Cordillera, opus 11

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Cordillera: Santa Cruz de la Sierra, Valle Grande, La Higuera. Janeiro/Fevereiro de 2016.

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CORDILLERA:

PÉS NO CHÃO, OLHOS NO CÉU

Dalgimar Beserra de Menezes

Ana Maria Rebouças Freire

BOLIVIA, JANEIRO, FEVEREIRO - 2016

FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL – 2016

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Janeiro/fevereiro, 1966, ingresso no Quinto Ano de Medicina.

Meio século atrás. A primeira pessoa que vejo pronunciar ou se dirigir a mim

e a outros como Che é outro estudante, cujo nome não consigo, entretanto,

precisar (não es de cuyo nombre no quiero acordarme), durante o Curso

Nacional de Cirurgia de Urgência e de Moléstias do Aparelho Digestivo

Prof. Edmundo Vasconcelos, que este professor oferece a alunatos de

Medicina de todo o Brasil, no Hospital das Clínicas da Faculdade de

Medicina da Universidade de São Paulo. Então, aflui gente de todo canto do

país, um bom número de gaúchos.

Curso longo, gente de toda parte congraça; homens hospedam-se

no Departamento de Educação Física e Esporte (DEEFE), bairro de Água

Fria (ou Verde?); as meninas, tão formosas! Não sei. Convenhamos, o que

sei é que um estudante gaúcho, de Santa Maria, faz parte do bando, conversa

muito, e me trata e a todos de che, abusa de che, e a pronúncia de che não é

a esperada por mim, soa quase tchi, eia pois; hoje, em vivo estando, deve se

achar, como eu, na quadra dos setentas; não sei se ainda designaria uma das

moças que fazem o curso como galinha dos pampas, mocinha franzina de

compleição, mas espevitada, guapa: galinha dos pampas, tchê!

Êta vida curta e besta! Viva o professor Edmundo Vasconcelos!

À época, diziam-no vinculado ao Senhor Ademar de Barros, por isso

dispunha de dinheirama para tão vasto empreendimento. Corre, no meu

sertão da Gangorra, eu menino, o boato de que esse Ademar de Barros é o

homem mais rico do Brasil. E Rui, o homem mais inteligente do planeta. Até

tupi-guarani saberia falar fluentemente.

Pois, em guarani ixé, noutra grafia xee é pronome pessoal da

primeira pessoa singular, eu. https://paraguaiteete.wordpress.com/guarani/.

Não percamos tempo, a palavra pode não ser tupi; melhor seja

uma interjeição do castelhano argentino, que vai se espraiar pelo Sul do

Brasil, Paraguai, Peru e Bolívia. Vocativo para chamar a atenção, ou para

designar “amigo”, “cara”, “irmão”, “mermão” “homem” e ainda, como na

Gangorra, e boa parte do Ceará, “macho”; é assim que meu colega de Santa

Maria se me faz entender e a todos, o tempo todo; como com referência a

Guevara, o que não é feito por outros companheiros hispanofalantes,

oriundos de pagos que não usam o étimo, Che vira alcunha; por isso,

relembro esse Che/tchi de meio século atrás; o apelido de che deve guardar

relação com o fato de o Ernesto usar o termo com frequência, ou tempo todo.

Todavia, não posso deixar de pensar no tupi, pois tratar outra pessoa como

“eu” é tratá-la bem, como a si mesmo. http://www.abbreviations.com/term/372637

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PORTADA DO LIVRO EL DIARIO DEL CHE EM BOLIVIA

El Diario del Che en Bolivia. Editora Política/La Habana, 1988.

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Capa do livro. Créditos estão na

bibliografia mencionada.

Entre 1955 e 2005, escrevi páginas

diárias, quase todos os dias; reduzi o

ritmo depois de 2005; em 9 de outubro,

data aniversária, muitas vezes, me volvi

ao Diário de Anne Frank, de 1942;

começa assim: Sexta-feira, 9 de outubro

de 1942. Querida Kitty Hoje só tenho

notícias tristes e deprimentes para lhe

contar. Amigos judeus estão sendo

carregados às dúzias. Essa gente está

sendo tratada pela Gestapo sem um

mínimo de decência. São amontoados em

vagões de gado e enviados para

Westerbork, grande campo de

concentração para judeus, em Drenthe. Tradução minha com base em

diversas edições que possuo, em várias línguas.

Já visitei a Casa da Anne Frank em Amsterdam três vezes, ao

longo de 40 anos. Uma sozinho, 1980, outra com Anastácio Queiroz, em

1988, e uma terceira acompanhado de Ana Maria Rebouças Freire.

Não há página de Che para 9 de outubro de 1967, dia em que eu

completaria 25 anos de vida, e uns 12 de escritor de diários.

Sei perfeitamente quem esteve comigo nessa data, uma bela

jovem de Quixeramobim, que mais tarde se tornará cidadã tedesca.

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A página me faz lembrar, de sopetão, o romance Denier du Rêve, traduzido

em português como Denário do Sonho, de Marguerite Yourcenar, em que uma moeda

ganha história pelas mãos em que circula. Para inicio de conversa, o livro dá dia da

semana correto para 1967, mas a palavra Sonnabend – Sábado, tem domínio próprio na

Alemanha, norte ou centro-oriental. De resto, seria Samstag. Então, antes de Che, quem

empunhou este diário ou agenda? Recordemos que Haydée Tamara Bunke Bider,

argentina de Buenos Aires, de pai alemão e mãe polaca, no entanto de origem judaica -

tanto quanto, salve! Olga Benário, que vai ser Prestes - viveu na Alemanha Oriental, e

morreu guerrilheira, em Vallegrande, antes de Che, com o codinome de Tânia. Indo e

vindo, o próprio Che ou outrem poderia tê-lo pegado na ehemalige DDR

Esta é página 159 do livro Che Guevara Diário da Guerrilha Boliviana, Che

Guevara Obras Completas Edições Populares. Coleção América Latina. Série Nossa

História, Nossos Problemas. São Paulo SP, fevereiro de 1980.

A seguir, a capa desse compêndio, publicado em São Paulo, SP, ainda

plena ditadura.

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De novo, sem comentário, salvo que será bom reparar para a letra de médico

de Ernesto Guevara de la Serna.

Crio-me tendo às mãos para vender e para usar Cadernos de Caligrafia e de

Desenho, estes com nome de Cadernos da Vinci. De nada tudo isso resulta. Letra, como

diz o celebrado Buffon para o estilo, é o próprio homem (“l´homme propre). Ivan de

Araújo Moura Fé, há mais de 35 anos nas lides de conselhos de medicina, ainda insiste

que seria benéfico o treinamento em cadernos de caligrafia. Já está em Kant, de mesma

forma que na Gangorra, krummen Holz...

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Versão tipográfica do manuscrito de Che, como está na página 391 do livro

El Diario del Che en Bolivia, adquirido em Cuba, no dia 7 de agosto de 1989. A nota de

rodapé merece destaque

. Hic et Nunc: Nunc stans. Quase meio século: ainda entro em contato com

sobreviventes, exempli gratia, señora Lorenza, que vai ser minha bem-humorada guia;

tenho conhecido poucas mulheres idosas com senso de humor; minha avó paterna, Cosma

Tomé, que ultrapassou 101 anos; centenária, declarou que não queria saber de filhos,

netos, bisnetos, trisnetos, tetranetos, pentanetos, preferia o seu cachimbo, que fumava

desde os 12 anos, e que certamente não era um cachimbo. Ceci n´est pas une pipe. Doña

Lorenza me fala das personagens de sua juventude, da mulher das cabras, da anãzinha,

todos mortos.

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AS PÁGINAS 160, 161, BRASILEIRAS, DO ÚLTIMO DIA DO DIÁRIO, 7 DE

OUTUBRO DE 1967. Tradução de Juan Martinez

Uma história que se repete, esta de dar dinheiro para que não se fale; doña

Lorenza, mais de uma vez, me pediu umas pratas, convencida de que eu não alcançaria o

fim da trilha, prometia que espalharia pelo mundo fora – se lhas desse – que haveria eu

chegado ao locus da captura do Che, a grota do Angico. Isso veremos, dizia eu.

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No dia 10 de outubro de 1967, sendo interno da

Clínica Cirúrgica do Hospital das Clínica, detrás da Praça que

vai se chamar Edson Luiz, uma das vítimas da ditadura,

conhecedor do fato de que o chefe do meu internato, professor

Newton Gonçalves era homem de esquerda, em outras

palavras, tido como homem de esquerda, dirigi-me à sua sala,

para expor minha perturbação pelo assassinato de Che às mãos

da CIA e pró-cônsules bolivianos, esperando dele ouvir alguma

coisa de relevante; estava ele sentado à sua mesa, um doutor

cirurgião elegantíssimo, aristocrático, chamando a atenção os

poucos cabelos da cabeça partidos bem ao meio, uma trilha, um

sendero. Uma vareda, termo da Gangorra, ainda melhor

hareda. Não riu, não chorou, como José Américo de Almeida,

cara fechada, expressão quase parkinsoniana, palavras bem

pronunciadas:

- Apenas um aventureiro romântico latino-americano.

Morreu o diálogo aí. Veio-me à cabeça dizer:

- Professor Lord Byron morreu lutando pela

independência da Grécia. Era, como o senhor, um lord

britânico.

Ou por outra:

- E Giuseppe Garibaldi? O senhor acha que era um

aventureiro romântico latino, ou latino-americano?

Nada disse eu. Além do mais, a cabeça fica cheia de

livre-associações, uma delas: como foi que Garibaldi viveu até

os 76 anos?

No dia anterior eu completara 25 anos, hoje com 73,

me recrimino muito de ter-me desrespeitado diversas vezes, ao

longo da vida, de me ter calado. A tal coisa, fazer das tripas

coração. Concedo-lhe (mestre Gonçalves) que talvez o senhor

estivesse com medo dos ditadores. Eu também estava.

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BOLÍVIA ELDORADO, CAMPO DE PROVA,

VALHACOUTO

I - Pelo que rezam os livros, Ernst Röhm, aceitou convite, em 1928, para

ocupar posto de conselheiro do Exército Boliviano, como tenente coronel; diz-se que

durante seis meses adaptou-se, inclusive quanto à língua, provavelmente espanhol, das

classes dominantes, embora ali também se falem quéchua, aimará, guarani e dialetos.

Houve revolta na Bolívia 1930, tendo ele se refugiado na Embaixada Alemã; depois do

êxito nas eleições de setembro de 1930, Hitler manda-lhe recado: preciso de você, seu

veado. Voltou, portanto, à Alemanha, para ajudar a criar a SA, Sturm Abteilung, não

perdendo eu vaza para dizer que os tudescos se fixaram a essa palavra Sturm; o

movimento romântico já era Sturm und Drang, talvez o Tácito já tenha tido vontade de

referir-se ao fato no Germania, mas se absteve. Pois, um dos criadores das tropas de

provocadores, arruaceiros, Herr Röhm foi convocado para ser chefe dessa organização

paramilitar; em julho de 1934, eliminados no cenário, inclusive ele, Herr Röhm, na

chamada Nacht der Langen Messer (Die Nacht der Langen Messer), fim de junho,

começo de julho. O que acho interessante nisso é, Che quase é para mim - espécie de

discípulo do Chomsky - palavra tupi-guarani. Mamãe e papai eram crianças, meus quatro

avós eram vivos, vivos também meus oito bisavôs. Daí para trás, a coisa se complica, os

números deixam de ser lógicos, porque resulto de uma boa endogamia; papai e mamãe

primos, avós primos próximos ou distantes.

II - Em entrevista gravada em 06 de dezembro de 2015, mãe Aldenora Davi

de Menezes - entrevista cedida ao autor, filho – diz que Antônio David da Costa, David

da Costa Júnior (Jiniô), Raimundo David da Costa, filhos de Manoel David da Costa, dos

Bastiões e de Francisca Pires, do Salgado, dos Pires do Salgado, Itapipoca, muitos outros

parentes próximos, migram para a Amazônia, tangidos pelas secas, de olhos nos seringais.

Quase todos voltam, mais cedo ou mais tarde, mais ricos, na mesma ou mais pobres. Ao

Acre, tomado aos bolivianos por eles, os gerados nas secas de 77, de 88 (os três oitos),

chegam de qualquer modo, mas fugindo das do 15 (100 anos atrás, tão conhecida a seca,

pelo rimance de Doña Raquel), da do 19... Aldenora refere que, pelo menos Jiniô e

Raimundo entram na Bolívia e no Peru.

III - Entrevista com Prestes, em 1987. MENEZES DB., TROMPIERI

FILHO N PRESTES LC. Luís Carlos Prestes. Local Evento: Rua das Acácias, Gávea,

Rio de Janeiro. Brasil. Duração: 120 min Atividade dos autores: Entrevistadores. Data

27/08/1987. Palavras-chave: Coluna Prestes, Tortura e Assassinato, Comunismo, José

Montenegro de Lima. Excerto do Diário de Menezes DB [Escritor de diários desde

1955]- Rio, "27 de agosto de 1987, 5ª feira (...) Fomos à Gávea, à rua das Acácias. Ao

apartamento do velho. (...) E no apear do elevador, a porta do apartamento se abriu e o

"velho" nos recebeu. Próximo de 90 anos, rijo, esperto, apequenado pela curva da coluna

(...), de compleição mais para magra, mas não magro, menor do que eu, em seu tamanho

atual, dedos em baqueta de tambor, voz firme, discurso fluido, não monopolizante, não

delirante, com pequenas explosões de riso contido (,,,) [Está em mais de 10 páginas, a

entrevista, em que fala de Eugênio Gudin, falecido há pouco, com 100 anos, "o Agildo

Barata, redondamente enganado, diz em suas Memórias que eu era positivista...” de

tantos, de Euclides da Cunha - "acho que o primeiro brasileiro ilustre que percebeu o

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que era o marxismo foi o Euclides, em um artigo de Confrontos e Contrastes, de 1904”;

“(...) russos, Tolstoi e Dostoieiski, a literatura que deleitava minha mãe... Cardeal

Arcebispo Lorscheider, de Fortaleza, lider de proeminência, um dos maiores do Brasil...

papa reacionário, feito pela CIA, após o assassinato de Joâo Paulo I, da igreja

progressista; Isnard agora é meu inimigo... Brizola é ignorante, não estuda; Lula é

ignorante, não estuda...”]. José Montenegro de Lima, amigo de infância de Menezes:

"sim, senhor, cearense, um rapaz de muito valor. Não aguentou a tortura a que foi

submetido. Tinha saúde frágil. Encontrei-o pela primeira vez em Moscou..." [Trucidado

em 1975].

IV - Entre fevereiro e março de 1927, afinal, após uma penosa travessia do

Pantanal, parte da coluna, comandada por Siqueira Campos, chegou ao Paraguai,

enquanto o restante ingressou na Bolívia, onde encontrou Lourenço Moreira Lima, que

retornava da Argentina. Tendo em vista as condições precárias da coluna e as instruções

de Isidoro, os revolucionários decidiram exilar-se. Durante sua marcha de quase dois

anos, haviam percorrido cerca de 25.000 quilômetros

Miguel Costa seguiu para Libres, na Argentina, enquanto Prestes e mais

duzentos homens rumaram para Gaiba, na Bolívia, onde trabalharam por algum tempo

para uma companhia inglesa, a Bolívia Concessions Limited. Em 5 de julho de 1927, os

exilados inauguraram em Gaiba um monumento em homenagem aos mortos da campanha

da coluna. Instados pelos protestos do governo brasileiro, autoridades bolivianas tentaram

destruir o monumento, mas foram impedidas de fazê-lo ante a atitude enérgica de Luís

Carlos Prestes.

https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/anos20/CrisePolitica/ColunaPrestes

Lourenço Moreira Lima, secretário da Coluna, é cearense, semelhantemente

ao Alaripe, de Grande Sertão: Veredas, de mestre Guimarães Rosa. Alaripe é corruptela

de Araripe. Mas, não é assim, era pernambucano, porém formou-se em Direito em

Fortaleza.

https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/biografias/luis_carlos_prestes

Na Bolívia, Prestes fixou-se em La Gaíba e assinou contrato com a Bolivian

Company Limited, companhia inglesa de colonização, para trabalhar, junto com cerca de

400 homens que ainda restavam sob seu comando, em obras de saneamento e abertura de

estradas. Em dezembro de 1927, foi procurado por Astrojildo Pereira, secretário geral do

Partido Comunista Brasileiro, então Partido Comunista do Brasil (PCB), que lhe levou

obras marxistas e lhe propôs uma aliança política, rejeitada por Prestes.

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1927 – Luís Carlos Prestes e outros integrantes da Coluna Prestes exilados

em La Gaiba, Bolívia, autor desconhecido, Acervo Iconographia. Do oitavo volume da

Coleção Folha Fotos Antigas do Brasil

Crédito de http://www.pontodevista.jor.br/blog/2012/03/page/2/

2016: Viver é mesmo perigoso, a citação não é de Guimarães Rosa, mas de

Nietzsche. Todos esses personagens são meus contemporâneos, dois dos meus avós

vieram do Império, meu avô David Bezerra de Menezes, de 1875, minha avó Francisca

das Chagas Vidal de Castro, de 1887, de antes dos três oito como dizia e se referia à seca.

A gente não consegue sossegar. Agora, arma-se o grande golpe contra o governo

constituído, a direitona se sente esbulhada de seus séculos de poder; nos meus curtos anos

de existência, passei por duas crises símiles, a do suicídio de Getúlio Vargas e a do Golpe

Primeiro de abril de 1964.

Viver perigosamente, aqui, não vai pela conta de João Guimarães Rosa, mas

de Nietzsche, repito. Houve outro abalo nas instituições, em 1961, renúncia de Jânio

Quadros.

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CUBA, 1989

La Habana, Cuba, Plaza de la Revolución. Julho 1989. A senhora

da foto chama-se Ana Maria Rebouças Freire. A câmera e o fotógrafo se

esforçam, mas não adianta, são amadores. Escondem-se.

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Plaza de la Revolución, julho de 1989. O retratado, quando voltar ao

Brasil, vai votar pela primeira vez para Presidente da República. Ainda não tem 47

anos, vai fazê-los em outubro, dia 9, data da execução de Ernesto Guevara de la

Serna, vinte e dois anos antes. Pé na terra, olho no céu.

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1989. A foto é clássica. A modificação, de feição Andy Warhol.

Mutatis Mutandis, acho que já não é mais assim.

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Na verdade, estou mais

apreciando é a foto da

Ana.

Vida assaz curta, a da

gente;

Ela tem uma

extraordinária

tendência para não

engordar.

Há muitas décadas, 47

quilos.

Antigamente, eu

trepava num muro

desses e corria, feito

doido; em 1953,

realizei proezas dessa

natureza com a minha

prima Zezinha, na verdade prima legítima de papai, Maria José Gaspar, filha

de tia Luiza Tomé de Souza e de Pequeno Gaspar, que não conheci. Hoje

mal trepo, aliás, subo. O muro separava o palácio de meu pai, construção de

1906-1911, da igreja evangélica, dos crentes, que minha avozinha Francisca

das Chagas Vidal de Castro insultava como bodes. Ela se dizia da linhagem

de Inês de Castro e de Matias Vidal de Negreiros, irmão de André Vidal de

Negreiros, das lutas dos pernambucanos contra a ocupação holandesa. Tudo

isso para dizer que a casa foi construída ao retorno das migrações aos

seringais de um endinheirado senhor Bertini; mais que isso, para dizer

também que eu tinha 10-11 anos, em 1953, e que Zezinha, jaz no meu cérebro

como a primeira pessoa de quem senti o que a língua lusa designa como

saudade, sentimento comum a todos os humanos, mesmo os que se

comprazem em torturar e os fascistas. Esqueceu-me dizer, muro aí é o

Malecón.

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CUBA, 1989

Hospital Provincial Clínico-Quirúrgico Dr. Gustavo

Aldereguía Lima, Cienfuegos, Cuba, 1989. Assim como Ana visitará, em

2016, a Clínica Obstétrica do Hospital Senhor de Malta, Menezes visitou o

setor de Anatomia Patológica deste hospital [da foto], tendo entrevistado o

chefe, Dr. Julián Viera. No hospital de Vallegrande, de onde saiu a foto do

Che largado na pedra de bater roupa suja, Ana foi a uma enfermaria e

contatou uma parturiente, o hijito ao lado, recém-nascido para as lutas da

existência.

VALLEGRANDE, BOLIVIA,

2016

Ana, gineco-obstetra, vai à

enfermaria da

Maternidade do Hospital

Señor de Malta; encontra

uma parturiente e seu

neném.

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PELO REAL E O FICCIONAL: BOLÍVIA ELDORADO,

CAMPO DE PROVA, VALHACOUTO.

V - William Goldman, autor, direção do filme George Roy

Hill /http://t2.gstatic

Filme de 1969, lançado no Brasil em

outubro desse ano, dois anos depois

do trucidamento do Che na Bolívia.

É muito provável que os autores, os

donos da corporação que o produziu,

financiou, etc.. queiram ter desejado

identificar os ladrões aventureiros

norteamericanos com o aventureiro

bandido argentino anti-imperialista

Che. Se a alusão não é deliberada, é

cultural das classes médias, Zeitgeist.

Desde criança, vejo filmes em que

bandidos, espiões, salafrários, têm

intenção de migrar para a America

Latina, não só México, também

Brasil, Bolívia. Eu próprio convivi

desde o nascimento, com algnns

deles, travestidos de sócios de Jesus

Cristo, missionários protestantes.

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VI - A imagem da página anterior vem de

//www.cinemadebuteco.com.br/criticas/butch-cassidy-e-sundance-kid/

Este comentário, meu: valhacouto de aventureiros norte-americanos,

ficcionais ou reais, legendários, os que não tiveram sucesso; os demais, os bem-sucedidos

são hoje donos do mundo. A cena do filme é ver, na minha mente pobre de ideias, aquela

da Grota do Angico, madrugada de 28 de julho de 1938. Grota, caminho que a água faz

por ocasião das enchentes, uma depressão, uma trilha, foi assim que aprendi como

menino, coisa bastante diversa de gruta. Entretanto, o sítio da captura do Che é mais

parecido ainda com o da emboscada da grota do Angico. Enquanto isso, de feijão e sonho,

preciso rememorar que estive em Nova Orleans, em 2000, Congresso de Patologia. De

feijão e sonho preciso dizer que aí, há uma casa - não é um museu - que foi preparada

para abrigar Napoleão Bonaparte; havia planos para roubá-lo aos ingleses da Ilha de Santa

Helena e do Império. De feijão e sonho é alusão a Orígenes Lessa e a Eilson Goes de

Oliveira.

Quixotes e Montadores de Asnos. Che, ao

mesmo tempo Quixote e Sancho, olhos no céu, pé

na terra. Foto de Freire AMR, o Quixote de Buenos

Aires, 1997. Há quase vinte anos. O mito do carro

alado, tirado por dois corcéis, de Platão, algo

enviesado. Um alça voo, outro exige aterrisagem.

Platero y yo Juan Ramón Jiménez Mantecón, poeta espanhol. Por

sua oposição ao regime franquista, exila-se nos EUA,

no ano de 1936. Nobel de Literatura de 1956.

Nascimento: 23 de dezembro de 1881, Moguer,

Espanha. Falecimento: 29 de maio de 1958, San Juan,

Porto Rico.

“Platero es pequeño, peludo, suave; tan blando por fuera, que se diría todo de algodón,

que no lleva huesos. Sólo los espejos de azabache de sus ojos son duros cual dos

escarabajos de cristal negro. Lo dejo suelto y se va al prado y acaricia tibiamente,

rozándolas apenas, las florecillas rosas, celestes y gualdas... Lo llamo dulcemente:

¿Platero?, y viene a mí con un trotecillo alegre, que parece que se ríe, en no sé qué

cascabeleo ideal”.

Meu pai, Afonso Davi de Menezes, tem uma tropa de jumentos, e um

comboieiro, seu Ilia, de Elias, do Cura, um quilombola.

Juan Ramón Jimenez exerce influência mesmo no Ceará, uma vez que aqui

se escreve um O Jumento, Nosso Irmão; padre Antônio Batista Vieira (1964). Sem falar

das músicas de Luiz Gonzaga.

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CHE E OS ESTUDANTES DE MEDICINA

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Como professor de Medicina vi, pela vida docente fora, a

observação de Che de que hay que endurecerse pero sin perder la ternura

jamás, porém, escolhi para deitar aqui estoutra, bastante frequentada; estou

me referindo aos impressos, aos convites de formatura, que fui juntando ao

longo da vida.

Turma 87.2. Dezembro de 1990. Neste, Che é tratado com o

nome de doutor; che entre parênteses, com circunflexo no e

LA RUTA. Síntese. Via Sacra. Trajeto muito difícil para um idoso dentro

dos 74 anos; leva três quedas; a trilha é acidentada ao extremo, quando plana,

escorregadia; de resto, pedras, como na Gangorra, mas descendo ou subindo, na Gangorra

plana sempre; a primeira queda, causa-me uma câimbra. Ou melhor uma câimbra causa-

me uma queda; minha guia, senhora Lorenza, tenta negociar...

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Jean-Paul Sartre passou em Fortaleza, em 1960, a caminho de Cuba, ele mais

ela, Simone de Beauvoir. Mas não sei se de fato a caminho de Cuba, sei que a convite de

Jorge Amado, a um Congresso de escritores, o qual – Jorge - visitamos na Faculdade de

Direito, nesse mesmo ano, eu como parte de uma delegação de estudantes do Liceu; logo

depois, apareceu o livro Furacão sobre Cuba, de Sartre, que eu cheguei a possuir e que

me foi arrebatado por um outro furacão, produzido por maus caracteres.

Retribuo visita a Sartre e a Simone, em Montparnasse, em 2013.

Em 1997, os restos de Che e de seus companheiros de luta são levados para

Cuba, onde descansam no Memorial Ernesto Guevara, na cidade de Santa Clara.

Foto de Ana Maria Rebouças Freire, Paris, Junho de 2013.

SANTA CRUZ DE LA SIERRA A VALLEGRANDE.

24

Guia em Vallegrande: Gonzalo Flores Guzmán. De

Vallegrande a La Higuera e regresso a Vallegrande, senhor

Adelio.

25

26

Cordillera – de Santa Cruz de la Sierra a Valle Grande –

Fevereiro de 2016.

27

Vallegrande

Fotos de Ana Maria Rebouças Freire

Lavandería – Hospital Señor de Malta

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Diário de Guido Peredo “Inti”: 9 de outubro de 1967

“El día 9 fué tranquilo. Dos veces vimos pasar un helicóptero,

el mismo que en estos instantes llevaba el cadáver aún tibio

del Ché”

Imagem emprestada de:

http://whiteknightstudio.blogspot.com.br/2014_05_01_archive.html

Malta, símbolo templário; pedra de bater roupa suja, coisificação

do humano, sem respeito, respeito que já está em Antígona, constituindo-se

tema central da tragédia de Sófocles, há mais de 2.400 anos. Conheço essa

peça desde dois anos de idade, porém [a] assisti mesmo, já neste maldito

século, no Teatro de la Abadía, Madrid; Clara Segura era Antígona. Posso

falar com muita tranquilidade nessas coisas, pois fiz ou participei de mais

10.000 necrópsias.

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30

Vallegrande. Lavandería. Os estadunidenses, a CIA e

os pró-cônsules bolivianos, exibem o cadáver de Che, na pedra

de bater roupa, como se dizia na Gangorra, esforçando-se na

semiótica do lavar roupa suja.

31

Fotos de Gonzalo Flores Guzmán

32

www.mattiafrigeri.it http: //www.lasegunda.com/

Pinacoteca di Brera, Milão. A primeira imagem, Cristo Morto, excerto da

Lamentação sobre o Cristo Morto, homenageia o padre Alessio Saccardo, jesuíta, que em

Teresina, 1998, confessou-se-me estudioso de Andrea Mantegna. Assim, Marta Maria

Carvalho de Araújo, professora do Colégio Diocesano de Teresina, convida-me, ao

lançamento da encíclica Fides et Ratio, de João Paulo II, o papa da CIA, a debater o tema

Fé e Razão, em 20 de novembro de 1998. Então vou. Conheço o padre Saccardo.

33

Fotos de Ana Maria Rebouças Freire

34

Arte longa, vida breve.

Vita brevis,

ars longa,

occasio praeceps,

experimentum periculosum,

iudicium difficile.

Ana, gineco-obstetra, vai à enfermaria da

Maternidade do Hospital Señor de Malta; encontra uma

parturiente e um neném.

VALLEGRANDE:

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MAUSOLEO DEL CHE

Vallegrande, Mausoléu de Guevara. 5 de fevereiro de 2016

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OFICINA: Placas comemorativas à frente da Mausoléu

37

OFICINA – Inscrição exterior

INTERIORES

38

39

40

Em 1997, os restos incompletos de Che e de seus companheiros de luta são

levados para Cuba: jazem no Memorial Ernesto Guevara, na cidade de Santa Clara.

41

2016 - Não se sabe o que poderá acontecer nos próximos anos. O clima

fascistoide de intolerância, no Brasil atiçado pelos meios de comunicação, as grandes

corporações da imprensa, em outras palavras, pontas de lança do grande capital, percorre

o ocidente.

Duas coisas pervadem o cérebro: a película La Voie Lactée – El camino de

Santiago, de Luis Buñuel, no trecho em que um uma autoridade eclesiástica – digamos

Torquemada – faz desenterrar outra autoridade eclesiástica, para queimar-lhe os pobres

ossos, por heresia. Uma coisa puxa outra: Machado de Assis, ao falar da fogueira da

Inquisição que torrou Antônio José, que me perdoem os historiadores, um dos primeiros

membros da inteligência brasileira: Ecco: "Todos conhecem hoje o infeliz poeta que

morreu numa das hecatombes inquisitoriais, por cuja renovação ainda suspiram as almas

beatas." Semana Literária, 13 de fevereiro de 1866. 2016: A intolerância fascista ganha a

rua, no Brasil.

42

06 de maio de 2016. OFICINA: Da iconoteca às paredes internas, Ana recolhe esta tão

conhecida preciosidade: Ernesto Guevara de la Serna, Ministro da Indústria de Cuba,

recebido e condecorado

com a Grã-Cruz da Ordem

Nacional do Cruzeiro do

Sul por Jânio da Silva

Quadros, presidente eleito

do Brasil, que não durou

muito no cargo.

Condecorou Guevara aos

dezenove dias do mês de

agosto de mil novecentos

e sessenta e um,

renunciou à presidência

aos vinte e cinco dias do

mês de agosto de mil

novecentos e sessenta e

um. As eleições

ocorreram em 3 de

outubro de 1960, eu completaria 18 anos em 9 de outubro, não pude votar. Brasil

República-banana, votaria eu somente contra o regime que se instalou sob o comando de

Washington, em 1963, contra o parlamentarismo criado pela UDN e militares. Jango era

vice eleito, na chapa do Marechal Lott, que perdeu para o Dr. Quadros, voto desvinculado.

De qualquer forma Jango será deposto, em 1964. Em 1954, Café Filho estava doido para

substituir Vargas, era o vice conspirativo, eleito. No momento, o vice conspirativo,

Michel Temer quer ser presidente pela deposição de Dilma, sem ter tido um só miserável

voto.

OFICINA: PÓRFIRO VERMELHO DOS INVÁLIDOS.

43

Tardinha, junho de 2015, ainda primavera. Pátio dos

Inválidos. Passagem dos 200 anos da Batalha de Waterloo; pela

terceira vez nos Inválidos, ao longo de 40 anos. Foto de Freire

AMR

44

DE VALLEGRANDE A LA HIGUERA. MOTORISTA SEU

ADELIO, OU DON ADELIO, 4 DE FEVEREIRO DE 2016

Fotos de Freire AMR

Cordillera. Tempo. Bruma. Saindo de Vallegrande, sob

ameaça de chuva; adquiridas capas de plástico; guardo tudo, mas onde

andarão?

45

46

47

48

Casa grande da fazenda de dona Lorenza, guia para a Ruta;

tem 19 anos quando conhece Che, consoante conversação longa, que

permeia todo o trajeto daí da casa à Grota do Churo. Se tem 19+48/49,

67/68. Uma senhora muito esperta. Nativa quéchua? Na verdade,

pergunto-lhe se fala quéchua, nega-o. Aimará? Nega-o. Guarani? Nega-

o.

COMEÇAMOS A TRILHAR A VEREDA, VAREDA, HAREDA. - Señora Lorenza, ¿qué es churo? É coisa bonita, nome de córrego,

palavra quéchua? Implica a presença de água?

- Señora Lorenza, ¿que es Quebrada del Churo?

Já sei, como Waterloo, ou quase, uma clareira de capim, de grama, de

terra cultivável, no meio da água, assim, um pouco como lea, em inglês, quem sabe,

melhor tradução é Grota do Angico.

Señora Lorenza, a senhora sabe que o Acre foi tomado à Bolívia por

cearenses e descendentes, retirantes das secas, da falta d´água, sob o comando de um

gaúcho, Plácido de Castro?

- Quando menino li relatos de jornais de presença de um cearense

lutando na Coréia, soldado do exército colonizador americano. A senhora sabe?

- Além disso, no bando de Riobaldo – Grande Sertão: Veredas - há um

cearense de nome Alaripe, corruptela de Araripe.

Tudo conversa fiada, algo pedante, Dona Lorenza tem a chave da

converseira:

- Sei de uma coisa. O senhor não chega inteiro no fim da trilha.

49

Com o devido

respeito a dona

Lorenza e a

Ingmar

Bergman, dona

Lorenza nesta

foto, tomada por

mim, é

reminiscente da

Indesejada, como

vislumbrada no

filme O Sétimo

Selo de Ingmar

Bergman. Não

vai jogar xadrez

comigo, mas vai executar uma espécie de jogo: parceira temível.

Flores silvestres, edelweisse andinos, açucenas e perpétuas da

Gangorra

50

Esse riso de dona Lorenzo é mangando de mim, Menezes, 73,

sem este bastão de peregrino, cajado, fazendo a trilha de Santiago de

Compostela, Gangorra, Bastiões, Coelho; quando tenho a primeira

câimbra, calambre do percurso, caio, para trocadilhar calgo, cási...; não

havia ainda metade percorrida da trilha, se não havia, ela ria, e se me

apresentou uma proposta: o senhor me dá mais 40 bolivianos, a gente

volta, devagarzinho para a casa, e eu espalho pra todo o mundo, que o

senhor logrou êxito, chegou lá na quebrada; olhe bem, o senhor não vai

conseguir. Topa?

51

Não topava. Eu, não. Senhora Lorenza, saiba a senhora que

além de falar castellano desde criança – me pabulei como sempre,

segundo Ana, subi o Vesúvio, sabe a senhora, recentemente.... Aí ela

disse: você não vai aguentar, e agora é que chegamos na casa da Enana,

da Anã. O Che se alimentava por aqui, veja, dizia ela... e eu quase

ofegante, perguntei se estávamos na metade da trilha, eu já pensava na

volta, e a trilha se estendia, eu... dando uma de durão, de historiador,

resolvi que melhor era perguntar se a Anãzinha ainda era viva. Tive

cinco tios-avôs anãos, dizem que da doença marmórea dos ossos, coisa

asquenazim ou sefardita, quem sabe? Disse que não, mas que também

acabaria eu morrendo naquele esforço, o sorriso esboçado nos lábios,

nos dentes.

52

Ela sentou-se, mas eu queria

eu deitar, morrer, lembrei-

me de Schopenhauer, o

Mundo como Vontade e

Representação, que besteira

minha, eu estava at my wit´s

end. Mas eu não me

entregava. Mesmo assim,

deitar, dormir, morrer, talvez

sonhar... To die, to sleep. To

sleep, perchance to dream.

Shakespeare - digo-me eu a

mim mesmo – não vale.

Pedro Calderón de la Barca,

La Vida es Sueño, entonces. Durante meus anos de Curso Médico, de 1962 a 1967,

tive dois colegas bolivianos Juan Peña Pinto e José Gustavo Cuéllar Calderón. Ela

continuava barganhando que nem judeu, eu respondendo, ela salta de lá: ¿ Usted es

paceño? No, soy brasileño... A voz dela, arrastada, meio triste, muito irônica.

Aí está a casa de Dona Epifania, e suas filhas, que dona Lorenza diz

Casa de la Enana, pela filha medio enana, como já consignado neste texto. Todas

mortas. Dona Lorenza vivíssima.

53

54

Pois, então, levei mais duas quedas, revivia os quadros da

paixão, as estações da via sacra, da Igreja da Itapipoca, e todas as igrejas

católicas do mundo, e queria muitíssimo saber se o Papa Francisco teria

visitado La Quebrada del Churo. Ela, dona Lorenza, se divertia, e mais

uma vez, propôs meu retorno, que ela diria que eu tinha completado a

trilha, que o Município de Vallegrande paga muito pouco pela visita

guiada, que se eu quisesse voltar me arranjaria um jumento (un burro

para un burro, dizia, que ganhava apenas 90 bolivianos por cada

ida/vinda, que eu lhe arranjasse... e veio a segunda queda, eu acabei

indagando se ainda estávamos muito longe, eu concordava com um

burro encima de um burro, porém guiada por uma burra. Ela ria, e

pedia mais sessenta, pela proeza do burro, que todos ficariam cientes

que haveria terminado a trajetória; eu tinha vontade de deitar, dormir,

talvez sonhar. Mas não me rendia, Merde, je meurs mais je ne rends pas.

Cambronne, Waterloo, 1815. Não iria eu ver a batalha só pelas beiradas,

como Fabrício, da Cartuxa de Parma, que... Aí eu colhi algumas florzinhas silvestres na beira da estrada, cuja estrada não existe, só

pedra escorregadia, lajedos (lajeiros como diziam na Gangorra),

guardei uma pra Ana, e pus-lhe outra na sua cabeça, ela nem agradeceu.

Aí fomos chegando, eu pensando como é que iria voltar, mal tendo forças

para fotografar o que via. Dona Lorenza começou a colher figos – se mos

oferecia, de graça, e eu os comia; ia agora era morrer de comer, lembra-

me da primeira vez que comi figos, foi no refeitório do Hospital das

Clínicas, em Pinheiros, Casa de Arnaldo, 1966; eram diferentes, há

cinquenta anos, em fevereiro de 1966. Muito antes, na Gangorra, figos

eu não apanhava, mas maracujá-do-mato e batinga, quase pensando em

tupi, apesar das determinações do marquês de Pombal. Ela se sentou,

sempre apoiada em seu bastão, convidou-me a sentar; comecei a fazer

fotografia, mas eu queria mesmo era ficar parado. Quase morrer.

Pensava eu: que Cambronne que nada! Ricardo III: My

kingdom for a horse.

Melhor, a do ator espirituoso, destroçando o clímax da

tragédia. Ouve vindo de lá debaixo, da plateia:

- Um burro serve?

- Sobe!

55

É então que me vem à tona da mente uma conversa que tive

com Miércio Expedito Alves Pereira, oriundo da Serra de Uruburetama,

de Itapagé, que atende hoje pelo nome de Mercio Perrin, habitante de

Boston e grande cientista americano, estudioso de Doença de Chagas, o

qual Mercio, então Miércio, me diz que tinha ouvido a Suite Grand

Canyon, de Ferde Grofé, em cuja terceira parte, On the Trail, havia sons

de trote de um burrinho ou de asno, marchando cadenciadamente pela

trilha... A lembrança tem evidência de contaminação, de construção -

pudera com mais de 50 anos - pois, Míercio me diz nitidamente, meus

ouvidos o escutam, que o autor da peça é Aaron Copeland.

Na verdade, ao longo desses anos todos tenho ouvido a suite

umas dez vezes e de vez em vez assobio a terceira parte, do trote da

besta; não é construção referir que toda a composição é da linhagem

direta de Debussy e Ravel, mas também sempre me encaminha para o

Aprendiz de Bruxo, não a balada propriamente do Goethe, mas a música

de Paul Dukas.

56

Aí está a plaquinha com a inscrição. Quebrada del Churo.

Doña Lorenza cisma.

57

Patria o muerte. LA HIGUERA. QUEBRADA DEL CHURO. GROTA DO ANGICO, DONA

LORENZA colhe figos - higos. ALMOCEI FIGOS, NO LOCAL EXATO DA

BATALHA. TUDO LIGADO. FIGUEIRA. LA HIGUERA.

Três pontas da estrela de cinco pontas

58

4 pontas da estrela de cinco pontas.

Dona Lorenza cisma.

59

Faço fotos e penso que quanto mais ela cismar melhor. Ela,

entretanto, argumenta, com segundas intenções, que estamos com mais

de quatro horas de caminhada, e tudo isso só por noventa bolivianos.

Ela ri, tomo fotografias, e não sei como vou voltar. Mas, o jeito era

voltar.

Cinco pontas, da estrela de cinco pontas.

60

Sei que estrela é olho no céu, em contraposição e

complementação de pés no chão, pés no chão, olho no céu. Mas essa

estrela também parecendo com uma mulher deitada, de pernas abertas.

61

Dona Lorenza cisma Dona Lorenza prossegue se me parecendo a figura da morte,

mas não vem jogar xadrez comigo. Nunca joguei xadrez, creio que

nunca vou jogar.

Dona Lorenza, a senhora sabe, eu estou no fim, será que

governo boliviano, a Companhia de Turismo do Município não poderia

me mandar um helicóptero? Dona Lorenza ri, comanda: vamos voltar,

nossa viagem, ao fim estará durando umas cinco horas, e eles lá da

companhia, vão me pagar 90 pesos bolivianos. Ainda estou imaginando

com vou me erguer e por pés na quase estrada – eu atalho: Dona

Lorenza, nós pagamos 450 pesos, incluindo a ida ao local da execução

do Che. Ela resmunga: Ah... Quebra um galho que me vai servir de

bastão e lá começamos o regresso, mas chega momento que ela sabe, eu

sei, nosotros sabemos que não tenho mais pernas, pelo terço do caminho,

ela me anima, sento-me, meu bastão se quebra, ela ri; pela metade do

caminho de volta, eu não sei se ela dispõe de um telefone celular, sei que

estou prostrado, chega alguém com um jumento, eu subo numa pedra;

monto a alimária, que me cospe ao chão; desde criança que monto

jumento mas aquele era danado, escorreguei da garupa para o pescoço,

quem trouxe o animal aconselhava: grude-se nas crinas - ah, no meu

dialeto, nas quilinas do bicho; era um senhor, não sei se filho de nossa

Lorenza, eu subi de novo no diabo do jumento, e eis-me com mais uns

cem metros de trajeto, desci, a vida é boa, dona Lorenza me adverte,

62

exorta, que se eu vivo estiver, quando chegarmos em casa, vai ela me

mostrar um cinturão que pertenceu ao Che, uma cartucheira, para isso

eu lhe daria, a ela, mais 20 pesos, e se me fizesse fotografar com o cinto,

40. Eu topei, mas eu queria era superar o trajeto, o recorrido; ainda mais

um pouco com dona Lorenza, insisti em cair de novo, os pés não se

moviam, eu me sentava nas pedras; chega alguém de novo com o

jumento, outro jumento, não pretendo mais nem cair, nem me apear, e

aí somos agora cinco, um burro, brincava eu em cima de um burro,

acompanhado por um burro, aparecera agora um jovem, adolescente,

com o nome quase de Elvis Presley, puxado o cabresto por Don Santos,

um guia burro, o motorista que apareceu nos duzentos metros finais da

vareda, como diziam na Gangorra hareda; na frente de todos, Dona

Lorenza, a burra dueña del burro. Avistei a casa, agora um casebre, mas

agora mais que nunca a casa grande; Ana começa a sacar fotografias de

mim; o sorriso de dona Lorenza é enigmática (la sonrisa), vai buscar a

cartucheira que ela guarda como lembrança do Che, e desanda a contar

que ali na casa havia um verdadeiro arsenal, que muitas coisas, ela, os

pais dela enterravam, como medo do exército boliviano, em outubro de

1967.

63

Lembram-se?

“Then came each actor on his ass”

A ( ) Christopher Marlowe

B ( ) Sean O´Casey

C ( ) William Shakespeare

D ( ) George Bernard Shaw

E ( ) Oscar Wilde

Pés no chão, olho no firmamento, eis como Santo Agostinho

nomeou as Metamorfoses de Lúcio Apuleio, Asinus Aureus

64

O monitor do burro, a dona do

jegue, vão rir de mim pela vida fora.

Mas, dona Lorenza, próximo ano

vamos ter o 50º aniversário da

Morte do Che, pela CIA, o Governo

americano e os pro-cônsules

bolivianos, e agora mesmo a CIA

está monitorando estes escritos, me

diga dona Lorenza, eu tinha de

chegar lá e o fiz, na volta, ai de mim,

não fossem todos esses burros de

vocês, eu teria ficado aí pela metade

da trilha, sem pernas, mas podem

contar para o resto do mundo que

duas vezes fui ajudado por burritos,

burrillos, burrillillos, mas todo o

trajeto no lombo deles, foram dois

que me assistiram, não ultrapassa

200 metros. Com a cartucheira do Che supostamente, hoje de dona Lorenza, eu

estou parecendo um agente safado da CIA. Reparar no bucho, está cheio

de dólares.

65

Na casa de dona Lorenza, que segundo informa, conheceu

Che quando tinha 19 anos, em 1967. Já lá vão 49 anos, próximo ano

cinquentenário. O jumento, aliás dois jumentos, me socorreram no

retorno, pois eu não tinha mais pernas, dona Lorenza os fez aparecer,

como uma bruja, pois toda a vida de ida somente ela me acompanhava,

aliás, eu a acompanhava, ela com um bastão e seus mais de 60 nos coiros.

Ao retorno, no último décimo da trilha, somos eu, um burro, montado

num burro, acompanhado por um comandante de burro, e conduzido,

ela à frente, por dona Lorenza, a burra dona do burro. Não confundir a

preeminência da barriga com gordura ou adiposidade de Menezes, que

não. Aí se acha o canguru, bolsa cheia de dólares e bolivianos pesos; a

primeira vez que usei uma tal coisa foi na ida a São Paulo, ao curso do

Prof. Edmundo Vasconcelos, princípios de 1966. O apelido canguru

cunhado ao quase marsupial, ouvi-o pela primeira vez, nessa viagem, de

Manassés Claudino Fonteles, grande cientista brasileiro. Meio século

atrás.

Fotos de Ana Maria Rebouças Freire. Sítio de dona Lorenza, consoante ela,

sei bem que parece a Gangorra, onde nasci, principalmente esse céu implacável, que não

está aí para ninguém, como o Cruzeiro do Sul, de Rubião e Sofia,

Entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, Domingo de Ramos.

66

Os diversos tons da Cordillera, cores variegadas, matizes de

beleza, o azul do céu, o azul longínquo da serra, o verde da serra mais de

perto, e do capim, lembrando a resposta que o aluno deu ao grande professor

Bezerra Coutinho, do Recife. Bezerra Coutinho, professor de Patologia,

argui o aluno relapso: Meu prezado, por que é que não há capim na lua?

Resposta fulminante do aluno: `fessor porque lá não tem burro pra comê-lo.

Nota máxima.

67

Then came each actor on his ass.

Caríssimos irmãos, compulsem vossas Bíblias, que coletânea

fantástica; pois não é lá que, no capítulo 22 do Livro de Números, há

uma mula que fala, que reclama do amante, Balaão, com as palavras:

por que me açoitas Balaão, não vês que eu nunca te traí, que sempre fui

tua? Se não é assim, é quase, mas não há registro do nome da burra,

mulher de malandro.

68

Modificação da

foto exibida

anteriormente,

feita pelo artista

plástico

Francisco das

Chagas

Medeiros, em 02

de abril de 2016

A foto, claro,

como a maioria

das que estão

neste livrete,

foram tiradas,

por Ana Maria

Rebouças Freire.

Só há um terceiro

fotógrafo,

Gonzalo Flores

Guzmán.

As cores da

Cordilheira, do

chão da

cordilheira e do

firmamento me

transportam a

Itapipoca, à Serra da Uruburetama e à Gangorra. “Além, muito além

daquela serra, que ainda azula no horizonte...”

Recordo outra paisagem, que ainda azula no meu horizonte the

blue ridge mountains of Virginia. Tão longe, provavelmente nunca mais vou

a Charlottesville. Quem mas apontou, um dia, e as designou foi o professor

Richard Guerrant.

69

La Higuera. A Escolinha, hoje Museo Comunal. Explicam-nos que era

uma escolinha, que a professora Dona Julia ainda é viva, mora ao lado. Menino,

frequentei uma escolinha dessas, na Gangorra, numa casa de taipa, pertencente ao

Sr. Antônio Correia. Professoras eram duas das filhas, de Lourdes e Raimunda. Não

havia uma Júlia, não obstante já tenho uma neta assim chamada.

70

Cá, nesta sala de aula, o guardião do Museo explica, foi executado Che, eu

me escuto, no dia em que completei 25 anos. Ele continua, Che tinha 39 anos. Eu me

escuto, A vida é curta. A arte, longa.

71

I Juca Pirama: MENINOS EU VI! Foto do idoso mestre-escola

Menezes, na antiga escolinha de La Higuera, hoje Museo Comunal La Higuera. 7 de

fevereiro de 2016. A professora de tal ex-escolinha ainda vive, senhora Julia. Na sala

de aula, dei aulas, que sempre foi meu pobre ofício o de mestre-escola.

72

“GUERREIROS, OUVI!” Pirama significa aquele que deve ser morto,

ou que é digno de ser morto.

Para quem gosta de literatura há neste trabalho uma referência

longínqua a outro Juca. Você conseguiria localizá-la?

73

Oficina Chico Mudo, Itapipoca, um dos personagens essenciais da

minha meninice, o Francisco Teixeira, surdo-mudo. Oficina de ferreiro. Tinha foles,

forja, forno; martelo, bigorna, não tinha estribo, mas os endireitava (enfim

stapedius, incus, malleus); moldava ferro, outros metais. Eu ficava lá o vendo

trabalhar, embevecido, eventualmente o ajudando ou atrapalhando. Tem

descendência; incidentalmente, durante uma aula em que, numa necrópsia, eu

mostrava os ossículos do ouvido médio – martelo, bigorna, estribo, apresenta-se-me

um estudante, declarando-se seu neto.

HEFESTOS (Ἡφαιστεῖον), Vulcano, entre os romanos, coxo, como os

bruxos e os demônios; seu templo, em Atenas, desenhei-o, como criança de 7 anos, sem

talento, duas vezes, em 1992 e em 2014. Está quase do mesmo jeito que esteve há 2.500

anos. Por que mete-se-lhe nesta história? Simples: disponho de imagens demais, fotos

demais, documentos demais, fico confuso de como utilizá-los, recorto aqui, modifico

acolá, e no fim não fico satisfeito. É como se o mundo todo estivesse in fieri, o que aliás

é sempre verdade.

.

Desenho do Templo de

Hefesto, em março de 2014.

Só queria saber onde é que vou socar o Policarpo Quaresma neste enredo.

De qualquer forma, que viva! Afonso Henriques de Lima Barreto!

74

Quebrando de Volta

Oficina: Respeitável leitor, agora vejo Waterloo e Quebrada del

Churo, como Fabricio em A Cartuxa de Parma, de Stendhal, pelas beiradas

do tempo e do espaço.

Variadas vezes, batendo pernas pela itália e pelo Brasil Ana

fotografou estátuas de Giuseppe Garibaldi, mais recentemente a da praça à

frente da Estação Ferrocarril Central de Nápoles, que conheço há mais de

vinte anos, mesmo sendo a vida curta.

Será que o papa Francisco, alguma vez na vida visitou a

Lavandería de Valle Grande, o Mausoléu del Che e pergunta é também se

foi ao canto da execução, em La Higuera. Nem existe a pergunta se teria

palmilhado a senda até Quebrada del Churo. Porém, há mais coisa entre o

céu e a terra do que pode sonhar vossa vã filosofia.

Pois seja: There are more things in heaven and earth, Horatio,

than are dreamt of in your philosophy.

τέλος

75