Depois de Auschwitz - Eva Schloss

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  • After Auschwitz: A story of Heartbreak and Survival by the Stepsister of AnneFrank

    Eva Scholoss and Karen Bartlett 2013First published in Great Britain in 2013 by Hodder & Stoughton

    Disponibilizao e Converso Pdf: Baixelivros.org

    An Hachette UK company 2013 by Universo dos Livros

    Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998.Nenhuma parte deste livro, sem autorizao prvia por escrito da editora,

    poder ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados:eletrnicos, mecnicos, fotogrficos, gravao ou quaisquer outros.

    Diretor editorial: Luis MatosEditora-chefe: Marcia BatistaAssistentes Editoriais: Raa Augusto e Raquel NakasoneTraduo: Amanda MouraPreparao: Marina ConstantinoReviso: Rodolfo SantanaArte: Francine C. Silva e Valdinei GomesCapa: Zuleika IamashitaConverso para epub: Danielle Fortunato

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    S317d

    Schloss, Eva.Depois de Auschwitz: o emocionante relato da irm de Anne Frank que

    sobreviveu ao horror do Holocausto / Eva Schloss; traduo de Amanda Moura. SoPaulo : Universo dos Livros, 2013.

    Ttulo original: After Auschwitz: A Story of Heartbreak and Survival by theStepsister of Anne Frank

    ISBN 978-85-7930-550-4

    1. Auschwitz (Campo de concentrao) 2. Holocausto judeu (1939-1945) 3.Segunda Guerra, 1939-1945 Judeus Narrativas pessoais 4. Sobreviventes doHolocausto memrias autobiogrficas

    I. Ttulo II. Moura, Amanda

    13-0672

  • CDD 920.0092924

  • Sumrio

    DedicatriaPrlogo Deixe a sua marca1 Uma famlia vienense2 Infncia3 Os nazistas esto chegando4 Uma garota indesejvel5 Amsterd6 Anne Frank7 A ocupao8 Esconderijos9 Traio10 Auschwitz-Birkenau11 A vida no campo12 O mais glido dos invernos13 Libertao14 O caminho de volta15 Amsterd novamente16 Uma vida nova17 O Julgamento18 Londres19 A histria de Zvi20 O casamento21 Uma corrente irrompvel22 Otto e Fritzi23 Novos comeos24 Um dia de primavera25 A pea26 Mutti27 Estendendo a mo28 O retornoEplogoAgradecimentoslbum de Fotos

  • Este livro dedicado memria das vtimas do Holocausto e de outrosgenocdios que no puderam contar suas prprias histrias.

    Eva Schloss

  • PrlogoDeixe a sua marca

    Agora sei que Eva deseja dizer algumas palavras.A frase ecoou pelo grande salo e me encheu de pavor.Eu era uma tranquila mulher de meia-idade, casada com um investidor e me

    de trs filhas crescidas. O homem que pronunciou as palavras que acabo demencionar foi Ken Livingstone, o ento lder diligente do Greater London Council rgo que logo depois foi abolido , considerado a maior pedra no sapato daprimeira-ministra Margaret Thatcher.

    Havamos nos conhecido mais cedo naquele mesmo dia, e ele certamente nosabia que essas poucas palavras me levariam a um turbilho de sensaes. Eu nosabia que aquele seria o comeo de uma longa jornada para encarar os terrveisacontecimentos da minha infncia.

    Tinha quinze anos quando eu e milhares de outras pessoas atravessamos aEuropa em um trem de gado com vages escuros e apertados. Fui jogada para foraem frente ao porto do campo de concentrao Auschwitz-Birkenau. Mais dequarenta anos haviam se passado, mas quando Ken Livingstone me pediu para falarsobre o assunto, senti uma onda de terror invadindo meu estmago. Quis correrpara debaixo da mesa e me esconder.

    Era manh de um dia de primavera de 1986, e estvamos na abertura de umaexposio itinerante sobre Anne Frank na Mall Galleries, prxima ao Instituto deArte Contempornea de Londres. Hoje, mais de 3 milhes de pessoas ao redor domundo j visitaram essa mostra, mas naquela poca estvamos apenas comeandoa contar a histria do Holocausto para uma nova gerao por meio do dirio deAnne Frank e das fotos com sua famlia.

    Essas fotos me unem a Anne de uma forma que nenhuma de ns poderia terimaginado. Quando ramos garotas, costumvamos brincar juntas em Amsterd.Tnhamos personalidades muito diferentes, mas Anne era uma das minhas amigas.

    Depois da guerra, o pai de Anne, Otto Frank, voltou para a Holanda e comeoua se relacionar com a minha me uma relao que nasceu do sentimento de perdae do sofrimento de ambos. Os dois casaram-se em 1953, e Otto tornou-se meupadrasto. Ele me deu a cmera Leica que costumava usar para fotografar Anne e airm dela, Margot, para que assim eu pudesse encontrar minha prpria direo nomundo e me tornar fotgrafa. Usei aquela cmera por muitos anos e a tenho athoje.

    A histria de Anne consiste no relato de uma garota que emocionou o mundointeiro pela linguagem simples e humana de seu dirio. Minha histria diferente.Tambm sou uma vtima do nazismo e fui enviada a um campo de concentrao.Mas, diferentemente de Anne, sobrevivi.

    Na primavera de 1986 eu j estava morando em Londres h quase quarenta

  • anos e, durante esse perodo, a cidade tinha mudado bastante, deixando de ser umaregio bombardeada e em runas para transformar-se em uma metrpolemulticultural agitada e vigorosa. Gostaria de poder dizer que eu havia passado pelamesma transformao.

    Eu tinha refeito a minha vida, construdo a minha famlia com um maridomaravilhoso e filhas que significavam tudo para mim; estava at mesmoadministrando o meu prprio negcio. Mas uma grande parte de mim estavafaltando. Eu no era mais a mesma pessoa; a menina extrovertida que adoravaandar de bicicleta, plantar bananeira e que nunca parava de falar estava agoratrancada em algum lugar que eu no fazia a menor ideia de onde era.

    Durante a noite, sonhei com um grande buraco negro que me engolia. Quandoos meus netos perguntaram-me sobre a tatuagem no meu brao feita em mimquando estava em Auschwitz , respondi que era apenas o nmero do meu telefone.Eu no falava sobre o passado.

    Contudo, no poderia recusar um convite para discursar na abertura daexposio sobre Anne Frank sobretudo porque se tratava do trabalho da vida deOtto e de minha me.

    Diante da insistncia de Ken Livingstone, levantei-me e comecei a falar comhesitao. Para o desespero das pessoas que esperavam uma breve introduo,quando comecei no consegui mais parar. As palavras jorravam e eu continuavafalando, relatando as experincias dolorosas e traumticas que tinha vivido. Fiqueitonta e aterrorizada; no me recordo exatamente o que falei.

    Minha filha Jacky, que estava ouvindo, disse: Foi uma experincia terrvel.No sabamos quase nada sobre o que mame havia passado, e de repente elaestava naquele palco, com dificuldade para falar e aos prantos.

    Minhas palavras podem no ter soado coerentes para ningum, mas,pessoalmente, representaram um grande momento para mim. Eu tinha recuperadouma pequena parte de mim mesma.

    Apesar de um comeo um tanto quanto inusitado, depois daquilo mais e maispessoas me pediam para falar sobre o que havia acontecido durante a guerra. Noincio, pedia ao meu marido que escrevesse esboos dos meus discursos, os quais eulia muito mal. Mas aos poucos fui encontrando a minha prpria voz e aprendi acontar a minha prpria histria.

    Muitas coisas mudaram no mundo desde o fim da Segunda Guerra Mundial, masinfelizmente o preconceito e a discriminao no mudaram. Desde o movimento dosdireitos civis nos Estados Unidos, o Apartheid na frica do Sul, a guerra na antigaIugoslvia, at as prises decorrentes dos conflitos em pases como a RepblicaDemocrtica do Congo, vejo pessoas em todos os lugares do mundo lutando pelosdiretos da dignidade humana e por compreenso. E como judia, vejo que mesmotoda a veracidade do Holocausto no abriu os olhos do mundo para o terror doantissemitismo. Ainda hoje existem muitas pessoas procurando por bodesexpiatrios com base em cor da pele, antecedentes, sexualidade ou religio. Quero

  • falar para essas pessoas sobre a amargura e o dio que as fazem culpar os outros.Assim como eles, sei muito bem o quanto a vida pode parecer dura e injusta svezes. Por vrios anos, tambm senti muito dio.

    Conforme meu mundo se expandia, comecei a trabalhar no Museu Anne Frank,em Amsterd, e no Instituto Anne Frank, na Inglaterra. A princpio, escrevi um livrosobre as minhas experincias, relatando as memrias do Holocausto e, muito tempodepois, escrevi para crianas o relato da minha vida com o meu irmo Heinz. Fiqueiadmirada ao ver que outros tambm queriam escrever sobre a minha histria.

    Por fim, acabei viajando pelo mundo e conversando com pessoas nos EstadosUnidos, na China, na Austrlia e na Europa. Em todos os lugares onde discursei, aspessoas que conheci me comoveram e fizeram com que eu mudasse, at o ponto emque pude admitir com sinceridade que no era mais uma pessoa guiada por dio eamargura. Nada, jamais, poder justificar as atrocidades que os nazistascometeram. Seus crimes sero absolutamente imperdoveis sempre, e espero quepor meio de histrias como a minha eles sejam sempre lembrados dessa forma. Maso trabalho de me aproximar das pessoas e contar a minha histria fez com que umanova mulher florescesse em mim talvez a pessoa que sempre fui por dentro , eisso foi um presente para mim e para a minha famlia.

    Talvez falar para crianas nas escolas e para pessoas que esto na priso seja aparte mais significativa do meu trabalho. Quando olho para uma plateia repleta decrianas pequenas de diferentes origens e pases, posso afirmar que elas ficam seperguntando o que raios tm em comum comigo uma pequena senhora de sotaqueaustraco, vestindo um elegante cardig. No entanto, sei que, at o fim do meudiscurso, essas crianas e eu teremos compartilhado o sentimento de que s vezesno nos encaixamos no mundo, de que a vida tem sido dura e de que no sabemos oque o futuro nos prepara. No final das contas, no somos to diferentes assim.

    Quero que elas saibam o que aprendi: apesar de todo o desespero, haversempre esperana. A vida muito preciosa e bonita e ningum deve desperdi-la.

    Neste livro, vou contar sobre a minha famlia e sobre a longa viagem que fiz literal e espiritualmente na companhia de minha me. Tambm vou falar muitosobre meu pai, Erich, e sobre meu irmo, Heinz. Por enquanto, s adianto que perdios dois e que, mesmo que voc me conhea hoje como uma senhora, parte de mimainda aquela menina de quinze anos que os ama, que sente saudades e que pensaneles todos os dias.

    Tenho uma lembrana especial do tempo em que formvamos uma famlia, eesse momento tem me guiado por todos esses anos, bem como tem influenciado omeu trabalho.

    Era maio de 1940 e estvamos reunidos em nosso apartamento em Amsterd. Jtnhamos fugido da nossa casa em Viena, e agora os nazistas haviam invadido aHolanda a pior notcia que poderamos receber. Sempre pude contar com Heinz,meu irmo mais velho, para me tranquilizar e me animar, mas naquela noite eleestava nervoso e calado. Heinz me disse que no sabia se o nosso pai poderia

  • continuar nos mantendo a salvo, porque os nazistas estavam chegando procurados judeus. Estou com muito medo, Evi, ele desabafou. Estou com muito medode morrer.

    Meu pai nos levou at o sof, juntou-se a ns e nos abraou. Ele nos disse queestvamos unidos como os elos de uma corrente, e que daramos continuidade nossa famlia por meio dos nossos filhos.

    Mas e se no tivermos nenhum filho? Heinz questionou. Crianas, prometo uma coisa: tudo o que vocs fazem neste mundo deixa uma

    marca. Nada se perde. Tudo o que vocs fazem de bom vai prevalecer na vida daspessoas com quem vocs tiveram contato. Essas aes e atitudes faro a diferenapara algum, em algum lugar, em algum momento, e as suas realizaes serolevadas adiante. Tudo est conectado como uma corrente que no pode serrompida.

    Neste livro, vou contar a vocs como tentei fazer o meu melhor para deixaruma marca no mundo.

  • Captulo 1Uma famlia vienense

    Se voc era um jovem, ambicioso e judeu na virada do sculo XX, havia apenasum lugar onde poderia estar: Viena.

    Meus olhos de criana reconheceram toda a sofisticao e majestade da cidade;l era minha casa, e eu era uma verdadeira vienense. Quando nasci, vivamos emuma vila espaosa no subrbio frondoso de Hietzing, embora minha famlia tenhavivenciado uma histria longa e turbulenta na cidade.

    At o final da Primeira Guerra Mundial, Viena era considerada a joia da coroados Hapsburg, a sede do grandioso e imponente Imprio Austro-Hngaro, que seestendia da Ucrnia e da Polnia at a ustria, Hungria e Sarajevo, na regio dosBlcs.

    No perodo pr-guerra, Viena era uma potncia comercial e cultural; osnegcios eram impulsionados pelo comrcio no rio Danbio, enquanto compositorescomo Gustav Mahler, escritores como Arthur Schnitzler e mdicos como SigmundFreud iluminavam as ruas, as casas de shows e os cafs com novas ideias. Erapraticamente impossvel no se sentir atrado pelo entusiasmo das atividadesartsticas. No Caf Central podia-se assistir a Leon Trotsky jogando xadrez etramando a revoluo; no Caf Sperl havia a possibilidade de encontrar EgonSchiele e uma de suas modelos fazendo uma pausa nos trabalhos de pintura deretratos com nu provocativo.

    Foi uma poca emocionante. Em 1910, a populao da cidade j passava dos 2milhes. As avenidas largas e arborizadas da Ringstrasse foram cercadas por ruascom novos edifcios residenciais e tomadas pelo crescimento da classe mdiacomposta por lojistas e comerciantes. Eram essas pessoas que formavam o pblicoda cultura vienense; subitamente, elas comearam a comprar ingressos para oteatro, a sair para comer nos restaurantes e a fazer passeios tursticos pelosbosques e colinas de Viena.

    Uma boa parte dessa classe mdia era formada por uma comunidade de judeusmuito instrudos e bem-sucedidos.

    Claro que o povo hebreu j morava em Viena h quase setecentos anos, entreidas e vindas, mas uma srie de governantes intransigentes fazia com que os judeusfossem expulsos da cidade e, com isso, essa comunidade permaneceu pequena einstvel. Somente a partir de 1867, aps a poltica de tolerncia religiosa e deigualdade cvica plena instituda pelo imperador Franz Josef, a comunidade judaicarealmente comeou a crescer. Nos trinta anos seguintes, a populao judaica deViena que antes era composta por menos de 8 mil pessoas subiu para mais de 118mil habitantes e logo comeou a desempenhar um papel proeminente na vidavienense.

    Algumas das famlias judias eram muito ricas e conhecidas. Elas habitavam

  • casas palacianas ao longo da Ringstrasse e as decoravam com mrmore e ouro. Umpouco mais abaixo na escala social, estavam os profissionais de classe mdia.Aproximadamente no incio do sculo XX, quase trs quartos de todos os banqueirose mais da metade de todos os mdicos, advogados e jornalistas eram judeus. Haviaat mesmo um time de futebol judaico muito popular que fazia parte do clubedesportivo Hakoah.

    Ento, uma crise econmica e o colapso da indstria do combustvel (que haviaoferecido oportunidade de trabalho para muitos judeus poloneses), seguidos poruma agitao nos Blcs e pela Primeira Guerra Mundial, trouxeram novosimigrantes para Viena. Essas pessoas eram mais pobres, famlias de judeus menosinstrudos que vieram de regies situadas ao leste, como a Galcia. Elas seinstalaram ao redor da estao ferroviria ao norte de Viena, em uma parte dacidade chamada Leopaldstadt. Aparentemente, essas famlias eram mais religiosas emenos alems em sua cultura judaica, se comparadas comunidade que j haviaassimilado o estilo de vida austraco. Famlias como a minha jamais conheceriam ouse misturariam com esses novos imigrantes, que no futuro seriam vtimas de umpreconceito antissemita ainda maior.

    A origem do meu pai era tpica de uma famlia de classe mdia com boaestabilidade. Meu av, David Geiringer, nasceu na Hungria em 1869. Depois de semudar para Viena, ele fundou uma fbrica de sapatos chamada Geiringer & Brown.Na poca em que meu pai, Erich, nasceu em novembro de 1901 , os negcioscaminhavam muito bem.

    Tenho apenas uma foto dos meus avs paternos juntos. Meu av aparenta seruma pessoa metdica, tem bigode e est usando um chapu-coco, enquanto meu paie minha tia, ento crianas pequenas, esto vestindo trajes de marinheiro eolhando para a cmera com a expresso sria. Minha av, Hermine, esguia eelegante, e na foto parece ter pelo menos um palmo a mais de altura devido a umchapu enorme envolto por camadas de renda preta e chiffon, o auge da moda. Elatinha chegado a Viena partindo da regio de Bomia, que hoje faz parte daRepblica Tcheca.

    Mesmo com a necessria imobilidade fria exigida nas fotografias da poca,aparentemente eles formavam uma famlia feliz e essa a lembrana que o meupai tinha. Infelizmente, pouco tempo depois, minha av foi diagnosticada comcncer e morreu em 1912, com 34 anos. Meu av casou-se novamente com umamulher que acabou se tornando uma madrasta intransigente, ento meu pai saiu decasa quando ainda era adolescente e comeou a construir sua prpria trajetria.Sua primeira experincia de vida em famlia havia chegado a um final sbito einfeliz mas ele estava prestes a conhecer a mulher com quem passaria o resto desua vida: minha me.

    Devo dizer que minha me era linda. Enquanto meu pai era moreno e vistoso,minha me era loira, tinha olhos azuis, cabelos ondulados e um sorrisodeslumbrante. Chamava-se Elfriede Markovits, mas todos a chamavam de Fritzi, e

  • era uma mulher cheia de vida. Em uma das minhas fotos favoritas, tirada quandoainda era jovem, ela est sorrindo e dando de comer a um cavalo. As circunstnciasestavam longe de serem agradveis ela havia se mudado para o pas onde o meuav estava alocado com o exrcito para escapar da fome; mas ainda assim, elaestava sorrindo. A foto pode transmitir a impresso de que ela era uma mulherpragmtica, prtica e de certo modo rstica, mas a verdade que ela no era nadadisso. Pelo menos no naquele momento.

    Helen, a me de Fritzi, veio de uma famlia muito rica. Eles possuam vinhasem uma regio que hoje parte da Repblica Tcheca, e tambm uma estao deguas sulfurosas perto de Viena, em Baden bei Wien um lugar que odiei conhecerporque cheirava a ovo podre.

    As condies financeiras de minha av mudaram consideravelmente quando elase casou com meu av, Rudolf Markovits, que era vendedor da Osram, uma empresaque fabricava lmpadas e outros tipos de produtos. Embora meu av fosse um bomvendedor e a famlia estivesse longe de ser pobre, o final da Primeira GuerraMundial trouxe muitas dificuldades para a maioria dos austracos.

    A comida havia sido severamente racionada durante a guerra, e a queda doregime de Hapsburg em 1918 deixou a ustria em apuros. O pas recebeuindenizaes financeiras em 1919 com o acordo de paz estabelecido pelo Tratado deVersalhes, mas a nao foi falncia antes mesmo que a quantia fosse definida.

    O que antes havia sido o local mais importante de um vasto imprio tornara-seum pas pequeno, desprovido dos seus recursos mais rentveis. A indstria e aagricultura, que eram a espinha dorsal do Imprio Austro-Hngaro, estavam agorasobrevivendo s custas da economia de outros pases, como a Polnia e as recm-independentes Tchecoslovquia, Hungria e Iugoslvia. Essas novas naes ajudarama ustria a se recompor at que disputas de fronteira comearam, e logo em toda aEuropa se espalhou o boato de que os cidados de Viena estavam morrendo defome.

    Em um certo momento, a famlia Markovits estava to faminta que matou ecozinhou o prprio pssaro de estimao. Minha me, que amava o bicho, lembra-seque chorava diante do prato ao mesmo tempo em que separava a carne dospequenos ossos para comer.

    Dessa forma, posso afirmar que no momento em que meus pais ErichGeiringer, com dezessete anos, e Fritzi Markovits, de catorze se conheceram, jestavam familiarizados com dificuldades e incertezas. Porm, a conscincia de queas circunstncias da vida poderiam mudar no afetou a alegria de viver um punhadoda prosperidade dos anos 1920 em Viena. Como essa carta de 1921 mostra, meu paiestava determinado e certo de que ningum poderia atrapalhar o namoro dos dois,nem mesmo a me de Fritzi, que lhe dissera que sua filha era jovem demais paraassumir um relacionamento to srio.

    Viena, 17 de agosto de 1921Prezada senhora,

  • Recebi sua carta do dia 15 e a princpio fiquei chocado mas depois me ocorreuque a senhora deve ter feito isso com boas intenes. Sinto-me muito grato pelaconfiana que atribui a Fritzi e a mim. A senhora tem certa razo em muitospontos, devo admitir, embora seja algo doloroso para mim, j que acelerei nossosplanos para o futuro.

    Amadureci a ideia por um momento e no me dei conta da resistncia que elatraria.

    Lamento, mas no posso aceitar a sugesto feita pela senhora pedindo que euv me divertir. Minha averso a esses tipos de prazeres profunda e vem de longadata. Desde o momento em que conheci Fritzi sinto-me encantado, por isso notenho interesse em qualquer tipo de diverso...

    Desde o primeiro momento tratamos o nosso relacionamento com seriedade, docontrrio no manteramos a nossa sincera amizade

    Prezada senhora, espero que no se aborrea quando eu contar a Fritzi sobre asua carta. No posso esconder algo to importante dela. Peo perdo ao contrari-lae ao discordar da afirmao de que Fritzi ainda uma menina de escola, como asenhora e seu esposo a julgam; mesmo ainda frequentando a escola, ela tem muitomais maturidade do que a idade faz parecer. Isso um fato que a senhora tem queadmitir.

    Agradeo prezada senhora novamente pelas boas intenes que me mostrouDo seu servo,Erich GeiringerEle no permaneceu servo por muito tempo Erich e Fritzi casaram-se em

    1923, e praticamente formavam o casal mais jovem da cidade. Era isso que vocpensaria se esbarrasse neles enquanto desfilavam pela Ringstrasse, caminhavam nasmontanhas ou bebiam com os amigos em um dos famosos jardins do novo vinho.

    Meu pai era cheio de energia, alegre, acolhedor e encantador. Ele haviaestudado na Universidade de Viena antes de assumir a fbrica de sapatos depois damorte de meu av em 1924. Minha me no tinha o mesmo gosto por esportes eatividades ao ar livre que meu pai; ela amava ouvir msica, tocar piano e passar otempo com toda a famlia reunida.

    Ambos eram muito vaidosos. Os ternos do meu pai eram impecavelmentecosturados pela Savile Row, e ele passou a usar camisas na cor rosa muito antes dese tornar moda. Minha me sempre conseguiu manter-se elegante, mesmo com ocabelo no novo estilo curto ou usando uma boina xadrez.

    Em todos os sentidos, meu pai era o chefe da famlia definia atividades,liderava excurses, administrava seu prprio negcio e at decorou a ampla casanova dos Geiringers, localizada em Lautensakgasse, com uma coleoimpressionante de antiguidades, incluindo uma cama de casal que havia pertencido imperatriz Zita. Meu pai era um conjunto incansvel de entusiasmo e ideias, tantono trabalho como no lazer, e minha me, que era um pouco mais nova e cautelosado que ele, seguiu seus passos.

  • Os dois eram jovens, amavam-se e sentiam-se agraciados por terem encontradoum ao outro.

  • Captulo 2Infncia

    Vamos, Heinz, eu quero brincar lEu era uma menina teimosa, de cabelo loiro e liso, e vivia com o queixo

    empinado em sinal de determinao. Heinz, meu irmo, era alto e esbelto, tinha aspernas longas e delgadas, cabelos escuros e um olhar muito expressivo.

    Muitas vezes, quando o tempo estava bom, eu puxava a nossa carroa de fenoat o topo da encosta no nosso jardim dos fundos que parecia um parque , pulavadentro dela e em seguida descia a ladeira sem o menor controle. Essa era uma dasminhas brincadeiras prediletas, e sei que era bastante perigosa. s vezes nosmachucvamos, j que a nica forma de controlar o carrinho era usando umaestaca como leme improvisado. Acho que Heinz no se entusiasmava tanto quantoeu nessas brincadeiras de corrida mas, como sempre, estava l para fazer a vontadede sua irmzinha.

    Tnhamos uma diferena de idade de trs anos e ramos completamentediferentes tanto na aparncia como na personalidade.

    Heinz nasceu em 1926 e meus pais o amavam muito. O primeiro trauma peloqual ele passou aconteceu em um dia de primavera trs anos depois, quando foienviado para a casa de minha av sem a menor explicao. Uma longa semana sepassou e ele continuou sem notcias do que havia acontecido com a me ou com opai. Por fim, voltou para casa e encontrou minha me feliz embalando um bebrecm-nascido em seus braos: eu.

    Nasci em 11 de maio de 1929, no Hospital Geral de Viena, e o primeiro encontrocom meu irmo poderia ter causado um ressentimento para a vida inteira. Hoje meparece surpreendente que, naquela poca, a maioria dos adultos acreditava sermelhor no contar aos filhos o fato de que um novo beb estava a caminho, mas eraassim que as coisas funcionavam.

    Felizmente, Heinz no guardou nenhum rancor; pelo contrrio, logo se tornoumeu grande defensor e o melhor irmo mais velho que eu poderia desejar. Contudo,o trauma que sofreu naquela semana causou uma sequela permanente. Eledesenvolveu uma gagueira que nenhum mdico ou remdio pde curar. Meus paisat o levaram para uma consulta com Anna Freud, filha de Sigmund Freud efundadora da psicanlise infantil, mas sem sucesso. Ele foi um menino sensveldesde criancinha.

    Gostaria de poder dizer que eu era uma pessoa muito agradvel, mas noherdei o temperamento tranquilo de Heinz. Em uma foto em famlia, estou sentadafranzindo a testa, espremida entre os meus pais Pappy e Mutti , demonstrando umpouco de irritao por eles aparentemente estarem interessados um no outro ou emHeinz.

    Tornei-me adulta, mas no menos obstinada. Durante a infncia, lembro-me

  • claramente de ter passado muitas noites em p no canto da sala, onde eu deveriaficar para refletir sobre alguma malcriao e depois me desculpar pelo que tinhafeito. Havia uma cadeira de madeira na sala e eu caminhava ao redor dela,contornando o crculo do assento com o meu dedo e repetindo para mim mesma queeu jamais pediria desculpas.

    Esses episdios aconteciam frequentemente quando havia alguma discussosobre comida. Eu era, digamos, exigente, e odiava legumes e verduras. Muitasvezes, ficava sentada mesa sozinha por bastante tempo depois que todo mundo jtinha acabado a refeio, e me proibiam de levantar antes de comer tudo que haviano prato. Geralmente, eu dava um jeito de grudar as ervilhas debaixo da mesa umapor uma.

    Certa noite, nossos pais nos desejaram boa noite e saram para passear,enquanto Heinz e eu comamos com a nossa empregada. O jantar era um peixerepleto de espinhas, e eu odiava ter de tir-las da boca. No meio da refeio, minhame ligou para saber como estvamos. Esto bem, respondeu a empregada, antesde eu correr para o telefone, arranc-lo da mo dela e reclamar em alto e bom tompara minha me: No estou bem. Estamos comendo peixe, e ele est cheio deespinhas e eu odeio isso!.

    Naturalmente, minha me pediu que eu voltasse para a mesa, sentasse eterminasse a minha refeio, mas s vezes me pergunto se esse trao de rebeldia eteimosia no foi o responsvel por me manter firme em circunstnciasinfinitamente piores que vieram depois, quando de fato precisei usar toda minhaobstinao.

    Nos primeiros anos da minha vida, eu morava com a minha famlia no andarintermedirio de um casaro do sculo XIX, em Hietzing, bairro conhecido por ser omais verde da cidade devido a todos os parques e jardins. A casa de campo dosHapsburg, um palcio chamado Schnbrunn, ficava na esquina, e o famoso arquitetoOtto Wagner havia construdo uma estao de metr exclusiva para o imperador(ele a utilizou duas vezes). Na outra esquina, o cemitrio de Hietzing abrigavasepulturas de uma srie de aristocratas austracos, sendo um dos pontos maisrenomados da cidade.

    O bairro deve ter parecido bastante acolhedor e confortvel para um artistaque enfrentava dificuldades, que no tinha um futuro promissor e que passou porHietzing na primeira dcada do sculo XX. Adolf Hitler chegou cidade para tentarentrar na prestigiada Academia de Belas Artes de Viena mas, apesar das aulas dereforo, no conseguiu ser aprovado em duas tentativas.

    Nossa casa na esquina da Lautensackgasse parecia mais um castelo do que umcasaro de subrbio, com uma torre grande e um jardim amplo no qualcostumvamos fazer as festas de aniversrio.

    Eu adorava a nossa casa agitada e as pessoas que viviam nela. No ramosricos, mas morvamos em um lugar confortvel e aconchegante, com janelas devidro duplo que nos protegiam do inverno rigoroso de Viena. Tnhamos uma

  • empregada que vivia em um quarto pequeno atrs da cozinha e uma diarista quevinha uma vez por semana para ajudar a lavar e a costurar.

    Qualquer um que fosse nos visitar poderia me encontrar tomando ch sentada mesinha que ficava no meu quarto ao lado da cama, ou com toda a famliapreparando-se para a principal refeio do dia, o almoo, sentada com Pappy nasala de jantar toda coberta com papel de parede florido. noite, as pessoas quepassavam na rua ouviam Heinz sussurrando algo para mim na varanda, enquantoolhvamos para as estrelas e ele me contava suas histrias favoritas de cowboys ede faroeste sobre Winnetou e Old Shatterhand, ambas escritas por Karl May.

    Embora houvesse uma sinagoga na vizinhana, poucos judeus moravam emHietzing, e Heinz e eu s tomamos conhecimento de fato da nossa religio e danossa cultura quando comeamos a ir para a escola. Todas as crianas austracasrecebiam, obrigatoriamente, educao religiosa. Para a maioria da sala, issosignificava aprender lies do catolicismo romano, mas trs vezes por semanaramos enviados para aulas diferentes o que significava que todos sabiam quemeram as crianas judias.

    Gostvamos muito das lies religiosas que recebamos e nos entusiasmvamoscom as celebraes dos feriados e das tradies judaicas. Nossos pais incentivavamnosso interesse e com rigor comearam a acender velas antes da refeio do Sabna sexta-feira noite. As noites de sexta tornaram-se ocasies especiais: Muttichamava a mim e a Heinz, e ns a ajudvamos a preparar a mesa do jantar doSab. Arrumar nossa melhor prataria e loua e colocar as velas nos castiais era umdos melhores momentos da semana para mim, e eu me sentia orgulhosa por fazerparte de uma famlia judia.

    No entanto, nem Pappy nem Mutti tinham de fato interesse pela religio. Minhame no tinha muito conhecimento das tradies judaicas e meu pai no observavaa doutrina, embora se preocupasse muito com a preservao da nossa herana e danossa cultura. No dia a dia, meu pai fazia grandes reunies de famlia em feriadosjudaicos como a Pscoa, e nunca permitia que houvesse carne de porco em casa.Havia outras ocasies em que a nossa religio aparecia em grandes propores.

    s vezes nossa governanta catlica nos levava missa. Creio que fazia issopara que pudesse ir igreja aos domingos, e conheo muitos judeus que tiveram amesma experincia quando pequenos, porque a maioria das empregadas de Vienaera de moas do campo cujas famlias eram grandes e catlicas. Eu adorava essespasseios, sobretudo a cerimnia em si, o espetculo e os aromas da celebraocatlica. Mas, quando meu pai descobriu, ficou furioso e demitiu a nossa empregadaimediatamente.

    Algum tempo depois, minha tia, irm da minha me, e sua famlia se mudarampara a Inglaterra para escapar dos nazistas, e se converteram ao Cristianismo. Issodeixou meu pai extremamente furioso. Ele acreditava que, se voc nasce judeu,deve permanecer judeu para sempre. Na opinio dele, converter-se por temer aperseguio demonstrava total falta de firmeza e determinao.

  • Apesar de nossas tradies e cultura judaicas, participvamos da vida vienenseda mesma maneira que os outros austracos de classe mdia. Embora nocomemorssemos muito o Natal, dvamos as boas-vindas a So Nicolau e a seuassistente, Black Peter, no dia de sua celebrao, 5 de dezembro. Por muitos anosesperei que So Nicolau, o antecessor do Papai Noel, me trouxesse um triciclovermelho. Lanava vrias dicas para os meus pais com meses de antecedncia,acordava cedo no to esperado dia e olhava embaixo da cama para verificar se opresente havia chegado durante a noite. O presente nunca chegou, mas o primeirocarro que comprei quando era jovem foi vermelho. Olhando para trs, imagino queos meus pais podiam achar que ns j tnhamos recebido presentes e guloseimas osuficiente, porque s vezes embrulhavam presentes que j tinham nos dado eentregavam novamente.

    A verdade que nunca nos faltou ateno nem afeto. Um dos meus passeiosdirios era visitar meus avs maternos, que moravam em um apartamento menorem Hietzinger Haupstrasse. Digo que visitvamos meus avs, mas a maior parte dasvisitas era para ver a empregada deles, Hilda, que administrava a casa como umcomandante, mas nos mimava muito. Hilda fazia parte da famlia h quarenta anos,e embora minha av fosse oficialmente a dona da casa, ela se mantinha em silncioe deixava Hilda cuidar de tudo como bem entendesse. Quando meus avs foramobrigados a fugir dos nazistas, Hilda cuidou do apartamento at que eles pudessemfinalmente voltar para a prpria casa.

    A nica parte da visita diria que eu detestava era ter de cumprimentar aminha bisav, que na poca tambm morava l. Ela era uma figura assustadora, daqual eu sentia muito medo, e que estava sempre vestida de preto da cabea aosps. Dizia minha me que era velha e feia, e implorava para no ter de falarcom ela. Mas no importava o quanto eu reclamasse, minha me sempre meempurrava para perto da cama dela, onde eu tinha de ficar na ponta dos ps, com ocorpo trmulo, para me aproximar da senhora e dar-lhe um beijo na bochecha.

    Felizmente, o interesse em passar algum tempo com meus avs superava omedo. Eu pessoalmente adorava o meu av, Rudolf. Ele sempre tinha atividadesespeciais para cada um de ns. Era uma pessoa muito musical, e Heinz costumavase sentar prximo a ele no banco do piano, onde o observava respirar fundo, fecharos olhos e ento deslizar suas mos de um lado para o outro sobre as teclas. Asmsicas eram sempre maravilhosas, mas meu av s podia tocar de ouvido, porquese recusou a aprender a ler partituras quando era um jovem aluno.

    Talvez eu tenha herdado a teimosia dele, mas com certeza no o talentomusical de meu av. Enquanto Heinz passava horas praticando piano, e depoisacordeo e violo, eu me ocupava com atividades ao ar livre.

    Nas manhs de domingo, meu av me levava at a taverna prxima aocruzamento ferrovirio onde ele tomava sopa e bebia cerveja. As tavernas naustria se pareciam mais com cafeterias e adegas do que com bares; eram lugaresnos quais os homens se reuniam regularmente para um bate-papo. A melhor parte

  • desse ritual dominical era sentar prxima ao meu av enquanto a garonete nostrazia sopa de gulache. O gulache era servido quente em uma xcara grande de aoinoxidvel; a garonete trazia a xcara e a colocava em nossos pratos de sopa,enquanto eu a observava com os olhos arregalados, contando quantos pedaos decarne eram postos no meu prato. Eu era o centro das atenes. Os amigos do meuav ouviam atentos tudo o que eu havia feito naquela semana ou quais eram osmeus novos interesses. Eu me sentia no paraso.

    Na cidade, a nossa vida girava em torno da famlia, da casa e da escola. Nossaempregada nos incentivava a gastar um pouco de energia e nos levava para brincarno parque do Palcio Schnbrunn ou para assistir a algum filme de Shirley Temple, es vezes amos ao famoso parque de diverses de Viena, o Prater, o que era ummimo. Com frequncia ainda maior, visitvamos os parentes dos nossos pais, a irmdo meu pai, Blanka, e minha prima Gaby, que tambm era a minha melhor amiga.Minha tia Sylvi, irm da minha me, e o marido dela, Otto, moravam bem prximostambm, ento eu podia ir at a casa deles para brincar com meu primo Tom, queainda era beb.

    Sempre adorei crianas e adorava cuidar de bebs, e fiquei fascinada pelo meunovo priminho. Depois que vi minha tia Sylvi amamentando-o, tentei fazer o mesmoem casa com meu amigo Martin; ele e eu ramos pequenos e, claro, eu no tinha omenor sinal de mamilos, mas a me de Martin nos descobriu e foi uma enormeconfuso. Fiquei extremamente enraivecida quando ela o proibiu de brincar comigo.Fiquei confusa e, talvez pela primeira vez, envergonhada.

    Na escola, dedicava-me leitura, mas no me importava com nmeros.Durante as tardes, passava horas escrevendo letras e palavras do alfabeto gtico emuma lousa.

    Era ao ar livre que eu me sentia viva. Queria ser como Pappy e praticarmergulho, natao, corrida e alpinismo. Vocs nunca devem ter medo, Pappyfalava enfaticamente antes de fugirmos de sua perigosa perseguio, que sempreme animava, mas chocava Heinz.

    Meu pai comeou a me ensinar a ser uma pessoa destemida incentivando-me apular do alto do guarda-roupa do meu quarto para cair direto em seus braos, o queprogrediu para mais tarde me jogar no fundo da piscina. Minha me olhavaassustada e Heinz sorria e dizia: No, obrigado, Pappy, antes de retomar a leiturade uma de suas histrias favoritas de Jlio Verne. Mas eu confiava em Pappy e sabiaque ele nunca me colocaria em uma situao de perigo real; alm disso, tinhacerteza de que os seus braos grandes sempre estariam l para me segurar.

    Heinz considerava a minha devoo por heris algo surpreendente e riu de mimquando decidi dormir em um travesseiro de pedra porque papai havia dito que otravesseiro macio causava m postura. Durante as nossas excurses nas montanhas,Heinz costumava esperar com Mutti na parte de baixo, enquanto eu escalava asfendas, corria descala pelos caminhos rochosos e me pendurava em cordas.

    Eu parecia at mesmo uma macaquinha magricela. Ainda era exigente com a

  • comida, e uma viagem desastrosa ao sanatrio combinada com doses de leo defgado de bacalhau no tinham me satisfeito. Ento me dependurei em uma rvorecom os meus braos compridos e magros, com as costelas sobressaltando feito asondulaes de um tanque de lavar roupa.

    Saamos para essas aventuras familiares todos os domingos, e nos feriadosviajvamos para lugares ainda mais distantes, como Tirol ou os Alpes Austracos.Hospedvamo-nos em chals e vestamos calas de couro e vestidos de tirolesa,tradicionais do pas.

    Essas viagens tornaram-se ainda mais agradveis certo dia, quando Pappy noslevou para casa no primeiro carro que tivemos. Meu pai, claro, gostava de dirigirem alta velocidade, gritando ao percorrer as curvas fechadas no caminho pelasmontanhas. Com o movimento rpido do carro ao passar pelas curvas, nosso corpose inclinava para o outro lado do banco e podamos avistar as pequenas casas dasaldeias na parte debaixo. Mutti estava na frente, no banco do passageiro, gritando,enquanto Heinz e eu ficamos abraados no banco de trs, agarrando um ao outrocom tanta fora que cheguei a imaginar que os nossos ossos poderiam se quebrar.

    No vero, minha me nos levava para passar as frias fora da cidade,normalmente acompanhados por minha tia Blanka e pela minha prima Gaby.Viajvamos para a costa Adritica, na Itlia, onde nadvamos e brincvamos napraia. Heinz ficava preocupado com as guas-vivas, mas eu adorava me enterrar naareia fina e sair correndo em direo ao mar.

    ramos jovens demais para entender o propsito dessas viagens, mas minhame visitava um amigo italiano e s vezes ficvamos l durante trs meses. Ginoera muito elegante e charmoso; vestia calas de flanela branca e tinha um cabeloescuro que estava sempre brilhando. Embora minha me possa ter feito outrasamizades com homens, Gino era uma presena permanente em sua vida. Em certaocasio, ele viajou at Viena e exigiu que ela se divorciasse e se casasse com ele.Os dois mantinham contato por correspondncia, at mesmo depois de minha meter descoberto que ele tambm era casado.

    Naquela poca, Viena era conhecida por ter uma postura bastante complacenteem relao ao casamento, e meu pai tambm tinha inmeras admiradoras que odivertiam enquanto ele passava o vero trabalhando em sua fbrica. Embora essefosse o esprito daquela poca, ramos uma famlia muito feliz. Nossaspersonalidades divergentes ousada e extrovertida, no meu caso e no caso do meupai, e criativa e gentil, no caso do meu irmo e da minha me complementavamum ao outro perfeitamente.

    Meus pais compartilhavam um amor profundo pela msica clssica e, s vezes,em vez de histrias para dormir, meu pai ligava o gramofone e tocava o quinteto ATruta, de Franz Schubert. Ento ns quatro sentvamos no cho da enorme sala edivagvamos ao som do que chamvamos de msica de dormir.

    Para mim, aqueles dias e o tom alegre do quinteto faziam o mundo parecerinocente e livre de preocupaes mas, na realidade, acontecimentos deplorveis

  • trouxeram uma nuvem negra para o nosso horizonte. Muitos desses fatos ocorreramno importante ano de 1933.

    Quanto tinha sete anos, Heinz desenvolveu uma infeco grave e ficou de camacom uma febre violenta, fitando as paredes o tempo todo.

    Arrastei o corpo na direo da cama dele e Heinz me espiou de sua cama. Quer ler uma histria? sussurei, pensando em faz-lo se sentir melhor. Que

    tal Old Shatterhand?Mas Heinz balanou a cabea. Ele estava muito doente at mesmo para ler. Ele no est melhorando minha me se afligiu, ansiosa. Por que no

    descobrem o que ele tem?Mdicos entravam e saam, mas nenhum deles aparentemente sabia o que

    estava acontecendo. Vou encontrar outro mdico disse Pappy, tentando tranquiliz-la. No se

    preocupe, vamos superar isso e ele vai ficar bem.Mesmo dizendo isso, at meu pai parecia preocupado.Depois de muitas consultas com diferentes mdicos, meus pais finalmente

    encontraram um especialista que diagnosticou o problema corretamente e removeuas amdalas de Heinz. Meu irmo comeou a se recuperar, mas quela altura ainfeco j tinha afetado sua viso, e ele ficou cego de um olho. Claro que issodeixou os meus pais desesperados. E Heinz ficou aterrorizado tambm.

    Pappy, e se eu nunca mais puder ler meus livros?Tudo que pude fazer foi ficar inquieta ao lado da cama dele, incapaz de fazer

    qualquer coisa. Est se sentindo melhor hoje, Heinz? perguntei, apavorada ao ver meu irmo

    to fraco e indefeso.Foi uma provao terrvel para todos ns. Heinz nunca se recuperou do trauma

    de perder totalmente uma das vistas, enquanto meu pai preocupava-se com aansiedade que Heinz estava desenvolvendo, e que poderia impedi-lo de continuarvivendo tranquilamente.

    Nossa famlia estava prestes a sofrer uma nova provao. A Grande Depresso ea inflao extrema estavam causando dificuldades imensas ustria, e os negciosde Pappy estavam indo falncia. Uma viagem de bonde que custava meia coroaem 1918 custava agora o equivalente a mais de mil e quinhentas coroas em xelins (amoeda que substituiu a antiga coroa em 1924). Um jantar que antes custava umacoroa, custava agora o equivalente a mais de 30 mil coroas.

    No havia futuro para a nossa fbrica, a Geiringer & Brown, mas Pappy eracriativo e empreendedor, ento comeou a contratar mulheres para trabalharem decasa fazendo mocassins. Porm, at que ele pudesse reerguer os negcios dafamlia, tivemos de mudar para uma regio mais modesta. Nosso novoapartamento menor, mas muito bom, nos contou Mutti, tentando nos animar, ecompletou: Pensem no quanto estaremos mais prximos da av Helen e do avRudolf. Mas nem mesmo essa constatao pde compensar o meu sentimento de

  • perda. Vai dar tudo certo, Evi disse Pappy, mas pude sentir o tom de tristeza em ter

    de deixar a nossa casa em Lautensackgasse.A casa de uma famlia muito mais do que quatro paredes, e eu sabia que

    estvamos fechando as portas das nossas primeiras lembranas de rir juntos,brigar, crescer e fazer as refeies e as festas de aniversrio. Uma nova etapa emnossas vidas havia comeado.

    Com todos esses traumas e reviravoltas familiares ocupando o meupensamento, suponho que de se admirar que eu lembre vagamente de algunsboatos sobre os grandes acontecimentos mundiais. Vez ou outra via minha tia oumeu tio franzindo a testa, aflitos, ou ouvia algum comentrio de preocupao porparte de meus pais quando eles ouviam as notcias no rdio. Era 1933 e Adolf Hitlertinha acabado de assumir o poder da Alemanha.

  • Captulo 3Os nazistas esto chegando

    Os austracos eram muito conhecidos por serem pessoas encantadoras edescontradas. Como descobri depois, eram nazistas encantadores sorridentes eagradveis ao comemorar a volta de Hitler para a fronteira depois do Anschlussentre a Alemanha e a ustria em 1938.

    Os anos mais tranquilos da minha infncia em meados da dcada de 1930 foramos mais turbulentos em Viena e o marco de anos de conflitos violentos.

    medida que o Imprio Austro-Hngaro se desintegrou, a cidade testemunhoucenas de uma verdadeira guerra civil. Diferentes nacionalidades e grupos tnicosestavam dividindo o imprio na virada do sculo. Enquanto polticos gritavam unscom os outros em diferentes idiomas pelos corredores do Parlamento, do lado defora, na Ringstrasse, trabalhadores das classes baixas saam s ruas para protestarcontra o preo alto dos alimentos, os alojamentos superlotados e o fluxo intenso deimigrantes, que, segundo defendiam, tornava ainda mais difcil encontrar umtrabalho.

    Viena era uma cidade maravilhosa e atrativa se voc fosse rico, mas era umlugar difcil para se viver caso fosse pobre.

    Um prefeito extremamente popular, Karl Lueger, havia transformado a viradado sculo na cidade implementando iluminao eltrica, sistema de circulao debondes, gua potvel para os hospitais e at mesmo piscinas pblicas. Porm,durante o seu mandato tambm houve um aumento drstico na falta de moradia,com pessoas dormindo em camas improvisadas nos terminais de bondes, fazendofilas durante o dia inteiro para passar a noite nos albergues e sem condies decomprar comida. Enquanto a Viena rica se reunia em cafeterias para discutir ideias,a Viena pobre procurava por ambientes aquecidos para se proteger do frio, ler osjornais, se manter informada e tomar uma tigela de sopa.

    Esses jornais mostravam-lhes que seus problemas tinham uma nica causa osjudeus. O prefeito Lueger era declaradamente antissemita e sabia que conseguiriaapoio de maneira muito fcil ao jogar a culpa falsamente pelas difceis condiesnos empresrios judeus. Tudo menos os judeus, disse ele certa vez.

    Nem todos apreciavam a ideia de que Viena era um caldeiro multiculturaldevido ampla variedade de pessoas que constituam o imprio. Alguns escritores epolticos comearam a se mobilizar a favor de um movimento pangermanista,relembrando os antigos mitos de um povo ariano que vinha do norte da Europa eque era superior s demais pessoas do imprio, especialmente em comparao aostchecos, eslavos e judeus. Homens como o parlamentar Georg von Schnererdesejavam reivindicar uma Alemanha para os alemes incluindo a unio entreAlemanha e ustria , mas enquanto o imperador Franz Josef permaneceu no trono,eles eram apenas uma voz que refletia as ideias e os debates da poca, entre

  • muitas na multido.Talvez se a Primeira Guerra Mundial e a queda do Imprio de Habsburgo no

    tivessem acontecido, poucos teriam aderido to seriamente ideia de uma raasuperior pangermanista. Porm, essa mistura confusa de slogans populistas e demitos e tradies reinventados influenciaram fortemente Adolf Hitler, que entre osanos de 1908 e 1913 era um artista fracassado que morava em um hostel na cidadede Viena.

    Hitler, filho de um funcionrio da alfndega da cidade provinciana austraca deLinz, odiava o internacionalismo de Viena a modernidade da arte e da msica, asexualidade liberal e por vezes at uma poltica catica, que o exclua de diferentesmaneiras. Hitler era como um garoto pobre com o rosto grudado na vitrine de umaloja de doces enquanto a sociedade vienense, exclusiva de intelectuais, o ignorava.

    A guerra trouxe sofrimento, fome, colapso financeiro e, por fim, degradao noano de 1918. Enquanto o restante da ustria permanecia sob o comando do governoconservador e da igreja catlica, os cidados de Viena se rebelaram e entre 1919 e1934 a administrao da cidade foi socialista, com uma viso progressista sobrehabitao social e sade pblica. Mais uma vez, Viena estava em um ponto crucialde uma batalha amarga e violenta entre ideologias polticas rivais.

    Em 1934, a Viena Vermelha chegou ao fim desastrosamente, quando ochanceler cristo e socialista Engelbert Dollfuss derrubou a democracia austraca ecriou um regime de um nico partido fascista. Embora parea um paradoxo, Dollfussse opunha aos nazistas e perspectiva de unio entre ustria e Alemanha, e tentouproteger os judeus proibindo propagandas antissemitas e a discriminao deestudantes judeus.

    Quando Dollfuss foi assassinado por nazistas austracos em 1934, outro membrode seu governo, Kurt von Schuschnigg, ocupou seu lugar e ele tambm tentoumanter Hitler distncia.

    Kurt atingiu seu objetivo por trs meses, mas no havia nenhuma hiptese deHitler permitir ustria votar em um referendo livre sobre a questo da unificaocom a Alemanha, especialmente quando a previso era de que dois teros dosaustracos fossem a favor de manter a independncia. Em maro de 1938, as tropasalems atravessaram silenciosamente a fronteira da ustria e no encontraramnenhuma resistncia. Um ms depois, Hitler ordenou que os austracos votassemsobre o futuro do pas. O resultado oficial registrou que 99,75 por cento das pessoasvotaram a favor da unio com a Alemanha.

    Nunca vou me esquecer do medo e do pressentimento que tive na noite em queos nazistas chegaram a Viena. Os soldados alemes foram recebidos na cidade como toque dos sinos das igrejas e com a aclamao das multides, enquanto bandeirasvermelhas gigantescas com susticas negras eram abertas e postas em todas asjanelas e edifcios e floresciam pela cidade como uma bandagem de floresvenenosas.

    Vivemos aqui por toda a nossa vida ouvi meu av dizer e a ustria tem sido

  • a nossa ptria por geraes.Algum tentou tranquiliz-lo. As coisas no vo ficar to ruins. Nossos amigos que no so judeus no vo

    permitir isso. O que voc acha que est acontecendo? sussurrei para Heinz, mas ele

    colocou o dedo sobre os meus lbios me pedindo para fazer silncio, o quesignificava que conversaramos depois.

    Fomos para casa quietos e quando Mutti e Pappy nos colocaram para dormir,Mutti beijou a nossa cabea e disse: Amanh ser um dia melhor que hoje.

    Naquela noite, as palavras de conforto dela fizeram-me dormir melhor, e creioque ela sabia em seu corao que o destino dos judeus de Viena estava traado.Hitler apareceu na sacada do Neue Hofburg Palace em frente enorme PraaImperial, Heldenplatz, em 15 de maro de 1938. Ele discursou para a multidoaustraca agitada em frente ao slogan que havia sido criado pelo imperador FranzJoseph, impresso em letras douradas: A justia a base de todos os governos.

    Este pas alemo disse ele. Posso comunicar ao povo alemo a maiorrealizao da minha vida. Estou anunciando histria a entrada do pas no ImprioAlemo.

    A cidade que o havia desprezado por tanto tempo agora o recebia de braosabertos, e a prioridade dele, segundo confidenciou ao chefe de propaganda nazista,Josef Goebbels, era limpar Viena da imundice e das baratas ele referia-se aosjudeus.

    Logo na primeira semana sob o comando nazista, tudo aquilo que as pessoastemiam foi confirmado. Os nazistas austracos receberam permisso para provocartumultos, espancar os judeus e saquear as propriedades deles, alm de for-los ainsultar uns aos outros nas ruas e a arrancar do peito dos ex-oficiais e soldados doexrcito as medalhas da Primeira Guerra Mundial.

    De repente, os agradveis amigos da minha infncia se foram. Perguntava-meagora quem eram essas novas pessoas. Os comerciantes simples, condutores debonde e supervisores de obras que imaginei conhecer estavam agora fazendo osjudeus ajoelharem a seus ps, fazendo as declaraes a favor da democraciadesaparecerem.

    Ser que essas eram as mesmas pessoas com quem a minha famlia havia vividolado a lado por tanto tempo?

    Mesmo que algum no tivesse muito interesse por poltica, no poderiasimplesmente ignorar o antissemitismo que j existia em Viena h tantos anos. Noera necessrio ler um jornal pangermnico para saber que um homem queaparentava ser judeu certamente teria o chapu arrancado enquanto caminhavapela regio da Ringstrasse, ou que os alunos deixavam a Universidade de Viena aoserem ridicularizados pelo lema fora judeus.

    Nos anos que antecederam o Anschluss, todos os principais partidos polticosfizeram declaraes antissemitas em seus manifestos, e at mesmo o governo

  • Dollfuss-Schuschnigg, que supostamente os defendia, contava com muitosantissemitas em seu gabinete. Este preconceito era profundo, uma questo de longadata na vida dos judeus, mas somente naquele momento ele comeou a infringir atranquilidade da minha existncia.

    Meu primeiro encontro com nazistas austracos foi chocante. No precisamos mais nos aborrecer com crianas do seu tipo a me de uma

    amiga minha me disse, batendo a porta na minha cara.Corri para casa, aturdida e chorando. Bem, as coisas vo ser assim para o povo judeu a partir de agora explicou

    minha me, abatida.As susticas negras nazistas apareceram por todos os lugares e sorridentes

    homens austracos, vestindo o uniforme nacional, chapus de feltro e com as barrasdas calas enfiadas dentro das meias, foravam crianas pequenas a escreveremjudeu nas janelas das lojas de seus pais.

    Quando olhavmos para a rua pelas janelas de nossa sala, vamos filas desoldados nazistas marchando com suas botas que crepitavam sobre o cho em umritmo unssono. Certo dia fomos at o pequeno jardim que pertencia ao edifcio emque meus avs moravam e, ao chegar l, recebemos a informao Aqui no sopermitidos judeus! da supervisora do bloco, uma mulher que aparentemente haviase tornado uma nazista ferrenha da noite para o dia.

    Novas leis, escritas com uma lgica burocrtica primorosa, exigiam que todosos austracos fizessem um juramento de lealdade a Hitler e aos nazistas. Desde queessas leis foram estabelecidas, os judeus foram proibidos de fazer tal juramento eforam automaticamente banidos de todas as funes governamentais e de todas asprofisses oficiais. Professores judeus no poderiam mais trabalhar nas escolas emdicos judeus estavam proibidos de cuidar de pacientes que no fossem judeus.

    Os judeus austracos comearam a correr de uma embaixada estrangeira paraoutra, desesperados para conseguir um visto que lhes permitisse escapar.Infelizmente, a maioria dos outros pases no permitiu sua entrada. A minha prpriafamlia logo comeou a fazer planos de fugir. Todas as pessoas judias agora tinhamde carregar documentos de identificao e deveriam permanecer com eles o tempotodo. Com frequncia, ramos parados na rua e tnhamos de mostrar os nossosdocumentos, ou corramos o risco de sermos entregues s autoridades.

    O marido da tia Sylvi, Otto, era especialista na produo de baquelite e elesrapidamente conseguiram vistos para a Inglaterra, onde instalaram-se na pequenacidade de Lancashire com o meu primo Tom. Sylvi e Otto se converteram aocristianismo praticamente no momento em que chegaram, e Otto foi trabalhar emuma empresa que fazia cabos de baquelite para guarda-chuvas. Eles conseguiramlevar consigo um continer cheio de pertences estimados da famlia, incluindo umlbum de fotos, de modo que, ao contrrio de muitas famlias judias, ainda temosessas preciosidades at hoje.

    Outras pessoas da famlia tambm conseguiram ir para a Inglaterra. A irm de

  • Pappy, Blanka, era casada com um historiador de arte que trabalhava para aeditora Phaidon, ento eles fugiram para Londres com a minha prima Gaby. Lembro-me de que estava sentada no colo do tio Ludwig alguns dias antes de eles partiremenquanto ele me mostrava suas pinturas favoritas naqueles livros de arte espessos.Eu tinha apenas nove anos, mas pude sentir que coisas piores que a humilhao nasruas ou a perda de velhos amigos estavam por vir. A tenso visvel dos adultos aomeu redor encheu-me de ansiedade. Perguntava-me se algum dia veria aquelaspinturas novamente.

    Outra prima da minha me, Litty Kloss, partiu para a Inglaterra. Ela era casadacom um artista muito conhecido, mas ele a abandonou no dia em que os nazistaschegaram.

    Litty conseguiu chegar a Londres com um visto de trabalho domstico. Emborao movimento de resgate de crianas judias chamado Kindertransport tivesse setornado famoso por atender a 10 mil crianas, a maioria das pessoas judias quechegava Inglaterra tinha visto de empregadas domsticas. Grande parte das 20 milmulheres que conseguiram vistos para trabalho domstico foi alocada para realizartrabalhos domsticos pesados, e tinha uma rotina longa e exaustiva.

    Litty odiava trabalhar como empregada domstica e vivia na esperana de quequando a guerra acabasse seu marido voltaria para busc-la. quela altura, ele jtinha outra namorada e nunca demonstrou o menor interesse no bem-estar dela.

    At mesmo o vov Rudolf e a vov Helen queriam se mudar para a Inglaterra. J que Sylvi e Otto esto l, espero que a gente consiga o visto tambm

    escutei minha av dizer a Mutti. Porm isso vai levar um bom tempo meu av Rudolf ressaltou. Tenho certeza de que vamos conseguir os vistos Mutti os tranquilizou.Internamente, desejava que pudssemos nos unir a eles e mudar para a

    Inglaterra com o resto da famlia, mas as coisas no aconteceriam assim.Pappy sabia que os nazistas eram perigosos desde o momento em que Hitler

    chegou ao poder na Alemanha em 1933. Ele nunca conversou sobre isso conosco,mas estava procura de um lugar seguro em que pudssemos morar precisssemosou no. Como exportador de sapatos, ele viajava frequentemente e tinha contatocom inmeras empresas estrangeiras. Quando uma fbrica na Holanda estavaprestes a fechar, ele decidiu investir no negcio e manter parte do capital dafamlia l para o caso de precisarmos sair da ustria. Parecia uma boa ideia: o sulda Holanda era o centro da indstria de calados europeia, e o pas havia semantido neutro na Primeira Guerra Mundial; meus pais esperavam que as coisas semantivessem assim caso ocorresse uma nova guerra. Porm, mesmo que as coisasno chegassem a esse nvel, estava claro que a nossa vida na ustria tinha mudadopara sempre. Meus pais decidiram que havia chegado a hora de partir.

    A ustria no mais um bom lugar para vivermos disse Pappy , mas aHolanda um pas maravilhoso. Imagine, Evi, estaremos bem prximos do mar e lh vrios lagos e rios por onde poderemos navegar e fazer passeios de barco.

  • Achei a ideia muito tentadora. No havia litoral na ustria e Heinz e euadorvamos ir praia.

    Mas por que voc tem que ir sem ns? perguntei a ele com a voz embargada,tentando segurar as lgrimas.

    Sair da nossa casa seria algo difcil, mas tornou-se ainda mais complicadoquando descobri que no iramos juntos. Somente Pappy poderia conseguir umtrabalho e um visto de residente. Mutti, Heinz e eu s poderamos ficar comovisitantes por um curto perodo.

    No vamos ficar separados por muito tempo. Estarei bastante ocupado com afbrica nova, mas quando nos encontrarmos, vamos fazer todas as coisas que vocgosta de fazer meu pai tentou me tranquilizar.

    Mutti nos disse que todos ns conseguiramos o visto, que viveramos emBruxelas, que Pappy trabalharia numa pequena cidade da fronteira holandesachamada Breda e que ele nos visitaria nos finais de semana.

    Tentei no demonstrar a Mutti o quo assustada e confusa eu estava. Pappypediu que ficssemos bem e que nos comportssemos, e disse tambm que em brevenos veramos. Depois, ele nos beijou, nos abraou e disse que o tempo voaria atque nos encontrssemos novamente. Ento ele partiu.

    Como descobri depois, ele partiu em cima da hora. Um pouco depois disso, emsetembro de 1938, as autoridades nazistas nos escreveram solicitando que meu paicomparecesse para apresentar seus bens e entreg-los, mas ele j no estava maisna ustria.

    Mutti comeou a ter suas prprias preocupaes. Os nazistas estavam impondorestries em relao quantia em dinheiro e a quantidade de bens que os judeuspoderiam levar consigo ao deixarem o pas. Presenciei todos os pertences quetinham um significado enorme para a minha famlia serem vendidos, um a um.

    Um dia foi a nossa mesa com tampo de mrmore; no outro dia alguns itens quemeu pai havia herdado de seu prprio pai. Alguns desses pertences eram valiosos,mas Mutti nunca conseguiu um preo justo. Todos sabiam que os judeus estavamvendendo todos os seus pertences e que por isso estavam aceitando as menoresofertas.

    Os nazistas j tinham mudado as nossas vidas para sempre. Vi a personalidadedos meus pais mudar. Minha me, uma pessoa livre de preocupaes e que nuncahavia preparado uma refeio nem limpado a casa ou tomado alguma decisoimportante, transformou-se subitamente. Seu apelido sempre havia sidocordeirinho mas, no momento em que meu pai partiu, ele a deixou como nicaresponsvel por mim e por Heinz, pela nossa casa e pelo nosso futuro. Ela enfrentoua situao, mostrando-nos a mulher forte, determinada, pragmtica e madura quehavia sido o tempo todo.

    Uma das primeiras coisas que ela fez foi aprender algo novo com o qualpoderamos contar. Depois de refletir um pouco, ela decidiu fazer um curso deesteticista com durao de seis semanas, e em pouco tempo vrios cremes e

  • instrumentos apareceram em nossa casa. Mutti provou grande habilidade emproduzir cremes e loes mas menos aptido para aplic-los. Depilao desobrancelhas era o seu tormento; ela odiava a ideia de pr cera quente no rosto dealgum e depois ter de arranc-la. Muitas de suas amigas saam do nossoapartamento com uma sobrancelha mais fina que a outra ou com um desenhoindesejado.

    Um dia ns brigamos. Mutti me disse que poderamos levar apenas algumasroupas, uma quantidade que coubesse em nossa mala pequena, e tnhamosplanejado exatamente o que levaramos. Eu precisava de um casaco novo e, assim,de mos dadas, fomos at uma loja Bitman para escolher um. Nunca meperguntaram a minha opinio sobre quais roupas gostaria de vestir, e Mutti nomostrou o menor sinal de que me consultaria agora. Ela pediu a opinio davendedora, que ento trouxe um casaco laranja com um chapu xadrezcombinando. Minha obstinao no havia me abandonado. Detestei o casaco e ochapu. Isso horrvel, disse a elas, e acrescentei: No vou usar isso!.

    Mutti tentou me convencer dizendo que as peas eram a ltima moda naBlgica e eu tentei persuadi-la de que aquilo no combinava comigo. Samos da lojacom o casaco e o chapu e jurei que nunca os vestiria. Por fim, chegamos a umacordo, mas Mutti teria de tingir o casaco de azul marinho para que eu pudesse us-lo.

    Ao olhar para trs, hoje como me e av, percebo o quanto essa poca deve tersido difcil para Mutti. As preocupaes dela aumentaram ainda mais quando, certodia, Heinz chegou da escola com o rosto ensanguentado e machucado. Algunsgarotos da sala haviam debochado dele porque era judeu. Depois bateram nele e lhederam um soco em seu olho saudvel. Os professores mantiveram-se do lado dosgarotos e permitiram que eles espancassem Heinz. Havia uma onda de bullying seespalhando pela ustria, e Heinz foi uma dessas vtimas indefesas.

    Juntas, tentamos acalm-lo; Mutti limpou o rosto dele enquanto eu seguravasua mo e o ouvia chorar inconsolavelmente. Meus pais decidiram que era melhorHeinz sair do pas o mais rpido possvel, e alguns dias depois ns o levamos at aestao de trem para que ele partisse. Sabamos que Pappy o receberia do outrolado, mas naquele dia meu irmo, que tinha doze anos, parecia novo e insegurodemais, enquanto caminhava pela plataforma segurando apenas uma mala pequenae uma mochila cheia de livros. Heinz era muito jovem para fazer uma viagemsozinho pela Europa, mas havia uma poro de crianas judias embarcando emviagens semelhantes rumo ao desconhecido.

    Mutti e eu ficamos por mais algumas semanas no pas enquanto ela tentavavender os nossos pertences, at que finalmente chegou o dia de partirmos tambm.Fiquei com medo, confusa e at infantilmente animada. Para uma criana de noveanos, aquilo era como embarcar em uma grande e assustadora aventura.

    Despedimo-nos da vov Helen e do vov Rudolf, que ainda estavam esperandoseus vistos para a Inglaterra.

  • Na estao de trem, respirando fundo enquanto nos preparvamos para deixarpara trs tudo que conhecamos ali, Mutti segurou a minha mo com fora enquantoembarcvamos na viagem mais longa e tensa de nossas vidas.

    Prosseguimos em uma viagem agitada e temerosa. Chacoalhamos dentro dotrem por toda a Europa, amontoadas em nosso pequeno compartimento e tomandotodo o cuidado para no fazer nenhum contato visual com os companheiros deviagem. Pelas janelas embaadas pelo vapor do trem, observvamos a paisagemenquanto deixvamos para trs primeiro a ustria e depois a Alemanha.

    Eu no parava de me coar porque Mutti havia me obrigado a vestir todas asroupas que eu tinha, pois no havia mais espao em nossas malas. Minhas mostremiam todas as vezes em que ramos foradas a descer do trem para mostrar osdocumentos, e meus olhos se arregalavam diante de todos aqueles soldados deexpresses frias e armas nas mos.

    Depois do que pareceram dias, o trem chegou a uma parada e eu literalmenteesmoreci de alvio e exausto quando vi Pappy e Heinz na plataforma. Eles nosabraaram e comecei a contar ansiosamente para Heinz tudo o que havia visto aolongo do caminho e o quanto tinha odiado o meu casaco horrvel na cor laranja.

    Escapamos a tempo; depois de apenas algumas semanas, em junho de 1938,muitos pases fecharam suas fronteiras para refugiados judeus.

  • Captulo 4Uma garota indesejvel

    As primeiras semanas de nossa nova vida pareciam longas e estranhas frias.Era junho de 1938; estvamos com Pappy na Holanda, fazendo longos passeios eandando de bicicleta pelos jardins de urzes holandesas que cercavam a cidade deBreda. Depois de todas aquelas semanas tensas em Viena esperando nosso visto sair,sentia-me aliviada por respirar ar puro e por poder conversar com Pappy e Heinz,ainda que tudo o que eu tivesse para dizer versava sobre as coisas terrveis quetnhamos deixado para trs na ustria.

    Contudo, pouco tempo depois nossos vistos de visitantes na Holanda expirarame tivemos de cruzar a fronteira com a Blgica. Comecei a contar os dias, quepareciam interminveis, at os fins de semana, quando Pappy poderia nos visitar etodos ficaramos juntos novamente.

    Muitas famlias judias estavam chegando Blgica em 1938 procura de umporto seguro para se afastar do Terceiro Reich de Hitler mas as boas-vindasrecebidas no eram nada agradveis.

    Aps a unificao da Alemanha e da ustria, o ministro da Justia da Blgica,Charles du Bus de Warnaffe, ordenou embaixada belga em Viena que negassevistos para judeus, e disse ao Parlamento que os judeus tinham constitudo umgrande problema para a Europa ao longo dos sculos. Em seguida, ele escreveu umartigo referindo-se ao meu povo como pessoas extremamente duvidosas, sem omenor senso de honra. Do nosso ponto de vista, a recproca era verdadeira: nosanos 1930, a honra da Europa estava em decadncia.

    A magnitude das mudanas em minha vida deixava-me tonta. Apenas algunsmeses antes eu era uma menina segura da minha educao austraca, rodeada poruma famlia grande, com avs, tios, tias, primos e primas, e que ia para a escolacom os amigos.

    Quero ir para a nossa casa na ustria disse a Heinz, chorando.Porm, sabamos que no poderamos voltar. Muitos dos meus parentes e

    amigos foram presos, mas outros fugiram para pases dos quais eu nunca tinhaouvido falar. Meus avs ainda estavam em Viena esperando ansiosamente pelapermisso para viajar para a Inglaterra. Mesmo a nossa pequena famlia de quatropessoas estava separada. Como poderamos chamar este novo lugar de casa se notnhamos Pappy?

    Depois das avenidas elegantes, das rvores de tlias e dos cafs de Viena, asruas com caladas midas e escuras de Bruxelas me deprimiam. O cu cinzento noscomprimia com uma garoa constante; raramente sentia-me livre.

    Mutti, Heinz e eu nos mudamos para dois cmodos em uma penso na rue deLEcosse. Quando olhei nossos aposentos fiquei com o corao partido. Imaginei omeu quarto em Viena, mas claro que, muito provavelmente, outra famlia austraca

  • j estivesse morando em nossa casa. Desejava que ali naqueles dois cmodospequenos estivesse a nossa moblia em vez daquelas cadeiras e camas velhas ecorrodas mas ento me lembrei que Mutti tinha sido obrigada a vender todos osnossos pertences.

    ramos pessoas sem ptria e indesejadas em qualquer lugar. Viver emBruxelas foi uma experincia traumtica para mim, com uma adaptao muitodolorosa principalmente porque eu no falava francs. Enquanto Heinz corria paracasa depois da escola todos os dias para deitar na cama e se debruar sobre seuslivros novos, eu me esforava. Na escola, ficava com as bochechas vermelhas devergonha pela minha incapacidade de concluir at mesmo a tarefa mais simples ouresponder a qualquer pergunta feita pelos professores.

    As outras crianas lanavam alegremente suas respostas, me cercando com umaparede de sons. Embora eu fosse uma pessoa que gostava de esportes e que amavaestar ao ar livre em Viena eu era uma boa aluna , agora eu era apenas a boba daclasse.

    Eva, por que voc no consegue aprender esse verbo? minha me meperguntava desesperada quando tentava me ajudar nas lies. Mutti havia sidotutora de francs na ustria, embora costumssemos brincar dizendo que era elaera to ruim que seu nico aluno havia cometido suicdio. Pode ser que ela nofosse to ruim (ela tinha at um diploma da Universidade de Viena), mas suahabilidade para ensinar francs certamente no me atingiu.

    Uma das poucas coisas boas que me aconteceram durante a estada na Blgicafoi ter feito amigos como Jacky, o filho mais novo de madame Le Blanc, dona dapenso onde vivamos. Sempre tive facilidade para fazer amizade com garotos,como Martin, em Viena, e agora Jacky; entendamo-nos muito bem, embora nofalssemos a mesma lngua.

    Decidimos pregar uma pea em um homem de meia-idade chamado sr. Dubois,que morava permanentemente na penso e era aposentado havia trabalhado comofuncionrio pblico no Congo. Ele exalava uma austeridade extrema e sempretomvamos cuidado ao passar por ele pelos corredores. Certo dia, depois do caf damanh, Jacky e eu entramos no quarto dele e esperamos at que ele voltasse.

    A parede atrs da cama estava repleta de lanas e de todos os tipos deartefatos perigosos que ele trouxera da frica. Rindo, nos escondemos atrs dacama. Depois do que pareceu uma eternidade, ouvimos a maaneta da porta e orudo dos passos pesados dele. Em seguida, Jacky e eu gritamos. Com um berro, o sr.Dubois pulou em cima da cama e agarrou uma lana pronto para crav-la em ns.Grunhindo, samos detrs da cama e corremos para fora do quarto, ofegantes. Jackye eu juramos que no nos aproximaramos dele novamente; ele demonstrava umaexpresso de raiva muito sombria, algo muito assustador. Queria evit-lo a todocusto, mas alguns dias depois, quando eu estava sozinha, ele me encurralou nocorredor.

    Voc gosta das minhas lanas? perguntou-me.

  • No gostava nem um pouco de lanas, mas murmurei algo que soou como umgesto educado.

    Por que no vemos essa coleo juntos? disse ele, e ento eu ficaria livre dequalquer futura confuso em relao ao que tinha aprontado. Ele nunca contaria aningum. Em seguida, ele me levou at seu quarto dizendo que queria me mostrarmais fotos do Congo.

    Com muito receio, permaneci ao lado dele enquanto ele se sentava prximo escrivaninha e folheava um lbum de fotografias marrom. Os segundos e os minutospassavam em cmera lenta. Por fim, parecia que finalmente a nossa sesso haviachegado ao fim, ento suspirei aliviada quando pude sair e voltar para o quarto quedividia com Heinz.

    Contudo, alguns dias depois o sr. Dubois me encurralou novamente. Como daoutra vez, fomos at o quarto dele, e permaneci de p enquanto ele se debruavasobre suas fotos antigas. A tenso silenciosa e a respirao superficial dele enchiama sala com uma energia estranha, mas quando ele terminou de me mostrar as fotos,sa correndo do quarto, muito aliviada. Talvez eu no tivesse que v-lo nunca mais.

    Esses encontros tarde eram to angustiantes que eu esperava que o sr. Duboisperdesse o interesse neles, mas ele me procurou no dia seguinte e alguns dias depoisdisso tambm.

    medida que as semanas passavam, ele comeou a pedir para eu me sentar emseu joelho enquanto olhava o lbum de fotos. Eu odiava isso muito mais do que ficarem p ao lado dele, mas obedecia e esperava at que pudesse voltar para Mutti,que no tinha a menor ideia do que estava acontecendo. Depois de ter sentadosobre seus joelhos algumas vezes, percebi que ele estava acariciando a si mesmo.Embora no compreendesse o que ele estava fazendo, sabia que era algo errado.Fiquei congelada e paralisada de medo.

    Aquele era o nosso segredo, ele me dizia. Eu no deveria contar a ningum ouento teria srios problemas ele poderia pegar uma daquelas lanas que tinha naparede e me matar.

    Logo, o sr. Dubois comeou a fazer com que eu o acariciasse tambm, e eudetestava ter de toc-lo l embaixo. Mutti e Heinz comearam a perceber que euestava ficando muito retrada, mas eles no sabiam o que estava acontecendo. Euj me sentia triste por morar em outro pas, longe de Pappy. Agora eu falava muitopouco e minha autoconfiana parecia ter se esvado.

    Essas horrveis sesses continuaram at o dia em que o abuso do sr. Duboischegou a tal ponto que ele ejaculou em um leno.

    Fiquei to aterrorizada e aturdida que sa correndo do quarto e corri paraMutti. Ao ver o meu estado, ela exigiu que eu contasse o que estava acontecendo eeu revelei toda a verdade para ela.

    Mutti foi procurar madame Le Blanc e juntas elas foram at o quarto do sr.Dubois para confront-lo. Claro que ele negou, mas havia uma prova seu lenosujo no cesto de lixo. Ao ver que no havia mais como continuar mentindo, ele

  • confessou e inventou umas desculpas sobre o que havia acontecido.Mutti ficou indignada e exigiu que madame Le Blanc o expulsasse da penso

    imediatamente. Para surpresa de minha me, madame Le Blanc recusou-se a fazerisso. ramos hspedes temporrios, ela disse a Mutti, e o sr. Dubois era um hspedefixo que continuaria l, pagando o aluguel do seu quarto, quando sassemos dapenso.

    Era difcil acreditar que algum poderia dizer tal coisa e um estado de choquerecaiu sobre Mutti, e tambm sobre Pappy e Heinz quando ela contou a eles o quehavia acontecido. Mas parecia no haver nada que pudssemos fazer. ramosrefugiados em um pas estranho, esperando pelos nossos vistos para que pudssemosser uma famlia novamente.

    Mutti me orientou a nunca mais falar com o sr. Dubois, e ela fez tudo o quepodia para me proteger sentava ao lado da minha cama toda noite quando eu iadormir. Mas durante meses tivemos de passar por ele nos corredores e nos manterem silncio na sala de jantar enquanto o homem que havia me molestadocontinuava sua vida normalmente, sem a menor perturbao.

    Esta foi quase a pior parte dessa experincia. Na verdade, ele me olhava comose fosse eu quem tivesse cometido um crime contra ele.

    Era como se os pilares mais fortes da minha vida estivessem desmoronando aomeu redor. Pouco tempo antes eu era uma menina feliz que havia pulado de olhosfechados de cima de um guarda-roupa com a certeza de que meu pai estaria semprel para me segurar. Agora eu via que, apesar de todas as garantias, meus pais eramimpotentes para nos proteger do mal no mundo. Eles no conseguiram nos manterlonge dos nazistas e tivemos de fugir da nossa prpria casa. E agora eles nopoderiam nem mesmo me proteger de um homem que tinha me machucado da piormaneira possvel.

    Aquilo deve ter sido terrvel para eles, e foi horrvel para mim.At hoje, a memria de ter sido abusada sexualmente era to profundamente

    dolorosa e vergonhosa que nunca consegui falar sobre isso, mesmo tendoconversado bastante sobre experincias muito piores que vivenciamos em famlia.

    O resto de nossa estada na Blgica foi sombrio e repleto de ansiedade. Eu mefechei e guardei apenas alguns momentos agradveis para me animar. Havia poucaspessoas de quem eu poderia ser amiga na penso. Quando eu olhava ao redor dasala de jantar, via o semblante abatido de outras famlias judias vindas de todo ocontinente, e que estavam numa situao to deprimente quanto a nossa. Mashavia um casal sem filhos, Herr e Frau Deutsch sr. e sra Alemanha , a quemcomecei a chamar de tio e tia. Eles eram refugiados judeus de uma famlia muitorica na Alemanha e estavam esperando pelo visto para viajar para a Amrica.

    Como agrado, eles me deram barras de chocolate da Cte dOr, que vinhamcom um carto postal de um membro da famlia real belga. Logo me tornei fanticapor colecionar esses cartes. Decorei o nome de cada membro da famlia real comouma forma de tentar fazer parte de suas vidas perfeitas. s vezes, Heinz me

  • ajudava a conseguir fotos preciosas da famlia real ao trocar alguns cartes comseus amigos em troca, ele me pedia para limpar seus sapatos ou para organizarseus livros. Certo dia, o tio e a tia me deram uma pipa e s vezes nos levavam parapassear beira-mar de carro. Algum tempo depois, fiquei sabendo que o visto delesnunca chegou e que foram deportados para campos de concentrao.

    Na Blgica, o sentimento antissemita se intensificava. A campanha nazistacontra os judeus foi amplamente divulgada na imprensa belga. Talvez os judeusfossem de fato a causa de todos os problemas na Europa, alguns se questionavam, etalvez os belgas comearam a pensar esses problemas estivessem se aproximandocada vez mais de sua prpria porta.

    No meu aniversrio de dez anos, em maio de 1939, implorei para que Mutti mefizesse um bolo com dez velas e com orgulho entreguei os convites para os meusamigos da escola. Todos ficaram muitos felizes, e conversamos com muitoentusiasmo sobre quais presentes eu gostaria de ganhar.

    No dia seguinte cheguei escola ansiosa para conversar com eles sobre asideias interessantes que tive para a minha festa mas todos, um por um, disseramque no poderiam ir. Seus pais os haviam proibido de comparecer ao meuaniversrio.

    porque somos judeus Heinz me contou, com tristeza.Eu tinha dez anos de idade e era indesejvel. Eu no sabia se tudo que

    ouvamos sobre o que estava acontecendo com os judeus era verdade, mas tinhacerteza de que Pappy estava encontrando dificuldades para nos visitar durante osfins de semana. Cada pgina do seu passaporte estava estranhamente preenchidacom os selos de entrada e sada da fronteira entre Holanda e Bruxelas, devido frequncia com que ele nos visitava, e logo ele precisaria de um novo passaporte.

    Mutti estava se empenhando ao mximo junto ao Centro de Refugiados paraconseguir o nosso visto holands, mas esperamos, esperamos e nada aconteceu. Euno sabia que ela tambm estava tentando encontrar outro pas seguro paramorarmos mas sua busca foi em vo.

    Ms notcias, ela escreveu para meus tios na Inglaterra, o nosso pedido deemigrao para a Austrlia foi negado.

    quase insuportvel pensar no quanto esse pedido negado mudou nossas vidas.Em setembro de 1939, chegamos ao auge da tenso, mas pelo menos, no ltimo

    momento, tivemos uma notcia boa.Quase morri de emoo ao saber que encontraramos o vov Rudolf e a vov

    Helen. Finalmente eles haviam conseguido o visto, aps um procedimento exaustivono qual saram da ustria com permisso para entrar na Inglaterra, apenas paraserem barrados na fronteira da Blgica por no ter um visto de trnsito no pas. Elestiveram de voltar para a ustria, solicitar o visto belga e esperar ansiosamente pelaresposta positiva antes de fugirem no ltimo momento.

    Eu no tinha ideia de nada disso. O que eu sabia era que reencontrar os meusavs depois de tudo o que havamos passado era como um sonho maravilhoso. Eles

  • no eram apenas um produto da minha imaginao deixados para trs junto com asoutras memrias e bens que eu tinha na ustria eles eram reais.

    No dia em que eles chegaram, meus ps pareciam flutuar sobre as ruassombrias de Bruxelas enquanto corramos para encontr-los no Centro deRefugiados. O Centro estava sempre cheio. Havia uma fila de mesas em que osfuncionrios ficavam sentados fazendo uma triagem de fichas interminveis,tentando reunir as famlias, providenciar vistos e divulgar notcias. Geralmenteaquele ambiente era muito chato para mim, mas naquele dia eu estava toanimada que mal conseguia ficar parada.

    V! V!, gritei assim que os avistei, sem perceber o quanto meu av estavamagro nem no quanto minha av olhava para todos os lados o tempo todo. Ento osabracei e, agarrando seus braos, disse: Tenho que contar para vocs sobre aminha escola nova, estou aprendendo francs, mas Mutti diz que no sou muito boanisso, e na penso onde a gente mora tenho um amigo novo, ele se chama Jacky.Entusiasmada, minhas palavras saam como se quisesse contar a eles tudo que haviaacontecido conosco desde que samos da ustria.

    Os dias que ficamos juntos passaram to rapidamente que nem parecia quemeus avs estavam prestes a embarcar rumo Inglaterra. Embora eles tentassemconversar tranquilamente com a minha me, ouvi trechos da conversa que soavamcomo problemas. Meu av e minha av sussurravam algumas notcias para minhame, contando as coisas terrveis que estavam acontecendo com os judeus: guetosna Polnia e o Kristallnacht, no qual muitas sinagogas alems foram incendiadas elojas judaicas saqueadas.

    Uma semana depois que meus avs partiram em busca de um lugar seguro, aAlemanha invadiu a Tchecoslovquia com a justificativa de proteger o povo deSudetos e reuni-los ao imprio. A Alemanha tambm assinou o Pacto de Ao com aItlia e em seguida invadiu a Polnia e Frana, Inglaterra e todos os pases daCommonwealth (Austrlia, Nova Zelndia e Canad) declararam que os tempos depaz tinham chegado ao fim.

    Estou falando com vocs diretamente da Sala do Gabinete no nmero 10 daDowning Street o primeiro-ministro britnico Neville Chamberlain comeou seufamoso discurso transmitido pelo rdio em 3 de setembro de 1939. Nesta manh, oembaixador britnico em Berlim entregou ao governo alemo um parecer final,afirmando que, a menos que se pronunciem at s onze horas informando estarempreparados para retirar suas tropas da Polnia, est declarado estado de guerraentre ns. Devo dizer que at o momento no recebemos tal comprometimento eque, consequentemente, este pas est em guerra com a Alemanha.

    Ele finalizou o discurso dizendo: contra tudo o que h de mal que lutaremos; fora bruta, m-f, injustia,

    opresso e perseguio; e contra isso, tenho certeza de que o certo prevalecer.A Segunda Guerra Mundial havia comeado.Aquela era uma notcia esperada e considerada inevitvel havia muito tempo,

  • mas quando ela se concretizou, uma estranha sensao de inquietude e de incertezanos abateu. Meus pais permaneceram distrados e pareciam perdidos em seusprprios pensamentos.

    Do lado de fora, nas ruas e na escola, uma estranha calmaria recaiu sobre aBlgica, como se as pessoas soubessem que uma mudana estava por vir, mas nosabiam ao certo o que ela traria.

    Houve momentos em que sentamos uma presso muito grande, como sefssemos as fibras de um elstico a ponto de se romper, e parecia que nosuportaramos outro momento de tenso. Mas tivemos de enfrentar essa situaodesconfortvel dia aps dia, ansiosos pelos prximos seis meses.

    Finalmente, em fevereiro de 1940, recebemos a notcia que tanto espervamos.Concederam-nos os vistos para a Holanda, e poderamos viajar para Amsterd paramorar com Pappy.

    O tempo que passei na Blgica mudou a minha vida de uma forma que eujamais poderia imaginar. Apesar de aparentarem total confiana, eu sabia que meuspais estavam profundamente abalados e eu era agora uma garota muito diferentedaquela que havia embarcado no trem em Viena. Dessa vez comecei a viagemintrospectiva e em silncio, com pouco sentimento de aventura, apenas alvio. Meusolhos haviam sido abertos para algumas das coisas desagradveis da vida, e eu mesentia contente em saber que, o que quer que fosse que Amsterd nos reservava,era a prxima etapa da histria da nossa famlia.

  • Captulo 5Amsterd

    A vida no exlio foi, sem dvida, uma grande tenso para os meus pais, mas euestava prestes a desfrutar dois anos muito felizes em minha vida.

    Durante o tempo em que moramos em Amsterd criamos profundos laosfamiliares. Heinz e eu estvamos crescendo, passando pelas mesmas dores fsicas eemocionais de qualquer adolescente. Fizemos novas amizades e desfrutamos degrandes aventuras, navegando pelos lagos e canais holandeses em pequenos barcosde madeira. E tambm demos nossos primeiros passos na tentativa de comear umrelacionamento com o sexo oposto ou no, no meu caso. No havia oficiais nosvigiando e, certo tempo depois, um toque de recolher imposto pelos nazistas nosmanteve em casa durante a noite, fazendo com que ns quatro nos reunssemos eficssemos ainda mais prximos.

    Depois de ter sofrido um trauma para toda a vida em Bruxelas, eu estavaencantada com a nossa casa nova que era totalmente diferente da que havamosdeixado para trs. A ustria era um pas terroso e spero, com pessoas quehabitavam as sombras das montanhas e que viviam sobre os lagos glaciais deprofundezas impenetrveis. Pensando nisso anos depois, minha terra natal parecianos cobrir debaixo de suas florestas negras e do pico de suas montanhas, enquanto aHolanda flutuava sob uma paisagem aqutica e nebulosa.

    Eu podia andar de bicicleta ao longo de quilmetros de represas rurais quecercam aquele pequeno pas, observando a pastagem de gado beira da guaenquanto os moinhos de vento giravam lenta e silenciosamente com a brisa.

    A Holanda havia se mantido neutra na Primeira Guerra Mundial e espervamosque continuasse assim, com o pas acionando o sistema de inundao de sua rede devias navegveis, em caso de extrema necessidade, para impedir a invaso nazista.

    Em abril de 1939, Hitler prometeu respeitar a neutralidade dos Pases Baixos,mas aps a invaso alem na Polnia, era evidente que tais promessas no seriamcumpridas. O governo holands entrou em pnico e mobilizou seu exrcitodespreparado, mas a populao amplamente pacifista e os polticos eram incapazesde compreender o nvel de ameaa que estavam enfrentando.

    At o incio de 1940, grande parte da Europa estava em crise, mas osholandeses mantinham uma atmosfera de tranquila inocncia, ainda ilesa aoderramamento de sangue do sculo XX e sem ter sido afetada pela modernamquina de guerra concentrada na fronteira alem.

    Aos domingos, os agricultores holandeses ainda iam para a igreja calandosapatos de madeira. Suas casas enfeitadas eram cuidadosamente pintadas comcores brilhantes, e as janelas eram contornadas de branco. Embora a eletricidadetivesse chegado a Amsterd, em alguns lugares os lampies ainda iluminavam asruas ao anoitecer. O pas mantinha os ltimos vestgios da velha Europa e esperava

  • pelo melhor.Chegamos estao central de Amsterd em uma manh fria, em fevereiro de

    1940. Pappy veio ao nosso encontro com um sorriso enorme no rosto, e subimos ata plataforma do trem 25, que nos levaria at o nosso apartamento novo. Ao longodo caminho, Pappy nos mostrou todos os canais e casa dos comerciantesimportantes que eram os responsveis pela riqueza e pelo sucesso do impriocomercial holands. Pappy me contou, sussurrando, que as pontes de madeiratinham buracos nas tbuas, assim, quem passasse por elas poderia ver a gua e osbarcos ele provavelmente sabia que s eu adoraria saber desse detalhe.

    O trem nos levou para o sul atravessando a cidade, passando por De Pijp, obairro da classe operria, at uma rea chamada River Quarter. Um edifcio quepara mim pareceu ser um arranha-cu despontou no horizonte. A River Quarter eraassim denominada porque as ruas repletas de lamos receberam o nome de diversosrios que fluam dos Pases Baixos em direo ao mar incluindo os rios Reno, oMosa, o Escalda e o Jeker.

    Na dcada de 1920, as empresas progressistas haviam construdo novos blocosde apartamentos para os trabalhadores com o apoio do governo. Muitas dessasconstrues foram realizadas com tijolos escuros e telhados na cor laranja, masgeralmente cada janela tinha um vaso de flores e uma delicada cortina de renda. noite, os holandeses colocavam lmpadas nas janelas e era possvel ver as famliasreunidas para o jantar, as crianas fazendo suas lies de casa e lendo livros. Osapartamentos eram pequenos, porm confortveis. Havia gua encanada e jardinspara as crianas brincarem.

    A Grande Depresso ps fim ao boom da construo civil, e muitosapartamentos permaneceram desocupados, inclusive os do prdio de doze andaresque avistei logo que cheguei cidade. Os arranha-cus foram erguidos e mantidosvazios nas ruas da cidade durante anos. Agora, um fluxo grande de judeusrefugiados como ns estava alugando os apartamentos desses e dos prdios ao redorda praa Merwedeplein. Durante anos, essa torre foi a nossa bssola. Onde quer queestivssemos na cidade, bastava olhar para cima para avistar a presena imponentedo prdio a longa distncia e seguir a direo para casa.

    Nosso novo apartamento ficava no nmero 46 da Merwedeplein, um dosedifcios mais altos em frente praa.

    O espao aberto em formato triangular da praa pareceu muito atrativo desdeo primeiro dia, ento pulei do trem e corri pela grama dando cambalhotas. Heinzpassou por mim e juntos comeamos a correr em direo ao nosso apartamento,que ficava no primeiro andar.

    Ah, Erich! minha me ex