutelam interesses e direitos coletivos diversos. 32 GRINOVER, Ada Pellegrini... [et al.]. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 8ª ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 498.
57
Citando exemplificativamente o microssistema de proteção e defesa do
consumidor, do meio ambiente, do idoso ou da criança e do adolescente, nos
indagamos se a proteção jurídica é o consumidor em si, ou do meio ambiente, do
idoso em si ou da criança e do adolescente e assim por diante.
Para a resposta, vamos nortear nosso raciocínio alicerçando-o em
preceitos pétreos da nossa Carta Magna.
Os artigos 5º, inciso XXXII e 170, inciso V, da Constituição Federal
prescrevem que cabe ao Estado promover a defesa do consumidor, inserindo-o na
ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano e a livre iniciativa.
Assim, não se tutela apenas a categoria de consumidores propriamente
dita, mas aquela especial e qualificada na ordem econômica, que valoriza o trabalho
humano e a livre iniciativa.
Nesse sentido são os comentários de José Geraldo Brito Filomeno ao
comentar os aspectos da defesa da cidadania através da legislação consumerista ao
afirmar que “... cuida-se de uma lei de ordem pública e de interesse social, o que
equivale a dizer que seus preceitos são inderrogáveis pelos interessados em dada
relação de consumo, e seus preceitos são aplicáveis às relações verificadas no
mundo fático, ainda que estabelecidas antes de sua vigência.” 33
33 FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de direitos do consumidor. 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 32.
58
Esse mesmo predicado pode ser estendido às questões ambientais, pois,
efetivamente, os artigos 170, inciso VI e 225, da Carta Política em vigência, não
tutelaram qualquer meio ambiente, mas o meio ambiente qualificado.
Assim como a legislação consumerista, o constituinte inseriu o meio
ambiente na ordem econômica, valorizando-o, através do trabalho humano e a livre
iniciativa, à categoria de meio ambiente equilibrado e essencial à sadia qualidade de
vida humana.
Reproduzimos a lição de José Afonso da Silva, citado por Édis Milaré que
corrobora este raciocínio, onde afirmou que “... a constituição, no art. 225, declara
que todos tem direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Veja-se que o
objeto do direito de todos não é o meio ambiente em si, não é qualquer meio
ambiente. O que é objeto do direito é o meio ambiente qualificado. O direito que
todos temos é à qualidade satisfatória, o equilíbrio ecológico do meio ambiente.
Essa qualidade é que se converteu em um bem jurídico. A isso é que a Constituição
define como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida.
Teremos que fazer especificações, mas, de um modo geral, pode-se dizer que tudo
isso significa que esses atributos do meio ambiente não podem ser de apropriação
privada, mesmo quando seus elementos constitutivos pertençam a particulares.
Significa que o proprietário, seja pessoa pública ou particular, não pode dispor da
qualidade do meio ambiente a seu bel-prazer, porque ela não integra a sua
disponibilidade. Veremos, no entanto, que há elementos físicos do meio ambiente
que também não são suscetíveis de apropriação privada, como o ar, a água, que
são, já por si, bens de uso comum do povo. Por isso, como a qualidade ambiental,
59
não são bens públicos nem particulares. São bens de interesse público, dotados de
um regime jurídico especial, enquanto essenciais à sadia qualidade de vida e
vinculados, assim, a um fim de interesse coletivo.” 34
Ainda que nos apeguemos a uma espécie específica de meio ambiente, o
meio ambiente do trabalho, por exemplo, verificamos que, tanto gênero como
espécie, são tutelados e os eleva à condição de bem jurídico, não apenas o meio
ambiente do trabalho em si, mas aquele que assegura ao trabalhador sua saúde e a
sua segurança, como posto no artigo 7º, inciso XXII, c/c artigo 225, ambos da
Constituição Federal.
E caminha nesse sentido a preleção de Raimundo Simão de Melo ao dizer
que “o meio ambiente do trabalho adequado e seguro é um direito fundamental do
cidadão trabalhador (lato sensu). Não é um mero direito trabalhista vinculado ao
contrato de trabalho, pois a proteção daquele é distinta da assegurada ao meio
ambiente do trabalho, porquanto esta última busca salvaguardar a saúde e a
segurança do trabalhador no ambiente onde desenvolve as suas atividades.
De conformidade com as normas constitucionais atuais, a proteção do
meio ambiente do trabalho está vinculada diretamente à saúde do trabalhador
enquanto cidadão, razão por que se trata de um direito de todos, a ser
instrumentalizado pelas normas gerais que aludem à proteção dos interesses difusos
34 MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário. – 3ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2004, p. 156/157.
60
e coletivos. O Direito do Trabalho, por sua vez, regula as relações diretas entre
empregado e empregador, aquele considerado estritamente.” 35
O Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso,
respectivamente Leis nº 8.069, de 13 de julho de 1990 e 10.741, de 1º de outubro de
2003, assim como nos diplomas legais anteriormente analisados, também se
mostram elevados à qualificação aos regimes especiais de tutela.
Ambas adquirem qualificação necessária para se tornarem regimes
especiais na Constituição Federal, precisamente nos artigos 227, 229 e 230, porque
não se tutela apenas a criança, o adolescente e o idoso, num sentido estrito, mas
toda a sociedade à medida que se defende sua participação na comunidade, sua
dignidade, seu bem-estar, assegurando-lhes o direito à vida, vida digna, inserindo-os
também na ordem econômica.
Note-se, portanto, que a qualidade de vida sustentável é intrínseca a todos
os diplomas e codificações legais até agora exemplificativamente analisados, seja na
pessoa humana do consumidor, da criança e do adolescente, do idoso, do meio
ambiente, do cidadão trabalhador, enfim, são bem jurídicos elevados a essa
categoria porque possuem predicados coletivos, holísticos, jamais estritos,
reduzidos.
Assim, ainda que o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto do
Idoso conceituem cada um de seus tutelados, alargou-se a tutela para bem jurídico
35 MELO, Raimundo Simão de. Direito ambiental do trabalho e a saúde do trabalhador: responsabilidades legais, dano moral, dano estético. São Paulo: LTr., 2004, p. 31.
61
que disponibilize vida, trabalho, saúde, igualdade, liberdade, integridade física,
associação e convívio e seguridade social.
Anotamos as considerações de César Luiz Pasold, ao prefaciar obra da
lavra de Leal da Veiga Junior e Marcelo Henrique Pereira que comenta o Estatuto do
Idoso, ao afirmar que “..., no nicho constitucional, a expressa garantia do direito à
Vida, à Dignidade e ao Bem-Estar das Pessoas Idosas, certamente se faz sob a
perspectiva da imperiosa inserção, de modo claro e preciso, nos principais discursos
constitucionais contemporâneos, dos denominados novos direitos.” 36
Ainda que adotemos uma vertente mais filosófica para a questão,
observamos a especialização e qualificação que elevou a qualidade de vida do idoso
como bem jurídico, na afirmação de Pérola Melissa V. Braga, pois, “falar em
envelhecimento é falar da vida, do natural processo de viver, iniciado com o nascer
biológico, a partir do qual nos tornamos todos envelhecentes. Esse é o curso natural
da existência humana.” 37
José de Farias Tavares, ao comentar o Estatuto da Criança e do
Adolescente, ensina que “a filosofia deste diploma estatutário é a da proteção
integral à criança e ao adolescente, em consideração às suas peculiaridades de
pessoa humana em fase de desenvolvimento biopsíquico-funcional.” 38
36 VEIGA JR., Celso Leal da. Comentários ao Estatuto do Idoso. São Paulo: LTr., 2005, p. 9. 37 BRAGA, Pérola Melissa V. Direitos do idoso. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 109. 38 TAVARES, José de Farias. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 13.
62
Referido autor ainda conclui, elevando a discussão aos preceitos
constitucionais, dizendo que “a constituição de 1988 foi a mais afirmativa e
abrangente, dispondo em favor da infância e da juventude em geral: aprendizagem,
trabalho e profissionalização: art. 7º, XXXIII, combinado com o art. 227, § 3º, incisos
I, II e III; capacidade eleitoral ativa: art. 14, § 1º, II, c; assistência social, seguridade e
educação: arts. 195, 203, 204, 208, I, IV, e art. 7º, XXV; programação de rádio e
televisão: art. 220, § 3º, I e II; proteção como munus público: art.227, caput; como
dever do Estado: art.227, § 1º, I e II; prerrogativas democráticas processuais:
art.227, IV e V; incentivo à guarda: art. 227, VI; prevenção contra entorpecentes: art.
227, VII; defesa contra abuso sexual: art. 227, § 4º; estímulo à adoção: art. 227, § 5º;
e conquista maior, que se faz equânime às pessoas de todas as idades: a isonomia
filial, no art. 227, § 6º.” 39
Denota-se de todos estes argumentos, que a tutela máxima, especial e
qualificativa concedida a esses tutelados, que os elevou a tal condição, na verdade
instituiu preceitos principiológicos.
Eis sua natureza jurídica.
Referindo-nos novamente a Nelson Nery Junior, como fizemos no início
deste capítulo, a natureza jurídica das legislações materiais coletivas, do direito
material coletivo é principiológica. 40
39 Op. cit., p. 14. 40 NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Curso de Direito do Consumidor: com exercícios. 2ª ed. rev. modif. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 65/67.
63
O mecanismo das relações coletivas submete-se a preceitos gerais e a
valores intrínsecos à própria preservação da vida humana, de modo que não se
permite que nenhuma outra legislação interfira nos ditames estabelecidos, de forma
setorial ou não, tornando-se ineficaz já que esta principiologia se impõe a todo o
ordenamento jurídico.
Melhor explicando, as legislações e codificações coletivas são autônomas
em relação às de natureza público-privada, mas compõe o direito material coletivo e
se interligam pela preservação da vida humana em sua totalidade.
Dentro do sistema constitucional brasileiro, prevalecem sobre os demais
sistemas e todas as legislações e codificações citadas como exemplos, tornam
explícitos os comandos pétreos e, consequentemente, os concretizam nas normas
infraconstitucionais.
A Constituição Federal, cujas cláusulas pétreas foram acolhidas pelas
legislações coletivas, promove um corte horizontal, atingindo todas as legislações
que de alguma maneira as confrontam e tratam, ainda que superficialmente, do
mesmo tema.
Naquilo que colidem, perdem a eficácia e são nulas de pleno direito.
Por exemplo, não será eficaz legislação civil ou penal que, de alguma
forma, seus comandos interfiram no meio ambiente equilibrado e adequado à
qualidade de vida humana, que interfiram nas relações de consumo, etc.
64
As legislações e codificações coletivas, concluindo, são especiais sobre
matérias coletivas e de natureza jurídica principiológica por trazerem preceitos gerais
sobre essas mesmas matérias.
Em termos de principiologia, podemos afirmar que há uma relação de
subordinação de todas as legislações e codificações contidas no ordenamento
jurídico às leis coletivas.
65
VI. INTERESSE E DIREITO MATERIAL COLETIVO: CONCEITOS
E DIFERENÇAS
Muito embora este capítulo sugira uma mera discussão acadêmica entre o
conceito de “interesse” e de “direito”, se faz necessária porque, se desenvolvemos
uma sistematização, inclusive já tendo averiguado a sua natureza jurídica, não
podemos nos apartar deste tema.
Aliás, por ser escasso o material doutrinário sobre o direito material
coletivo, não são raras as ocasiões onde ambos os termos são utilizados como
sinônimos, tanto pela doutrina ou jurisprudência, o que poderia, dependendo da
abrangência da discussão, trazer resultados lógico-jurídicos divorciados da correta
semiótica de cada um dos termos em tela.
Necessário relembrar que continuaremos até final deste trabalho
considerando “coletivo” no sentido lato, compreendendo o coletivo em si, o individual
homogêneo e o difuso.
Existe uma prévia dificuldade de se compreender os termos “interesse” e
“direito”. Não o fazemos como crítica aos autores que utilizam estes termos de forma
sinônima, mas apenas para situarmos o leitor na importância de se compreender
separadamente cada um deles e, por fim, obtermos elementos suficientes para
conceituarmos o “direito material coletivo”.
66
Os termos se confundem, indicando ora o termo “interesse”, ora “direito” e
comumente como sinônimos, inclusive confundindo interesse processual ou de agir.
Maria Helena Diniz traz estes dois conceitos, a saber:
“DIREITO. Teoria geral do direito. Com base em Miguel Reale, pode-se dizer que direito
é uma ordenação heterônoma das relações sociais baseada numa integração normativa
de fatos e valores. Mas é preciso esclarecer que é um termo análogo, que comporta
significados diversos, suscitando numa visão poliédrica várias definições.” 41
“INTERESSE. 1. Psicologia forense. a) Relação entre um motivo e certo incentivo; b)
sentimento que acompanha a atenção. 2. Direito administrativo. Pretensão do particular
fundada em norma jurídica. 3. Filosofia geral. a) Aquilo que importa ao agente; b) o que
prova atividade mental ou atenção; c) simpatia. 4. Nas linguagens comum e jurídica,
significa: a) diligência; empenho em favor de alguém; b) importância; c) desejo de
proveito pessoal que sacrifica tudo aos ganhos pecuniários; d) ganho, vantagem,
proveito; e) juro; f) conveniência; g) lucro; h) utilidade econômica; i) vantagem de ordem
moral; j) posição favorável para satisfação de uma necessidade (Carnelutti). 5. Direito
comercial. Participação nos lucros. 6. Direito bancário. a) Juro de capital empregado no
mercado financeiro; b) ganho numa operação financeira.” 42
Podemos observar que “direito” e o “interesse” são elementos diferentes
de um mesmo fato jurídico, o social.
Efetivamente, no caso do direito material coletivo, apreendendo o fato
social e aplicando-lhe o devido valor, formou-se uma ordem de leis dentro do
41 DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. 2ª ed. rev., atual. e aum. vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 160. 42 Op. cit., p. 1.026.
67
ordenamento jurídico salvaguardando os interesses da coletividade, os interesses
coletivos.
Portanto, o interesse coletivo é a pretensão, o interesse da coletividade na
busca de certo bem.
Guido Alpa, muito embora no texto transcrito trate essencialmente do
interesse difuso, o que para nós não causa qualquer alteração no estudo porque o
consideramos compreendido no coletivo (lato senso), afirma que “si denomina
“interesse” in quanto esprime un’esigenza individuale, secondo la terminologia
usuale, una tensione di un soggetto verso un bene; nel caso dell interesse diffuso il
bene può anche essere immateriale, pubblico e quindi non necessariamente ed
economicamente valutabile; si denomina “diffuso” in quanto la sua dimensione si
coglie nell’appartenenza del soggetto ad un gruppo, ad una collettivitá.” 43
Para Ricardo dos Santos Castilho “as necessidades do homem fazem
nascer a direção de seus anseios e suas conquistas, buscando atingir seus
objetivos. A concepção de interesse está ligada à idéia de vantagem que o homem
expressa acerca de um bem da vida, seja material, imaterial ou moral. Desse modo,
o interesse representará um liame entre o homem e qualquer desses bens, assim, o
interesse parte do indivíduo na esfera de sua existência em relação a um bem da
vida, configurando-se tal interesse como interesse simples em sentido comum.” 44
43 ALPA, Guido. Interessi diffusi. Revista de Processo. São Paulo: Universidade de São Paulo. v. 21, nº 81, p. 146-160. Jan/Mar. 1996. 44 CASTILHO, Ricardo dos Santos. Direitos e interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos: ação civil pública, coisa julgada e legitimidade ativa do Ministério Público. Campinas, SP: LZN Editora, 2004, p. 15.
68
Referido autor conclui, ressaltando o conceito do termo “interesse jurídico”
lecionando que “na acepção jurídica, importa-nos fazer uma distinção preliminar
entre interesse de fato e interesse jurídico. Naquele, os diversos interesses surgem
da realidade e podem ser compatíveis, concordantes, ou podem trazem conflitos,
visto que a valoração fica por conta dos diferentes sujeitos, dentro da diversidade
social. Neste, o que importa é a relevância de ordem material ou também
instrumental, subjetivada ou não subjetivada, conferida pelo direito positivo a
determinadas situações relativas ao indivíduo isolado, ao grupo ou à coletividade
maior.” 45
Dessa forma, podemos concluir que o direito coletivo é o caminho legal da
coletividade na busca de certo bem jurídico coletivo e o interesse coletivo é o ânimo
da coletividade na busca do bem almejado, de um bem juridicamente tutelado.
Para visualizarmos melhor a distinção entre direito coletivo e interesse
coletivo, tomaremos como exemplo a questão coletiva ambiental e, para tanto
utilizaremos a definição legal de meio ambiente trazida pelo artigo 3º, inciso I, da Lei
nº 6.938/81, Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, que diz que “entende-se por
meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem
física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas
formas.”
O bem ambiental, por seu turno, nos dizeres de Celso Antonio Pacheco
Fiorillo, é "um bem de uso comum do povo, podendo ser desfrutado por toda e
45 Op. cit., p. 17.
69
qualquer pessoa dentro dos limites constitucionais, e, ainda, um bem essencial à
qualidade de vida.” Conclui que “é portanto a somatória dos dois aspectos – bem de
uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida – que se estrutura
constitucionalmente o bem ambiental.” 46
Portanto, por todos os conceitos trazidos, podemos afirmar que direito
ambiental é a compilação ou ordenação de normas que tutelam o meio ambiente em
todas as suas formas e o interesse ambiental é a busca legal de um bem jurídico
ambiental de uso comum do povo, sustentável, equilibrado e adequado à sadia
qualidade de vida.
Esse raciocínio pode ser agregado aos direitos e interesses nas relações
de consumo, para o subsistema da criança e do adolescente, do idoso, do torcedor,
etc.
Maria Helena Diniz, aprofundando-se nos conceitos aqui esquadrinhados,
conceitua interesses coletivos e difusos:
“INTERESSES COLETIVOS. São os afetos a vários sujeitos considerados em sua
qualidade de membros de comunidades menores, em razão da affectio societatis,
situados entre eles e o Estado (Celso Bastos).
INTERESSES DIFUSOS. São interesses de que sejam titulares pessoas indeterminadas
e ligadas por circunstâncias de fato.” 47
46 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 52. 47 Op. cit., p. 1.027
70
Recapitulando, muito embora pareça que o tema seja meramente
acadêmico, sem qualquer relevância prática, tomados sem os cuidados necessários
quanto à nomenclatura e a perfeita divisão jurídica destes termos, poderemos
encontrar dificuldades ímpares, por exemplo, quando processualmente examinamos
os legitimados para propositura das ações coletivas e as condições regulares das
ações coletivas, enfim, a correta aplicação dos termos “direitos coletivos” e
“interesses coletivos” deve ser feita por ser uma das bases fundamentais da
sistematização.
A seguir, ao conceituarmos o direito material coletivo, não esperamos
obter unanimidade ou consenso quanto a seus termos, pois, desde o início
deixamos claro que este estudo é uma proposta de sistematização e, como tal, sua
delimitação se mostra possivelmente arbitrária, buscando objetivo previamente
traçado, que é identificá-lo como novo ramo do direito e demonstrar sua autonomia
no ordenamento jurídico brasileiro.
Outro esclarecimento importante diz respeito ao momento desta
dissertação em que optamos por conceituar o direito material coletivo.
Por se tratar de uma proposta de sistematização, visando destacar as
particularidades deste ramo do direito, seria mais fácil, após percorrer todas as vias
de pesquisa eleitas e, em posse desses elementos, ao final, conceituarmos o direito
material coletivo, como conclusão desta obra.
71
Todavia, considerando que o objetivo deste estudo é reconhecer este
novo ramo do direito e sua autonomia, portanto, duas partes essencialmente
conclusivas, se deixássemos para contemplar sua conceituação ao final, o que não
nos impede ainda de fazê-lo (mas não é o objetivo), talvez obtendo um conceito
mais amplo, correríamos o risco de não concluir a primeira parte deste estudo que é
sua lotação na atual conjuntura social e adoção de uma teoria filosófica que seja o
norte de todo o estudo.
Ao mostrarmos o alicerce da legislação material coletiva, permitindo que
lhe seja atribuída consistência para, a partir dela, buscarmos outros fundamentos
dentro de alguns dos temas holísticos, ultrapassar esta primeira etapa sem
conceituar o próprio direito material coletivo, já tendo elementos ricos para fazê-lo,
mostra-se obrigatória.
Dentre os elementos já estudados, destacamos a antropocentricidade do
direito material coletivo, o holismo, a sua organização sistêmica, seu papel como
gestor da mudança, os elementos institucionais e sua natureza jurídica e, destarte,
julgamos estar munidos de substrato necessário para conceituá-lo.
Destacamos que o grande desafio desta conceituação está mais uma vez
no fato da carência de estudos que corroborem as afirmações que até aqui
elaboramos e, não obstante a doutrina colhida, devemos nos conscientizar que não
são suficientes para traduzir um consenso entre os juristas.
72
Destacamos também, devido ao avanço do direito processual coletivo,
estando os estudos do direito material coletivo ainda embrionário e esparso, que
nossos doutrinadores têm firmado entendimento dos conceitos acerca daquele e, de
forma transversa, temos buscado adequá-lo às necessidades deste.
Conceituar implica formar opinião ou aplicar juízo de valores sobre
determinado tema.
Em resumo, consideramos que direito material coletivo não pode ser
concebido de forma fechada ou reducionista, mas aberto e holístico; que sua
sistematização é particular e difere dos demais ramos do direito, sobretudo pela
mudança de visão reducionista para holística e sua organização é de
autotransformação, ou seja, de interação de seus elementos formando um todo; que
surge em momento de quebra de paradigmas e da busca de novos interesses; que a
sua institucionalização se dá para gestão dessa mudança de paradigmas
(privado/público para privado/público/coletivo) e sua natureza jurídica é
principiológica.
Dessa forma, ousamos conceituar direito material coletivo como ramo
autônomo no ordenamento jurídico formado pelo conjunto de legislações coletivas,
de natureza jurídica principiológica, de caráter holístico, destinado a reger as
relações sociais que visam à interação normativa dos indivíduos agrupadamente
(coletivamente) ordenados na forma legal e que comungam de interesses e valores
coletivos.
73
VII. TITULARES DE DIREITOS: SEMIÓTICA, ELEMENTOS DE
AFETAÇÃO E CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO COLETIVO
Quem somos?
Verdadeiramente muitos buscaram e ainda buscam respostas a essa
indagação. Mas não há aqui a proposta de solucioná-la, até porque, outros com
maiores predicados e habilidades, após firmarem ricos tratados sociológicos,
antropológicos e filosóficos, persistem no tema. Mas, dentro dos limites propostos,
postula-se aqui a discussão voltada para a lotação dos indivíduos no campo da
coletividade, reconhecendo-os como titulares de pluralidade de identidades, direitos
e interesses.
Este capítulo nasce a partir das dificuldades processuais. A doutrina e a
jurisprudência se mostram divididas quanto à correta averiguação da titularidade dos
direitos e interesses coletivos, precisamente ao delinear os legitimados para
propositura das ações coletivas.
Embora este estudo não vislumbre elucidar as questões processuais, é
inegável que o direito material e o direito processual coletivo se completam.
Nessa vertente, buscaremos introduzir dialética lotando os indivíduos no
seio coletivo, sobretudo, identificando os níveis de identidades existentes,
contribuindo também para os estudos processuais.
74
Nelson Nery Junior externa suas preocupações acerca desse tema
quando, ao prefaciar obra de Gregório Assagra de Almeida, afirma que “o processo
coletivo não tem sido compreendido pela doutrina e jurisprudência com a
importância que já merece no cenário nacional. Instrumento de indiscutível utilidade
para o exercício dos direitos garantidos pela Constituição Federal, tem sido
apequenado com interpretações subalternas, que não condizem com sua magnitude
institucional.” 48
Seu pensamento se aperfeiçoa fazendo referência “... àquela parcela da
doutrina e jurisprudência que não vê distinção entre o processo coletivo e o
processo civil individual. Com efeito, as interpretações e aplicações restritivas dos
institutos do processo coletivo, como se fossem do processo individual, mais
desservem à sociedade do que resolvem os problemas que deveriam ser resolvidos.
O primeiro e mais importante desses desvios é a importância, quase que magna,
que se dá à legitimação ativa da parte, querendo que aquele que se apresenta como
autor da ação coletiva demonstre cabalmente ser o titular do direito processual, sem
o que a ação não poderá prosseguir e o juiz extinguirá o processo sem
conhecimento do mérito.” 49
Diante da importância do tema, ainda que não o delimitemos em termos
processuais, forçoso abordá-lo investigando o indivíduo dentro do coletivo, visando
justamente demonstrar que, embora separados por uma linha tênue, até porque, a
48 ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito processual coletivo brasileiro: um novo ramo do direito processual (princípios, regras interpretativas e a problemática da sua interpretação e aplicação). São Paulo: Saraiva, 2003, p. XXII. 49 Op. cit., p. XXIII.
75
coletividade é o conjunto de indivíduos, seus respectivos interesses e direitos não se
confrontam com os interesses e direitos individuais.
A questão emerge de forma complexa e a construção biográfica pessoal
se mostra interligada por afeições externas, sobretudo aquelas de raízes culturais e
sócio-econômicas, acrescentando-se a esta a lei, abstraindo, desde o início da
existência humana, uma somatória de fatores que constroem diversas identidades.
A proposta acerca da pluralidade de identidades não surge do acaso. Com
efeito, vimos neste estudo que o ser humano não mais possui apenas uma espécie
de interesse e direito, o privado ou público, mas pluralidade de interesses e direitos,
alguns deles, propriamente os coletivos, que não se esgotam nos atos individuais ou
do Estado, por mais que sejam lícitos e legítimos, mas devem externar outros
valores, interesses e direitos que atendam a todos, inclusive a ele mesmo, como os
bens ambientais, as regras de consumo, de tutela da criança e do adolescente, do
idoso, do trabalho, etc.
Destarte, havendo diversidade de interesses e direitos que não mais se
esgotam no reducionismo privado ou do Estado, por lógica, por que não reconhecer
que um mesmo indivíduo pode ser detentor de diversas identidades?
Expliquemos, então.
O indivíduo, mesmo antes de seu nascimento, com a interação com o
grupo social que o circunda, propriamente o círculo familiar, já lhe presta, ainda que
76
passivamente e de forma futurística, talhar o nome que receberá, a profissão que
exercerá e os descendentes que dele virão. Com seu nascimento, agora de forma
ativa, se corresponderá com outros indivíduos e grupos sociais que também lhe
prestarão elementos para a construção de sua identidade. Após sua morte, restará a
memória do que foi, como um quadro com características únicas.
Verificamos que, como num livro biográfico, obteremos uma identidade
privada que corresponde à associação das características físicas e intelectuais
particulares de cada indivíduo.
Dessa identidade denominada “privada”, adequando-a a termos
semióticos, verificamos um sistema de signos ou sinais que cumpre papel de
instrumento de interação e comunicação daquele com outros indivíduos e grupos
sociais. A identidade “privada” labora como código de interação.
Desse papel interativo ou comunicacional, além de ser fator de
aproximação inicial das pessoas no convívio diário, podemos abstrair um campo
fecundo de intercâmbio de interesses e transmissão de informações, da realização
de tarefas e, principalmente, da construção de fatos importantes para a sociedade.
A identidade “privada” se torna, não apenas instrumento visual de
reconhecimento de determinado sujeito, mas um ponto de apoio para situarmos o
indivíduo dentro da coletividade e se mostra resistente às tentativas isoladas e
egoístas de modificação por parte de alguns dos indivíduos, assumindo assim, um
fator de autenticação social.
77
Com efeito, tomando-a por fator de autenticação social, a dialética em tela,
ressaltando os encontros sociais interativos, fornece recursos individuais e coletivos
para firmar ou reafirmar essas identidades.
A esta altura, parece salutar questionar quais os limites de atuação da
identidade privada junto à coletividade, até porque, já que estamos tomando a
questão como um diálogo constante do indivíduo com o grupo, considerando a
existência de fatores externos, até mesmo face à carência de recursos disponíveis,
analisarmos o domínio do coletivo sobre o elemento.
Parece ser de fácil compreensão se o concebermos com níveis de
identidades diferentes, num primeiro momento atuando com sua identidade “privada”
e em outros momentos com sua identidade “coletiva”. 50
A questão que nos desafia, portanto, diz respeito à dissociabilidade da
identidade “privada” e da “coletiva” já que ambas emergem de um mesmo indivíduo.
Partiremos para a resposta por meio das considerações elaboradas por
Marialice Mencarini Foracchi e José de Souza Martins onde advogam ser “...
evidente que a matéria da vida social não é possível de se explicar por fatores
puramente psicológicos, isto é, por estados individuais de consciência. Com efeito, o
que as representações coletivas traduzem é a maneira pela qual o grupo se enxerga
50 José Manuel Oliveira Mendes, professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e pesquisador no Centro de Estudos Sociais, na obra “A globalização e as ciências sociais”, 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2002, também trata dos níveis de identidade, inclusive sociais, todavia, diferente do que aqui propomos, prefere tratar o tema como identidades primárias e secundárias, enfocando a identidade social, por exemplo, para o sexo, a cultura, o trabalho e da interação entre elas. O enfoque dado por nós neste estudo, diz respeito à ação jurídica dos indivíduos agrupados (de fato e de direito) em diferentes níveis.
78
a si mesmo nas relações com os objetos que o afetam. Ora, o grupo está constituído
de maneira diferente do indivíduo, e as coisas que o afetam são de outra natureza.
Representações que não exprimem nem os mesmos sujeitos, nem os mesmos
objetos, não poderiam depender das mesmas causas. Para compreender a maneira
pela qual a sociedade se vê a si mesma e ao mundo que a rodeia, é preciso
considerar a natureza da sociedade e não a dos indivíduos.” 51
Com efeito, acreditamos não laborar em equívoco, ao afirmar que está
provado de forma empírica, diante das notórias alterações da realidade social, que
as relações jurídicas fundamentais estão também modificadas e devem formalizar
uma nova relação, promovendo análise das distinções entre as características
individuais e as coletivas, ainda que esta seja composta pela conjunção de vários
indivíduos.
Reiterando a não intenção de firmarmos um tratado sociológico, a partir
desse momento, vamos tratar do “sujeito coletivo” e, propositadamente o
denominamos dessa maneira para já convergir à idéia de unidade de interesses e
direitos de vários indivíduos agrupados.
Não obstante podermos utilizar outras tantas variantes para explicar esse
fenômeno para a construção do sujeito coletivo, por exemplo, histórico, econômico,
cultural, vamos buscar delinear em dois vetores essa nova identidade no direito
brasileiro, ainda que de forma sucinta, a saber: a) semiótica do sujeito coletivo e b)
elementos de afetação e constituição do sujeito coletivo.
51 FORACCHI, Marialice Mencarini / MARTINS, José de Souza. Sociologia e sociedade (leituras de introdução à Sociologia). 21ª ed. Rio de Janeiro: LTC – Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., 1999, p. 26/27.
79
Se elaborarmos uma atenta revisão do estudo até aqui exposto, salvo
melhor entendimento, veremos que a resposta já foi dada quando tratamos da
quebra de paradigmas e analisamos a transposição da semiótica linear para a
holística, inclusive quando propusemos a teoria holística do direito.
Em termos análogos, seria ilógico não admitirmos uma transposição
também da semiótica linear (privada) para holística (coletiva) para os titulares de
direitos e interesses coletivos.
O indivíduo atualmente não pode ser mais recebido pela sociedade numa
visão reducionista, senão egoísta no relacionamento com seus pares. Deve ser
concebido como detentor de diversidade de identidades, uma relacionada à sua
própria pessoa e seus interesses e direitos (linear) e outra coletiva na associação de
interesses e direitos comuns a outros que a ele (ainda que momentaneamente e
circunstancialmente) se assemelham.
Dalmo Dallari reproduz com precisão e veemência essa proposta de
transposição de identidades quando deduz que “esqueceu-se que esse indivíduo
necessita muito dos outros e, desse esquecimento, nascido quase sempre do
egoísmo, decorreu uma série de colocações teóricas que são até contrárias à
natureza, contrárias àquilo que acontece na realidade e que é fácil de constatar. É o
que acontece, por exemplo, quando se diz que os direitos de cada um terminam
onde começam os direitos do outro, afirmação que se repete muito por aí, todos os
dias, como se fosse o ideal da perfeição humana. Isso é essencialmente errado,
absolutamente errado, pois não ando na rua com o meu direito separado dos outros,
80
como se estivesse num compartimento estanque, ao lado do direito dos outros. Meu
direito está entrelaçado com os direitos dos outros, ele não termina onde começa o
outro: eles se interpenetram inevitavelmente. O meu direito à livre expressão convive
com o de todos, o meu direito de andar livremente pela rua convive com o de todos
que andam na rua. Todos os direitos são exercidos na convivência. Daí a
necessidade de sempre lembrar este dado essencial: o ser humano não apenas
vive, convive. Então, quando falar no indivíduo, devo levar em conta que ele tem as
suas peculiaridades, as suas particularidades, tem a sua individualidade, mas não
exclui o outro, não pode excluir o outro, porque ele não existe sem o outro.” 52
Dallari ainda acrescenta que “o direito individual é o direito dos indivíduos
em sociedade, junto com outros indivíduos iguais por natureza. Posso, sim, ressaltar
certos aspectos que interessam mais especificamente, mais imediatamente, a cada
um de nós; mas mesmo aquilo que interessa a cada um de nós interessa à
humanidade, pode interessar mais imediatamente a um grupo menor, mas interessa
aos outros, afeta a vida dos outros. Esta é também uma característica fundamental,
que não pode ser perdida de vista, essa interdependência que é conseqüência da
natureza humana associativa dos seres humanos.” 53
Justifica-se, portanto, posição da Colenda 2ª Turma, do Egrégio Superior
Tribunal de Justiça, em recente decisão, relativando os relacionamentos jurídicos de
direito material privado, no caso, do direito à propriedade, em benefício do coletivo,
cuja ementa reproduzimos.
52 SORRENTINO, Marcos (org.). Ambientalismo e participação na contemporaneidade. São Paulo: EDUC/FAPESP, 2002, p. 88. 53 Op. cit., p. 88.
81
“AÇÃO CIVIL PÚBLICA – PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE – OBRIGAÇÃO DE FAZER
- MATA ATLÂNTICA – RESERVATÓRIO BILLINGS. LOTEAMENTO CLANDESTINO.
ASSOREAMENTO DA REPRESA. REPARAÇÃO AMBIENTAL.
1. A destruição ambiental verificada nos limites do reservatório Billings – que serve de
água grande parte da cidade de São Paulo – provocando assoreamentos, somados à destruição da
Mata Atlântica, impõe a condenação dos responsáveis, ainda que, para tanto, haja necessidade de se
remover famílias instaladas no local de forma clandestina, em decorrência de loteamento irregular
implantado na região.
2. Não se trata tão somente de restauração de matas em prejuízo de famílias carentes de
recursos financeiros, que, provavelmente, deixaram-se enganar pelos idealizadores de loteamentos
irregulares na ânsia de obterem moradias mais dignas, mas de preservação de reservatório de
abastecimento urbano, que beneficia um número muito maior de pessoas do que as residentes na
área de preservação. No conflito entre o interesse público e o particular há de prevalecer aquele em
detrimento deste quando impossível a preservação de ambos.
3. Não fere as disposições do art. 515 do Código de Processo Civil acórdão que,
reformando a sentença, julga procedente a ação nos exatos termos do pedido formulado na peça
vestibular, desprezando pedido alternativo constante das razões de apelação.
4. Recursos especiais de Alberto Srur e do Município de São Bernardo do Campo
parcialmente conhecidos e, nessa parte, improvidos. (STJ – 2ª T.; RE nº 403.190-SP; Rel. Min. João
Otávio de Noronha; DOE 11/10/06.).”
Deduz-se, portanto, que um indivíduo é único e, ao mesmo tempo, todos
(ainda que conjunturalmente) já que não se reduz as questões em si mesmas.
Existem aquelas que são propriamente reduzidas e lineares e aquelas que são
holísticas, coletivas.
Daí porque também entender o direito coletivo como novo ramo do direito,
numa tríplice junção como privado-público-coletivo, remetendo cada um dos titulares
do direito à sua condição, ora privado, público e coletivo.
82
O indivíduo titular de direitos e interesses não pode mais ser limitado em
sua essência, nas suas particularidades privadas, mas ser elevado também à sua
essência coletiva, suas peculiaridades coletivas, que em nada se assemelham,
muito embora separadas por detalhes.
Para melhor entendermos de que modo cotidianamente encontramos
elementos de afetação sobre a identidade dos indivíduos e a formação da identidade
coletiva, ou seja, do sujeito coletivo, vamos partir de um exemplo selecionado junto à
jurisprudência, cuja ementa reproduzimos, relacionada ao meio ambiente do
trabalho, da lavra do Egrégio Tribunal Regional do Trabalho, da 2ª Região.
“ASSÉDIO MORAL – Repercussões sociais. A questão da ofensa à moral conflagra um
subjetivismo oriundo da própria condição de cada indivíduo. Não se sente menos constrangido o
trabalhador que escolhe adotar uma postura conciliadora, preferindo não detonar uma crise no
ambiente de trabalho que fatalmente o prejudicará, pois a questão aqui transcende a figura do
ofendido, projetando as conseqüências pela supressão do seu posto de trabalho a quem dele
eventualmente dependa economicamente. O fantasma do desemprego assusta, pois ao contrário da
figura indefinida e evanescente que povoa o imaginário popular, este pesadelo é real. É o receio de
perder o emprego que alimenta a tirania de alguns maus empregadores, deixando marcas profundas
e às vezes indeléveis nos trabalhadores que sofrem o assédio moral. Exposta a desumanidade da
conduta do empregador, que, de forma aética, criou para o trabalhador situações vexatórias e
constrangedoras de forma continuada através das agressões verbais sofridas, incutindo na psique do
recorrente pensamentos derrotistas originados de uma suposta incapacidade profissional. O
isolamento decretado pelo empregador acaba se expandindo para níveis hierárquicos inferiores,
atingindo os próprios colegas de trabalho. Estes, também por medo de perderem o emprego e cientes
da competitividade própria da função, passam a hostilizar o trabalhador, associando-se ao detrator na
constância da crueldade imposta. A busca desenfreada por índices de produção elevados,
alimentada pela competição sistemática incentivada pela empresa, relega à preterição a higidez
83
mental do trabalhador que se vê vitimado por comportamentos agressivos aliados à indiferença ao
seu sofrimento. A adoção de uma visão sistêmica sobre o assunto faz ver que o processo de
globalização da economia cria para a sociedade um regime perverso, eivado de deslealdade e
exploração, iniqüidades que não repercutem apenas no ambiente de trabalho, gerando grave
desnível social. Daí a corretíssima afirmação do Ilustre Aguiar Dias de que o “prejuízo imposto ao
particular afeta o equilíbrio social”. Ao trabalhador assediado pelo constrangimento moral sobram a
depressão, a angústia e outros males psíquicos, causando sérios danos a sua qualidade de vida.
Nesse sentido, configurados a violação do direito e o prejuízo moral derivante (TRT – 2ª Região – 6ª
T.; RO nº 01117200203202004-SP; ac. nº 20040071124; Rel. Juiz Valdir Florindo; j. 17/2/2004; v.u.).”
Uma pergunta que poderia emergir do leitor seria: porque adotar como
exemplo uma decisão judicial que retrata uma relação jurídica de direito material
privada e não coletiva, já que o tema aqui tratado busca estudar o sujeito coletivo?
Isto é feito propositadamente à medida que mostraremos que, de um único
fato, ainda que essencialmente individual, privado, pode afetar e provocar a
construção do sujeito coletivo.
No caso em tela, o subjetivismo desse determinado empregado aflorou
consubstanciado no assédio moral que sofreu e o exortou a promover essa ação
individual, entretanto, como a própria ementa exara, esse ato ilícito perpetrado pelo
empregador não atingiu somente a figura direta daquele empregado (sujeito
privado), mas a todo o meio ambiente do trabalho, a ponto, inclusive, de mitigar as
relações de companheirismo e parceria entre os demais colegas.
Se imaginarmos que esse ato ilícito contaminou todo o meio ambiente do
trabalho, sem prejuízo dessa ação individual ou, em sentido contrário, de sua não
84
propositura (caso o funcionário preferisse abster-se desse direito de ação) e ainda
que a ofensa tenha sido direta a um determinado sujeito, legitima toda a coletividade
de funcionários, porque esse mesmo ato maculou ou afetou a todos.
Se a prestação jurisdicional ao privado buscou reparar o dano e devolver
ou tentar devolver a higidez mental e moral do funcionário, o fez em nível linear, sem
benefício, ao menos direto, ao meio ambiente de trabalho.
Como toda reparação por ofensa moral tem em seu valor arbitrado uma
parte que sirva também de fator de desestímulo e reprimenda ao ofensor, 54 de
maneira que não volte a incidir no ato ilícito, no caso de uma ação privada (linear)
isso fica sempre a critério subjetivo do empregador atender ou absorver a
repreensão ou a ponto de não mais ofender os demais funcionários. No caso
concreto, jamais saberemos se realmente ficou o empregador sensibilizado.
Entretanto, como demonstra o caso em testilha, o ato ilícito perpetrado
contra aquele funcionário afetou todo o meio ambiente do trabalho, coletivamente.
Portanto, através de um dos legitimados das ações coletivas, por exemplo, o
Ministério Público, as associações e sindicatos de funcionários, etc., repetimos, sem
prejuízo de esta ação privada ter sido proposta ou não, poderia sua abrangência
processual ter sido ainda maior e atingido a todos os envolvidos.
No primeiro caso, a ação privada (linear) buscou reparar e devolver ou
tentar devolver a higidez moral e mental daquele único funcionário, a coletiva
54 CAHALI, Yussef Said. Dano moral. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. 264/267.
85
(holística) atingiria a todos os envolvidos direta ou indiretamente, em tese,
restabelecendo o meio ambiente do trabalho sadio e adequado à qualidade de vida
de todos os funcionários.
Desta maneira, fica claro que se aquele funcionário individualmente
ofendido, não tivesse se preocupado num primeiro momento com sua própria
condição (não é uma crítica a ele), tivesse se associado aos seus colegas, já que
todos foram direta ou indiretamente afetados, e se tornado um dentre aqueles
legalmente legitimados, além de sua identidade privada (linear), teria essa
identidade, ainda que momentaneamente e circunstancialmente, transposta para a
identidade coletiva ou ao sujeito coletivo.
Se num momento primitivo era um determinado funcionário ofendido e
legitimado a promover uma ação privada (identidade ou sujeito privado), noutro
momento, numa suposta ação coletiva derivada daquele mesmo ato ilícito, por
exemplo, seria um dos filiados (identidade ou sujeito coletivo) do sindicato de classe
que o representaria legalmente nos termos da lei.
Além da identidade “privada”, visualizamos a identidade “coletiva” que
surge do ruído da sociedade e dos conflitos de interesses, ativados pelas lutas e
contingências.
Podemos dizer assim, sendo o indivíduo resultado de sua interação com a
sociedade e que em cada fase de sua vida verificamos a construção progressiva de
sua personalidade, este processo de construção da identidade privada ou coletiva
86
reflete sintomaticamente o que é situacional, histórico e legal, prevalecendo, por
evidente, os fatores que lhe são dominantes e o interesse casual.
Basicamente verificamos a carência de recursos disponíveis de forma a
satisfazer individualmente cada um daqueles que constituem a sociedade, gerando
conflitos estruturais que mobilizam os indivíduos ora em sentido privado, buscando
seus próprios interesses, ora caminhando solidariamente com seus pares, agora, na
busca de interesses e direitos que lhes são comuns. 55
Assim, a conjugação da identidade privada com a identidade coletiva tem
por dinâmica a justificativa dos diversos discursos disponíveis em certos momentos
da vida social, independente de estar atuando o indivíduo de forma privada ou
coletiva, criando alicerces para argumentos que sustentam a forma de agir e,
conseqüentemente, do processo de identificação. Sua mecânica está em mobilizar o
indivíduo, criando-lhe personalidade privada e coletiva, tornando-o pertinente e
estruturado na luta em torno da igualdade na diferença e da diferença na igualdade.
Temos assim, que o trabalho de construção biográfico nada mais é do que
uma constante narração histórica associada às realidades fixadas, até mesmo por
ser o discurso social multivocal e os interesses e direitos variados, concluímos que
todo indivíduo possui dois níveis existenciais de identidade, aquele privado e outro
coletivo.
55 Remetemos o leitor aos ensinamentos de Miguel Reale consignados em sua obra “Paradigmas da cultura contemporânea”, São Paulo: Saraiva, 1996, pois, muito embora não trate especificamente do tema aqui proposto, com a precisão que lhe era peculiar, afirma que a carência de recursos gera na sociedade uma “vulgaridade intencional”, como mitigação de suas afeições legítimas. Nesse sentido, busca-se substituir valores necessários por valores supérfluos.
87
VIII. DIREITO MATERIAL COLETIVO: MECANISMO DE
PROTEÇÃO
Para compreender seu mecanismo de proteção, devemos nos esforçar
em examinar o deslocamento do indivíduo e suas relações sociais dentro de certo
panorama histórico, alocando-o corretamente no ordenamento jurídico, como já
buscamos fazê-lo desde o início desta pesquisa.
A linha divisória de tempo-espaço demonstra a preservação da proteção
ao indivíduo e a seus direitos e interesses, mas, principalmente, sua atual evolução
e relativização para a proteção à coletividade (da qual esse mesmo indivíduo faz
parte) e, conseqüentemente, as mudanças nas instituições jurídicas.
A proposta deste capítulo se mostra necessária para o estudo de uma
nova identidade, em complemento ao estudo dos Titulares de Direitos (cap. VII),
quebrando e relativizando os direitos personalíssimos do direito privado, alargando o
papel do Estado na proteção ao indivíduo centrada no Direito Público.
Vimos que o centro da proteção centrado no indivíduo ou do Estado não
deixou de existir, entretanto, com a quebra de paradigmas e do novo quadro sócio-
jurídico, passamos à necessidade de proteção a outros sujeitos de direito, como a
coletividade, que terminam por constituir novas regras de interpretação, novas fontes
de direito, novos princípios e novos direitos fundamentais.
88
Devemos ter o cuidado também de, ao estendermos a proteção do direito
para a coletividade, não fazê-lo pela inflação de direitos instituindo normas coletivas,
mas na ineficácia e desacordo da proteção essencialmente privada e pública.
Obviamente, quando falamos do princípio protetivo, como apregoamos
anteriormente, temos de alocá-lo no tempo e no espaço e, muito embora não seja o
escopo deste trabalho as questões históricas, faz-se necessário mais uma vez tratar
do paradigma atual, ainda que levemente, justamente para chegarmos ao nosso
objetivo.
Generalizar é perigoso, tendendo ao imperfeito e é dessa forma que a
proteção jurídica se mostra se não se adequar rapidamente às novas necessidades
da sociedade, principalmente quando caminha das relações reducionistas ou
lineares para relações holísticas.
Ainda que o direito, desde os primórdios até pouco tempo, tenha forjado
seu alicerce protetivo-obrigacional na relação débito/crédito, dano/reparação é certo
que se mostrou reducionista à medida que a quebra de paradigmas não mais
permite que as relações privadas ou públicas se mostrem apenas fechadas nos
indivíduos envolvidos em certa relação contratual ou obrigacional.
Relações privadas e públicas podem gerar efeitos coletivos e existem hoje
relações sociais, propriamente coletivas que não podem ser protegidas por esse
mecanismo linear, mas holístico.
89
Ricardo Luis Lorenzetti, ao tratar da generalização do princípio protetivo
privado, civilista que é, prefere segregá-lo em dois outros grupos de princípios o
favor debitoris e o favor debelis onde, em suma, busca demonstrar essencialmente o
avanço do princípio protetivo tomando como único anglo a ser privado. 56
Referido autor demonstra a evolução das obrigações privadas. Desde a
submissão escravagista pelo descumprimento de alguma obrigação assumida até
pela relativização contratual do ente privado, demonstrando que, embora lei entre as
partes, poderá ocorrer certa debilidade entre elas, sendo uma parte mais ou menos
forte que a outra.
Dessa maneira, a questão mais uma vez volta-se à suficiência ou não do
direito privado ou público em proteger as novas relações jurídicas.
Se o autor citado, civilista, pode detectar a relatividade da igualdade das
partes, quiçá, averiguar tal desequilíbrio nas relações sociais que não podem ser
regradas pelas leis civis ou públicas?
Essas relações não estariam mais bem protegidas se houvesse um
alargamento da proteção e averiguássemos novos mecanismos, talvez holísticos,
principalmente numa sociedade de relações imediatistas e de massa como
atualmente vivemos?
56 Op. cit., p. 138/143.
90
O absolutismo das relações privadas ou públicas, ainda que no cerne do
princípio protecionista, senão substituído (já que realmente persistem as relações
essencialmente privadas e públicas), deve ser relativizado dependendo da relação e
do direito, bem jurídico ou interesse a tutelar.
O exemplo clássico que extraímos do ordenamento jurídico brasileiro para
melhor configurar os limites deste capítulo diz respeito ao direito de propriedade que,
concebido em termos absolutos no final do século XVIII, é e está relativizado
tomando por base a denominada “função social da propriedade”.
Importa salientar a quebra desse direito essencialmente privado (para não
dizer individualista), para desviar a proteção ao direito de propriedade sobre a
pessoa em si. Da redução ou linearidade das relações de venda/compra,
preço/propriedade ou posse/propriedade para transpor o foco para a destinação da
coisa ou do bem, passando a ser tratada não mais como o ilimitado direito de uso,
gozo e disposição, mas para elevar-se à condição de bem social (artigo 170, da
Constituição Federal).
Em que pese o direito privado e público garantirem ao particular a
aquisição e detenção de bens, alarga-se o mecanismo de proteção para o coletivo
de maneira que as relações sociais se interessem também para as questões
coletivas, curvando-se à função social.
No exemplo colhido, podemos observar essa evolução protetiva originada
pelo reconhecimento absoluto dos tradicionais direitos individuais; atingimos a
91
elevação da proteção à liberdade do homem em sentido amplo, agregando-lhe
valores sociais e, finalmente, atingimos a proteção de valores coletivos como o
princípio da igualdade, solidariedade, direitos humanos, etc.
Numa sociedade imediatista e de massa não há mais lugar para a
proteção do indivíduo exclusivamente e de maneira isolada, pois esse mesmo
indivíduo poderá ser absorvido por outros grupos, que buscam outros interesses,
diferentes daqueles lineares e nascidos agora de novo momento.
Como é próprio das desigualdades sociais e das novas relações jurídicas
advindas das quebras de paradigmas, deve-se pacificar a proteção e o exercício de
direitos com a finalidade de adequar e compatibilizar a convivência entre indivíduos,
Estado e coletividade.
Sobre este tema, o artigo 3ª, da Constituição Federal, exprimiu bem a
intenção do legislador constituinte.
A própria legislação processual caminhou no sentido de alargar o
princípio protecionista do essencialmente privado ou público, para instituir novos
mecanismos como a denominada Ação Popular (Lei nº 4.717/65), a Ação Civil
Pública (Lei nº 7.347/85), o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), etc.
Desafia-se a máxima jurídica que diz: “Todos são iguais perante a lei”.
92
Estudamos a quebra dos paradigmas, a necessidade da transposição das
relações sociais lineares e reducionistas para a holística, a existência de novos bens
e interesses jurídicos, bem como a relativização da proteção dos titulares de direitos,
neste último, a relativização inclusive processual visando adequar nosso
ordenamento jurídico à nova realidade social.
Se nossos juristas já identificaram relações jurídicas, inclusive contratuais,
onde as partes são de alguma forma deficiente entre si, é correto manter a certeza
que todos são iguais perante a lei se a própria relação jurídica não a justifica ou
confirma?
Obviamente não discutimos a isenção do Poder Judiciário em definir as
questões que lhe são postas, todavia, direcionando a questão para a proteção da
relação jurídica em si, forçoso identificar situações, até mesmo pela dinâmica da
sociedade em massa, que não há possibilidade de se manter as partes em mesmo
nível de igualdade, sobretudo quando uma delas está na chamada
“hipossuficiência”.
Para Maria Helena Diniz, hipossuficiência é a “qualidade de
vulnerabilidade de certas categorias especiais de consumidores, oriunda de
condições físico-psíquicas, econômicas ou circunstanciais, fazendo com que
mereçam maior cuidado nas práticas comerciais e publicitárias.” 57
57 DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. 2º ed., rev., atual. e aum. Vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 848.
93
Ainda com relação às questões de consumo, ao tratar da hipossuficiência
do consumidor, Ada Pellegrini Grinover e Antonio Herman de Vasconcellos e
Benjamin, tecem argumentos precisos e autoexplicativos, acerca da origem da
hipossuficiência, da ineficácia de nossos mecanismos atuais para proteção, suas
relações e da necessidade emergencial de correção desse desequilíbrio:
“A sociedade de consumo, ao contrário do que se imagina, não trouxe apenas benefícios
para os seus atores. Muito ao revés, em certos casos, a posição do consumidor, dentro desse
modelo, piorou em vez de melhorar. Se antes fornecedor e consumidor encontravam-se em uma
situação de relativo equilíbrio de poder de barganha (até porque se conheciam), agora é o fornecedor
(fabricante, produtor, construtor, importador ou comerciante) que, inegavelmente, assume a posição
de força na relação de consumo e que, por isso mesmo, “dita as regras”. E o Direito não pode ficar
alheio a tal fenômeno.
O mercado, por sua vez, não apresenta, em si mesmo, mecanismos eficientes para
superar tal vulnerabilidade do consumidor. Nem mesmo para mitigá-la. Logo, imprescindível a
intervenção do Estado nas suas três esferas: o Legislativo, formulando as normas jurídicas de
consumo; o Executivo, implementando-as; e o Judiciário, dirimindo os conflitos decorrentes dos
esforços de formulação e de implementação.” 58
Assim, fica claro que o momento histórico não permite mais o “rosto no
rosto” para as negociações nas relações de consumo, entrando em cena a
impessoalidade das relações e, consequentemente, as dificuldades de se manter o
equilíbrio dessas relações.
58 GRINOVER, Ada Pellegrini [et al.]. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 6/7.
94
Mas não é somente nas relações de consumo que verificamos a
hipossuficiência, pois, tanto a legislação consumerista como as demais legislações
coletivas (que se mostram esparsas em nosso ordenamento jurídico), possui uma
mesma principiologia, logo, seus atores sofrem das mesmas deficiências.
A Constituição Federal, no artigo 170, inciso V, instituiu a defesa do
consumidor como princípio geral da atividade econômica e o Código de Defesa do
Consumidor, no artigo 6º, inciso VIII, facilita a defesa do consumidor em juízo,
invertendo em seu favor o ônus da prova.
Dessa maneira, verificamos que a legislação atual, atendendo uma
necessidade absoluta da sociedade moderna, não derrogou aquela máxima que
“todos são iguais perante a lei” porque ainda temos questões lineares onde seus
atores podem ser tratados de maneira eqüitativa pela lei, todavia, outra máxima foi
instituída, a saber, “a lei trata de maneira desigual a relação entre os desiguais”.
Noemi Friske Momberger, ao estudar a publicidade aplicada à criança e
ao adolescente enquanto consumidores, manifesta-se afirmando que “abusiva
também é a publicidade que se aproveite da deficiência de julgamento e experiência
da criança, expressa no Código de Defesa do Consumidor, artigo 37, § 2º. Portanto,
por serem hipossuficientes, as crianças merecem atenção especial. Como as
crianças não são auto-suficientes, não podem ser comparadas e tratadas da mesma
forma que os outros consumidores, merecendo uma proteção especial por parte do
legislador, pois não possuem condições de entender o verdadeiro objetivo da
publicidade, que é a persuasão do consumidor, e nem conseguem se defender da
95
publicidade abusiva dirigida especialmente a essa categoria de consumidores que
representa 32% da população brasileira. Simplesmente não pode-se atribuir ou
esperar que as crianças possuam a mesma capacidade de um adulto para tomar
decisões e avaliar outros critérios subjetivos referentes à publicidade, pois ainda
estão em fase de desenvolvimento.” 59
Em relação às relações trabalhistas, encontramos, nesse sentido, a
importante lição de Ricardo Teixeria Brancato afirmando que “a maioria dos autores
considera como ramo do direito privado o direito do trabalho. Por isso, no quadro
sinótico, o colocamos entre parênteses. Outros o consideram direito público porque,
embora as relações trabalhistas sejam de ordem privada, seus efeitos são de ordem
pública – visto a proteção que o Estado dispensa à hipossuficiência do trabalhador
afastar os institutos do direito trabalhista do campo do direito privado. Alguns, como
o eminente Prof. Cesarino Júnior, não o consideram nem público, nem privado, mas
um terceiro gênero a que o saudoso mestre denominava “direito social”. 60
Para dirimir qualquer confusão quanto aos termos técnicos, cumpre
esclarecer que hipossuficiência não se confunde com vulnerabilidade e, para
explicar suas diferenças, vamos nos apropriar mais uma vez do ensinamento de
Antonio Herman de Vasconcellos e Benjamin que afirma que a vulnerabilidade são
todos os consumidores no mercado de consumo, independente de classe social ou
59 MOMBERGER, Noemi Friske. A publicidade dirigida às crianças e adolescentes – regulamentações e restrições. Memória Jurídica Editora: Porto Alegre, 2002, p. 64. 60 BRANCATO, Ricardo Teixeira. Instituições de direito público e de direito privado. 12ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2003, 44/45.
96
grau de instrução e a hipossuficiência se relaciona a determinada categoria ou
certos consumidores. 61
Efetivamente, para a averiguação da condição de hipossuficiente, deverá
se valer o examinador da questão, seja magistrado, mediador, enfim, das regras
ordinárias de experiência já que a legislação não declinou uma definição.
Observamos que todo ato privado ou público, ainda que envolva relações
contratuais com estritos efeitos somente aos contratantes, está sofrendo mitigação
em respeito aos princípios de proteção à coletividade.
Há pouco trouxemos exemplo do enfraquecimento do amplo direito à
propriedade em favor da função social da propriedade; da necessidade de se tutelar
a criança e o adolescente em relação à mensagem publicitária pela sua
hipossuficiência; a sumária obrigação de promover a proteção e preservação
ambiental, em suma, são inúmeras questões que podemos elencar para discorrer
sobre o tema.
De qualquer modo, seja na atuação privada ou pública, observamos uma
nova ordem jurídica estendendo a legitimação aos que sofrem ou estão na iminência
de sofrer qualquer dano oriundo desse ato jurídico, contratual ou não.
Assim, as relações jurídicas atuais não podem ater-se somente aos seus
atores, mas devem ser postas à luz das legislações coletivas de maneira a, não a
61 Op. cit., p. 299.
97
ofendendo, surtir efeitos somente em relação aos envolvidos ou, ao revés, ser
mitigada de maneira que não cause prejuízo ou venha a causar, sobretudo pela
natureza jurídica principiológica.
Podemos dizer que se alarga a figura do contratante ou do participante do
ato ou negócio jurídico quando a questão é o desencadeamento ou irradiação dos
efeitos desse contrato ou ato.
Nesse novo formato, podemos instituir na relação jurídica, participante
direta ou não, a coletividade, trazendo-lhe aspectos protetivos de abrangência ampla
(seja para as relações de consumo, da preservação do meio ambiente, da qualidade
da saúde, do trabalho, etc.).
E é desta forma que atua a nossa legislação consumerista, declarando no
parágrafo único, do artigo 2ª, equiparando “a consumidor a coletividade de pessoas,
ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.”
Importante a lição de José Geraldo Brito Filomeno sobre o tema
afirmando “... o que se tem em mira no parágrafo único do art. 2º do Código do
Consumidor é a universalidade, conjunto de consumidores de produtos e serviços,
ou mesmo grupo, classe ou categoria deles, e desde que relacionados a
determinado produto ou serviço. Tal perspectiva é extremamente relevante e
realista, porquanto é natural que se previna, por exemplo, o consumo de produtos ou
serviços perigosos ou então nocivos, beneficiando-se, assim, abstratamente, as
referidas universalidades e categorias de potenciais consumidores. Ou, então, se já
98
provado o dano efetivo pelo consumo de tais produtos ou serviços, o que se
pretende é conferir à universalidade ou grupo de consumidores os devidos
instrumentos jurídico-processuais para que possam obter a justa e mais completa
possível reparação dos responsáveis, circunstâncias essas pormenorizadamente
previstas a partir do art. 8º e seguintes do Código do Consumido e, sobretudo pelo
art. 81 e seguintes.” 62
As legislações privadas e públicas e suas relações jurídicas tratam seus
atores de maneira reducionista e linear e agora vemos que estas mesmas relações
devem ser postas inicialmente à principiologia das legislações coletivas.
O direito material coletivo ocupa lacuna em nosso ordenamento jurídico
adequando-o à nova realidade social onde se preserva as relações privadas e
públicas, mas também protege as de caráter essencialmente coletivas.
62 FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de direitos do consumidor. 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 49/50.
99
IX. DIREITO MATERIAL COLETIVO: LIMITADOR DE PODER
Dentro do fenômeno da globalização e da era da economia de massa,
verificamos o deslocamento maciço de pessoas na busca de influência, sobretudo
para a conquista de bens de consumo.
Dessa luta de massas verte as desigualdades das classes sociais, fruto
do impacto da movimentação, principalmente sócio-econômicos e culturais,
alargando e dinamizando ainda mais o produto da negociação de conflito de
interesses.
Observamos, então, a busca de riquezas (bens de consumo) diretamente
relacionada com as vontades humanas, traduzidas na firmação de poder de uma
classe ou grupo sobre outros para a sua conquista.
Ocorre, para a defesa desses interesses, a associação dos indivíduos
para a elevação de seu nível de poder e influência de um grupo ou classe sobre
outros. Os indivíduos agrupando-se cada vez mais.
Cabe à ciência do direito analisar também este novo quadro de conflitos e
influência de grupos sobre grupos, visando desmascarar desequilíbrios do exercício
de poder, principalmente, visando à tutela de bens que são imprescindíveis para a
própria existência humana, por exemplo, o meio ambiente, o consumo sustentável, a
saúde, o trabalho, etc.
100
Então, passamos a discorrer sobre as necessidades de se limitar poderes,
o papel do direito material coletivo como instrumento de limitação dos poderes das
classes e grupos sociais e sua participação na ética e na democracia.
É notória a relação direta entre crescimento social e sua diversificação e
com a escassez de recursos para produção de bens de consumo.
Dessa vertente, raramente observamos um equilíbrio entra esses vetores,
ocasionando contingências, ou seja, incertezas naturais acerca da aquisição desses
bens.
As incertezas, por seu turno, frutificam com a luta dos indivíduos na busca
desses bens de consumo, pondo em risco o próprio equilíbrio social e também a
própria engenharia de produção, gerando, com a busca de matérias-primas de
maneira predatória, meios de produção em desacordo com o meio ambiente
(inclusive do trabalho), culminando na geração de produtos e serviços viciados. Há
incerteza em obtê-los.
A nova sistemática implica, de maneira muito peculiar, em relacionar o
acúmulo e conquista desses bens com o poder, pois aquele que tem, também pode.
Se estivéssemos tratando apenas de bens particulares poderíamos,
grosso modo, considerar e deixar às partes resolverem suas diferenças (obviamente
dentro da ordem e da lei), todavia, tal questão se torna infinitamente complexa, se os
101
bens envolvidos contenham valores holísticos (meio ambiente, consumo, educação,
saúde, etc.).
Analisando o domínio do homem sobre esses bens e valores holísticos,
indaga-se se, com graus elevados ou desequilibrados de poder entre indivíduos,
Estado e classes e grupos sociais, teriam as normas jurídicas capacidade de intervir
nesse domínio ou limitar poderes de maneira a permitir que esse próprio poder milite
em favor de sua preservação.
Cada grupo social, além de ser diferente de outro grupo social, tem
necessidades ímpares, particularizando a criação de mecanismo de defesa de seus
interesses, produzindo fenômenos de resistência ao acesso a esses bens e valores.
A dificuldade se eleva quando tratamos de bens holísticos (coletivos),
porque a sua natureza indivisível e indeterminada, favorece a sua apropriação
também de forma indeterminada.
Essa maior complexidade impõe ao Direito um desafio para não permitir
que o poder de grupos e classes, conseqüentemente, o domínio sobre seus pares
implique na obtenção injustificada e desproporcional de bens que não pertencem a
este ou aquele, mas a todos.
A solução é a relativação da vontade humana e do poder exercido, para
socializar bens e poder, equilibrando as relações.
102
Importante o ensinamento de Fábio Ulhoa Coelho ao afirmar que “o
princípio da formação dos grandes agregados humanos é a conquista. Mas o
expansionismo do poder descreve uma trajetória paradoxal. O egoísmo inerente ao
instinto de dominação deve compensar-se com um altruísmo, caso contrário o poder
não se sustenta, não cresce. Um poder de pura força, de pura dominação, não
existe. Deve atender em parte os anseios da sociedade em geral, deve “socializar-
se”. 63
A necessidade de se limitar poder implica, assim, num instrumento
moderador do progresso sem direção e, consequentemente, das incertezas e
inseguranças, valorizando os fracos.
Com efeito, a então prevalência de fortes grupos econômicos, cartéis, por
exemplo, não deve existir, principalmente quando a desigualdade de forças é
evidente (principalmente frente aos hipossuficientes) e tratamos de bens e
interesses coletivos.
Outra relação direta e proporcional à questão da limitação de poder deve
ser associada à produção normativa frente à evolução dos mecanismos de geração
de riqueza e das lutas de grupos e classes sociais.
Observamos ao longo deste estudo, a necessidade de alteração da visão
jurídica dos conflitos sociais, sobretudo, com a transposição do direito reducionista
63 COELHO, Fábio Ulhoa. Direito e poder: ensaio de epistemologia jurídica. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 35.
103
ou linear (preservando-o para os assuntos privados ou com o Estado) para o
holístico (temas coletivos).
Até o advento da normatização coletiva, observamos que o direito insistia
na tentativa de equilibrar as lutas de classes e, conseqüentemente, do poder
exercido, também de maneira reducionista.
Na verdade, devido à carência de legislações coletivas, a produção
normativa não permitia o verdadeiro equilíbrio de poderes, todavia, ainda que a
isenção e isonomia judiciária no trato com as partes fossem evidentes, não havia
mecanismos propriamente legais para suprir essas diferenças efetivamente.
À medida que os mecanismos de produção se tornavam mais e mais
vorazes, pondo em risco os meios primários dos elementos de produção e ocorria a
escassez desses mesmos elementos no mundo, observou-se que todos eram iguais
perante a lei (falamos da isonomia judiciária), mas não nas relações jurídico-sociais
e, principalmente, para a aquisição desses bens coletivos (holísticos).
Tratar a luta de classes ou dos grupos e a necessária limitação de
poderes para se equilibrar as relações sociais de maneira exclusivamente
reducionista, é redundar em equívocos. A sua produção normativa seria tão simples
que seria capaz de refletir a vontade humana em sentido privado ou público, mas
não a vontade do coletivo.
104
A vontade coletiva, na maioria das vezes, jamais se aproxima da privada
porque esta tem carga economicista extremamente elevada, calcada exclusivamente
no ter. Já aquela, na maioria das vezes, não possui tal impregnação econômica, mas
outros atributos como o preservacionismo, o apego à cultura, a busca pela saúde,
etc.
Ainda que se diga modernamente que até mesmo a preservação
ambiental possa ser traduzida em cifras, este não é seu objetivo final. 64
A limitação de poderes com uma abordagem reducionista em confronto
com meios de produção e aquisição de bens coletivos, enfim, se traduziria em
egoísmo em relação ao altruísmo necessário quando o tema se relaciona a todos
simultaneamente.
Com propriedade ensina Ricardo Luis Lorenzetti, ao considerar e criticar o
papel do Direito Privado nas questões sociais, que “o poder privado é maior do que
o Estado e corre-se o risco de ver arrasada a ‘sociedade civil’, como modo de
convivência juridicamente organizada.” 65
Tendo em vista a carência de ação limitadora de poder privado ou estatal,
justamente pelas suas características reducionistas e lineares, é que o direito
material coletivo vem para suprir essa lacuna.
64 Paulo Affonso Leme Machado, em seu livro Direito Ambiental Brasileiro. 14ª ed. rev., atual. e apli. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 322, retrata com precisão a influência das questões ambientais sobre as financeiras, relacionando legislações que atrelam o ganho das instituições à responsabilidade sócio-ambiental, até mesmo tornando-as solidárias quando seu mutuário afeta o meio ambiente. 65 Op. cit., p. 119.
105
Assim, quando ocorrer alguma movimentação social na busca de bens,
considerando sempre a natureza jurídica principiológica das legislações coletivas,
considerará primeiro o comportamento em prol do coletivo e, por conseguinte,
limitar-se-á o poder que era antes livremente exercido, ainda que nos moldes da lei
lineares e reducionistas.
106
X. DIREITO MATERIAL COLETIVO E A BOA-FÉ
Embora já seja tema estudado no capítulo destinado à democracia e à
ética, e o faremos ainda mais detidamente neste mesmo capítulo, faz-se necessário
tratar da boa-fé, não somente como regra de conduta, mas como obrigação
contratual.
Enéas Costa Garcia apregoa que “ao lado dos deveres principais existem
os chamados deveres secundários. Também chamados secundários de prestação.
São deveres que guardam certa conexão com os deveres principais, ora permitindo
a realização deles, ora tornando-se substitutivo da prestação principal realizada.” 66
Dentre estas obrigações acessórias temos a boa-fé, que é concebida em
sua forma objetiva, definida por Maria Helena Diniz como “modelo de conduta social,
ao qual cada pessoa deve ajustar-se com probidade.” 67
Os artigos 48 e 84, do Código de Defesa do Consumidor são explícitos na
defesa do consumidor vinculando o fornecedor amplamente, ensejando, execução
específica, sendo prova todas as manifestações para agregá-las ao contrato, escrito
ou não.
Plínio Lacerda Martins, nesse sentido, afirma que “nesta ordem de
reflexão, verifica-se a obrigação do fornecedor de firmar o contrato de acordo com a
66 Ob. cit., p. 99. 67 Op. cit., p. 507.
107
palavra empenhada conforme o exige o “justo” ou o socialmente aceitável, na
atuação conforme a boa-fé; sendo que a oferta efetivada integra o contrato que vier
a ser celebrado.” 68
O que se objetiva com a boa-fé, em todas as fases do processo de relação
social e de contratação, ainda mais na fase preliminar de entabulação é a
transparência e harmonia, mantendo o equilíbrio entre as partes e dos contratantes.
Necessário também estabelecer limites para se equilibrar, pois, em toda
relação negocial, principalmente envolvendo valores, bens e direitos holísticos, como
aqueles envolvidos nas relações de consumo e, para tanto, além de considerarmos
o consumidor (mas poderiam ser todos eventualmente hipossuficientes), devemos
reconhecer essa condição como norma obrigatória de conduta.
Além disso, ao aplicar a boa-fé, em seu sentido objetivo, cumpre-se o
também o princípio da vulnerabilidade que protege o consumidor, gozando ab initio
do gozo da boa-fé, cabendo ao fornecedor a inversão probatória, ou seja, é o
fornecedor quem deve provar a má-fé do consumidor.
Para Enéas Costa Garcia “a relação obrigacional, considerada como
relação complexa, determina a existência de deveres de conduta que subsistem
mesmo após o cumprimento dos deveres de prestação. São os deveres acessórios
de conduta fundados na boa-fé e na confiança. Trata-se de pós-eficácia das
68 Op. cit., p. 89.
108
obrigações. O descumprimento destes deveres gera a responsabilidade pós-
contratual (culpa post pactum finitum).” 69
A boa-fé objetiva está preconizada no artigo 422, do Código Civil
Brasileiro.
Embora tenhamos capítulo próprio para o estudado dos contratos, a boa-
fé também infere nas questões pós-contratuais, principalmente na admissão da
culpa mesmo finda a relação contratual.
Afirma Rogério Ferraz Donnini que “a boa-fé objetiva foi consagrada no ar.
422 o novo Código Civil e com ela a responsabilidade pré-contratual e a
responsabilidade pós-contratual. Quando determina esse dispositivo que os
contraentes devem se ater aos princípios da boa-fé e probidade na conclusão e
execução do contrato, reconhece que a proteção reúne as fases anterior e ulterior à
celebração do pacto.” 70
O Código de Defesa do Consumidor também não explicita essa obrigação,
entretanto, ao generalizar as obrigações contidas no inciso VI, do artigo 6º, abarcou
todas as fases contratuais ao instituir que são direitos básicos do consumidor “a
efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos
e difusos.”
69 Op. cit., p. 322. 70 DONNINI, Rogério Ferraz. Responsabilidade civil pós-contratual: no direito civil, no direito do consumidor, no direito do trabalho e no direito ambiental. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 108.
109
Donnini ainda expõe que “o fundamento primacial para a aplicação no
nosso direito da culpa post pactum finitum está na cláusula geral de boa-fé, que
propicia a flexibilização do sistema jurídico, pois a solução para situações
relacionadas ao contrato que continua a produzir efeitos mesmo após o seu
cumprimento e conseqüente extinção seria inviável ou, no mínimo, de difícil
aplicação num sistema jurídico sem mobilidade, inflexível, rígido, sem a existência
de uma cláusula geral de boa-fé.” 71
Assim considerada como cláusula geral aberta, impõe aos atores da
relação social e aos contratantes observá-la em todas as fases de negociação
colocando-se no lugar do outro e vice-versa.
Em conclusão, Flávia Piovesan ensina que “à luz desta concepção, infere-
se que o valor da cidadania e dignidade da pessoa humana bem como o valor dos
direitos e garantias fundamentais vêm a constituir os princípios constitucionais que
incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte
axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro. A partir dessa nova racionalidade,
passou-se a tomar o direito constitucional não só como o tradicional ramo político do
sistema jurídico de cada Nação, mas sim, notadamente, como seu principal
referencial de justiça.” 72
71 Ob. cit., p. 115. 72 LEITE, Salomão George (org.). Dos princípios constitucionais: considerações em torno das normas principiológicas da Constituição. São Paulo : Malheiros Editores, 2003, p. 193.
110
XI. DIREITO MATERIAL COLETIVO E A DEMOCRACIA
Neste capítulo não haverá a preocupação de adotarmos o conceito de
democracia no âmbito da sistemática dos regimes de governos, a relação entre os
poderes de Estado, a necessária liberdade de expressão ou simplesmente como
mecanismo de luta contra regimes de exceção, mas sim em identificar no direito
material coletivo, princípios democráticos.
Assim, partiremos enumerando alguns princípios democráticos adotados
pela Organização das Nações Unidas (ONU):
a) Governo e responsabilidade cívica são exercidos por todos os
cidadãos;
b) Proteção à liberdade humana ou a institucionalização da liberdade;
c) Respeito escrupuloso dos direitos fundamentais dos indivíduos e das
minorias;
d) Descentralização governamental;
e) Isonomia legal a todos os cidadãos e,
f) Valores de tolerância, cooperação e compromisso.
111
Diversas vezes evidenciamos que o direito material coletivo não veio em
contraponto ao direito público ou privado, mas diante da insuficiência desses ramos
do direito para as questões coletivas. Temos agora mais adequado detentor dos
mecanismos de gestão de bens e valores holísticos.
José Robson da Silva afirma que “cumpre questionar se a idéia da
titularidade do povo sobre os bens de uso comum resultaria em sorte diferente
daquela que atualmente se tem. A resposta tende a ser negativa, pois ao sistema,
em verdade, não interessa de fato a titularidade; interessa os mecanismos que
permitem o controle e o acesso privado aos bens públicos.” 73
Por qualquer dos temas escolhidos ao longo deste estudo, para as
questões ambientais, de consumo, de proteção à criança e ao adolescente ou ao
idoso, podemos verificar a prodigalidade de nossa legislação pátria na busca de
melhor eqüalizar a distribuição desses bens que pertencem a todos.
Nessa esteira, ao identificarmos os princípios democráticos no direito
material coletivo, tomando como exemplo alguns diplomas legais, observaremos a
delimitação para a utilização coletiva de bens, traduzindo sua utilização na
expressão livre liberdade de escolha e construção de direitos humanos e políticos.
Muito embora sobressaia na sociedade atual valores econômicos que
privilegiam o lucro pelo lucro e o acúmulo de riqueza, impregnando sobremaneira
nosso ordenamento jurídico, nossa legislação coletiva tem buscado justamente, na
73 SILVA, José Robson da. Paradigma biocêntrico: do patrimônio privado ao patrimônio ambiental. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 120.
112
qualidade de gestor, equilibrar essas necessidades, inserindo conceitos que
ressaltam a dignidade da pessoa humana e os direitos humanos.
Fica fácil de verificar, sem fecharmos nossos olhos para a importância dos
valores econômicos e a potencialidade desses bens coletivos, que os princípios
democráticos se inclinam para a dignidade da pessoa humana.
Édis Milaré, ao estudar o meio ambiente cultural em consonância com o
artigo 216, § 1º, da Constituição Federal, aplica muito bem em sua análise esses
preceitos democráticos acima listados, pois, ressalta a importância da participação
local na definição dos bens culturais em comunhão com o Estado, a isonomia legal e
sua liberdade de escolha daquilo que entende ser essencial à sua qualidade de vida,
para preservação de seu bem-estar e afirma que “a atuação da comunidade é
fundamental, pois ela, como legítima produtora e beneficiária dos bens culturais,
mais do que ninguém tem legitimidade para identificar um valor cultural, que não
precisa ser apenas artístico, arquitetônico ou histórico, mas também estético ou
simplesmente afetivo. A identificação ou simpatia da comunidade por determinado
bem pode representar uma prova de valor cultural bastante superior àquela obtida
através de dezenas de laudos técnicos plenos de erudição, mas muitas vezes vazios
de sensibilidade. Além de significar, por si só, uma maior garantia para sua efetiva
conservação.” 74
Há absoluta necessidade de ouvirmos as necessidades de todos,
obrigando nossos tecnocratas a se inclinarem para as necessidades populares (por
74 Op. cit., p. 275.
113
mais simples que pareçam) e dividir responsabilidade e governança com toda a
sociedade.
Se falarmos na defesa de bens e direitos da criança, do adolescente e do
idoso, observamos mais uma vez a preservação da unidade familiar calcada na
dignidade da pessoa humana e na participação democrática da participação da
sociedade, por exemplo, ao verificar conceitos de família, paternidade responsável,
união estável, sociedade conjugal, etc.
Oportuno transcrever comentário de José Afonso da Silva sobre o tema
onde afirma que “a paternidade responsável, ou seja, a paternidade consciente, não
animalesca, é sugerida. Nela e na dignidade da pessoa humana é que se
fundamenta o planejamento familiar que a Constituição admite como um direito de
livre decisão do casal, de modo que ao Estado só compete, como dever, propiciar
recursos educacionais e científicos para o seu exercício. Foi mais longe, vedando
qualquer forma coercitiva por parte das instituições sociais ou privadas (cf. Lei 9.263,
de 12.1.96). 75
Ao comentar os artigos 4º e 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente,
José de Farias Tavares comunga do mesmo raciocínio quando individualiza o tema
para a criança e o adolescente, externando que “é dever, em primeiro lugar, das
autoridades públicas, e supletivamente, de qualquer cidadão, salvar o infante ou o
75 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 27ª ed., rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 849.
114
jovem dos malefícios que atentem com os seus direitos básicos, especialmente,
ofensas à pessoa humana das pequenas vítimas.” 76
Podemos seguir o mesmo paradigma para o idoso nos comentários de
Pérola Melissa V. Braga ao artigo 230, da Constituição Federal discorrendo que “o
direito à vida no que se refere ao idoso é ainda mais complexo. Afinal, permanecer
vivo significa muito mais que atingir longevidade. O direito à vida assegurado
constitucionalmente, traz um conceito amplo que nos remete ao envelhecimento com
dignidade, respeito, proteção e inserção social.” 77
E acrescenta que “o idoso tem direito de viver, preferencialmente, junto da
família. A família, a sociedade e o Estado possuem o dever de ampará-lo,
garantindo-lhe o direito à vida.” 78
É da essência do direito material coletivo, por tutelar bens e direitos
holísticos, de propriedade de todos, que seus fundamentos sejam firmados em
conceitos não lineares e na divisão de dever e responsabilidade para sua
preservação seja distributiva, com a participação democrática de toda a sociedade.
O Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, por seu turno, em seu
artigo 4º, incisos I a VIII, destes, destacando o inciso III, externa de maneira singular
os princípios democráticos para as relações de consumo.
76 Op. cit., p. 28. 77 Op. cit., p. 135. 78 Op. cit., p. 135.
115
José Geraldo Brito Filomeno, em comentário ao artigo 4º, do Código
Brasileiro de Defesa do Consumidor, afirma que “constitui sua “alma”, busca, dentre
outras coisas, e principalmente: “harmonização dos interesses dos participantes das
relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a
necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os
princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal),
sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e
fornecedores.” 79
Dentre todos os princípios ali elencados (de preservação da saúde do
consumidor, de aplicação de política justa de fomento empresarial sem detrimento
do consumidor, da qualidade dos produtos e serviços, etc.), destacamos a inovação
do princípio da boa-fé objetiva, pois seu próprio conceito discorre perfeitamente dos
predicados democráticos.
Plínio Lacerda Martins desvenda a boa-fé objetiva relacionado-a “a
fatores externos, voltados para a confiança, acreditando que a outra parte, no caso o
fornecedor, irá proceder de acordo com padrões de conduta socialmente
recomendados, tais como, de lisura, correção e honestidade, assegurando assim as
expectativas da contraparte e garantindo a estabilidade e segurança nas relações de
consumo.” 80
79 Op. cit., p. 33. 80 MARTINS, Plínio Lacerda. O abuso nas relações de consumo e o princípio da boa-fé. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 136.
116
Nessa pequena incursão nos temas ambiental, consumo, criança e
adolescente e idoso, podemos perceber que nossas legislações coletivas estão
firmes nestes preceitos democráticos de acesso e garantia de bens holísticos.
Divide-se a responsabilidade entre todos; assegura-se a liberdade ao
tutelado; ainda que numa sociedade de diferenças, sobretudo sócio-econômicas,
garante-se e reconhece-se o direito das minorias, principalmente os hipossuficientes;
descentraliza-se a governança e a divide em toda a sociedade; prerroga-se a
isonomia entre os cidadãos; institui a tolerância, a cooperação e a compreensão,
tratando o outro e seu direito como se fosse dele próprio.
Os cidadãos coletivamente organizados, nas formas próprias da
sociedade civil (sindicatos, associações, organizações não-governamentais, etc.),
conquistaram espaços antes lacunosos, assegurados por princípios constitucionais
democráticos.
Todos os temas holísticos que elegemos neste estudo, para citar alguns,
o desenvolvimento sustentável, o consumo responsável, publicidade e informação,
são concebidos pela Constituição Federal e as legislações e codificações coletivas
abarcam e consolidam a participação da sociedade civil.
A participação da sociedade civil não se restringe à mera tutela, mas na
contribuição da produção legislativa e no controle da aplicação dessas leis, pois,
comum verificarmos as entidades civis laborando em parceria com órgãos de
117
proteção ao consumidor, ao meio ambientes, Ministério Público, órgãos judiciários,
etc.
Além disso, a participação popular (democrática) não se esgota nas
questões meramente legais, mas alargam-se para o direito de gestão, à educação
ambiental e consumerista, capacitação, métodos de organização civil, devido acesso
à publicidade e informação.
Essas obrigações, pelo caráter holístico que exaram, não podem ser
restritas ao Estado, mas também às entidades privadas, estas, mormente,
detentoras do mecanismo de produção e circulação de riquezas.
A democracia é fundamental para a efetivação do direito material coletivo,
calcada na participação de toda a sociedade, porque sua ausência implicaria na
concepção e elaboração de planos, programas e obras governamentais tomadas
unilateralmente pelo poder público. O mesmo podemos dizer acerca das entidades
privadas já que a voracidade da obtenção de lucro, muitas vezes, elevam os riscos
de vícios nos produtos e serviços, degradação ao meio ambiente, enfim, toda sorte
de anomalias para o mercado de consumo.
Obviamente, encontramos entraves para essa perfeita participação civil,
sobretudo junto às entidades privadas que investem cifras gigantescas em guardar
segredos industriais, por exemplo, mas, respeitados os limites para o democrático
aviamento empresarial, somente se torna salutar e politicamente correto aquele que
abre espaço para a participação de todos nesse processo.
118
Não pode e não deve a participação da sociedade civil se restringir,
muitas vezes após já verificada a ocorrência de danos (muitas vezes insanáveis),
apontar falhas ou abusos nos procedimentos administrativos e privados.
O processo democrático que se espera, principalmente para os temas
holísticos, é o aprofundamento da consciência e do aperfeiçoamento dos
mecanismos legais e sociais por uma vida sustentável nos termos definidos por lei.
Democracia e direito material coletivo não se encontram
esporadicamente, mas formam aliança para o futuro da sustentabilidade.
119
XII. DIREITO MATERIAL COLETIVO E A ÉTICA
Ética, do grego “ethos”, é o estudo dos conceitos envolvidos no raciocínio
prático: o bem, a ação correta, o dever, a obrigação, a virtude, a liberdade, a
racionalidade, a escolha. 81
Todavia, assim como os demais alicerces sociais tomados de maneira
linear, sobretudo nos trilhos do pensamento de Descartes, a ética tem passado por
transformações e se mostrado, para alguns temas, também insuficiente.
Sua insuficiência, desta feita, não está em seus predicados, pois,
tomando por base o conceito acima transcrito, são características que não podem
faltar em qualquer relação.
Entretanto, a ética holística traz conceitos mais abrangentes,
propriamente e obviamente para os temas holísticos, como a relação do homem com
o meio ambiente, as relações de consumo, as especialidades no trato com o idoso, a
criança e o adolescente, enfim, é uma ética aplicada ao todo e não às
fragmentações aplicadas ao universo (linear ou reducionista).
Quanto à aplicação da ética holística ao meio ambiente, trazemos lição de
Márcia Arend e Paulo de Tarso Brandão que demonstra com propriedade o avança
81 Dicionário Oxford de Filosofia, Rio de Janeiro: Zahar, 1997, p. 129.
120
ético (ética tradicional para ética holística) e que pode ser levada por analogia às
demais legislações coletivas relacionadas a outros temas.
Referidos autores afirmam que se deve “realçar duas evidências, a
primeira: a prevalência da racionalidade antropocêntrica, matriz vigorosa da
chamada “ecologia rasa”, cada vez mais esbate-se na incapacidade de responder
aos desafios do processo de compreensão, tanto dos fenômenos naturais como
sociais. A segunda: embora lento, o velho vai cedendo lugar ao novo e a ecologia
rasa vai abrindo espaço à “ecologia profunda”, erupcionada pelos efeitos da
racionalidade ecocêntrica.” 82
Concluem acerca da necessidade de mudança de nossos cientistas na
aplicação de seus conceitos anteriormente lineares ou reducionistas para o holístico,
inclusive no campo da ética e afirmam que “expressiva parcela dos cientistas
naturais está dando curso à virada paradigmática porque já detentores desta
percepção holística, também chamada organísmica.” 83
Em contraponto às teorias de Descartes, a ética holística é uma
realidade.84
82 MONDARDO, Dilsa (org.). Ética holística aplicada ao direito. Florianópolis: Ed. OAB-SC, 2002, p. 42. 83 Op. cit., p. 42. 84 Márcia Arend e Paulo de Tarso Brandão, na obra organizada por Dilsa Mondardo (vide nota 2), ainda na pág. 42, criticam mais uma vez as teorias reducionistas e enfatizam que “... da visão mecanicista de Descartes e Newton, que garantiu a sobrevivência da ecologia rasa até algumas décadas atrás, e que admitia a assepsia dos campos de análise pela fragmentação dos processos de compreensão a respeito dos problemas do homem e do seu mundo, assistimos à mudança rumo ao nominado “paradigma holístico-ecológico” que, em síntese axiomática, entende o mundo como sendo um todo integrado e não uma coleção de partes dissociadas.”
121
Para os direitos do idoso, por exemplo, sua relação com a ética não pode
ser tomada diferente daquela aplicada ao meio ambiente, justamente porque faz
parte desse todo holístico.
Esta é a lição de Pérola Melissa V. Braga ao constatar que “... a ética não
é um produto, que possa ser elaborado, o envelhecimento não pode ser visto
apenas como um tempo linear, segundo o qual contamos dias, meses e anos, mas o
tempo interno em que recolhemos nossas experiências. Um tempo vivido. Um tempo
que pertence a cada um e é intransferível.” 85
O homem idoso retrata bem a nova ordem holística que não o vê como
uma simples contagem de tempo, dentro de um mecanismo fracionado no universo,
mas cruzando sua história com a de outras pessoas, tornando suas experiência,
verdadeiro legado.
Para a ética holística, o idoso é senhor do tempo por detê-lo.
A autora assenta ainda seus pensamentos éticos para o idoso concluindo
que “... o tempo deve ser repensado quando falamos de princípios éticos e de
envelhecimento. Enquanto estudiosos do direito devemos sair da concepção popular
de tempo para podermos conceber que ele se comunica com o sujeito humano e
com seus princípios éticos e morais.” 86
85 Op. cit., p. 91. 86 Op. cit., p. 97.
122
A ética holística para os direitos do idoso implica em ações sociais que
reconheçam a necessidade e a obrigação de respeito a estes sujeitos, pois, aquele
que envelheceu continua existindo, com aspirações, sentimentos únicos. 87
Transportando a questão para os direitos da criança e do adolescente, em
poucas palavras, assim como apregoa o Estatuto do Idoso, o Estatuto da Criança e
do Adolescente está alicerçado em predicados éticos holísticos.
Essa concepção é clara à medida que a criança e o adolescente, embora
óbvio, envelhecerão, e possuem as mesmas condições humanas de sobrevivência.
Se aqueles estão em desenvolvimento, o idoso está envelhecendo.
Esta é a concepção de José de Farias Tavares ao comentar o artigo 3º,
do Estatuto da Criança e do Adolescente, gizando que “a filosofia deste diploma
estatutário é a da proteção integral à criança e ao adolescente, em consideração às
suas peculiaridades de pessoa humana em fase de desenvolvimento biopsíquico-
funcional.” 88
Para as relações de consumo, o Código Brasileiro de Defesa do
Consumidor é pródigo em especificar as obrigações éticas aos fornecedores.
87 Pérola Melissa V. Braga, naquela mesma obra, pág. 98, apregoa que “... os princípios éticos surgem à medida que novas situações são colocadas diante da sociedade. Uma sociedade que não tem velhos, não se preocupa com eles. Mas à medida que essa sociedade envelhece, passa a perceber que uma conduta precisa ser estipulada. Os cidadãos envelheceram, e continuam querendo exercer autonomia, no entanto, a sociedade e, até mesmo a própria família, só enxerga o outro como velho e não a si própria.” 88 Op. cit., p. 13.
123
Exalta os preceitos de preservação da saúde, de informação, de lisura,
entretanto, reiterando conceitos basilares democráticos, podemos fazer o mesmo
para a ética holística aplicada às relações de consumo.
Com efeito, temos a boa-fé objetiva que, em poucas palavras, traduz
perfeitamente o comportamento ético entre fornecedores e consumidores, pois, os
primeiros devem atuar nessa relação como se os segundos fossem. Agindo na
relação consumerista como se fosse o próprio consumidor.
A ética aplicada às questões coletivas é a holística porque todas essas
questões não podem ser fracionadas, já que fazem parte de um todo.
Dessa maneira, não se espera apenas uma regra de boa conduta
comportamental, mas sim que os atores das relações sociais, que tem por cenário
os temas holísticos ou coletivos, tenham consciência de se postar no lugar do outro.
Essa interação calcada na ética holística permite que ocorra comunhão de
conduta e resultado equilibrado do diálogo social, pois, se um agir a favor do outro,
como se ele fosse, reciprocamente, os conflitos seriam diminutos e contribuiria
também, não somente para a harmonia social, mas para a própria sustentabilidade
humana.
124
XIII. DIREITO MATERIAL COLETIVO E AS RELAÇÕES
TRABALHISTAS
Numa sociedade arraigada ao lucro e no acúmulo de riquezas, poucos
centralizam os meios de produção e detém, além de poder, recursos estruturais e
conjunturais do mecanismo de oferta de empregos.
Há tempos, sendo tema das mais acaloradas discussões, que as
anomalias geram variações diversas na oferta de vagas de trabalho, das condições
para seu exercício e, finalmente, o desemprego.
Seja pela oscilação dos vetores econômicos nesta ou naquela direção,
pelas crises setoriais, a substituição humana pela tecnologia ou mecânica, é certo
que há um círculo vicioso quando tratamos dos problemas trabalhistas, sobretudo
com relação à absorção da mão-de-obra excedente e as condições para o perfeito
exercício dessas funções.
O Direito do Trabalho tem se ocupado de maneira heróica em solucionar
tais demandas, todavia, para as questões coletivas das relações laborais, ainda que
muitas vezes as convenções firmadas entre empregadores e empregados venham
colocar termo em algumas delas, não é algo que as sane completamente.
Como temos feito rotineiramente neste trabalho, buscaremos o direito
material coletivo para as relações do trabalho como gestor de um novo quadro
125
paradigmático, pois, em auxílio aos demais ramos do direito permitindo, além do
acesso ao trabalho, também instituir mecanismos sadios de meio ambiente para o
seu exercício.
Reiterando que o Direito do Trabalho tem se aplicado na solução dessas
demandas, é bem verdade que, em tempos de crises constantes, o empregado tem
se sujeitado, em troca de obtenção ou manutenção de seu posto de trabalho,
modificar suas condições com menos proteção, quiçá, partindo para ambientes
insalubres ou que lhe causem algum dissabor, por exemplo.
Se a mão-de-obra se desvaloriza (sendo os empregados hipossuficientes
na relação com o empregador), igualmente desvaloriza os mecanismos de proteção
do direito do trabalhador como um todo.
O direito material coletivo, para os assuntos laborais, vem somar ao
Direito do Trabalho, especializando-se em questões que não podem ser vistas
apenas linearmente, por exemplo, salário, horas extras, férias, enfim, próprios da
relação direta entre as partes, mas holísticos, como o meio ambiente do trabalho.
O direito material coletivo, além de ser conjunto de normas que permite e
colabora para o fomento da oferta de emprego, é mecanismo de gestão para o
perfeito exercício dessas atividades, como um dos fatores de bem-estar e condição
sadia de vida.
126
Celso Antonio Pacheco Fiorillo leciona que o meio ambiente do trabalho é
constituído pelo “local onde as pessoas desempenham suas atividades laborais,
sejam remuneradas ou não, cujo equilíbrio está baseado na salubridade do meio e
na ausência de agentes que comprometam a incolumidade físico-psíquica dos
trabalhadores, independente da condição que ostentem (homens ou mulheres,
maiores ou menores de idade, celetistas, servidores públicos, autônomos, etc.). 89
Essa sadia qualidade de vida não diz respeito somente ao grupo de
empregados, mas diretamente aos seus familiares e a toda sociedade. Uma
sociedade que se preocupa com as condições de trabalho, é uma sociedade
consciente do bem-estar de todo um povo.
Se o Direito do Trabalho milita nas relações entre as partes, o direito
material coletivo, para as questões laborais, se preocupa com os direitos do
empregado-homem (dentro da coletividade).
Fiorillo ainda constata que “a proteção do direito do trabalho é distinta da
assegurada ao meio ambiente do trabalho, porquanto esta última busca
salvaguardar a saúde e a segurança do trabalhador no ambiente onde desenvolve
suas atividades. O direito do trabalho, por sua vez, é o conjunto de normas jurídicas
que disciplina as relações jurídicas entre empregado e empregador.” 90
Raimundo Simão de Melo compartilha o mesmo entendimento afirmando
que “o meio ambiente do trabalho adequado e seguro é um direito fundamental do
89 Op. cit., p. 22/23. 90 Op. cit., p. 23.
127
cidadão trabalhador (lato sensu). Não é mero direito trabalhista vinculado ao contrato
de trabalho, pois a proteção daquele é distinta da assegurada ao meio ambiente do
trabalho, porquanto esta última busca salvaguardar a saúde e a segurança do
trabalhador no ambiente onde desenvolve as suas atividades.” 91
Amauri Mascaro Nascimento leciona que o trabalho é algo “inerente ao
trabalhador, ao seu próprio ser. Quando o homem trabalha para outrem, dá um
pouco de si. Não é o mesmo que ocorre quando alguém fornece a outrem uma
mercadoria. A matéria ou objeto do contrato de trabalho, portanto, é muito
especial.”92
Com propriedade ainda conclui que a relação de trabalho é “meio de
preservação da dignidade humana.” 93
E é nesse sentido que se conduz este capítulo, sendo o direito material
coletivo o conjunto de normas que tutela as questões holísticas da relação de
trabalho, sobretudo permitindo que essa atividade laboral seja digna e sadia.
A Constituição Federal de 1988, artigos 200 e 225 instituíram cláusula
pétrea acerca da saúde do trabalhador, firmando a necessária qualidade e equilíbrio
do meio ambiente do trabalho para alcance de sua dignidade e vida saudável. É um
direito fundamental.
91 Op. cit., p. 31. 92 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 271/272. 93 Op. cit., p. 272.
128
Alexandre de Moraes conceitua “direitos humanos fundamentais” como “o
conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por
finalidade básica o respeito à sua dignidade, por meio de sua proteção contra o
arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e
desenvolvimento da personalidade humana.” 94
O artigo 3º, da Lei nº 6.938/81, a denominada Lei da Política Nacional do
Meio Ambiente, o conceitua como conjunto de condições, leis, influências e
interações de ordem física, química e biológica, que permite, abrigam e regem a vida
em todas as suas formas.
Emerge do texto legal a preocupação não somente da qualidade do meio
ambiente em si, num sentido imediato, mas também com relação à saúde,
segurança e bem-estar do cidadão, num sentido mediato, ou seja, para o nosso
tema, na tutela da sadia qualidade de vida e do bem-estar do trabalhador-homem.
Cristiane Derani extrai que, o “conceito de meio ambiente não se reduz a
ar, água, terra, mas deve ser definido como o conjunto das condições da existência
humana, que integra e influenciam o relacionamento entre os homens, sua saúde e
desenvolvimento.” 95
Verificamos com facilidade que o bem tutelado não se subsume às
questões lineares relativas ao contrato de trabalho (direito do trabalho), mas exaram
94 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 39. 95 DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 71.
129
a tutela de bens como a saúde e o bem-estar do trabalhador no cumprimento desse
pacto (direito material coletivo – meio ambiente do trabalho).
A Convenção nº 155, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em
seu artigo 4º, consigna que “1. Todo Membro deverá, em consulta às organizações
mais representativas de empregadores e de trabalhadores, e levando em conta a
condição e a prática nacionais, formular, por em prática e reexaminar
periodicamente uma política nacional coerente em matéria de segurança e saúde
dos trabalhadores e o meio ambiente do trabalho.”
O direito material para as relações trabalhistas institui o meio ambiente do
trabalho, tutelando, não a relação linear entre empregado e empregador, mas a
saúde humana (de interesse coletivo).
A defesa ao meio ambiente, inclusive do trabalho, é também um dos
princípios da ordem econômica, que tem por finalidade assegurar a todos existência
digna, conforme ditames da justiça social inclusa no artigo 170, da Carta Política de
1988.
O objetivo dos legisladores foi, portanto, estimular a busca de soluções
técnicas cada vez mais aperfeiçoadas para dotar os locais de trabalho de condições
favoráveis à presença da pessoa humana em seu seio, reduzindo, a ponto de
eliminar, os fatores de risco à saúde do trabalhador e à sua dignidade.
130
Enquanto perdurarem as condições de risco ou nocividade, sem prejuízo
da adoção de medidas que objetivem proteger o meio ambiente do trabalho, não
haverá uma perfeita coalizão de interesses sociais.
131
XIV. DIREITO MATERIAL COLETIVO E A PROPRIEDADE
A questão da propriedade rural ou urbana é objeto de muita discussão,
sobretudo, discorrendo sobre a sua escassez e os mecanismos para adquiri-la.
Essa luta pela sua aquisição e manutenção da propriedade, sendo ainda
um privilégio de alguns, persistindo as classes mais carentes no limbo de uma falsa
política governamental de habitação e ocupação do solo, tem originado movimentos
antipropriedade privada.
Esses constantes movimentos levaram à rediscussão, em todos os
campos sociais, acerca, não somente na esfera da aquisição da propriedade privada
(sentido linear ou reducionista), mas também da sua utilização, ou seja, da sua
função social (sentido holístico).
A função social da propriedade é produto da própria socialização do
direito, deixando a propriedade de ser mero bem, elevando-se a instrumento de
distribuição de justiça social, passando a ser útil a todos, além de seu proprietário.
A mitigação da autonomia privada decorre da intervenção estatal nas
atividades econômicas, transpondo benefícios à ordem pública.
132
A propriedade deixa de estar a serviço do particular ou do Estado, até
então calcada no individualismo do ter, para estar subordinada ao bem comum,
exarando obrigações sociais.
A função social não retira o direito de uso, gozo e disposição do referido
bem, mas infere conceitos subjetivos, sobretudo voltados para o bem-estar coletivo.
O individualismo cedeu lugar à humanização da propriedade, seu benefício em favor
da coletividade.
Evidencia-se da função social da propriedade, pela sua subjetividade, o
papel do sujeito proprietário no exercício de seus poderes e direitos e das relações
sociais que entabula.
Os temas relativos à propriedade passaram a não ser mais estudados em
termos absolutos, relativizando conceitos, principalmente onde o tema social passou
a imperar. O tema deixou de ser privado ou público e tornou-se, onde necessário,
coletivo.
Assim apregoa Vladimir da Rocha França ao dizer que “o regime jurídico
da propriedade não se restringe às normas de direito civil, compreendendo sim todo
um complexo de normas administrativas, ambientais, urbanísticas, empresariais e,
evidentemente, civis, fundamentado nas normas constitucionais.” 96
96 FRANÇA, Vladimir da Rocha. Perfil constitucional da função social da propriedade. Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal, ano 36, nº 141, jan/mar., 1999, p. 11.
133
Na lição de Junia Verna Ferreira de Souza ”a consagração dos direitos
individuais substancia uma defesa do indivíduo perante o Estado, a estatuição dos
direitos sociais traduz uma defesa do indivíduo perante a dominação econômica de
outros indivíduos. Passaram, assim, a ser limitados os direitos individuais,
atribuindo-se a alguns, funções sociais. Foi o que se verificou no direito de
propriedade, cuja expressão, agora, já não mais se cinge a um simples direito, mas
a um direito-dever.” 97
Ainda que se preserve o direito de liberdade, onde determinada o
particular ou ente público possa adquirir propriedades, a questão da sua utilização
do ponto de vista social, atendendo aos objetivos coletivos, não retira essa
liberdade, mas restrita (obrigatoriamente voltada à função social) a amplitude de sua
utilização.
Assim, a propriedade, como bem público ou privado, passa a servir a seu
determinado fim social.
A Carta Magna, artigo 5º, inciso XXIII, garante o direito de propriedade,
mas exige como cláusula pétrea, o cumprimento de sua função social.
Gustavo Tepedino leciona que “o pressuposto para a tutela de uma
situação proprietária é o cumprimento de sua função social, que, por sua vez, tem
97 DALLARI, Adilson Abreu. Temas de direito urbanístico. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 147.
134
conteúdo pré-determinado, voltado para a dignidade da pessoa humana e para a
igualdade com terceiros não proprietários.” 98
Os civilistas contemporâneos, em análise aos artigos 1.229 e 1.231, do
Código Civil e do já mencionado artigo 5º, inciso XXIII, da Constituição Federal,
trabalham com o tema em seu sentido mais genérico, caminhando na direção de se
analisar a utilização da propriedade, não somente na ótica de seu proprietário (linear
ou reducionista), mas também a dos não proprietários (holística – coletiva).
Para José Afonso da Silva “os demais princípios formadores da ordem
econômica – propriedade privada, função social da propriedade, livre concorrência,
defesa do consumidor, defesa do meio ambiente, redução das desigualdades
regionais e sociais, buscado pleno emprego – são da mesma natureza. Apenas
esses princípios preordenam-se e hão de harmonizar-se em vista do “princípio-fim”
que é a realização da justiça social, a fim de assegurar a todos existência digna.
Nesse sentido, hão de reputar-se plenamente eficazes e diretamente aplicáveis,
embora nem a doutrina nem a jurisprudência tenham percebido o seu alcance, nem
lhes tem dado aplicação adequada, como princípios-condição da justiça social.” 99
O direito público e privado, no seu sentido linear ou reducionista,
convergem à questão da propriedade para o ser (indivíduo), como justificativa para
auto-afirmação do homem, como garantia de sua felicidade, liberdade de contratar e
dispor de seus bens cria a identidade do indivíduo-proprietário.
98 TEPEDINO, Gustavo. A tutela da propriedade privada na ordem constitucional. Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, v. 1, nº 64, jul. 1995, p. 115/116. 99 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p.144.
135
Indaga-se, entretanto, se esses indivíduos que se relacionam para
aquisição e alienação da propriedade e para seu livre uso e gozo (sentido linear), se
afasta da relação com a coisa e sujeitos não proprietários (coletividade).
Para o direito material coletivo a resposta é negativa.
Com a socialização do próprio direito, a propriedade passou a ter outro
significado, além de simples coisa ou bem, hoje tem papel (a ser conduzido pelo
proprietário), no meio em que se insere, refletindo, dependendo de sua destinação,
no favor ou prejuízo da coletividade.
Os valores humanos próprios da relação singular entre indivíduos e
destes com a coisa ou bem (propriedade), embora não desapareçam, são diferentes
dos valores que compõem a coletividade (não proprietários).
Em favor da coletividade, em sentido holístico, o direito material coletivo
reconhece a presença de interesses que protege e assegura a configuração da
função social da propriedade.
Na lição de Eros Roberto Grau, quando estuda a transposição da
propriedade individualista para a coletiva, afirma que “a concepção romana, que
justifica a propriedade por sua origem (família, dote, estabilidade de patrimônios),
sucumbe diante da concepção aristotélica, que a justifica por seu fim, seus serviços,
sua função.” 100
100 GRAU, Eros Roberto. Função social da propriedade (Direito econômico). Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1977, vol. 39, p. 17.
136
A propriedade deixa de ser vista linearmente ou num sentido reducionista,
tomada como proteção privada dos cidadãos que se caracterizam pelo privilégio do
ter, como acúmulo de acervo de bens, para a holística, calcada na função social,
seus serviços, exarando, pelo texto constitucional, o dever de trazer benefícios além
da pessoa do proprietário.
Conclusiva a lição de Cristiane Derani ao externar que “a relação de
propriedade capaz de atender ao preceito jurídico “função social da propriedade” é
aquela em que o objeto apropriado é apto a satisfazer a coletividade. Existem
objetos que, apropriados, respondem à utilidade individual, isto é, são aptos a
unicamente suprir as necessidades ou preencher os desejos do sujeito proprietário.
São objetos de fruição exclusivamente privada, posto que seu uso não provoca
efeitos para além da relação, estabelecida entre sujeito e objeto. No entanto, outros
objetos quando apropriados provocam uma repercussão social.” 101
101 DERANI, Cristiane. A propriedade na Constituição de 1988 e o conteúdo da função social. Revista de Direito Ambiental. São Paulo, v. 7, nº 27, jul/set, 2002, p. 63.
137
XV. DIREITO MATERIAL COLETIVO E O ACESSO AOS BENS
PÚBLICOS
Para Diógenes Gasparini, “bens públicos são todas as coisas materiais ou
imateriais pertencentes ou não às pessoas jurídicas de Direito Público e as
pertencentes a terceiros quando vinculadas à prestação de serviços públicos.” 102
Chama a atenção, nos limites deste trabalho, aqueles bens que são de
uso comum do povo, ou seja, podem ser utilizados por todos.
Exemplificativamente, podemos mencionar como bens públicos de uso
comum do povo, os rios, as estradas, praças, ruas, etc. e, imediatamente recai para
as questões relativas à sua preservação ou seu uso consciente.
O acesso a esses bens por qualquer do povo independe de formalidade,
portanto, não se verifica qualquer problema formal nesse sentido, mas sim seu uso
indiscriminado levar, para alguns destes bens, uma área de preservação ambiental,
por exemplo, a degradação, talvez, a extinção.
O meio ambiente, por exemplo, é considerado bem de uso comum do
povo, de livre utilização, sem interferência imediata do particular, do Estado ou da
coletividade.
102 GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 9ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 710.
138
Celso Antonio Pacheco Fiorillo, acerca dos espaços territoriais
especialmente protegidos, afirma que “podem estar localizados em áreas públicas
ou privadas. Por serem dotados de atributos ambientais, merecem um tratamento
diferenciado e especial, porque, uma vez assim declarados, sujeitar-se-ão ao regime
jurídico de interesse público.” 103
Pactua desse mesmo pensamento Luis Gustavo Grandinetti Castanho de
Carvalho ao ressaltar que, “quando se protege o interesse difuso – que é um
interesse de um número indeterminável de pessoas, que é de todos e de cada um
ao mesmo tempo, mas que não pode ser apropriado por ninguém – o que se está
protegendo, em última instância, é o interesse público. Não se trata da soma de
interesses privados, somente. Nem de interesses particularizados, fracionados, pois,
em que pese a pessoa ser titular de todo o bem, não pode se opor ao gozo por parte
dos demais titulares do mesmo direito.” 104
Atualmente, esse recurso é concebido como esgotável e não se ser visto
divorciado do poder de utilização degradativo próprio do ser humano. Não se pode
segregar a idéia de uso e gozo sem restrições e a permanente e eficaz fiscalização
do Estado.
Hoje, com o surgimento de legislação coletiva, tomando mais uma vez o
meio ambiente por base, ainda que sejam alguns bens públicos elevados à categoria
103 Op.cit., p. 77. 104 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Responsabilidade civil dos meios de comunicação. Revista de Direito do Consumidor. nº 47, jul/set, 2003. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 160.
139
de uso comum do povo, sua natureza passa a ser de propriedade comum em função
de sua titularidade coletiva.
Se os bens públicos são de uso comum do povo, cuja preservação é ou
deve ser absoluta, a preservação dessas unidades com a presença humana deve
ser muito mais crítica.
Esse debate surge à medida que existe uma predisposição degradatória
do uso humano em relação a qualquer ambiente por ele ocupado, muito mais
naqueles em que o fator de convivência coletivo é essencial, como na utilização dos
bens públicos.
A situação fica mais acentuada quando esse bem público seja de alguma
maneira, área já era de alguma maneira ocupada (sentido amplo) por essa
população antes mesmo de ser condicionada à preservação.
O direito, assim, não fica alheio a essa discussão, devendo estabelecer a
maneira mais adequada de sua utilização.
O artigo 225, § 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988, estabelece
a possibilidade de o poder público definir espaços protegidos, buscando o uso
sustentável daquela unidade.
140
A criação específica de área de uso comum do povo, determinada por lei,
indica o uso racional, reconhecendo-o com características especiais que imponham
sua proteção contra qualquer utilização indevida, ou seja, sua sustentabilidade.
Sustentabilidade esta que deflagra condições de reprodução sócio-
econômica e cultural, de lazer, de viabilidade ocupacional das áreas urbanas e
rurais, enfim, conciliar a preservação do bem de uso comum do povo e sua perfeita
utilização por todos, muitas vezes conflitantes, é o desafio a ser enfrentado por toda
a sociedade, sobretudo pelo Estado no dever de proteger e servir.
141
XVI. DIREITO MATERIAL COLETIVO: NOVA TEORIA
CONTRATUAL
Não se espera neste único capítulo esgotar-se o tema.
Pela riqueza de detalhes demandaria um estudo exclusivo como muitos já
fizeram, entretanto, é a intenção promover linhas introdutórias ao sistema contratual
coletivo.
Com o aquecimento econômico, a facilitação do acesso aos meios de
aquisição para o consumo (fomento do crédito em massa) e pela voracidade dessas
relações, a doutrina e a legislação passaram a se preocupar, não somente com o
contrato em si (procedimentos formais) ou seu cumprimento, mas também com o pré
e pós-contrato.
Questões subjetivas também passaram a compor as questões
instrumentais dos contratos, por exemplo, a boa-fé, a informação, segurança,
publicidade e informação, etc.
Alguns contratos entabulam relações lineares e reducionistas, mas não
deixam, até mesmo pelo caráter principiológico das normas coletivas, de submeter-
se a estas. Como também existem contratos (holísticos) que são essencialmente
coletivos, por exemplo, de transporte, de planos de saúde, de consumo, etc.
142
Questiona-se se, com todos os predicados existentes nas normas
coletivas, sobretudo acerca da submissão das demais normas a elas diante de seu
caráter principiológico, se realmente as obrigações e deveres contratuais se
subsumem aos que figuram no contrato (contratantes).
Orlando Gomes, ainda que discorrendo sobre os contratos privados e
públicos em sentido geral (lineares, portanto), já ressaltava que “não é necessário
que os sujeitos da relação sejam pessoas determinadas. Basta que possam ser
determinadas. Por isso, diz-se que devem ser determináveis, embora, de ordinário, o
vincule se estruture em pessoas individualizadas. Admite-se que o sujeito só se
determine posteriormente ao nascimento da obrigação. A indeterminação há de ser
limitada, no sentido de que se faz necessária qualquer indicação que possibilite
averiguar-se quem é o credor.” 105
Se o direito público e privado, nas suas relações essencialmente lineares
ou reducionistas já admitem, ainda que na sua própria esfera, a indeterminação
(limitada) de pessoas em determinado contrato, o que dizer das relações holísticas
onde, ainda que se parta de obrigações contratuais individualizadas podem exarar
efeitos a número indeterminado de pessoas? E quando a indeterminação de
pessoas já é admitida por lei?
Elucidativo o parágrafo único, do artigo 2º, do Código Brasileiro de Defesa
do Consumidor ao instituir que “equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas,
ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.”
105 GOMES, Orlando. Obrigações. 8ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1994, p.18.
143
José Geraldo Brito Filomeno, em comentário ao Código de Defesa do
Consumidor, ao considerar as particularidades das relações de consumo,
considerando a própria acepção dos interesses coletivos envolvidos (saúde, vícios e
defeitos do produto, publicidade/informação, etc.) e a potencialidade de aquisição de
bens no mercado de consumo considera que “o que se tem em mira no parágrafo
único do art. 2º do Código do Consumidor é a universalidade, conjunto de
consumidores de produtos e serviços, ou mesmo grupo, classe ou categoria deles, e
desde que relacionados a um determinado produto ou serviço, perspectiva essa
extremamente relevante e realista, porquanto é natural que se previna, por exemplo,
o consumo de produtos ou serviços perigosos ou então nocivos, beneficiando-se,
assim, abstratamente as referidas universalidades e categorias de potenciais
consumidores. Ou, então, se já provocado o dano efetivo pelo consumo de tais
produtos ou serviços, o que se pretende é conferir à universalidade ou grupo de
consumidores os devidos instrumentos jurídico-processuais para que possam obter
a justa e mais completa possível reparação dos responsáveis.” 106
Podemos, por analogia, levar a questão para a preservação ambiental, da
defesa dos interesses e direitos da criança e do adolescente e idoso (não
estritamente como consumidores, mas intrinsecamente como cidadãos), pois, por
tudo quanto estudado, não se pode permitir que cláusulas contratuais ou suas
execuções os aviltem.
Roberto Senise Lisboa expõe que “sempre que se busca a satisfação,
pela obtenção de determinado resultado, de uma necessidade sentida por parte
106 GRINOVER, Ada Pellegrini... [et al.]. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 38.
144
daquele que demonstra o interesse, deve a vontade geral manifestada pela
regulamentação jurídica dos comportamentos intersubjetivos comissivos, omissivos
ou mistos, que encontra na lei a forma de expressão máxima do Direito em nosso
sistema, tão-somente buscar a inviabilização de condutas que causem prejuízo a um
bem material ou imaterial, de interesse mais amplo – outros indivíduos, e não
apenas aquele que é, em princípio, o explicitamente interessado, ou mesmo grupos
de categorias ou classes e a coletividade - possibilitando, assim, a tutela de seus
interesses da forma mais ampla possível.” 107
Parece claro, portanto, que encontramos relações em que terceiros, ainda
que desconhecidos dos contratantes, possam ser prejudicados pelo quanto
pactuado.
Não se pode, desta forma, negar legitimidade a estes desconhecidos da
relação contratual na defesa de seus direitos e interesses, elevando-os também ao
nível de contratantes, embora nada tenham firmado.
Roberto Senise Lisboa elucida o problema lecionando que “verifica-se no
universo contratual a substituição: dos direitos subjetivos econômicos invioláveis
pelo direito subjetivo à luz da função social; do indivíduo em si mesmo pela sua
integração à sociedade; da vontade individual absoluta pela sua harmonia com o
interesse social; e do negócio jurídico clássico pelo contrato social.” 108
107 LISBOA, Roberto Senise. Contratos difusos e coletivos: consumidor, meio ambiente, trabalho, agrário, locação, autor. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 35. 108 Op. cit., p. 108.
145
Com a evolução da teoria contratual, sem prejuízo da obrigação principal
pactuada, alguns deveres ou obrigações acessórias passaram a fazer parte da
mesma, principalmente para obedecer a princípios norteadores do direito brasileiro,
como a função social do contrato e a dignidade da pessoa humana.
Com a evolução das relações sociais, despontando na quebra dos
paradigmas existentes, necessária a análise deste tema, quando apresentamos a
teoria contratual para o direito material coletivo, elaborando a transposição para uma
nova teoria abarcando valores holísticos.
O ponto representativo para os contratos privados ou públicos reside no
princípio da autonomia da vontade, porém, com o advento da massificação das
relações contratuais, principalmente do acréscimo dos instrumentos pré-impressos
(por adesão), muito embora estejam calcados na teoria da autonomia da vontade,
não representam mais esse momento.
Alinne Arquette Leite Novais, estudando a teoria da declaração da
vontade de Liebe e Bülow, ressalta que “essa importância dada à vontade interna,
ao individualismo, que a princípio, era compatível com o fenômeno do liberalismo,
tornou-se incompatível com uma inicial, porém crescente, economia de massa,
caracterizada pela impessoalidade e pela estandardização das relações contratuais.
Assim, perante essas novas exigências da organização econômica, houve a
formulação da teoria da declaração, inicialmente construída por Liebe, e
desenvolvida por, com a formulação completa como a conhecemos, por Bülow,
segundo a qual pouco importa “que a declaração corresponda exatamente ao querer
146
interno, que lhe traduza, fielmente, o conteúdo”. Não é, portanto, a vontade que
constitui a essência do negócio jurídico, sua força criadora. Não se deve levar em
conta a vontade do efeito senão a da declaração. Esta é que se torna indispensável.
A vontade interna não chega a ser sequer um elemento componente do negócio
jurídico, porque não passa de parte passageira de sua gênese, sendo apenas uma
causa e não um dos seus elementos constitutivos.” 109
Acrescenta ainda a autora que “embora ainda dentro do voluntarismo
jurídico, a teoria da declaração, na verdade, constitui a primeira fenda aberta no
princípio da autonomia da vontade, tendo em vista que, em última análise, nega à
vontade o poder de criar direitos e obrigações, como firmado pelos partidários da
teoria da vontade. Ao retirar da vontade a função de fator primordial da relação
jurídica, o elemento confiança começa a surgir, ainda que timidamente.” 110
Dessa maneira, persiste a concepção que o contrato é lei entre as partes,
mas algumas pilastras mestras foram instituídas no ordenamento jurídico como a
boa-fé, a função social do contrato e a preservação da dignidade da pessoa
humana.
A confiança, a lisura, a boa-fé, a eqüidade, dentre outros atributos éticos,
democráticos e de conduta humana em sociedade passaram a reger o contrato e
foram tomadas como criadoras de direitos e obrigações.
109 NOVAIS, Alinne Arquette Leite. A teoria contratual e o código de defesa do consumidor. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001 – (Biblioteca de direito do consumidor; v. 17), p. 49. 110
Op. cit., p. 49.
147
Ao estudar a questão da boa-fé, por exemplo, Claudia Lima Marques
leciona que “significa uma nova e importante limitação ao exercício de direitos
subjetivos. O exercício de um direito subjetivo, como o de estabelecer livremente o
conteúdo e as cláusulas contratuais, será contrário à boa-fé (leia-se, abusivo)
quando é utilizado para uma finalidade objetiva ou com uma função econômico-
social distinta daquela para a qual foi ele atribuído ao seu titular pelo ordenamento
jurídico, como também quando se exercita este direito de maneira ou em
circunstâncias desleais. O princípio da boa-fé objetiva, limitador de direitos (=
poderes), definirá um novo “grau” de abusividade das cláusulas e práticas
comerciais presentes nos contratos oferecidos no mercado.” 111
Referida autora, desta feita, tomando a análise da função social do
contrato, ressalta que “no novo conceito de contrato, a eqüidade, a justiça
(Verteagsgerechtigkeit) veio ocupar o centro de gravidade, em substituição ao mero
jogo de forças volitivas e individualistas, que, na sociedade de consumo,
comprovadamente só levava ao predomínio da vontade do mais forte sobre a do
vulnerável. É o que o novo Código Civil denomina “função social do contrato”, novo
limite ao exercício da autonomia da vontade.” 112
Lima Marques indica que “a nova concepção de contrato é uma
concepção social deste instrumento jurídico, para a qual não só o momento da
manifestação da vontade (consenso) importa, mas onde também e principalmente os
111 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 5ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 104. 112 Op. cit., p. 167.
148
efeitos do contrato na sociedade serão levados em conta e onde a condição social e
econômica das pessoas nele envolvidas ganha em importância.” 113
E ainda assevera que “hoje o contrato é o instrumento de circulação das
riquezas da sociedade, hoje é também instrumento de proteção dos direitos
fundamentais, realização dos paradigmas de qualidade, de segurança, de
adequação dos serviços e produtos no mercado”. O economicamente relevante é, na
sociedade atual, prioritariamente, o imaterial, os fazeres e serviços complexos ou o
bem imaterial. Destaque-se aqui que a crise pós-modernidade no direito advém da
modificação dos bens economicamente relevantes. Se na idade média, os bens
economicamente relevantes eram os bens imóveis, na idade moderna, o bem móvel
material, indiscutível que hoje, na idade atual pós-moderna, valorizado está o bem
móvel imaterial (software etc.) ou o desmaterializado “fazer” dos serviços, da
comunicação, do lazer, da segurança, da educação, da saúde, do crédito. Se são
estes bens imateriais e fazeres que são a riqueza atual, os contratos que autorizam
e regulam a transferência destas “riquezas” na sociedade também têm de mudar,
evoluir do modelo tradicional de dar da compra e venda para modelos novos de
serviços e dares complexos, adaptando-se a este desafio desmaterializante e plural
“pós-moderno”. 114
Ao expormos nossas considerações iniciais a este estudo, delineamos a
ocorrência de um novo paradigma, próprio a se estabelecer em uma crise
sociológica, sobretudo pelo aviltamento dos valores holísticos que são a essência da
preservação do próprio ser humano.
113 Op. cit., p. 101. 114 Op. cit., p. 180/181.
149
Os contratos, em todas as esferas holísticas, para o consumo,
preservação do meio ambiente, etc., não podem deixar de estabelecer mecanismo
que se adeqüem a essa nova concepção.
Ainda dentro dos ditames holísticos concebida na nova teoria contratual
do direito material coletivo, Silvio Rodrigues leciona que “a interpretação do contrato
faz-se necessária quando existe divergência entre as partes sobre o efetivo sentido
de uma cláusula. Com efeito, se há concordância entre elas, não ocorre litígio e a
convenção é cumprida normalmente. Entretanto, por vezes parece, entre os
contratantes, disparidade de opiniões acerca do alcance de uma cláusula
determinada. Nesse caso instala-se um conflito, cuja solução depende da
interpretação do ajuste, a ser realizada pelo juiz.” 115
Para os contratos em si, lineares ou holísticos, devemos adotar as regras
gerais de interpretação, sobretudo para desvendar a vontade das partes e toda a
sua abrangência.
Entretanto, para os contratos holísticos temos uma evolução
substanciosa, até porque, como estudado anteriormente, todo o sistema material
coletivo é regido por regras principiológicas, especialmente preservando bens como
a vida, saúde, relação de consumo equilibrada, meio ambiente, enfim, que merecem
tratando diverso.
115 RODRIGUES, Silvio. Direito civil. Dos contratos e das declarações unilaterais de vontade. Vol. 3. 28ª ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 49.
150
Além disso, direta ou indiretamente, sempre encontramos hipossuficientes
em um dos pólos dessa relação (até mesmo como terceiros não contratantes).
Tutelar o equilíbrio contratual para as questões holísticas é o cerne da
interpretação. Um grande exemplo é o Código de Defesa do Consumidor, instituindo
o controle de cláusulas contratuais.
Mormente de adesão116, esta espécie de contrato, além de figurar como
contratante ou não o hipossuficiente, não permite a ampla negociação (pela
imposição unilateral de cláusulas e condições), caracterizando-se pela onerosidade
entre um consumidor final (ou terceiro a ele equiparado) e o fornecedor de bens e
serviços no pólo oposto.
Outra característica peculiar e inerente à relação de consumo é a carência
de harmonia dos interesses econômicos.
Ocorrendo anomalias, facilmente detectadas pelo desequilíbrio
significativo na relação jurídica, a primeira interpretação é a utilização dos princípios
que norteiam as relações holísticas, ou seja, boa-fé, a função social do contrato e a
dignidade da pessoa humana (art. 6º e 14, do Código de Defesa do Consumidor).
Nos casos de contrato de adesão, em consonância com o artigo 47, do
Código de Defesa do Consumidor, conforme ensinam Maximilianus C. A. Führer e
116 Maximilianus C. A. Führer / MILARÉ, Édis. Manual de direito público e privado. 14ª ed. rev. e atualizada de acordo com o novo Código Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 366, definem contrato de adesão como “aqueles, geralmente impressos, em que uma das partes impõe todas as cláusulas, em bloco, cabendo à outra apenas aderir ou não ao estipulado.”
151
Edis Milaré, “as cláusulas obscuras ou ambíguas devem ser interpretadas contra o
proponente. As cláusulas que limitam direitos devem ficar em destaque, de modo a
permitir a imediata e fácil compreensão. As cláusulas datilografas cancelam as
impressas.” 117
Para as cláusulas consideradas abusivas recebem tratamento no inciso
VI, do artigo 6º, do Código de Defesa do Consumidor, ao dizer que são direitos
básicos do consumidor “a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva,
métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas
abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços.”
As cláusulas abusivas, dentre outras que aviltam de alguma maneira os
direitos do consumidor, recebem tratamento de “nulas de pleno direito”. Justifica-se
tal postura porque ferem a ordem pública de proteção ao consumidor.
Desta forma, podemos observar com singeleza, que as relações de
consumo ou outros interesses holísticos, aperfeiçoadas em contrato, recebem
influência direta da legislação, amparando amplamente o consumidor, todavia, sem
alterar a liberdade de contratação e a relação negocial e jurídica em si.
117 Op. cit., p. 366.
152
XVII. DIREITO MATERIAL COLETIVO: PUBLICIDADE E
INFORMAÇÃO
Este capítulo versa sobre a atividade publicitária e o dever de informação
em sentido amplo, vale dizer, não há preocupação exclusiva quanto ao conteúdo da
mensagem veiculada.
Celso Antonio Pacheco Fiorillo, citando Rabaça e Barbosa, especifica que
“a comunicação de massa tem por escopo um grande público, via de regra,
indeterminado, numeroso, heterogêneo e anônimo, e é dirigida, segundo Rabaça e
Barbosa, “por intermediários técnicos sustentados pela economia de mercado e a
partir de uma fonte organizada (geralmente ampla e complexa)”. Nessa linha de
raciocínio a comunicação de massa é dirigida a partir de uma nascente de
mensagens (grupo finito e ordenado de elementos de percepção tirados de um
repertório – cujos elementos são definidos pelas propriedades do receptor – e
reunidos numa estrutura), que inicia propriamente o ciclo denominado
comunicação.”118
Daí porque o autor se preocupou em estudar especificamente o direito de
antena, conceituando-o como “o direito de captar e transmitir as ondas, de modo que
o que será transmitido ou captado (conteúdo) é elemento que não interessa à
natureza jurídica desse direito. Deve-se distinguir o conteúdo do que se transmite ou
118 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. O direito de antena em face do direito ambiental no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 183.
153
capta do meio que se utiliza para isso. Exatamente esse meio utilizado para a
captação ou transmissão de ondas que é objeto do direito de antena.” 119
Esta constatação também é feita por Fábio Henrique Podestá ao dizer
que “as questões relacionadas a aspectos subjetivos da comunicação de massa,
como a qualidade da programação, ética e objetividade na mensagem jornalística,
não podem ser dissociadas do modelo de radiodifusão implantado no Brasil desde
os primórdios de seu crescimento até os dias atuais.” 120
Este tema é um dos mais polêmicos na atualidade, uma vez que o
ordenamento jurídico brasileiro, com relação à atividade publicitária especificamente,
não foi em seu todo esmiuçado, preferindo a generalização dos conceitos e
tipificações e, na prática, persistem os questionamentos.
Em linhas gerais, investigaremos a influência da atividade publicitária e do
dever de informação na sociedade, a busca da atenção do consumidor como
patrimônio do fornecedor e caracterizar o sujeito que a veicula e elabora.
Com efeito, o que se verificava antes do advento da Lei 8.078/90 (Código
de Defesa do Consumidor) era uma lacuna onde as aspirações dos consumidores se
esvaíam por falta de uma regra, viam-se órfãos de uma tutela.
Mesmo a aplicação da lei civil e da comercial não era capaz de suprir, até
mesmo por sua essência linear ou reducionista, com a precisão dessa lei 119 Op. cit. p. 149. 120 PODESTÁ, Fábio Henrique. Interesses difusos, qualidade da comunicação social e controle judicial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 140.
154
principiológica, os problemas típicos verificados nas relações de consumo, por fim, a
questão normalmente era amenizada pelo bom senso dos magistrados quanto às
questões a eles apresentadas.
Com o surgimento da referida lei, não só houve a definição dos
personagens que compunham a relação de consumo, mas também o papel de cada
um e as regras para o exercício do comércio dos bens e serviços ofertados de forma
massificada.
Independente da forma que a mensagem é apresentada, o que não se
questiona é que a relação de consumo em si é um contrato, recaindo-lhe o dever de
informação, sob a égide da vinculação desta ao produto ou serviço.
Nesse sentido, elucidativa a proposição de Celso Antonio Pacheco Fiorillo
ao afirmar que “o direito de antena, vinculado a quem transmite ou capta a
transmissão, tem na verdade seu fundamento de conteúdo na própria Política
Nacional do Meio Ambiente. É a Lei n. 6.938/81 que descreve a necessidade de se
compreender o meio ambiente como uma integração de valores que deve respeito à
soberania brasileira, à cidadania e particularmente à dignidade da pessoa
humana.”121
A atividade publicitária sem organização por lei específica, sem controle
prévio de produção e veiculação, além de faltar-lhe, como dito, o referido controle,
não deixa claro seu papel social, mormente perseguindo exclusivamente a busca da
121 Op. cit., p. 192.
155
atenção e o aviamento empresarial. Salvo honrosas exceções, não há compromisso
com o saneamento da sua própria atividade e a purificação do mercado de
consumo.
Entretanto, sendo o Código de Defesa do Consumidor lei principiológica,
muito embora não ocorra regramento próprio da atividade publicitária, há sim
cláusulas específicas sobre ela, salvaguardando o consumidor, presumidamente
vulnerável.
A Carta Política de 1988 trouxe no Capítulo “Dos Direitos e Garantias
Fundamentais”, mais precisamente no inciso XXXII, do artigo 5o essa garantia ao
dizer que “O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor.”
E nesse sentido se posiciona o Código de Defesa do Consumidor.
O Código de Defesa do Consumidor descreve o consumidor como o
indivíduo que pertence à determinada classe social ou casta de modo que sua
mobilidade na sociedade o direciona a determinados atos, por exemplo, o de
consumo.
O consumidor é descrito como indivíduo cujas reações foram estudadas
pelos fornecedores para identificá-lo como público alvo para aquisição de
determinados produtos ou serviços, delineando critérios para produção e o seu
conseqüente consumo.
156
O consumidor é conceituado pela aspiração natural de subsistência e de
ato de consumo (satisfação da vontade).
Não podemos deixar de constar que o Código de Defesa do Consumidor,
seguindo ainda os ditames do artigo 2º, não compôs o conceito de consumidor
apenas do ponto de vista individual, mas também buscou o legislador apresentar a
relação de consumo na forma indeterminada.
Encontramos também, como destinatário da publicidade e da informação
em massa, a universalidade ou conjunto de consumidores, dispostos em grupos,
classes, categorias, associações e, genericamente, àqueles que têm em comum a
participação na relação perante um mesmo fornecedor ou não, quer perante um
mesmo produto ou serviço ou não e até mesmo mais de um destes fatores
associados.
Justifica-se a inclusão do consumidor indeterminado pela notoriedade dos
problemas e semelhanças das situações que os consumidores se encontram,
podendo ser amparados pelas medidas extrajudiciais através dos órgãos de defesa
(PROCON, IDEC, etc.), procuradorias de justiça e também por meios judiciais
através das ações coletivas.
Pela complexidade dos fenômenos mercadológicos, houve a necessidade
de desdobrar o conceito em outros que abrangessem o mesmo significado, mas
abstrato, como é o caso do lobby de consumidores, formado pelas pessoas que
adquirem produtos e aqueles que são consumidores-potenciais.
157
Se tomarmos como exemplo a publicidade e a informação voltada à
criança e ao adolescente, por exemplo, a preocupação do legislador sobre o tema
mostra-se sintetizada no alerta de Noemi Friske Momberger informando que “nos
primeiros anos de infância as crianças tendem a tratar todo o conteúdo da televisão
como um tipo de mensagem único e não diferençável. Por exemplo, crianças não
começam a estabelecer diferenças entre fantasia e dimensão da realidade do
conteúdo da televisão, mesmo nos níveis mais básicos, antes dos primeiros anos da
escola primária. Deste modo, não deveria ser uma surpresa que crianças pequenas
não distinguem a programação da publicidade até atingirem aproximadamente o
mesmo pondo de desenvolvimento na vida.” 122
Desde a tenra idade estão expostos a tais condições, bem como aqueles
que de alguma forma ou de outra, muito embora não participem da relação de
consumo em si, diante dos desdobramentos que pode apresentar, se equiparar à
categoria de consumidor (parágrafo único). Bastando, por qualquer forma, sua
intervenção na relação consumerista.
Fornecedor é o personagem que, no teatro da relação de consumo,
desempenha ou ocupa papel de detentor da riqueza, do produto, dos meios de
produção, da tecnologia, enfim, os meios de colocação de bens e serviços no
mercado de consumo.
Antes da promulgação do Código de Defesa do Consumidor,
encontrávamos as mais diversas nomenclaturas, sendo as mais comuns,
122 MOMBERGER, Noemi Friske. A publicidade dirigida às crianças e adolescentes: regulamentações e restrições. Porto Alegre: Memória Jurídica Editora, 2002, p. 33.
158
empresário, comerciante, industrial, outras menos comuns como, banqueiro,
importador, exportador, franqueador, etc.
A abrangência do conceito de fornecedor também foi adotada pelo que se
observa do caput do artigo 3o, do Código de Defesa do Consumidor estabelecendo
que “... é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira,
bem como os entes despersonalizados, que envolvem atividades de produção,
montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição
ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.”
A diversidade e amplitude das atividades enquadradas neste artigo deixa
claro, que não importa o nome que se dê àquele que em sua atividade exerce a
produção e sua conseqüente oferta ao consumidor. Se em uma das fases da
produção envolve os meios aqui elencados, é fornecedor.
A amplitude imposta pelo legislador tem por único objetivo não permitir a
esquiva do fornecedor da responsabilidade, que é objetiva (independente de dolo ou
culpa), perante o consumidor pelos riscos de sua atividade, até porque, como bem
salienta Alexandre David Malfatti “o conteúdo da mensagem pode ser traduzido
como o material escolhido pelo emitente para expressar seu objetivo.” 123
São todos quantos proporcionem a oferta de produtos e serviços no
mercado de consumo, inclusive os meios de comunicação por fazer parte do sistema
de oferta de bens para consumo.
123 MALFATTI, Alexandre David. O direito de informação no código de defesa do consumidor. São Paulo: Alfabeto Jurídico, 2003, p. 178.
159
Assim como ocorre com os consumidores, diante dos preceitos exarados
pelo artigo sob comentário, existe toda uma linha de desenvolvimento da oferta de
produtos e serviços ao mercado de consumo que, diante dos elementos específicos
que a envolvem, por exemplo, pesquisas de mercado, publicidade, terceirizações,
franquias, enfim, elenca toda gama de personagens que não é o fornecedor em si,
mas a ele se equiparam pela sua interferência na relação, gerando responsabilidade
solidária objetiva. São os fornecedores equiparados.
A rubrica econômica também é inerente à atividade publicitária e da
informação porque somente ela, diante de todo seu aparato científico específico, a
saber, em formato genérico, aquele que estuda o melhor mecanismo de se atingir o
maior número de indivíduos possível (público alvo), com menor custo de realização e
com o melhor retorno obtido, tem objetivos finais a atenção dessa população e fazer
com que a mensagem publicitária tenha uma sobrevida cada vez maior.
A publicidade, como já mencionado anteriormente, é atividade econômica
de grande expressão.
Nesse sentido, diante da acirrada concorrência entre os fornecedores, se
aprimoraram ao longo dos anos as mais derivadas técnicas de captação da atenção
das pessoas.
Primitivamente, buscava-se a captação de determinado público,
denominado “público alvo”, que atendia à necessidade primeira de o fornecedor
localizar nichos de consumo. Após, com tendência moderna, independente ou não
160
de haver um determinado público para um determinado segmento mercadológico, há
a necessidade de consolidação de determinada marca, produto, ou seja,
necessidade de permanecer cada vez mais na “lembrança” do público em geral.
Verificou-se que a mensagem publicitária especificamente atingia dois
níveis, o primeiro, aquele que independentemente de consumirem algo relacionado
àquela empresa, marca, produto ou serviço, havia uma sedimentação da mensagem
publicitária no público em geral, onde determinada mensagem, mesmo após algum
tempo de ter sua veiculação suspensa, até mesmo pela desnecessidade de o
fornecedor mantê-la em circulação, permanecia intacta na mente das pessoas.
Noutro sentido, assim como se notou a permanência de determinada mensagem
publicitária mesmo cessada sua veiculação e junto àqueles que a primeira vista não
eram seus destinatários, percebeu-se também que algumas mensagens, mesmo
recentes e com endereço certo, não eram captadas, sendo quase que
imediatamente descartada. Tornando-se “entulho publicitário”.
Assim, para tirarmos prova se as assertivas acima estão corretas,
devemos parar por alguns minutos e buscarmos relembrar, desde o momento que
saímos de nossas residências até o seu retorno, por quantas mensagens (sentido
amplo) nos foram enviadas pelas mais variadas formas (músicas em rádio,
comerciais de televisão, anúncios em jornais, faixas, panfletos, out doors, etc.).
Concluiremos que boa parte das mensagens que nos foram enviadas,
não importando se nos atingiam ou não, foram prontamente descartadas e, outras,
161
mesmo não sendo público alvo e sem qualquer aparente necessidade, ficaram
guardadas, talvez não definitivamente, mas surtiram maior efeito que as demais.
Podemos relembrar, mesmo sem nunca termos consumido o produto ou
serviço nela anunciado e sem qualquer relacionamento com o fornecedor, que a
mensagem persiste em nossas lembranças.
Assim, viu-se que a mensagem publicitária, antes mesmo de ser um
mecanismo de aviamento empresarial, captava, primeiro, a atenção das pessoas
independente de serem consumidoras e público alvo, ou seja, havia uma riqueza na
mensagem que se tornava verdadeiro ativo do fornecedor.
Os conceitos a seguir transcritos, proferidos por autoridades no assunto,
deixam claro que a atenção pode ser economicamente aferida. A atenção captada é
fonte de recurso financeiro para o fornecedor, mesmo sem se tornar consumo
efetivo, é patrimônio líquido e certo.
Isso justifica, diante da dimensão do movimento realizado pela
publicidade, com voracidade que atinge nossas vidas, o nascimento de anomalias.
A mensagem publicitária há muito não é mais simples instrumento de
promoção de vendas, mas também, na constatação de Valéria Falcão Chaise que “a
disciplina jurídica da publicidade não está mais adstrita aos limites da concorrência
162
desleal, na qual eram considerados dignos de proteção somente os interesses
empresariais”. 124
A matéria, portanto, é e de ser passiva de controle, pois não existe
atividade humana que caminhe à margem das regras, mesmo que sociais, gera
cifras astronômicas e possui força de penetração ativa e, em plano vulnerável, um
número indecifrável de consumidores.
É bem verdade que a publicidade e as demais peças de conteúdo
informativo sempre sofrem aqui e acolá certo regramento. Em nível particular, temos
o CONAR e, o estatal, impondo regras setorizadas, mas nada específico ou
principiológico como o Código de Defesa do Consumidor.
Assim, o Código de Defesa do Consumidor não se preocupa, como fazem
as leis esparsas, em regrá-lo exclusivamente do ponto de vista contratual, da oferta
e sua vinculação, mas como técnica de estimulação de consumo.
Justifica-se a postura legislativa do Código de Defesa do Consumidor já
que a mensagem publicitária surge, por óbvio, antes de ser veiculada, portanto,
antecedendo o contrato que concretiza a relação de consumo propriamente dita.
Desta forma, não há que vinculá-la apenas a relação consumerista
completa, concreta, perfeita e acabada, mas já à mera expectativa de consumo.
124 CHAISE, Valéria Falcão. A publicidade em face do Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 24/25.
163
O referido diploma legal não se preocupa apenas com a relação de
consumo, mas regula tudo quanto possa nela interferir, relembrando que não se
detém à mensagem publicitária apenas, mas o conteúdo da comunicação, da
informação e da atividade que a elabora.
Não temos a pretensão de alargarmos o tema para as espécies de
publicidades anômalas, mas abrimos parênteses para algumas poucas palavras.
A característica principal da publicidade enganosa, inserida no artigo 37,
do Código de Defesa do Consumidor, está na probabilidade (já que o diploma legal
não regula somente o fato consumado, mas a mera possibilidade, a potencialidade)
de conduzir o consumidor em erro, que influencia sua decisão verificada através da
informação equivocada, propositadamente ou não, falsamente ou não, parcialmente
ou não, de dados sobre o produto e serviço ou até mesmo pela omissão de tais
dados essenciais, homenageando o princípio da veracidade e da boa-fé objetiva.
Induzindo o consumidor a tomar decisão favorável na sua aquisição, aquisição esta
que talvez não se concretizasse se o consumidor tivesse conhecimento preciso de
todos os dados a que não teve acesso.
Também elencada no artigo 37, do Código de Defesa do Consumidor, a
publicidade abusiva.
O legislador não se preocupou em conceituar a publicidade abusiva, mas
apenas seus desvios. Preferiu ainda dar contornos mais abrangentes, qualificando-a
como discriminatória de qualquer natureza.
164
Ao invés de conceituar, dá exemplos não exaustivos, enumerando
possíveis desdobramentos, a saber, a incitação à violência, a exploração do medo, a
superstição.
Não significa que outras hipóteses de abusos, fora estes
exemplificativamente trazidos pelo legislador, estejam fora do rol aqui tratado.
Etimologicamente, tem-se por discriminatório o ato ou efeito de separar,
segregar, apartação, pois, efetivamente, torna-se abusiva a utilização de
mecanismos aviltantes à dignidade humana em nome do aviamento empresarial, do
lucro, enfim, o tipo do artigo é a discriminação pura e simples, que culmina na
deficiência ou prejuízo de julgamento ou discernimento do consumidor, induzindo o
consumidor a comportamentos que normalmente, em condições normais, não lhe
ocorreria, ainda exemplificativamente e perseguindo a descrição do artigo em
comentário, de forma insegura, em direção a violência, etc.
Como salienta Antonio Herman de Vasconcelos e Benjamim, citando
Thierry Bourgoinie que “o Direito ainda não descobriu um critério infalível para a
identificação da abusividade.” 125
Para José Afonso da Silva “o direito de informar, como aspecto da
liberdade de manifestação de pensamento, revela-se um direito individual, mas já
contaminado de sentido coletivo, em virtude das transformações dos meios de
comunicação, de sorte que a caracterização mais moderna do direito de
125 GRINOVER, Ada Pellegrini... [et. al.]. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 301.
165
comunicação, que especialmente se concretiza pelos meios de comunicação social
ou de massa, envolve a transmutação do antigo direito de imprensa e de
manifestação do pensamento, por esses meios, em direitos de feição coletiva.” 126
Como afirma categoricamente o autor, a comunicação, modernamente
considerada, é fenômeno de massa e, por assim ser, tem feições coletivas.
Desse modo, conclui-se que não pode ser tomada em sentido linear ou
reducionista, mas holístico, envolvendo valores que pertencem a todos.
Podemos notar a dimensão da comunicação estudada envolvendo a
massa, ou seja, um número indeterminado de pessoas.
Perseguindo ainda essas características da comunicação de massa, por
exemplo, para as relações de consumo e propriamente para a oferta de bens e
serviços, a necessidade de proteção legal ao consumidor se faz necessária e
ostensiva à medida que toda e qualquer informação passa a fazer parte integrante
da avença.
Dessa maneira, parece ser importante dividir a questão na obrigação de
informar e na qualidade da informação.
O Código de Defesa do Consumidor, no artigo 48, é preciso ao afirmar
que “as declarações de vontade constantes de escritos particulares, recibos e pré-
126 SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 4ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 110.
166
contratos relativos às relações de consumo vinculam o fornecedor, ensejando
inclusive execução específica nos termos do art. 84 e parágrafos.”
O Código de Defesa do Consumidor trata do dever de informação,
baseado na autonomia da vontade, atrelada obrigatoriamente à boa-fé e a
responsabilidade objetiva.
Como obrigação acessória ao contrato, para o contratante fornecedor de
produtos e serviços, há a necessidade absoluta de levar ao outro pólo contratante
toda e qualquer informação que possa ser relevante para os fins do contrato, para
seu aperfeiçoamento, solvência e não causar anomalias.
Elucida Enéas Costa Garcia que “este dever acessório de conduta (dever
de informação) por vezes é expressamente consagrado pela Lei. A disciplina do
dolo, especialmente a reticência dolosa, reconhecendo-a como causa de
anulabilidade do negócio, funda-se no reconhecimento do dever de informação. E de
certo modo a possibilidade de anulação do negócio por erro também envolve
considerações a respeito do dever de informar.” 127
Quanto à qualidade da informação, o artigo 4º, do Código de Defesa do
Consumidor, caput, exaltando o dever de transparência nas relações de consumo,
portanto, próprio do dever de informar, estabelece a Política Nacional de Relações
de Consumo estabelece que “a Política Nacional das Relações de Consumo tem por
127
GARCIA, Enéas Costa. Responsabilidade pré e pós-contratual à luz da boa-fé. São Paulo: Editora Juarez de
Oliveira, 2003, p.111.
167
objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua
dignidade, saúde, segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria
da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de
consumo...”
A transparência exige que as partes se coloquem um no lugar do outro,
buscando fair play no campo negocial.
O artigo 30, do Código de Defesa do Consumidor reza que “toda
informação ou publicidade, suficientemente clara, veicula por qualquer forma ou
meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou
apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o
contrato que vier a ser celebrado.”
Em complemento, o artigo 31, do mesmo diploma, giza que “a oferta e
apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas,
claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características,
qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem,
entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança
dos consumidores.”
Nelson Nery Jr., em comentário ao Código de Defesa do Consumidor,
ensina que “a lealdade da informação e publicidade sobre produtos e serviços que
serão objeto de futuro contrato de consumo tem no princípio da boa-fé seu
fundamento maior. Tem-se, ainda, o sentido teleológico da norma, no que respeita
168
às práticas comerciais, que é o da informação e publicidade com
responsabilidade.”128
Aliás, abre-se aqui questão interessante, pois, diante das mais variadas
técnicas mercadológicas, bem como da diversidade dos valores humanos, mesmo
diante da proclamada globalização, onde o que é ofensivo a um não é ofensivo a
outro, não autorizando, portanto, estudarmos a questão apenas do ponto de vista
individual (linear), mas alargarmos para o coletivo (holístico).
Não se busca somente a tutela jurisdicional do indivíduo, mas da
coletividade, pois, existem classes especiais de consumidores cuja desinformação e
ignorância são intrínsecas, por exemplo, as crianças, idosos, crédulos, com pouca
instrução.
Não se está dizendo que, muito embora a mensagem publicitária e as
mensagens informativas estejam veiculadas a um número indeterminado de
pessoas, o indivíduo, de forma singular, não se veja ofendido, mas buscou-se
prevenir danos à sociedade, à coletividade, preservando-se a ordem pública.
A publicidade e a informação são parte integrante da relação de consumo
e assim deve ser considerada. Será assim recepcionada como fonte de obrigações e
deveres e estará sujeita à regulação de seu conteúdo.
128 Op. cit., p. 505.
169
XVIII. DIREITO MATERIAL COLETIVO E A SAÚDE
A saúde, como parte do sistema que compõe o piso vital mínimo para a
preservação da vida humana, exige um critério de padrão de organização, sobretudo
calcada na prevenção.
Dessa forma, a questão da saúde como bem jurídico a ser tutelado pelo
direito material coletivo não pode ser mapeado num cenário abstrato, isolado,
reducionista ou linear, mas sim, dentro de uma estrutura de relações com o todo,
holístico.
A saúde desenvolve relação direta com componentes de um sistema e
adota critérios fundamentais para sua efetivação que acompanha constante
evolução e as necessidades do próprio homem.
Reconhecendo as características holísticas da saúde, seus problemas
aparecem relacionados ao todo, como parte de um único e grande problema e, por
seu dinamismo, pode apresentar mais de uma solução.
Sendo dinâmico seu sistema, a tendência é de afastar-se do equilíbrio por
envolver uma série de fatores que a influenciam.
170
Cabe à ciência do direito, portanto, representada pelo direito material
coletivo, equilibrar as relações que envolvem a saúde como um dos elementos de
sua própria evolução e preservação.
Singelo imaginar que uma das características-chave do equilíbrio da
saúde está diretamente relacionada às mudanças do meio ambiente e o direito como
mecanismo dessa tutela holística.
Alerta Fritjof Capra que “em vez de ser uma máquina, a natureza como
um todo se revela, em última análise, mais parecida com a natureza humana –
imprevisível, sensível ao mundo circunvizinho, influenciada por pequenas flutuações.
Conseqüentemente, a maneira apropriada de nos aproximarmos da natureza para
aprender acerca da sua complexidade e da sua beleza não é por meio da
dominação e do controle, mas sim, por meio do respeito, da cooperação e do
diálogo.” 129
Assim, o direito como interlocutor das necessidades sociais deve dialogar
com o tema saúde e todo seu sistema priorizando o respeito e a cooperação, ou
seja, caminhando para a prevenção.
Daí surge a constatação de Capra ao afirmar que “nos últimos anos, os
problemas de saúde causados pela engenharia genética, associados aos seus
problemas sociais, ecológicos e éticos mais profundos, saltaram aos olhos de todos,
e agora um movimento global de repúdio a essa forma de tecnologia está crescendo
129 CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. Trad. Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Editora Cultrix, 1996, p. 157/158.
171
rapidamente. Várias organizações ambientalistas e de proteção à saúde já pediram
uma moratória da liberação comercial de organismos geneticamente modificados,
até que se complete uma grande investigação pública sobre os usos seguros e
legítimos da engenharia genética. Incluem-se nessas propostas o apelo para que
não se concedam patentes de organismos vivos ou partes desses organismos, e
para que a base de nossa atitude em relação à biotecnologia seja o princípio
preventivo que tem sido incluído em acordos internacionais desde a Cúpula da Terra
de 1992.” 130
Esse sentido (holístico) é o que foi adotado pela Constituição Federal de
1988, promulgando no artigo 196 que “a saúde é direito de todos e dever do Estado,
garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de
doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços
para sua promoção, proteção e recuperação.”
José Afonso da Silva, ao comentar referido artigo constitucional, assevera
que “é espantoso como um bem extraordinariamente relevante à vida humana só na
Constituição de 1988 tenha sido elevado à condição de direito fundamental do
homem. E há de informar-se pelo princípio de que o direito igual à vida de todos os
seres humanos significa também que, nos casos de doença, cada um tem direito a
tratamento condigno de acordo com o estado atual da Ciência Médica
independentemente de sua situação econômica, sob pena de não ter muito valor sua
consignação em normas constitucionais.” 131
130 CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Editora Cultrix, 2002, p. 210. 131 SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 4ª ed., São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2005, p. 767.
172
O autor ainda conclui que “a saúde é um direito fundamental do ser
humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno
exercício. Os conservadores criticam o texto constitucional, sob o argumento de que
é impossível um direito à saúde, porque não haveria como dar saúde, já que essa é
uma questão fisiológica, que foge ao arbítrio do Poder Público. Esse modo de
encarar o direito à saúde chega a ser mesquinho e parco de sensibilidade. Gomes
Canotilho e Vital Moreira colocaram bem a questão, pois, como ocorre com os
direitos sociais em geral, o direito à saúde comporta duas vertentes, conforme
anotam: “uma, de natureza negativa, que consiste no direito a exigir do Estado (ou
de terceiros) que se abstenham de qualquer acto que prejudique a saúde; outra, de
natureza positiva, que significa o direito às medidas e prestações estaduais visando
a prevenção das doenças e o tratamento delas.” 132
No direito brasileiro, o vínculo entre saúde e meio ambiente se aperfeiçoa
no artigo 225, caput, da Constituição Federal instituindo que “todos têm direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial
à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”
Depreende-se do texto constitucional que a proteção ambiental em si está
vinculada diretamente à ordem social e, enquanto meio ambiente ecologicamente
equilibrado, como direito social do homem.
132 Op. cit., p. 767/768.
173
O meio ambiente e a saúde se entrelaçam por fazerem parte da mesma
tutela jurídica, ou seja, na proteção, não a qualquer meio ambiente, mas daquele
que é responsável pela qualidade de vida (meio ambiente qualificado) e da saúde
(bem-estar e segurança do homem).
Como direito fundamental amparado pela Constituição Federal, na lição
de Ieda Tatiana Cury, “os direitos sociais derivam, em última análise, do princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana, através de uma linha de eticidade.
Assim, constata-se que não há distinção de grau entre os direitos sociais e os
direitos individuais, pois ambos são elementos de um bem maior: a dignidade da
pessoa humana, que tem duas faces, conectadas sobretudo por sua fundamentação
ética, universal, comum: a liberdade e a igualdade.” 133
Mais do que nunca, fica claro, singular mesmo, que a tutela do direito
material coletivo preconiza a inclusão social, calcado no direito à vida, na dignidade
da pessoa humana, na ética e democracia e com a própria sobrevivência da raça
humana.
Para concluir e consolidando a saúde como direito fundamental
constitucional e principiológica às demais legislações coletivas, vamos nos apropriar
dos ensinamentos de Maria Stella Gregori ao afirmar que “a Constituição Federal de
1988 inaugura uma nova era, ao recolocar a sociedade brasileira no plano
democrático e lançar os direitos sociais como valores supremos do Estado
Democrático de Direito. Aos ideais clássicos de liberdade e de igualdade, a
133 CURY, Ieda Tatiana. Direito fundamental à saúde: evolução, normatização e efetividade. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2005, p. 149.
174
“Constituição Cidadã” agrega a concepção da solidariedade social, privilegiando
uma categoria de direitos extrapatrimoniais, afirmando a preponderância do coletivo
sobre o individual, ao incorporar os princípios da dignidade da pessoa humana, do
valor social do trabalho e da livre iniciativa, da solidariedade social e da igualdade
substancial.” 134
E arremata que “no campo da saúde, ela determina ser direito de todos e
responsabilidade do Estado, assegurando o acesso universal e igualitário às ações e
serviços para a promoção, proteção e recuperação da saúde. Mas é fato que a
mesma Constituição também autorizou a atuação da iniciativa privada na prestação
de serviços de assistência à saúde.” 135
134 GREGORI, Maria Stella. Planos de saúde. A ótica da proteção do consumidor. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007 (Biblioteca de direito do consumidor; v. 31), p. 195. 135 Op. cit., p. 195.
175
XIX. DIREITO MATERIAL COLETIVO: CONTROLE ESTATAL
PELO PODER DE POLÍCIA
O desenvolvimento deste tema também se mostra desafiador, pois, à
medida que o estudo se aproxima dos conceitos básicos de controle estatal pelo
poder de polícia, aplicando-os às garantias individuais postas em nossa Carta
Política (art. 5º), esbarramos em questões que nos deixam inquietos, principalmente
quando verificamos que estes direitos individuais, tomados como basilares para o
exercício da cidadania, são restringidos em nome da coletividade.
Poder de Polícia, nos ensina Hely Lopes Meirelles, “é a faculdade de
que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de
bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio
Estado.” 136
Também é precioso o conceito trazido pelo mestre Celso Antonio
Bandeira de Mello dizendo que “a atividade estatal de condicionar a liberdade e a
propriedade ajustando-as aos interesses coletivos designa-se poder de polícia”. 137
Com efeito, pode-se numa leitura superficial, vincularmos o poder de
polícia como mecanismo de repressão onde os direitos individuais, sejam eles
relativos às liberdades pessoais ou patrimoniais, seriam mitigados em nome do
136 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 27ª ed. atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 127. 137 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 16ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 709.
176
coletivo. Mas tal visão está equivocada diante do mecanismo legal que rege os atos
da polícia administrativa, em sua forma concorrente ou não nas três esferas estatais
(federal, estadual e municipal). Neles sempre há um sentido amplo e um sentido
estrito, o primeiro, sendo quaisquer atos dos Poderes Legislativo e Executivo e, o
segundo, relacionados diretamente às intervenções propriamente ditas
(regulamentos, licenças, etc.).
Alguns autores, como Celso Antonio Bandeira de Mello, 138 preferem
dividi-los em atos negativos e positivos, aqueles, como o próprio nome elucida, são
atos impostos pela polícia administrativa aos particulares envolvendo obrigações de
não fazer, por exemplo, demolição de construção clandestina localizada em área de
mananciais e, estes, em sentido contrário, retomando o exemplo dado, a saber, a
preservação do bem de interesse coletivo, a preservação do manancial ou mesmo
na ação ativa em obter licenças, alvarás, autorização prévia, enfim, ações anteriores
a determinado ato.
Dessa forma, pelos conceitos aqui trazidos e pelas divisões existentes,
assim como nos preleciona o Diógenes Gasparini, o objeto do poder de polícia não é
a repressão ou censura, destina-se “a prevenir o surgimento (quando ainda não
aconteceu) de atividades particulares nocivas aos interesses sociais ou públicos ou
a obstar (paralisar, impedir) seu desenvolvimento” 139. Em singelas palavras, o dano
à coletividade.
138 Op. cit., p. 716/717. 139 GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 9ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 124.
177
Note-se, portanto, o poder de polícia não retira o direito individual, mas
apenas lhe dá contornos de forma que não fira os direitos coletivos. E é com este
espírito que devemos analisar o tema relacionando-o a todas as atividades
humanas, inclusive empresariais. Não como mecanismo de barrar a criação, o
aviamento empresarial, mas que essa atividade seja exercida de tal modo que sejam
respeitadas todas as garantias individuais, sem afetar de forma negativa a
coletividade.
O exercício da livre iniciativa não pode afetar o bem-estar social.
Portanto, devemos partir do princípio que a Carta Política de 1988, em
seu artigo 170, do ponto de vista dos princípios gerais da atividade econômica,
cuidou de preservar a livre iniciativa, valorizando o trabalho humano, visando sempre
à justiça social.
O termo “livre iniciativa” não pode ser tomado, etimologicamente
falando, em sua essência, porque, embora garantido constitucionalmente, não pode
ser exercido indiscriminadamente, sem função social, buscando apenas o lucro pelo
lucro, socializando apenas riscos, ou seja, sem qualquer comprometimento com a
coletividade.
Por esse motivo que, por exemplo, o artigo 170, traz parágrafo único,
preceituando que esse direito à livre iniciativa e o exercício de qualquer atividade
econômica, independente da autorização de órgão público, será estreitado nos
casos previstos em lei.
178
Parafraseando León Duguit140, a livre iniciativa não é mais o direito
subjetivo do particular; é a função social do detentor da riqueza.
Note-se aqui que o legislador preocupou-se em salvaguardar a
regulamentação de atividades que, segundo verificasse a necessidade social, até
mesmo para que a lei cumprisse sua função axiológica, não atingissem os preceitos
coletivos. De lembrar que o próprio artigo 170, traz o inciso V, referente à promoção
pelo Estado da defesa do consumidor, dentre outros interesses difusos e coletivos.
Conclui-se, por esse motivo, que a livre iniciativa não exara a liberdade
que o termo apregoa num primeiro momento, até porque, quando o legislador impôs
que esse exercício seria realizado nos termos legais, deixou ao legislador
infraconstitucional regular seus termos aos interesses sociais, até mesmo por estar
mais próximo das bases sociais.
O Estado, por seu turno, de forma inderrogável, exerce o poder de
verificação do cumprimento dessas leis, com intuito preventivo (expectativa de dano)
e não meramente coercitivo (dano efetivo), impondo limites, fronteiras legítimas, para
sua compatibilização com o bem-estar social.
O Estado é detentor de todo o mecanismo legislativo e executivo de
modo a promover e exigir a regulamentação das atividades humanas, inclusive com
a faculdade de delegar esse poder aos entes que desejar, talvez até com as
140 DUGUIT, Leon. Las Transformaciones Generales del Derecho Privado. Madri: Posada, 1931, p. 37.
179
entidades particulares ou não-governamentais, por exemplo, PROCON, Ministério
Público, enfim, está em suas mãos o caminho com as diretrizes legais.
Verdade é que determinada atividade humana pode ser exercida de
infinitas formas, todas elas, de certo, capazes de atingir seu objetivo maior, resta
apenas dar-lhe contornos para que sua ação não mitigue os valores coletivos
protegidos por lei, sendo certo também que essa prévia fiscalização, mecanismo a
ser criado pela administração pública, poderá regulá-la sem se perder a criatividade,
lucratividade ou competitividade.
Cabe e caberá, enfim, a autoridade pública, mesmo a eventual ente
delegado, zelar pela boa atuação desse poder de polícia.
180
XX. DIREITO MATERIAL COLETIVO E A JUSTIÇA
Não fica difícil de imaginar que nosso Poder Judiciário, desde os
primórdios, e não poderia ser diferente, esteve alicerçado em relação lineares ou
reducionistas. Aliás, a sua própria organização administrativa indica e autoriza essa
assertiva.
Tal condição, de forma alguma, até então, pôde ser tomada como uma
deficiência, pois, desde Descartes, o próprio universo e todas as ciências passaram
a ser vistas como um grande mecanismo, fragmentado.
O Estado, representado pelo Poder Judiciário, permitia o acesso à justiça
calcado no litígio singular.
Não se confunda, obviamente, com a questão da pluralidade de litigantes
(autores ou réus), mas sim, a ciência processual voltada apenas para a controvérsia
bilateral.
Com o surgimento de interesses e direitos holísticos, transcendeu-se à
bilateralidade processual e as decisões tomadas para um podem exarar reflexos a
todos (erga omnes).
Nesse novo paradigma judicial, a permissão ao acesso à justiça deverá
estar adaptada à solvência de questões multilaterais.
181
Reitera-se, para o direito material coletivo, não se exige somente
coletividade representada no pólo ativo ou passivo de determinada demanda, mas
que a magistratura e toda a administração judiciária estejam preparadas para a
expansão de suas decisões (principalmente nas ações de cunho coletivo).
Celso Antonio Pacheco Fiorillo considera importante que “em pleno século
XXI e principalmente no Brasil, que o Poder Judiciário ganha extraordinária
importância em nosso direito positivo, passando a ser observado na condição de
Estado Fornecedor de serviços vinculados à apreciação de toda e qualquer lesão ou
ameaça a direitos de brasileiros e estrangeiros residentes no País, fundamentais
num Estado Democrático de Direito.” 141
Muito embora o Poder Judiciário tenha laborado sempre com a diligência e
a responsabilidade social adequada, sem prejuízo, os processos envolvendo
questões holísticas forçosamente, pela magnitude dos valores envolvidos, são
questões morais e econômicas específicas.
Atuais as palavras de Gregório Assagra de Almeida ao constatar que “o
que se verifica é que hoje já se tornou quase pacífico, na doutrina de vanguarda
nacional e estrangeira, que é impossível tutelar os direitos coletivos por intermédio
das regras do direito processual civil clássico, as quais foram concebidas por uma
filosofia liberal-individualista arraigada, ainda, no século XIX.” 142
141 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Princípios do processo ambiental. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 24. 142 Op. cit., p. 17.
182
Nesse sentido, bem adverte Celso Fernandes Campilongo, “o correlato
social da paralisia decisória – ou das decisões de difícil implementação e aceitação –
é a inviabilidade do consenso. Um sistema representativo irresponsável, num
contexto de erosão das identidades populares coletivas, só faz alimentar a
fragmentação do Estado e da sociedade. A ineficiência e irracionalidade decorrentes
desse estilhaçamento institucional resulta não apenas em impasses decisórios e na
incapacidade do Estado tornar efetivas suas leis, mas igualmente, na crença de que,
nessas condições, os “pactos sociais”, os projetos que ultrapassem a mera
administração diária das crises, as práticas que resgatem o interesse coletivo e o
bem público são de árdua viabilização.” 143
Se o direito necessita adotar uma visão pluralista e multidisciplinar, o
Poder Judiciário deve acompanhar essa mudança, criando novos departamentos e
especialidades, todavia, sem que a mesma caminhe desassociada dos demais, sob
pena de fragmentar sua posição e distanciar-se da sociedade.
Como vimos anteriormente, uma questão jamais é isolada, mas fazer parte
do todo.
O estudo das leis, principalmente a aplicação hermenêutica, deverá ser
alterado pelos operadores do direito de maneira a adequá-lo ao novo paradigma
judicial e processual.
143 CAMPILONGO, Celso Fernandes. O direito na sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 59.
183
Com efeito, distantes as realidades acerca da interpretação, uma, tratando
do significado de um texto legal quando afirmado e, outra, sobre o resultado final da
lei.
Vimos que o indivíduo não pode ser mais visto em sua forma unitária, pois,
embora possua dois grandes grupos de identidades, a privada e a coletiva, dele
emanam como identidades, tantas quantas forem os relacionamentos que o liguem a
outros indivíduos ou grupos. Em certo momento, por exemplo, é contribuinte,
proprietário de imóveis, empregador, noutro é consumidor, membro de certo
sindicato ou associação, enfim, ao longo de sua história, ainda que
momentaneamente, poderá deter identidades diversas.
Dentro dessa ótica, ressaltando nossas considerações anteriores acerca
de um novo ramo do direito, questiona-se se existe somente a hermenêutica jurídica,
como instrumento de interpretação de leis, com espírito exclusivamente finalista ou
linear, ou podemos considerar a hermenêutica como mecanismo de apreensão das
aspirações do homem, com ênfase ao social, ao antropológico ou filosófico, ou seja,
interdisciplinar ou multidisciplinar.
Interessa-nos, portanto, a hermenêutica como mecanismo de produção
intelectual, como atividade do jurista.
Hermenêutica, antes de ser uma técnica metodológica de interpretação de
leis, é técnica de interpretação em sentido lato, que será adotado a partir deste
momento para o desenvolvimento deste tema.
184
O grande desafio atual da hermenêutica é a integração de conceitos e,
com a consolidação das legislações materiais coletivas, identificar a amplitude de
determinado fenômeno social normatizado, sobretudo, para atender a visão holística
que o homem deve ter de si mesmo.
Celso Ribeiro Bastos afirma que “interpretar é atribuir um sentido ou um
significado a signos ou a símbolos, dentro de determinados parâmetros. É que a
linguagem normativa não tem significações unívocas.” 144
A função do jurista, do cientista do direito, enquanto intérprete, passou da
objetividade mecânica (reducionista ou linear) para aquela inerente à subjetividade.
Nesta, não se extrai o sentido normativo do texto legal, mas há a atribuição de
signos (semiótica).
Em sentido amplo, verificamos, diante do dinamismo social, uma infinidade
de manifestações, sendo que, algumas delas surgem e da mesma forma que
nascem, desaparecem; outras perduram, mas não são significativas; e temos
aquelas que, além de perdurarem, trazem substanciosas alterações sociais.
Nesse sentido, criticando o caráter reducionista comumente aplicado à
hermenêutica, Margarida Maria Lacombe Camargo afirma que “o direito, como obra
humana, é compreendido, e não explicado, a partir de relações necessárias de
causa e efeito, como se para cada problema jurídico houvesse uma única,
inequívoca e verdadeira resposta. O direito, como as demais ciências do espírito,
144 BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 3ª ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002, p. 28.
185
corresponde a um acontecer, que cabe ser interpretado segundo os valores que
comandam a sua ação, tanto interna quanto externamente. Internamente seria a
própria ratio legis e, externamente, a inserção histórica do intérprete, se é que
ambas as posições podem vir desassociadas. A existência do direito conforma-se,
assim, a uma tradição cultural determinada, mas que não pode ser encarada sob
uma perspectiva reducionista, uma vez que admite valores universais válidos
também para outras épocas e outros lugares.” 145
A proposta, portanto, é a ruptura da hermenêutica tradicional, com caráter
essencialmente técnico-normativo, para apresentá-la como técnica de
problematização e interpretação universal, o que nos trará grande contribuição
diante da hipercomplexidade e intercontextualidade da ciência do direito, sobretudo
para aplicação das leis e codificações coletivas.
Devemos adotá-la como método de interpretação de múltiplas ciências,
apropriando-se o intérprete-jurista de todas essas experiências interdisciplinares ou
multidisciplinares.
Para que o leitor tenha melhor sentido do que lhe é proposto, vamos tomar
como exemplo as relações de consumo.
Verdadeiramente, há muito verificava a necessidade de se regular as
relações de consumo diante do dinamismo da economia e a institucionalização da
sociedade do crédito em massa.
145 CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 20.
186
Mas isto não se deu de forma instantânea, mas se apresentou inicialmente
como um fenômeno social como outro qualquer que, pelas características singulares
que trazia, fazia necessário o controle.
Por muito tempo, nossos doutrinadores mais ilustres se debruçaram sobre
o tema e, todos com o espírito colaborativo, cada qual em sua seara, passaram a
tratar o assunto à luz da legislação civil, outros da comercial, alguns ainda como um
direito misto, com a mescla subsidiária de legislações e ramos do direito, mas todas
as tentativas se mostraram insuficientes para traduzir as aspirações sociais e
converter a linguagem social para a linguagem normativa.
Após todas essas salutares e contributivas tentativas, alargou-se
metodológica e cientificamente a experiência e, para que fosse atendido o desejo
social com o controle dessas relações, senão perfeito, mas suficiente, rompeu-se
com o tradicional e foi necessário inovar e interpretar corretamente o que estava
ocorrendo no seio social.
Ao interpretar o fato social, aplicando-lhe o devido valor, houve primeiro,
por exemplo, a necessidade de nomearem-se os titulares atribuindo-lhes identidades
(consumidor, fornecedor e aqueles terceiros a eles equiparados), seu caráter
econômico (definindo produtos e serviços), fundindo o risco social civil e penal (a
responsabilidade pelo fato do produto e serviço), sua oferta em massa e o dever de
informação (publicidades e informações em geral), enfim, antes mesmo de
transformar o fenômeno social da relação de consumo em norma com a elaboração
da Lei 8.078/90.
187
Hoje, a interpretação do fenômeno das relações de consumo possui
diversificado espectro de conceitos a ser analisado, cujas decisões devem exarar ou
externar para toda a coletividade, não somente para um único litígio.
Lenio Luiz Streck, estudando a hermenêutica filosófica de Hans Georg
Gadamer, corrobora o quanto aqui proposto, quebrando o paradigma da
interpretação tradicional, elucidando que “a pergunta acerca de como é possível o
conhecimento e quais são as suas condições, passa a ser um problema menor
dentro da globalidade da questão referente ao compreender da existência no
horizonte de outros existentes. O que a nova hermenêutica irá questionar é a
totalidade do existente humano e a sua inserção no mundo.” 146
Houve a aplicação da hermenêutica interdisciplinar ou multidisciplinar
para, além de tornar mais compreensível o fenômeno social averiguado, distinguiu-o
dos demais de maneira a salientar a sua importância, seus reflexos, a sua
capacidade de manipulação, seus níveis de intensidade, ou seja, dele depreender
predicados que sugeriam a necessidade de controle além daquele determinado
litígio singular.
Rompe-se a hermenêutica tradicional (jurídica – interpretação de leis) e,
aplicando a hermenêutica holística, interdisciplinar/multidisciplinar, efetivamente
desvenda-se o que estava oculto naquele fenômeno, revelando-se o indivíduo ou
grupo de indivíduos, atribuindo-lhes identidades, confirmando sua existência e a
relação que os vinculava.
146 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 3ª ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 187.
188
Celso Ribeiro Bastos comenta ainda que ao atribuir um significado,
“denota-se a característica integrativa interpretativa.” 147
A hermenêutica, reiteramos, em sentido amplo, ao tomarmos como
exemplo as relações de consumo, é holística à medida que utilizou de infinitas
ciências para traduzir em linguagem tudo que aquele fenômeno social ligava o
homem ao real, com função preponderante criadora, inovadora.
Efetivamente, traz benefícios na concreta aplicação das leis, pois
conhecerá o fenômeno em seu sentido mais alargado e não somente legal.
147 Ob. cit., p. 28 (nota de rodapé).
189
CONCLUSÃO
A filosofia holística, concebida por Fritjof Capra afirma que, após um
período de decadência ou crise, sobrevém um ponto de mutação148 que culminará
em uma nova realidade.
Afirma também que algo que era poderoso, por diversas influências,
principalmente de cunhos sócio-culturais e econômicos, se tornou naturalmente
obsoleto frente aos movimentos sociais emergentes, verificando-se o surgimento de
algo novo igualmente poderoso em relação ao primeiro.
Essa movimentação é natural e surge espontaneamente, não pela força,
embora seja facilmente percebida e sofra resistência quanto a sua aceitação, mas
sim fruto da associação da rejeição da velha estrutura, conseqüente transformação
do antigo e surgimento de algo novo. A rejeição, a transformação e o surgimento se
harmonizam resultando em benefício ao social.
Verificamos ao longo deste estudo justamente a corroboração e aplicação
dessa filosofia holística para o direito, calcada na obsolescência do direito público e
privado em relação às novas necessidades sociais emergentes que não foram e não
são tuteladas exclusivamente por estes dois ramos do direito que dominaram os
pensamentos modernos da ciência do direito até muito pouco tempo.
148 CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. Tradução Álvaro Cabral. São Paulo: Editora Cultrix, 1982.
190
Observamos também que essa velha concepção do essencialmente
público e privado deveria e deve ser modificada, quiçá rejeitada, exigindo-se dos
cientistas do direito, nova maneira de pensar. Negar essa mudança seria como
navegar contra os movimentos sociais que surgiram naturalmente, não pela força,
mas pela intersubjetividade do diálogo social.
A rejeição aqui sugerida não é da inexistência do direito público ou do
privado, mas sim das idéias fixas apenas nestes dois ramos do direito.
O termo “mutação” foi muito bem empregado pelo filósofo porque reflete
com precisão, como fizemos na aplicação à ciência do direito, principalmente ao
emoldurarmos o direito material coletivo, aos predicados próprios da mutabilidade
(transformação, instabilidade e volubilidade) que está sujeita esta ciência social.
Portanto, que não se abstraia a concepção superficial da “mutação” como
algo que, por exemplo, seria uma aberração. Efetivamente não!
A adequação do termo se dá, sem perder a essência do pensamento de
Capra e ainda retomando pontos basilares deste estudo, está na nova concepção do
não falecimento do direito público e privado, mas surgimento de algo novo, o direito
material coletivo brasileiro.
Esta concepção do novo não se restringe a abolir a velha concepção,
calcada exclusivamente no binômio público-privado, mas aceitar que não é mais
suficiente para tutelar as necessidades da sociedade, principalmente do coletivo
191
(sentido amplo), até porque, de certo, algo de sua essência se agrega aos novos
conceitos aqui trazidos.
A rejeição dos ideais fundados apenas naquele binômio, a recepção dos
velhos conceitos e sua agregação ao novo, mostra o caminho de união destes
ramos, mas com a autonomia do direito material coletivo, por seu caráter
principiológico e holístico.
A transposição de paradigmas nos traz a idéia de inter-relação entre esses
ramos, sugerindo um trinômio público-privado-coletivo.
Conclui-se este trabalho, portanto, redirecionando o cientista do direito,
que estava acostumado a estudar uma ciência, embora com as nuances próprias
das ciências sociais e de suas inexatidões, em sentido linear, como num gráfico
cartesiano, para uma ciência holística (que compõe o universo científico).
Descartes teorizou o racionalismo que consistia na consideração do
problema do método como garantia da obtenção da verdade e pelo dualismo
metafísico. Isolava o fenômeno ou conceito da totalidade em que apareciam.
Essa concepção cartesiana influenciou todas as ciências, inclusive a do
direito à medida que aplicou uma visão reducionista da realidade segregando toda a
ciência em dois ramos (público e privado), ao ponto hoje, esse reducionismo ser
confundido como método científico.
192
Na verdade, o reducionismo é uma conseqüência da aplicação dos ideais
de Descartes ao dividir em partes os elementos ou conceitos e separá-los do todo.
Durante centenas de anos, por exemplo, a degradação ambiental, os
mecanismos de produção em massa, da saúde do consumidor, enfim, não eram
estudados, por sua influência nos diversos sistemas jurídicos contemporâneos, com
relação ao todo, motivo pelo qual, restringiam-se as questões, até mesmo de forma
forçada, ao privado e ao público quando, na verdade, eram coletivas.
Desse modo, diante dos predicados jus-filosóficos do direito material
coletivo estudados, os problemas e soluções jurídicas foram tomados
exclusivamente em sentido público e privado (fechado a qualquer outra vertente),
sedimentado em códigos binários de comunicação lícito/ilícito, ter/não ter, sem
proposições suficientes para satisfazer essa distribuição e tutelar bens que não
podem ser tomados em visão estreita, reducionista, mas ampla.
Os elementos tutelados, citando exemplos anteriores como o meio
ambiente e consumo, não têm e não podem ser estudados de forma reduzida,
apartado do todo. O homem somente existe em razão do meio ambiente equilibrado
e um consumo sustentável.
A questão deixa de ser privada ou pública e passa ser coletiva.
O desafio lançado no início deste estudo, acerca da aceitação de um novo
ramo do direito e seus fundamentos, vem para auxiliar na solução de uma crise sem
193
precedentes. Esta crise é social, emocional, financeira, cultural, ética, moral, enfim, é
uma crise não caracterizada pelo imediatismo, pois a voracidade pelo acúmulo de
riquezas, passando pelas diversas fases da história da riqueza do homem, pôs em
risco a sua própria existência à medida que mitigaram valores ecológicos, morais,
religiosos, das minorias, da propriedade, do consumidor, ou seja, aviltou a própria
coletividade ao reduzir os temas ao privado e ao público.
A questão é: não estaria a ciência do direito vivendo uma crise também
sem precedentes ao arraigar-se no reducionismo dessas duas únicas grandes
vertentes legais (pública e privada) quando na verdade deveria ter uma visão
holística de si, instrumentada pela autonomia do direito material coletivo?
Logo no início desta dissertação, emolduramos a insuficiência do direito
posto apenas na legislação pública e privada e a tardança com que se debruçavam
os cientistas nas questões coletivas.
Talvez daí viesse a necessidade de adoção de mecanismos processuais
coletivos mesmo antes de estudarmos mais detidamente os institutos do direito
material coletivo.
Parece-nos óbvio, por tudo quanto exposto, que essa nova concepção de
direito (direito material coletivo) sofrerá sérias críticas, mas, se nos voltarmos a um
passado não tão distante, veremos que os cientistas que participaram da descoberta
atômica também sofreram ao exibir essa nova concepção. Essas críticas, entretanto,
redundaram em debates que somaram para a revolução da física.
194
É certo que não há aqui a mesma pretensão, guardando-se ainda as
devidas proporções, mas parece ser de fácil percepção a carência de estudos sobre
o tema e a necessidade emergencial de elevarmos a discussão do reducionismo
diante da insistência de examinarmos temas próprios da coletividade exclusivamente
nas esferas pública e privada.
Dessa forma, por exemplo, se falamos em crise social, emocional,
financeira, cultural, não falamos de crises em separado, mas de uma única crise que
envolve a existência do homem. E a ciência do direito participa dessa crise.
Dentre todos os tópicos estudados, visitando diversos temas holísticos
que, em nossa visão delimitam o direito material coletivo, ficou claro que devemos
modificar conceitos básicos do direito, a sua linguagem, o modo de pensar dos
cientistas e dos operadores do direito e também concebermos a visão holística para
o direito, apresentando como nova sistêmica a inter-relação entre o direito público-
privado e o direito material coletivo. Do singular ao coletivo.
Se o direito processual coletivo, até pela emergência em solucionar os
problemas coletivos, se mostra doutrinariamente mais adiantado, o direito material
coletivo, como aqui se apresenta, é o ponto de transformação que torna o direito
sustentável em si mesmo, holístico, à medida que deixa de reduzir as questões
tuteladas e conceitos de forma apartada do todo e passa ter visão total, um novo
paradigma.
Eis o ponto de mutação apregoado por Capra.
195
Quando afirmamos que o direito é antropocêntrico, sua ciência não pode
estar e não está divorciada da crise global retratada, mas sim se substancia apenas
numa de suas facetas, faz parte do todo.
Compartilhamos da lamentável visão que o homem é instrumento de sua
própria ameaça.
Se o homem é senhor do meio ambiente como concebido por Descartes e
dele busca extrair toda sorte de riquezas, ao degradá-lo, na visão reducionista
esquece que ele próprio faz parte do ecossistema global e, portanto, conspira contra
si.
O produto inevitável da crise é o exaurimento do próprio homem e, se
questiona, qual seria o atual papel do direito para sanar, equilibrar ou minimizar essa
ameaça?
Seria desnecessário descrever o que ocorre no mundo. Porém,
atualmente, talvez pela carência de mecanismos mais adequados de proteção (daí o
surgimento do direito material coletivo e a concepção de sua autonomia), inclusive
jurídicos, tendemos a aceitar certas “evoluções” com passividade.
As indústrias farmacêuticas comercializam saúde e somos reféns de
tratamentos que, em nome de um benefício atual, podem esconder um malefício
futuro. Os alimentos transgênicos desafiam a genética e impõe ao mundo o
fornecimento de alimentos dos quais desconhecemos eventuais riscos às gerações
196
futuras. Em nome do lucro, sujeitam-se consumidores a apenas comprar, sem direito
a informação acerca do que se compra. As maiores riquezas mundiais se recusam a
firmar acordos em prol da ecologia somente para extração de bens energéticos não
renováveis. Em nome do luxo, construímos em áreas de mananciais. Em nome da
força de trabalho, mitigamos as condições de trabalho.
Este é o retrato (feito com suaves pinceladas)!
Os efeitos da publicidade e das mensagens informativas voltadas para o
consumo de massa são devastadores e desconhecemos completamente seus
riscos, as grandezas que estão envolvidas nesta crise e a insegurança que vivemos.
Crise esta que, reiteramos, a ciência do direito faz parte.
A publicidade é atividade econômica de grande expressão e movimenta
riquezas impressionantes, inclusive gera riquezas que nem mesmo podem ser
traduzidas em cifras, tamanhas sua magnitude.
Nesse sentido, preciosas as palavras do físico inglês Michael H.
Goldhaber ao mencionar o surgimento de uma nova riqueza a “economia da
atenção” alertando que “uma nova economia, espantosamente diferente de qualquer
uma que conhecemos – uma economia que ninguém esperava, que ninguém pediu
– está surgindo ao nosso redor. Ela está fadada a continuar, até finalmente
consumar a conquista de todos os nossos destinos econômicos (...) Chamo o que
está surgindo de economia da atenção pelo simples motivo e que seu principal
ingrediente e força motriz será a tentativa de obter e preservar – não dinheiro, não
197
bens materiais produzidos em fábricas, não informações. Mas o único artigo que é
tanto imensamente desejável quanto singularmente escasso – a atenção prestada
por outros seres humanos.” 149
Compartilha desse pensamento Herbert A. Simon nos ensinando que “o
que a informação consome é óbvio: consome a atenção de quem a recebe. Por isso,
uma grande riqueza de informações cria pobreza de atenção e a necessidade de
alocar efetivamente a atenção em meio a uma superabundância de fontes de
informação que podem consumi-la.” 150
Sobre os alimentos transgênicos, a Conferência do Monte Asilomar, nos
EUA, em 1975, formalizou essa decisão e promulgou a necessidade de se
manterem sob rigorosas condições de proteção e de isolamento todos os
experimentos de recombinação genética e os organismos deles resultantes pelo
tempo necessário à produção de certezas de que não seriam nocivos à humanidade
e ao meio ambiente.
Fica claro, portanto, o desconhecimento total dos efeitos, principalmente
futuros, das modificações genéticas em alimentos e animais, pois estudos já indicam
que podem criar resistência a antibióticos e provocar a transferência desta
característica para bactérias existentes no organismo humano, tornando-as uma
ameaça sem precedentes à saúde pública. Cobaias alimentadas com transgênicos
têm apresentado alterações em seu sistema imunológico e em vários órgãos vitais.
149 GOLDHABER, Michael H. The Attention economy: stars, fans, and the new basis of effort and desire that is coming life in the post-industrial, post-money, post-material cyberspace era. Aspen Institute, 1.996. 150 SIMON, Herbert A. Computers, communications and the public interest. Martin Greenberger (org.). Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1971, p. 40/41.
198
Alergias alimentares podem aparecer como decorrência da introdução de genes
estranhos nos alimentos que passam a apresentar novas proteínas, enquanto
substâncias tóxicas existentes em quantidades inofensivas nos alimentos podem ter
sua ação potencializada.
Tais conceitos foram trazidos para dar dimensão dos riscos coletivos que
vivemos.
No caso específico da riqueza movimentada pela publicidade e
paralelamente a voracidade que atinge nossas vidas, pois, não basta que a
publicidade nos traga certa carga de informação, porque este é seu objetivo, mas
pela sua diversidade, havendo saturação do público alvo, torna-se pobre, tendendo
a inocuidade. Necessita ter persuasão suficiente, não somente para fomentar o
aviamento empresarial, mas para captar a atenção desse segmento, de modo que,
cedo ou tarde, venha a dela se lembrar, é a captação da atenção, de valor
inestimável!
O equilíbrio é o direito material coletivo que surge no de mutação da
transposição do paradigma reducionista ou linear para o holístico.
No Brasil, a Carta Política de 1.988, em seu artigo 170, do ponto de vista
dos princípios gerais da atividade econômica, da qual todas estão atividades
subordinadas, cuidou de preservar a livre iniciativa, valorizando o trabalho humano,
visando sempre a justiça social.
199
Como estudamos, o legislador preocupou-se em salvaguardar a
regulamentação de atividades que, segundo verificasse a necessidade social, até
mesmo para que a lei cumprisse sua função axiológica, não atingissem os preceitos
coletivos, de lembrar que o próprio artigo 170, elenca ainda o inciso V, referente à
promoção pelo Estado da defesa do consumidor, dentre outros interesses coletivos.
As atividades econômicas, portanto, devem ser submetidas a contornos
que não aviltem o bem-estar social e, diante do que até aqui foi analisado, pela
informação recebida em massa, pela disputa acirrada da atenção humana, pela
degradação sob tortura do meio ambiente, pelas incertezas científicas da utilização
de medicamento e alimentos geneticamente modificados, pelas más condições de
trabalho (são alguns exemplos apenas) fica fácil reconhecermos o surgimento de
patologias, como a propaganda abusiva, a poluição desenfreada, venda de produtos
com vícios à saúde, etc.
Note-se que em nenhum momento estamos a falar em proibição desta ou
daquela atividade econômica, muito menos as apresentando como males
insanáveis, como cancros sociais, mas sim apregoando a necessidade de satisfazer
e tutelar interesses privados, públicos e, agora, coletivos.
Devemos aqui ressaltar que o Código de Defesa do Consumidor não se
preocupou somente com o dano consumado, mas a mera possibilidade deste,
ressaltando-se o princípio da boa-fé objetiva e da dignidade da pessoa humana.
200
Verdade é que todas as atividades econômicas (aqui trazidas no termo
amplo, inclusive aquelas promovidas pelo particular e pelo Estado, não as
vinculando essencialmente aos termos comerciais ou empresariais) podem ser
exercidas de infinitas formas, todas elas, de certo, capazes de atingir o objetivo.
Resta apenas dar-lhes contornos para que não mitiguem os valores coletivos
protegidos por lei.
Persiste a pergunta então, o direito está preparado para essa tutela?
Ainda melhor, o direito privado e o público, com seus olhares lineares e códigos
binários de comunicação, teriam instrumentos necessários e suficientes para a
eficaz tutela da sociedade, principalmente com relação aos bens coletivos?
Ousamos afirmar que, justamente por conter a crise atual problemas
holísticos, desvendamos apropriadamente a dinâmica deste estudo ao apontar que o
direito material coletivo é a direção para a eficaz tutela das questões sociais que
superam os moldes próprios da singularidade, do reducionismo e da linearidade do
público e do privado.
Repita-se, não pregamos o falecimento do direito público e privado, mas
apenas a sua insuficiência em solucionar problemas de esfera coletiva em sua
essência.
Teriam o direito público e privado, que subscrevem percepções estreitas
ou reducionistas da realidade (ao menos frente à realidade coletiva), próprios dos
201
interesses individuais e do Estado, abarcar mecanismos de forma a regulamentar
grandezas como da publicidade, da degradação ambiental, do consumo em massa?
Justifica-se dizer que, portanto, de forma insofismável, está o direito
vivendo uma crise diante das emergências sociais e há tempos necessita modificar
seus conceitos básicos e trazer uma nova concepção da realidade, além daquela já
abarcada pelo direito público e direito privado (onde lhes couber). A visão de um
sistema total, holístico, instrumentado pelo direito material coletivo (com
características ímpares).
Embora o estudo do direito processual coletivo tenha tomado a dianteira,
justificada pela urgência de tutela, o direito material coletivo, ainda que a poucos
passos atrás, demarca a vanguarda dos estudos da ciência do direito.
Daí porque não podemos mais aceitar o estudo da ciência do direito, muito
menos o direito material coletivo (seu instrumento) com visão fragmentada, mas
necessariamente buscarmos novas frentes de soluções. O direito material coletivo é
o elemento que faltava para integração aos demais ramos do direito para suprir essa
lacuna, formando um todo.
Insistir em soluções lineares ou reducionistas para problemas sociais
coletivos é trazer apenas paliativo e, ao invés de solução, transformam os problemas
e lhes dão outra roupagem, mas a ineficácia persiste. Assim, vimos a insuficiência
das normas de direito público e privado para as soluções sociais coletivas.
202
O direito material coletivo apresenta-se como solução, modificando
conceitos básicos da ciência do direito, inserindo novas instituições, novos valores e
novas idéias, suprindo o déficit teórico.
Obviamente, esses novos conceitos do direito material coletivo, trazidos
neste estudo, como qualquer outro ramo do direito, sofrerão desgastes e influências
diversas, principalmente as econômicas e culturais, entretanto, essas vertentes
deverão caminhar sempre em sentido evolutivo.
Aliás, ainda que em sede de conclusão, sobre a influência da cultura sobre
a ciência do direito, é necessário relatar a longevidade da atividade cultural entre os
homens, pois, sem dúvida, esta atividade lhe é inerente assim como sua vida em
sociedade, sua vida em família, sua vida religiosa, seu sentido de conquista e
exploração, enfim, entre todos os atos humanos, a cultura (sentido amplo) é um dos
mais aflorados, confundindo-se com a própria existência humana.
Todavia, como alerta aos cientistas do direito, questiona-se se todo e
qualquer movimento sócio-cultural deve ser considerado e, por conseguinte, objeto
de tutela.
A resposta, salvo posições divergentes, parece ser negativa.
203
Escoramos-nos nas preocupações trazidas por Miguel Reale 151 que
afirma que vivemos em uma época imediatista e ressalta a “vulgaridade intencional”
da humanidade, confirmada, sobretudo, pela carência de valores culturais.
Após breve análise sociológica, esse autor afirma que a humanidade está
sem rumo, sem referências sólidas e ainda se apega aos entulhos ideológicos onde,
em face da menor movimentação social, tende-se a considerar seu objeto como
bem.
Chega a denominar a sociedade moderna de “civilização do orgasmo”,
indicando novamente a sua preocupação pelo processo de vulgarização, o prazer
imediato e momentâneo nas coisas.
Com efeito, vivemos época de preocupação, mas de integração, onde os
movimentos sociais nos levam a fronteiras jamais exploradas, com velocidade quase
que instantânea.
Caberá a sociedade, associada a todos os entes políticos, responder ao
desafio de identificar essas influências como movimentos sociais legítimos, sob pena
de, não o fazendo adequadamente, nivelar por baixo suas afeições, elevando à
condição de bem algo que verdadeiramente é passageiro, insignificante, quiçá,
insubsistente, principalmente para as gerações vindouras, colaborando com a
vulgaridade e instituindo o “culturalismo”, em seu sentido pejorativo, por evidente.
151 REALE, Miguel. Paradigmas da cultura contemporânea. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 135.
204
Em sentido amplo, verificamos, diante do dinamismo social, uma infinidade
de manifestações, sendo que, algumas delas surgem e da mesma forma que
nascem, desaparecem; outras perduram, mas não são significativas; e temos
aquelas que, além de perdurarem, trazem substanciosas alterações sociais.
A proposta desta dissertação, portanto, é a ruptura do tradicional, com
caráter essencialmente linear e reducionista, para apresentar o direito material
coletivo nos problemas holísticos.
Há necessidade, portanto, de alargar-se metodológica e cientificamente a
experiência para dar sentido ao desejo social com o controle dessas relações, senão
perfeito, mas suficiente, rompendo-se com o tradicional, inovando e interpretando
corretamente o que estava e está ocorrendo no seio social.
Observamos, então, que a crise deve ser recebida como meio de
transformação, consubstanciada, para nosso tema, no direito material coletivo.
Os chineses, cuja sabedoria é exaltada, atribuem ao termo “crise” a
expressão composta “wei-ji” que, traduzida, apresenta outros dois vocábulos:
“perigo” e “oportunidade”.
Dessa forma, o direito e sua ciência, como elementos da crise, sofrem o
perigo de se tornarem obsoletos, mas, ao mesmo tempo, tem a oportunidade de
evoluir e, neste capítulo conclusivo, temos material suficiente para afirmar que essa
oportunidade, fundada no direito material coletivo, foi muito bem aproveitada e, o
205
perigo do permanecer na obsoleta e exclusiva visão calcada exclusivamente no
direito público e o privado, é passado.
A crise desafiou o direito pátrio e a resposta foi à altura. Essa resposta
eficaz eleva o direito e estabelece o equilíbrio. Problemas como a publicidade
abusiva, o consumo em massa, a degradação ambiental, dentro outros temas
holísticos estudos, tem instrumentos igualmente eficazes para sua tutela.
Os pólos de forças sociais onde interesses de particulares, dos Estados e
da coletividade se interagem, não podemos, exclusivamente de forma linear,
ministrar soluções para seus problemas, ou seja, em que pese à interação e
formação de uma única crise, aplicar soluções, lineares ou holísticas para problemas
com essas respectivas características.
O surgimento do direito material coletivo, associado ao direito processual
coletivo, mostra antes de tudo a versatilidade desta ciência para solução dos
problemas sociais, inclusive apresentando novos protagonistas (novas identidades),
novos valores, novas idéias, apresentando um sistema jurídico global, o holístico.
O direito material coletivo nos dá melhor visão da atual realidade,
motivando uma urgente revisão das instituições jurídicas.
Embora uma ciência social, portanto, desprovida de exatidão, o direito
deve deixar de ser racional (mecanicista) e dar espaço à intuição. 152
152 Apreensão direta, imediata e atual de um objeto na sua realidade.
206
A ciência do direito, ao pregarmos a interação do direito privado e do
público com o direito material coletivo, deve associar os conhecimentos racionais
com a intuição na busca do controle social.
Se os sistemas jurídicos formam estruturas de múltiplos níveis que
compõe o todo, os ramos do direito, a fim de manter a ordem estratificada do
sistema, também devem submeter-se às exigências do todo para viabilizar esse
próprio sistema.
Retornando ao início deste último capítulo, se associarmos o direito
privado e o púbico e tomarmos o direito material coletivo como o ponto de equilíbrio
que estava ausente no sistema brasileiro, concebe que o homem que é ao mesmo
tempo indivíduo, é parte do Estado, é parte da sociedade e do ecossistema em que
vive, deixa de se auto-ameaçar (pelos menos a minimizando). Seus interesses estão
integrados.
Cada vez mais, ainda buscando o equilíbrio dos interesses dentro da
sociedade, especialmente os coletivos, verificamos que emergem coalizões de todas
as espécies, por exemplo, de ambientalistas, de consumidores, de liberdade ética,
etc.
O direito material coletivo em associação com seus mecanismos
processuais é o instrumento de viabilização dessas coalizões com o público e o
privado.
207
O reducionismo, para a ciência do direito, jamais pode ser confundido
como um método científico à medida que é insuficiente para retratar a realidade.
Ficou claro neste sucinto estudo, a visão de um novo ramo do direito
através do fenômeno primordialmente sociológico. Primordialmente porque desde o
início deixamos claro que não poderíamos atribuir-lhe valores apenas sociológicos já
que a ciência do direito possui predicados intercontextuais e hipercomplexos.
Neste sentido, deve a ciência do direito atualizar-se na mesma proporção
que se aprimoram as relações sociais, muito embora, como salientamos
anteriormente, devemos sempre estar preparados para um déficit entre a
emergência da regulação das ações sociais e o aparelhamento humano e logístico
(também judiciário) para a tutela de direitos que eventualmente surjam dessa rica
movimentação.
O direito sedimentou-se na relação entre particulares, destes com o
Estado e vice-versa, mas observamos que, pelas desigualdades que vertem a todo
instante e que são cada vez mais evidentes, as relações sociais não mais permitem
tratamento isonômico, mas existem situações em que uma ou algumas das partes
envolvidas sempre serão de alguma forma hipossuficientes em relação à outra e
jamais teriam condições de buscar seus interesses com a mesma plenitude que
outros, mormente pelas deficiências técnicas e econômicas, impondo tratar de forma
igual os iguais e de forma desigual os desiguais.
208
O ser humano é sociável por sua própria natureza, mas, por mais que
enalteça a sua individualidade, quando necessário, talvez a maioria das vezes,
acaba sempre se rendendo a necessidade de agrupar-se para a defesa de seus
interesses, tornando-se, senão forte, menos deficiente em relação ao todo.
A questão que sempre sugeriu a inscrição das idéias aqui declinadas e
nelas se conclui esta dissertação diz respeito à deficiência do direito em reconhecer
efetivamente a identidade do coletivo ou da coletividade em si e de seus respectivos
direitos.
Se o direito identificava o direito do particular, do Estado e eventualmente
a relação entre eles, sendo o ser humano sociável por natureza, por que não lhe
atribuir identidade própria (coletiva) e identificar-lhe (aprofundando-se no estudo de
sua materialidade) interesses e seus conseqüentes direitos?
Não poderíamos e não podemos ter um direito deficiente!
A sociedade é composta pelo particular, pelo Estado e, evidentemente,
pelos grupos humanos identificados ou identificáveis (coletividade) e nos traz a
evidente necessidade de vínculos entre eles e o ajustamento do que chamamos de
“contrato social”, além, é claro, das normas éticas e de conduta moral que devem
nortear todas as relações.
209
A efetivação dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos
(direito material coletivo) vem suprir a deficiência do direito neste sentido, abarcando
os interesses, não somente do particular e do Estado, mas também da coletividade.
O brocardo latino ubi societas ibi jus, ou seja, “onde há sociedade deve
haver necessariamente o direito”, nos autoriza a emitir raciocínio que todos os
elementos que compõem a sociedade devem estar tutelados e, caminhando mais
além, devem ser reconhecidas as especificações desses direitos.
Assim, não temos como deixar de exaltar a autonomia do direito material
coletivo, até mesmo como uma das bases que estava ausente neste alicerce ao
ordenamento jurídico brasileiro.
Daí porque ousamos indicar a quebra da dicotomia tradicional existente
entre direito público e privado e sugerimos uma tricotomia direito público-privado-
coletivo, cada qual com sua própria característica e se relacionando
subsidiariamente.
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