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7/29/2019 De Decca Cordialidade Sergio Buarque http://slidepdf.com/reader/full/de-decca-cordialidade-sergio-buarque 1/15 Ensaios de nacionalidade: cordialidade, cidadania e desterro na obra de Sérgio Buarque de Holanda Essays on Nationality: Cordiality, Citizenship and Exile in the Works of Sérgio Buarque de Holanda Edgar Salvadori de Decca 1 Resumo  A quest ão de “quem so mos” foi levanta da no século 19, com a consolidação do Estado nacional no Brasil, e permaneceu como nossa indagação mais urgente, tornando-se a partir dessa época uma  verdadeira obsessão da intelectualidade no Brasil. Dessa indagação do ser nacional, projetam-se todos os modelos políticos da intelectualidade brasileira, desde o século 19. Este texto observa como a obra de Sérgio Buarque de Holanda enquadra-se nessa perspectiva, reformulando-a. Palavras-chave: Sérgio Buarque de Holanda, Nacionalidade, Cordialidade. Sérgio Buarque de Holanda, um historiador cuja obra origina- se na idéia do desterro! Surpreendam-se, porque Sergio ao mesmo tempo em que pensa as raízes da nacionalidade, desenraiza-se. Talvez a obra que eu vá analisar mais detidamente nesta conferência, seja uma obra de desterro, porque Raízes do Brasil  , obra que nós vamos estar nos referindo, é uma obra que foi concebida no exterior. Concebida nos anos que Sérgio Buarque viveu na Alemanha. Portanto, é uma experiência de olhar o Brasil de uma maneira estrangeira. Quase que desterrado, longe da sua própria terra. Depois de muitos anos, precisamente na década de cinqüenta, esse olhar estrangeiro seria dirigido à Portugal na época dos descobrimentos. E esse olhar estrangeiro produziu uma instigante tese de mestrado que está, até hoje, inédita entre nós. No entanto, mesmo não sendo matéria dessa conferencia, devemos lembrar que esse olhar das fronteiras é marcante 1 Edgar Salvadori de Decca é Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

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Ensaios de nacionalidade: cordialidade,cidadania e desterro na obra de SérgioBuarque de Holanda

Essays on Nationality: Cordiality, Citizenship and Exile in the Works 

of Sérgio Buarque de Holanda 

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Resumo

 A quest ão de “quem somos” foi levantada no século19, com a consolidação do Estado nacional noBrasil, e permaneceu como nossa indagação maisurgente, tornando-se a partir dessa época uma verdadeir a obsessão da inte lectualidade no Brasi l.Dessa indagação do ser nacional, projetam-se todosos modelos políticos da intelectualidade brasileira,desde o século 19. Este texto observa como a obrade Sérgio Buarque de Holanda enquadra-se nessa

perspectiva, reformulando-a.Pa l a v r a s - chave : Sérgio Buarque de Holanda,Nacionalidade, Cordialidade.

Sérgio Buarque de Holanda, um historiador cuja obra origina-se na idéia do desterro! Surpreendam-se, porque Sergio ao mesmotempo em que pensa as raízes da nacionalidade, desenraiza-se. Talveza obra que eu vá analisar mais detidamente nesta conferência, sejauma obra de desterro, porque Raízes do Brasil  , obra que nós vamosestar nos referindo, é uma obra que foi concebida no exterior.Concebida nos anos que Sérgio Buarque viveu na Alemanha. Portanto,é uma experiência de olhar o Brasil de uma maneira estrangeira. Quaseque desterrado, longe da sua própria terra. Depois de muitos anos,

precisamente na década de cinqüenta, esse olhar estrangeiro seriadirigido à Portugal na época dos descobrimentos. E esse olhar estrangeiro produziu uma instigante tese de mestrado que está, atéhoje, inédita entre nós. No entanto, mesmo não sendo matéria dessaconferencia, devemos lembrar que esse olhar das fronteiras é marcante

1 Edgar Salvadori de Decca é Professor do Departamento de História da Universidade

Estadual de Campinas (UNICAMP).

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na obra de Sergio desde Raízes do Brasil, debruçando-se sobre asfronteiras da Europa. Esse olhar, como já disse, anteriormente, éfundamental para a construção de sua tese de mestrado. No entanto,precisamos insistir em outro ponto, porque é o outro caminho deminha pesquisa na historiografia de Sergio, a fronteira do Oeste, tornou-se privilegiada em toda a sua obra, destacando-se as incursões nasfronteiras na obra Monções, Caminhos e Fronteiras e no seu textopóstumo inacabado O Extremo Oeste, preparado com carinho pelohistoriador, amigo de Sergio, José Sebastião Witter. Entre a primeiraconcepção de fronteira e a segunda há enormes diferenças. A primeiraé tributária da obra de Ranke, entendida a fronteira como território

ponte e a segunda concepção, inspirada em Frederick Turner, nossugere a fronteira como lugar da história, posto que, nelas as culturasestabelecem as suas identidades e diferenças. No entanto, não tratareidesse assunto nesta conferencia, muito embora eu possa voltar aoassunto no momento das questões.

Sérgio Buarque tem uma trajetória extremamente peculiar doponto de vista historiográfico. Eu gostaria de, primeiramente, dar umpanorama sucinto dos momentos mais marcantes da trajetória intelectualde Sergio Buarque. O primeiro momento marcante da obra de SérgioBuarque é justamente o livro que está sendo objeto da nossa reflexão:Raízes do Brasil  , livro esse escrito e publicado em 1936, mas segundodepoimentos do próprio autor, todo ele concebido na Alemanha. Na verdade, nessa viagem, ele deveria ter ido a Moscou para conhecer oprimeiro país de experiência comunista na história. Sérgio Buarque tinhaessa missão a convite de um jornal brasileiro e a sua viagem se frustroue ele acabou passando quase dois anos na Alemanha, aonde ele teriaescrito uma obra de quatrocentas páginas, texto esse que jamaislocalizado. Apesar do arquivo de Sérgio Buarque pertencer hoje aUnicamp, não se tem conhecimento desse texto. Mesmo assim, muitosbiógrafos do autor se referiram a essa suposta obra que ele teria escritona Europa cujo título seria Uma teoria da América . É possível perceber essa teoria da América em Raízes do Brasil . O livro é construído por umsistema de oposições que durante todo o tempo relaciona a culturaibérica nas suas dimensões lusitanas e espanholas. Os elementos queSérgio Buarque tenta encontrar dessa formação histórica da América

Latina estariam traduzidos em uma teoria geral, com pontos em comumcom o que significa essa Europa fronteiriça pós Pirineus, que seria aEuropa ibérica, já quase próxima à África, e com a sua ponte para ocontinente americano. Países fronteiriços que, um historiador muitocaro a Sérgio Buarque de Holanda, Leopoldo Hank, também pensavaneles, quando escreveu  A formação da Europa . Eram esses paísesfronteiriços da Europa como Portugal, Espanha e a Rússia também.Sérgio Buarque provavelmente idealizou a obra de Raízes do Brasil  ,

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originalmente num tema maior que seria Uma teoria da América . EssaTeoria da América  , portanto, em 1936, iria se transformar na obraRaízes do Brasil . Uma obra de desterro, eu diria. Uma obra de Sérgiodesterrado na Alemanha e que, em seguida, se nós formos observar atrajetória historiográfica do autor, veremos que há uma seqüência detrabalhos quase de caráter etnográfico, em que Sérgio Buarque mergulhapara dentro desse território de desterro que é o Brasil. Livros que sãosignificativos nesse sentido são: Raízes do Brasil  , Monções  , Caminhos e 

fronteiras e Extremo Oeste . De novo, aparecem relações de desterrodentro da própria terra. A questão da identidade ou da falta dela apareceem viagens historiográficas voltadas para o território do desterro. As

idéias dos próprios títulos são sugestiva s: Extremo Oeste  , isto é, afronteira mais longínqua. Caminhos e fronteiras dá a idéia de movimento,do instável, do móvel e do passageiro, e a fronteira como uma noçãode limite. Sérgio Buarque, portanto, nesse período olha o desterro apartir de dentro. Faz uma extrema interiorização da experiência dedesterro. Permanece durante anos, como diretor, daquilo que a genteconhece hoje como Museu da Independência do Brasil — o Museu doIpiranga. Passado esse período Sérgio Buarque de Holanda nossurpreende com uma tese inédita, um texto que jamais foi tornadopúblico e que talvez, algum dia, com a anuência de sua família, todostenham oportunidade de conhecer. Esse texto inédito é contemporâneoa outro texto, que é uma cátedra que ele defende na USP, em 1958,Visão do paraíso . O texto inédito de Sérgio é uma tese de mestrado,

defendida em uma escola importantíssima de São Paulo, que foi criadapelo empresariado industrial paulista, em 1933 — a Escola Livre deSociologia e Política. Essa escola tinha como projeto educacional, acriação de uma liderança moderna em São Paulo, voltada para as novasresponsabilidades do empresariado perante a modernização do Brasil,com o intuito de substituir as elites tradicionais, formadas nobacharelismo, um traço muito condenado por Sérgio Buarque deHolanda. A sua tese de mestrado foi defendida, justamente, nessa escolacriada pelo empresário Roberto Simonsen, um dos grandes intelectuaise promotores da industrialização no Brasil. Podemos dizer mais uma vez, que se trata também de uma tese sobre o desterro.

 A tese se intitula Elementos formadores da sociedade brasileira 

na época dos descobrimentos . Três meses antes de defender a teseVisão do paraíso  , que também é um livro belíssimo, de uma culturafantástica, cuja característica principal é mostrar a percepção que oestrangeiro tinha da América e como ele a idealizou a partir da própriaEuropa. De novo, os temas da fronteira, do movimento e do desterroparecem são explorados por Sérgio e, outra vez, são temas que eleretoma com insistência. Ao final da Exposição que acompanha esseSeminário, o título da última sala é justamente Aventura, cidadania e 

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desterro . Reunindo, justamente, esses elementos: o aventureiro comoum ser em movimento; a cidadania que requer uma estabilização e odesterro que talvez seja o lugar da múltipla identidade.

Na noite de hoje, eu vou me dedicar à análise de alguns elementosda obra de estréia de Sergio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil .

De todos aqueles autores dos anos 1930, conhecidos comointérpretes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda desponta como omais inventivo e instigante. No famoso trio criado por Antonio Candido,todos eles são reconhecidos como redescobridores do Brasil, autorescuja formação intelectual deram novas interpretações sobre o ser brasileiro. No entanto, Sérgio Buarque acabou se destacando pela

criação de uma tipologia do ser nacional absolutamente original econtroversa. Falamos dos autores que Antonio Candido se referiu:Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque. A característicamarcante da interpretação do Brasil criada por esses autores foi autilização original de conceitos sociológicos em oposição aos conceitosraciais tão sobejamente utilizados por pensadores do Brasil até adécada de vinte do século passado. Sem dúvida, essa distinção foiimportante, pois retirou o substrato de uma ideologia racial quecaracterizava as interpretações do ser nacional. Esse modelo deinterpretação do Brasil baseado em caracteres raciais não era novo,tampouco era também a preocupação de se definir “quem somosnós”. Essa questão de “quem somos” foi levantada no século 19, com

a consolidação do Estado nacional no Brasil, e permaneceu comonossa indagação mais urgente, tornando-se a partir dessa época uma verdadeira obsessão da intelectual idade no Brasil. Evidentemente, aquestão tem uma conotação absolutamente política, porque ao definir “quem somos”, definimos também os agentes legitimamentereconhecidos para a ação política. Não é por acaso que essa questãotenha sido formulada na inauguração do Estado nacional brasileiro etenha se tornado a indagação maior de toda a tradição intelectual doBrasil. Dessa indagação política do ser nacional, projetam-se todos osmodelos políticos da intelectualidade brasileira, desde o século 19.

Pois bem, dizíamos que Sérgio Buarque de Holanda e os seusoutros parceiros da década de 1930 enquadram-se nessa perspectiva,

mas reformulando-a. Evidentemente, suas obras têm conotaçõespolíticas evidentes. Tanto Sérgio, como Freyre e Prado Júnior, aoperguntarem “quem somos” preocuparam-se com os destinos danacionalidade e, nesse sentido, abriram o debate para novas direções,com a expectativa de redefinição da presença dos sujeitos sociaisnovos na cena brasileira para se pensar a cidadania.

No entanto, antes de mais nada, devo adiantar o porquê deminha predileção pela obra de Sérgio Buarque e de qual obra estou me

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referindo. Sérgio surgiu no cenário intelectual brasileiro nos anos 1920,junto com a geração conhecida como modernista. Tinha na época nãomais do que vinte anos. Dirigiu periódicos, fez ensaios de crítica literáriaem defesa de padrões novos e modernos para a cultura brasileira.Posicionou-se contrário à impostação e ao artificialismo de formasliterárias adotadas pelo Parnasianismo e pelo espírito mimético de umaintelectualidade servil aos padrões estéticos vindos da Europa. Diziaaté que gostaria de abater a tiros os parnasianos na praia de Copacabana.Excessos do modernista, é claro, mas sinal de uma postura intelectualpouco subserviente aos padrões das elites culturais brasileiras. Suaimpertinência tornou-se um obstáculo para a própria permanência no

grupo mais radical e, desgostoso da vida literária dos anos 1920,abandonou tudo, inclusive os seus livros e se dirigiu a um desterrodentro de sua própria pátria em Cachoeiro de Itapemirim do EspíritoSanto, onde dirigiu um pequeno jornal. Por lá ficou até o final dos anos20, quando foi convidado a viajar para a Europa, como correspondentedo jornal Diário da Noite, com a tarefa de realizar uma viagem culturale de conhecimento do país sede da primeira revolução comunista dahistória, a União Soviética. Para isso, deveria ir à Alemanha e estabelecer contatos que o levariam para essa nova aventura cultural. Sua estadiana Alemanha iria mudar os rumos da vida de Sérgio Buarque. Não sónão foi para a União Soviética, como acabou se envolvendo com a vidada boemia literária de Berlim, tendo a oportunidade de conviver comintelectuais do círculo de Stefan George e assistir a aulas do historiador 

Meinecke, que lhe fez conhecer de perto a obra do sociólogo alemãoMax Weber. Nesse convívio entre a boemia e a universidade Sérgiocomeçou a elaborar o seu projeto de reinterpretação do Brasil, pensandonuma nova perspectiva política para a sociedade brasileira.

Inicialmente sua pretensão foi muito maior do que uma análisedo ser nacional. Por suas ligações modernistas com a crítica literárialatino-americana, Sérgio, inicialmente, pretendeu escrever um longoensaio interpretativo intitulado Teoria da América . Embora esse ensaionunca tenha sido encontrado entre os escritos do autor, Sérgio alega,em algumas entrevistas, que chegou ao Brasil no final do ano de1930, com mais de 400 páginas escritas. Verdade ou não, poucoimporta. O certo é que, já em 1935, Sérgio Buarque traria a público

aquele que seria o núcleo de seu livro mais importante , Raízes do Brasil . Convidado pela Revista Espelho  , Sérgio Buarque publica, então,Corpo e alma do Brasil: ensaio de psicologia social . Nesse artigo,pouco conhecido entre nós, Sérgio anuncia pela primeira vez a suacaracterização do Homem Cordial e que depois se consagraria comoo conceito mais instigante e polêmico de seu livro de estréia, Raízes 

do Brasil . É importante assinalar, contudo, os passos dessa polêmicaem que Sérgio se envolveu. Embora muito evidente a sua dívida à

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sociologia de Max Weber, tendo como baliza a constituição do tipoideal capaz de assumir os elementos marcantes do caráter nacional.Contudo, são menos evidentes as outras filiações teóricas. Por exemplo,uma que me interessa particularmente, é a presença da filosofia deNietzsche na caracterização do homem cordial e suas relações comcivilidade. Sérgio se utiliza de uma citação de Zaratrusta logo no iníciodo capítulo sobre o homem cordial, que talvez seja a própria alma dohomem cordial: “vosso mau amor de vós mesmos fez de vossoisolamento um cativeiro”. Essa é uma frase forte e marcante para aconscientização do homem cordial de Sérgio. Mas, não vamos nosadiantar demais. Essa polêmica rendeu muitas páginas de tinta, mas

nem sempre agradou a Sérgio. Seu maior crítico foi o poeta CassianoRicardo, que confundiu o conceito de cordialidade com o de bondade,coisa absolutamente distinta para Sérgio Buarque e também paracríticos literários como Oswald de Andrade, que vaticinou que “ohomem cordial tem, no entanto, dentro de si a sua própria oposição.Ele sabe ser cordial como sabe ser feroz”.2 Afora esses mal-entendidos,há ainda aqueles que consideram as análises de Sérgio simpáticas aohomem cordial como se o autor estivesse definitivamente seduzidopelo conceito que ele próprio criou.

Feitos todos os reparos, é claro que os intérpretes do Brasilimbuíram-se de uma tarefa, que eles mesmos consideravam inadiável.Isto é, procuram subordinar — e esta é uma característica dosintérpretes do Brasil — a ação política aos imperativos ontológicos doser nacional. Em outras palavras, segundo uma tradição já muitobrasileira, a ação política só seria eficaz se fôssemos capazes deresponder “quem somos”. Paradoxalmente, essa dependência da políticaà ontologia do ser nacional retira aquele elemento de indeterminaçãoe de liberdade da própria ação política, que para ser uma ação criadorado novo deve se abstrair e até mesmo se desencadear ali onde há aausência do ser. Tendo esse horizonte de preocupações ontológicaspara a orientação da política, podemos entender melhor esses trêsgrandes intelectuais que se formaram no Brasil dos anos 1920.

Não são poucos os intelectuais latino-americanos que remetemà ação política e também a condicionam numa ontologia do ser nacional. Isto porque, para a maioria dos intérpretes da nacionalidade,o que somos é sempre a projeção de um outro, isto é, do dominador estrangeiro europeu. Sérgio Buarque procura encontrar uma respostapara esse enigma identitário e que de certa forma torna-se um obstáculopara a ação política no presente. Apesar de ter escrito Raízes do 

Brasil na década de trinta do século 20, ele entra num debate que jáhavia se instalado entre a intelectualidade latino-americana a partir,pelo menos, do período do modernismo. Há outras obrasemblemáticas sobre a questão da nacionalidade no continente

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americano, destacando-se entre elas, pelo menos, Os sertões deEuclides da Cunha, Facundo de Domingo Sarmiento e também Ariel 

de Jose Enrique Rodó. Contudo, a análise de Raízes do Brasil nosremete para um texto ainda mais emblemático para o tratamento daquestão da identidade nacional. E, talvez, sob o meu ponto de vista, ehoje, conversando com o Silviano, ele também vê muita familiaridadee aproximação do texto de Raízes do Brasil e o texto de Octávio Paze que eu passo a transcrever um pequeno trecho dos signos de Signosem rotação de Octávio Paz. Ele, assim como Sérgio Buarque, fala deuma dimensão que é esse estranhamento de signos latinos americanos.Diz Octávio Paz, muito à semelhança de Sérgio:

 Antes de ter exi stênci a própr ia, começamos por ser uma idéia européia (...) A Europa é o fruto, decerto modo involuntário, da história européia,enquanto nós somos a sua criação premeditada.Na Europa a real idade precedeu o nome. A  Amé rica , pe lo cont rá rio, começou por ser umaidéia (...) O nome que nos deram nos condenou aser um mundo novo. Terra de eleição do futuro,antes de ser, a América já sabia como iria ser. Malse transplantou para nossas terras, o imigranteeuropeu já perdia a sua realidade histórica: deixavade Ter passado e convertia-se em projétil para ofuturo (...) Um ser que não tem passado, que nãotem mais do que futuro, é um ser de poucarea l idade . Amer icanos , homens de pouca

realidade, homens de pouco peso. Nosso nomenos condenava a ser projeto histórico de umaconsciência alheia: a européia.3

 Apesar de ser um texto anterior ao de Paz , parece-me que ohomem cordial de Sérgio Buarque começa a responder esta indagaçãodo escritor mexicano. Vejamos, portanto, a análise de Sérgio Buarquesobre aquele que seria a nossa maior contribuição para a civilização,o homem cordial.

Há ainda uma outra observação no que se refere à obra deSérgio Buarque. Após a publicação de Raízes do Brasil, que não épropriamente um livro de história, mas uma análise histórica daformação nacional seguida de diagnósticos sociológicos e políticos, o

autor irá se dedicar quase exclusivamente ao aprofundamento doconhecimento daquele passado no qual o ser nacional se formou e se viu aprisionado. Por esse motivo, a história para Sérgio não deveria setornar o apanágio dos poderosos e dos conservadores. O passadonão poderia se tornar letra morta nas mãos do historiador. Ohistoriador deveria reconstituí-lo, para depois superá-lo, nãopermitindo que o passado viesse a se consagrar como mito e comoobstáculo para se pensar e agir no presente.

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 Agora, podemos nos deter mais demoradamente no homemcordial de Sérgio Buarque. Ele próprio nos sugere que essa expressãofoi cunhada pelo escritor e poeta Ribeiro Couto, ao afirmar que acontribuição brasileira para a civilização será a “cordialidade”. Mas, paracompletar a sugestiva idéia de Couto, Sérgio vai buscar na história denossa formação social a essência desse um ser social que, segundo ele,está desterrado em sua própria terra. Não se trata de um estudo denosso perfil psicológico, entendido como uma entidade fixa e inalterável,uma essência sem história. Ao contrário, apesar de pretender reconhecer a psicologia desse ser cordial, Sérgio reconhece o homem cordial comoum ser social e produto de nossa formação histórica. Portanto, um ser 

que ao mesmo tempo está preso ao passado, mas também submersona própria corrente da história. No seu presente esse ser encontra-se,como dizer desterrado. Isto é, vive o drama desse lugar nenhum, de ser uma periferia sem centro. Isso porque a máscara que esse ser construiupara si pode estar em vias de esfacelamento, pelas mudanças ocorridasem profundidade na sociedade e na história recente do Brasil. O próprioSérgio em certa ocasião chegou a dizer que a polêmica em torno dohomem cordial estava desgastada, porque estava se acendendo velaspara um defunto frio. Ora, não se trata, portanto, como pretendeuCassiano Ricardo, de se fazer um juízo moral sobre a cordialidade. Ela éalgo que se impregna ao ser nacional e que, pelo bem ou pelo mal, econstitui o elemento mais sólido de nossa formação, enquanto ser nacional, segundo Sérgio Buarque. Uma vez que a cordialidade deita

suas raízes na história, vejamos como ela foi criada.De acordo com a definição de Sérgio, o homem cordial seria antes

de tudo um ser psicológico completamente avesso à civilidade, em tudoque essa tem de formalidade, regras e convenções. Não é que o homemcordial não tenha esses traços, ele os tem somente que, de modoespontâneo. Segundo Buarque “a lhaneza no trato, a hospitalidade, agenerosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam,representam, com efeito, um traço definitivo do caráter brasileiro, namedida, ao menos, que permanece fecunda a influência ancestral dospadrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal”.4

Isto é, a máscara da civilidade que o indivíduo moderno constrói para si.Como polidez, além de espontânea, é o instrumento que o retira de sua

individualidade, projetando-o para o viver social. Em resumo, o viver emsociedade seria para Sérgio Buarque, um subterfúgio do homem cordialao horror que ele tem de viver consigo mesmo, como Nietzsche refere emZaratrusta. Para Sérgio, “no homem cordial a vida em sociedade é decerto modo uma libertação do verdadeiro pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstânciasda existência”.5 A cordialidade, portanto, não cabe juízo ético, uma vezque é um elemento constitutivo de um ser e enraizado na historicidade

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desse ser social. Nada mais estranho à cordialidade do que a suposiçãode que ela é necessariamente boa e que por outro lado seria sinônimode concórdia e também estaria carregada de sentimentos positivos.Segundo Buarque, a inimizade pode muito bem ser cordial, isto porque,assim como a amizade, ela também nasce do coração. Em suma, tantouma como a outra nascem na espera do íntimo, do familiar e do privadoe não na esfera pública. Ao contrário da inimizade ou da amizade, naesfera pública desenvolveríamos o sentido racional de cooperação e, assim,o custo da constituição da esfera pública seria, justamente, o recuo dossentimentos à esfera do privado. Neste sistema de oposições entre aformação da esfera pública e o domínio do mundo privado vão se

delineando, no livro Raízes do Brasil de Sérgio Buarque, os traços dohomem cordial. Em um comentário às críticas de Cassiano Ricardo, Sérgioretoma essas questões, que valem a pena ser transcritas:

Cumpre ainda acrescentar que essa cordialidade,estranha, por um lado, a todo o formalismo econvencionalismo social, não abrange, por outro,apenas e obrigatoriamente, sentimentos positivose de concórdia. A inimizade pode ser tão cordialcomo a amizade, nisto que uma e outra nascemdo coração, procedem assim da esfera do íntimo,do familiar, do privado. Pertencem, efetivamente,para recorrer a termo consagrado pela modernasociologia, ao domínio dos grupos primários, cujaunidade, segundo observa o próprio elaborador 

do conceito, não é somente de harmonia e deamor. A amizade, desde que abandona o âmbitoci rcunscr i to pelos sent imentos pr ivados ouíntimos, passa a ser, quando muito, benevolência,posto que a imprecisão vocabular admita maior extensão ao conceito. Assim, como a inimizade,sendo pública ou política, não cordial, se chamarámais precisamente hostilidade.6

 Após essa aguda citação de Sérgio, podemos, agora, abordar outros aspectos do homem cordial.

 As pretensões de Sérgio Buarque de construir uma teoria da América parecem ser muito procedentes quando anal isamos aestrutura da obra Raízes do Brasil . Toda ela é constituída em um

sistema de oposições e a todo o momento da obra há o contrasteentre a colonização espanhola e a colonização portuguesa. Não queelas acabem dando resultados culturais e societários muito diferentes,mas Buarque identifica traços de uma propensão racionalista nadominação espanhola da América, principalmente, no capítulo emque ele compara o traçado urbano das cidades coloniais, percebemosque a atitude racionalista predomina entre os espanhóis, ao passoque entre os portugueses o traçado é mais improvisado e se adapta

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Essa mentalidade prática que se manifesta desdeos primeiros; e melhor se evidencia com o correr do tempo, tanto na organização das estatísticasda colônia — precisas e conduzidas em vista doaproveitamento econômico e sociológico dosdados — como nas cartas dos missionários, essamentalidade que dá Camões, um narrador, e nãoCervantes, um sonhador, é que faz o Brasil o milagresul-americano. Foi o que Sérgio Buarque soubecompreender, não sendo ele próprio afetado pelaadesão aos formalismos.10

Há nas análises de Sérgio Buarque sobre a cordialidade muitassutilezas e que nem sempre foram percebidas pelos seus críticos. O

exemplo mais conhecido foi o da polêmica criada por Cassiano Ricardo. Tal como ele, outros crít icos, como Dante Moreira, interpretaram oconceito de homem cordial associado à idéia de bondade. No entanto,o homem cordial faz da vida social um prolongamento de suaintimidade e por esse motivo podemos observar fenômenos decomoção de massas na história brasileira recente, que não passam demanifestações coletivas de sentimentos privados. Esse é um pontoimportantíssimo da análise de Sérgio, em que ele diz que a vida sociale a esfera pública são coisas absolutamente distintas.

Um exemplo muito conhecido por nós foi a comoção dosbrasileiros pela morte do piloto Airton Senna. Mais do que nenhumoutro ídolo, Senna foi acalentado no recanto dos lares, no íntimo, e a

emoção de suas conquistas transformou-se em assunto doméstico efamiliar deste povo “endomingado”, que parece viver sempre numdomingo. Todas as emoções e sentimentos com relação ao ídolopertenceram às manhãs de domingo, na esfera da intimidade, inclusivesua própria morte. Afinal, o ídolo das pistas acabou morrendo nasala de visitas de milhares de famílias brasileiras. Aquelas manifestaçõescoletivas e de grande impacto emocional durante o enterro do ídolo,longe de se transformarem em ações públicas de consolidação dacidadania e da democracia, foram vividas, exclusivamente, comomomentos para extravasar sentimentos íntimos reprimidos, confinadosna esfera do privado. Nesse caso, não houve uma experiência deconsolidação de uma esfera pública, propriamente, política.

Ora, um exemplo como esse tem implicações profundas emnossa cultura. Esse acontecimento aponta para o cálculo que devemosfazer para a instituição de uma ordem democrática entre nós. SérgioBuarque faz um cálculo muito importante: Qual é o custo que nóstemos ao abandonar o traço da cordialidade? O custo de se viver emsociedade, alheio a si mesmo, tão ao gosto do homem cordial, émuito grande, e a sua preservação também se torna excessivamentealta. Ao contrário de outras culturas, nas quais prevalece o princípio

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da individualidade e a esfera pública pode ser mantida a um custorelativamente pequeno, no nosso caso, o custo de se abrir mão de viver no social é extremamente alto , por isso que é difíci l de constituir uma esfera pública entre nós. Enfim, não vale a pena o sacrifício, emnome de uma maior ampliação da esfera pública e dos direitos dacidadania. O homem cordial não quer entrar na esfera pública comoindivíduo. Muito pelo contrário, no viver em sociedade ele pode,justamente, fugir do horror da individualidade.

 A percepção histórica do homem cordial é, nesse sentido,dialética e nos orienta para a compreensão do porquê do sucesso daaventura portuguesa nos trópicos. Mas ao mesmo tempo, aponta os

limites dessa aventura. Sem os condicionantes psicológicos da culturaportuguesa projetada nos trópicos, teria sido impossível a formaçãohistórica do Brasil. O aventureirismo, a rotina, a falta de imaginaçãocapaz de projetar a nós mesmos para mundos utópicos artificiais, fezcom que uma cultura estrangeira se adaptasse ao novo ambiente.Mas nesse sucesso está também o nosso fracasso, porque ele impediua criação, entre nós, de uma esfera pública ampla e democrática. Aocontrário, o homem cordial acabou favorecendo a criação de umestatismo que subtrai as energias da nossa frágil cidadania.

Na medida em que desvendamos o universo de reflexão deSérgio Buarque, vamos também revelando a sua vigorosa capacidadede apreensão do passado e da história. Esse aspecto é muito importante

em sua obra, porque a história, para ele, não é um conhecimentoencerrado na observação do passado, mas uma apreensão daspossibilidades da mudança social. Por isso, até os títulos de seuslivros sugerem mudanças (Caminhos e fronteiras  , Extremo Oeste  , etc.). Assim devemos encarar a sua percepção do homem cordial, não comoum dado imutável e irreversível de nossa formação, mas como sistemade referências em permanente mudança, em movimento e emtransformação. A percepção aguda da cordialidade não a congela,não a isola, mas situa-se no que ele chamaria de corrente móvel dosacontecimentos. O trabalho de compreensão histórica do passado é,justamente, o oposto do sentimentalismo. Aliás, diria Sérgio Buarque:

Estamos aqui nos antípodas do sentimentalismo,

que este sim, é naturalmente uma coisa ou umaépoca, queremo-la com exclusividade e ciúme,contra as outras coisas e contra outras épocas.Por isso repito que o sentimentalismo é o que háde mais avesso ao senso do passado. Não é própriodo historiador, mas do mau antiquário. O própriodo historiador não está em querer ver e enaltecer o passado no presente ou vice-versa, mas emreconhecer e estimar as formas diferentes que sesucedem através dos tempos.11

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Por se tratar de um historiador apegado aos sentidos damudança, sua análise da cordialidade, em vez de fechar os nossoshorizontes para novas opções, abre um leque de reflexões de caráter alternativo, fluido, incer to, mas rico em sugestões.

Na perspectiva assumida por Sérgio Buarque alinham-se osredescobridores do Brasil, aos quais nos referimos no início desseartigo. Não são pensamentos para serem cristalizados e isolados emsua historicidade. Muito ao contrário, esses autores abrem, justamente,o diálogo entre o passado e o presente, não permitindo que oscoloquemos em um “pedestal perene”, como o próprio Sérgio Buarquedizia. Uns mais do que outros descortinaram a cena da história

brasileira, fazendo surgir nuanças e vozes até então legadas pelodiscurso dos historiadores. Sérgio Buarque mostrou-se atento aos novosmodos de apreensão do passado e poderemos até acrescentar que as vozes resgatadas do silêncio nada mais seriam do que a reverberaçãono presente de uma nova esfera pública em vias de constituição. Aqui , o presente e passado poder iam se tocar e o homem cordial ,com o seu fundo afetivo, personalista, rotineiro estaria dando lugar para o cidadão de uma nova democracia brasileira. Assim, ao mesmotempo em que novos sujeitos são resgatados do silêncio do passado,no presente, também a esfera pública renasce com novas demandas,nova diversidade e também outra perplexidade. Assim, segundo Sérgio

é dessas opiniões que se faz a história em grande

parte e a história do Brasil em quase tudo. Paraestudar o passado de um povo , de umainstituição, de uma classe, não basta aceitar fazer falar a multidão imensa dos figurantes mudos queenchem o panorama da história e são muitas vezesmais interessantes e mais importantes que os outros,os que apenas escrevem a história.12

 Ao final desse percurso pelos meandros da cordial idade nosperguntamos uma outra vez “quem somos” e vamos concluindo pelaescolha de uma postura política menos dependente de uma ontologiado ser nacional. A obra de Sérgio Buarque nos serve de orientação. Apesar de envolvido na questão da essência da nacionalidade, Buarquenão a petrificou e tampouco a tornou um obstáculo para a liberdade

da ação política. Aquilo que se espera da liberdade da ação política éque também se projete sobre ela um passado, que não se tornou umpedestal perene, mas que, recriado pelo presente, incite a mudança. Talvez tenhamos que ficar atentos para as tentações do fraseadodemagógico, dos formalismos e das soluções abstratas e milagrosas,tão comuns à cultura brasileira. Por esse motivo, a obra Raízes do Brasiltermina com um parágrafo que pode ser uma advertência: “há umdemônio pérfido e pretensioso, que se ocupa em obscurecer aos nossos

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olhos estas verdades singelas. Inspirados por ele, os homens se vêemdiversos do que são e criam novas preferências e repugnâncias. É raroque sejam boas.”13

 Abst ract 

 The que stion of “Who Are We? ” was ra ised in the nineteenth century, wi th theconsolidation of the national state in Brazil and it has remained our most urgent question becoming since that time a genuine obsession for Brazilian intellectuals.Indeed, from this quest to “be national,” all the political ideas and models put forth by Brazilian intellectuals since the nineteenth century have emerged. Thistext examines how the works of Sergio Buarge de Holanda fit into this perspective,reformulating it.

Ke y word: Sérgio Buarque de Holanda, Nationality, Cordiality.

N o t a s 

2 Revista do Brasil  , n. 6, 1987, p. 43

3 PAZ, Octávio. Signos em rotação . Rio de Janeiro: Perspectiva, 1990. p. 127.

4 Raízes do Brasil  , 1997.p. 146.

5 Corpo e alma do Brasil: ensaio de p sicologia social In: Revista Espelho  , 1935.Republicado na Revista do Brasil  , n. 6 , p. 34, 1987.

6 Raízes do Brasil  , p. 205.

7 Op cit. p. 110.

8

Raízes do Brasil . Livraria José Olympo, 1936. p. 39 Raízes do Brasil  , p. 157-158.

10 Revista do Brasil  , n. 6, p. 98 , 1987.

11 O senso do passado In: Revista do Brasil  , n. 6, p. 82 , 1987.

12 Introdução às memórias de Thomas Dava tz In: Maria Odila Dias. Sérgio Buarquede Holanda. São Paulo: Ática: 1985. p. 173-174.

13 Raízes do Brasil  , p. 188.

 Artigo recebido em 3 de agosto de 2006 e aprovado em 7 de novembro de 2006