caso gomes lunde e adpf 153

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105 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 64, pp. 105 - 131, jan./jun. 2014 ABSTRACT The present work has the purpose to demonstrate the objectives and functions of the American Convention on Human Rights on the judicial protection of human rights. From the analysis of the judgment delivered in ADPF nº153 in comparison with the decision of the Inter-American Court in Gomes Lunde case, this article argues the mismatch of some sections of doctrine and judges with regard to the purposes of the Organization of American States and the Constitution of Republic 1988, and propose alternative visions in solving conflicts between national and transnational legal order. KEYWORDS: Human rights. International court decision. Transconstitucionalism. 10.12818/P.0304-2340.2014v64p105 * Especialista em Direitos Fundamentais pelo Ius Gentium Conimbrigae – IGC da Faculdade de Direito de Coimbra (Portugal). Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES. E-mail: [email protected]. O DIÁLOGO ENTRE CORTES NA PROTEÇÃO REGIONAL DOS DIREITOS HUMANOS: CASO GOMES LUNDE E ADPF 153 THE DIALOGUE BETWEEN COURTS IN REGIONAL PROTECTION OF HUMAN RIGHTS: CASE OF GOMES LUND ET AL. (“GUERRILHA DO ARAGUAIA”) V. BRAZIL AND ADPF nº 153 ANDREY FELIPE LACERDA * RESUMO O presente trabalho tem por escopo demonstrar os objetivos e funções da Convenção Americana de Direitos Humanos na proteção jurisdicional dos direitos humanos. A partir da análise do julgamento da ADPF nº 153 em cotejo com a decisão proferida pela Corte Interamericana no caso Gomes Lunde, pretende-se demonstrar o descompasso de parte da doutrina e jurisprudência nacionais em relação aos propósitos da Organização dos Estados Americanos e da Constituição da República de 1988, bem como propor visões alternativas na solução de conflitos entre ordem jurídica nacional e transnacional. PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos. Sen- tença internacional. Transconstitucionalismo. SUMÁRIO: Introdução. 1 – A convenção Americana de Direitos Humanos: objetivos e funções. 2 – O sistema regional de proteção dos direitos humanos.

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    ABSTRACTThe present work has the purpose to demonstrate the objectives and functions of the American Convention on Human Rights on the judicial protection of human rights. From the analysis of the judgment delivered in ADPF n153 in comparison with the decision of the Inter-American Court in Gomes Lunde case, this article argues the mismatch of some sections of doctrine and judges with regard to the purposes of the Organization of American States and the Constitution of Republic 1988, and propose alternative visions in solving conflicts between national and transnational legal order.

    KEYWORDS: Human rights. International court decision. Transconstitucionalism.

    10.12818/P.0304-2340.2014v64p105

    * Especialista em Direitos Fundamentais pelo Ius Gentium Conimbrigae IGC da Faculdade de Direito de Coimbra (Portugal). Mestrando em Direito pelo Programa de Ps-Graduao em Direito da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Bolsista da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior CAPES. E-mail: [email protected].

    O DILOGO ENTRE CORTES NA PROTEO REGIONAL DOS DIREITOS HUMANOS: CASO GOMES LUNDE E ADPF n153

    THE DIALOGUE BETWEEN COURTS IN REGIONAL PROTECTION OF HUMAN RIGHTS: CASE OF GOMES LUND ET AL. (GUERRILHA DO ARAGUAIA) V. BRAZIL AND ADPF n 153

    Andrey Felipe lAcerdA*

    RESUMOO presente trabalho tem por escopo demonstrar os objetivos e funes da Conveno Americana de Direitos Humanos na proteo jurisdicional dos direitos humanos. A partir da anlise do julgamento da ADPF n 153 em cotejo com a deciso proferida pela Corte Interamericana no caso Gomes Lunde, pretende-se demonstrar o descompasso de parte da doutrina e jurisprudncia nacionais em relao aos propsitos da Organizao dos Estados Americanos e da Constituio da Repblica de 1988, bem como propor vises alternativas na soluo de conflitos entre ordem jurdica nacional e transnacional.

    PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos. Sen-tena internacional. Transconstitucionalismo.

    SUMRIO: Introduo. 1 A conveno Americana de Direitos Humanos: objetivos e funes. 2 O sistema regional de proteo dos direitos humanos.

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    3 A hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos. 4 A eficcia do decisum no Caso Gomes Lunde e ADPF n 153. 5 O campo hermenutico no cumprimento da sentena. 6 Novas possibilidades de transconstitucionalismo. Concluso.

    INTRODUO

    O Estado Democrtico de Direito representa o antagonismo dos regimes ditatoriais e totalitaristas. Pelo menos esse sentido mnimo pode ser extrado, com absoluta certeza, do campo semntico que envolve esta expresso.

    Ao observar-se o processo de evoluo poltico-social em nvel mundial e nacional, constata-se que tanto a ordem jurdica internacional quanto a interna convergem quanto aos seus princpios e objetivos especficos. O direito internacional dos direitos humanos surge no perodo do segundo ps-guerra, em resposta ao totalitarismo nazi-fascista, posteriormente no mbito da Amrica Latina os Estados se organizam para unir foras contra a ditadura e proclamam a Conveno Americana dos Direitos Humanos, criando a Organizao dos Estados Americanos para auxiliar os Estados membros na transio democrtica. J no Brasil, a Constituio da Repblica de 1988 foi o marco dessa transio, conferindo uma ampla gama de direitos e garantias fundamentais, estabelecendo fundamentos e objetivos especficos da Repblica Brasileira.

    O presente estudo tem por objetivo demonstrar esse antagonismo. De um lado o Brasil ps 1988, redemocratizado, que reconhece a maioria dos tratados internacionais de proteo dos direitos humanos e, de outro, um Brasil imperialista e autrquico jurisdio internacional, que protege torturadores e convive com verdades oficiais. Ao final sero indicadas novas possibilidades para a eficcia dos direitos humanos e de sua jurisdio internacional, na busca de um dilogo entre cortes, considerando tanto a normatividade que lhes inerente, quanto a abertura material do sistema jurdico nacional.

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    Na primeira parte do trabalho busca-se analisar a formao do sistema regional de proteo dos direitos humanos no mbito da Amrica Latiana, seus objetivos e sua relao com a Constituio da Repblica de 1988. J na segunda parte, o objetivo compreender a hierarquia das normas internacionais de proteo aos direitos humanos e sua relao com o direito interno, para ento avaliar criticamente a deciso do Supremo Tribunal Federal no que concerne ao julgamento da ADPF n 153 cujo objeto a declarao de inconstitucionalidade da lei de anistia.

    Ao final, pretende-se apresentar novas possibilidades interpretativas para os caos futuros que envolvam a aplicao dos tratados internacionais de proteo aos direitos humanos, bem como avaliar quais os efeitos possveis da deciso da Corte Interamericana de Direitos Humanos no que diz respeito questo da anistia no Brasil.

    1 A CONVENO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS: OBJETIVOS E FUNES

    Considerando as intensas modificaes ocorridas no mbito da Comunidade Internacional no perodo do segundo ps-guerra, o estados americanos decidiram implementar mecanismos de proteo regional dos direitos humanos alinhados s necessidade setoriais de violao. Assim, em 1978 entrou em vigor a Conveno Americana de Direitos Humanos num contexto scio-poltico de transio dos regimes ditatoriais para os democrticos.

    Diversamente do sistema regional europeu, formado pela agregao de valores concernentes ao Estado de Direito, Democracia e Direitos Humanos, o sistema regional interamericano surge, paradoxalmente, num ambiente desptico, marcado pelo uso da fora e em total assimetria com tais fundamentos e valores. Ademais, neste contexto, os direitos humanos eram compreendidos como uma agenda contra o Estado. No caso europeu, o sistema de proteo resultado do processo de integrao europia e se destina a fortalecer os laos entre povos irmos, j no caso interamericano a conveno inicialmente teve o escopo de combater as violaes decorrentes da

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    ditadura, como a perseguio poltica, tortura e o desaparecimento forado de pessoas e tambm de fortalecer a justia de transio para a consolidao das instituies democrticas.

    Na viso de Flvia Piovesan:

    Em 1978, quando a Conveno Americana de Direitos Humanos entrou em vigor, muitos dos Estados da Amrica Central e do Sul eram governados por ditaduras. Dos 11 Estados-partes da Conveno poca, menos que a metade tinha governos eleitos democraticamente, ao passo que hoje quase a totalidade dos Estados latino-americanos na regio tem governos eleitos democraticamente. Diversamente do sistema regional europeu que teve como fonte inspiradora a trade indissocivel Estado de Direito, Democracia e Direitos Humanos, o sistema regional interamericano tem em sua origem o paradoxo de nascer em um ambiente acentuadamente autoritrio, que no permitia qualquer associao direta e imediata entre Democracia, Estado de Direito e Direitos Humanos. Ademais, neste contexto, os direitos humanos eram tradicionalmente concebidos como uma agenda contra o Estado. Diversamente do sistema europeu, que surge como fruto do processo de integrao europia e tem servido como relevante instrumento para fortalecer este processo de integrao, no caso interamericano havia to somente um movimento ainda embrionrio de integrao regional1.

    2 O SISTEMA REGIONAL DE PROTEO DOS DIREITOS HUMANOS

    As funes do sistema interamericano vm se expandindo ao longo da ltima dcada, com a ratificao dos principais tratados de direitos humanos pela maioria dos estados americanos, bem como pelo reconhecimento da jurisdio consultiva e contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

    1 PIOVESAN, Flvia. Fora integradora e catalizadora do sistema interamericano de proteco dos direitos humanos : desafios para a pavimentao de um constitucionalismo regional. In: Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda / [coordenao de] Marcelo Rebelo de Sousa. [et al.] . - [Coimbra]: [Coimbra Editora], 2012. - 5.v.: Direito internacional e direito da Unio Europeia: direito internacional privado e direito martimo : direito financeiro e direito fiscal, p. 101-116.

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    O sistema interamericano de proteo dos direitos humanos formado por quatro diplomas normativos: A Declarao Americana dos Direitos e Deveres do Homem, a Carta da Organizao dos Estados Americanos, Conveno Americana de Direitos Humanos e, finalmente, pelo Protocolo de San Salvador.

    Aps a adeso da Carta da Organizao dos Estados Americanos e da Declarao Americana dos Direitos e Deveres do Homem em 1948, iniciou-se lentamente o desenvolvimento de um sistema interamericano de proteo dos Direitos Humanos. A carta da OEA proclamou o genrico dever de respeito aos direitos humanos por parte de todos os Estados membros da organizao, ao passo que a Declarao Americana enumerou os direitos fundamentais da pessoa humana que deveriam ser garantidos por estes Estados.

    Em 1959, foi aprovada a criao de um rgo especialmente voltado para a proteo dos direitos humanos no mbito da OEA, atualmente conhecida como Comisso Interamericana de Direitos Humanos. Durante os primeiros anos o papel da Comisso restringiu-se a promover os direitos humanos delineados pela Declarao Americana, apenas em 1965 suas funes foram ampliadas e ela passou a ser um verdadeiro rgo internacional de fiscalizao do cumprimento, por parte dos Estados membros, dos compromissos assumidos perante a OEA.

    A CIDH est autorizada a receber e examinar peties individuais sobre pretensas violaes de direitos humanos, bem como inquirir os Estados sobre os fatos apurados, recomendando condutas destinadas soluo amistosa, podendo inclusive sugerir alteraes normativas.

    Em virtude do contexto histrico em que o sistema foi formado, verifica-se que a nfase de proteo se encontra no campo dos direitos civis e polticos, sendo certo que os Estados que ratificaram a Conveno esto sujeitos fiscalizao e eventual processamento pela CIDH perante a Corte Interamericana de direitos humanos.

    O Brasil aderiu ao Pacto de San Jos da Costa Rica por meio do Decreto Legislativo, n.27/92 e Decreto 678/92, sendo certo que tambm reconheceu a jurisdio da Corte Interamericana

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    de Direitos Humanos por meio do Decreto Legislativo n. 89/98. Portanto, verifica-se que o sistema interamericano e sua jurisdio foram incorporados ao direito positivo nacional, cumprindo-se um mandamento constitucional presente no captulo X da Constituio da Repblica: Art. 7. O Brasil propugnar pela formao de um tribunal internacional dos direitos humanos.

    Considerando que no dia 07 de setembro de 1998, o ento Presidente da Repblica enviou a mensagem presidencial de n 1070/98 ao Congresso Nacional solicitando a aprovao do respectivo Decreto Legislativo para fazer a declarao de reconhecimento da competncia obrigatria da Corte Interamericana de Direitos Humanos em todos os casos relativos interpretao ou aplicao da Conveno Americana de Direitos Humanos para fatos ocorridos a partir do reconhecimento de acordo previsto no 1 do art. 62 daquele instrumento internacional, verifica-se que no restam dvidas quanto vinculao do Estado Brasileiro jurisdio da Corte Interamericana, no que diz respeito a sua competncia para apurao, interpretao e eventual condenao por violao dos direitos previstos na Conveno Americana de Direitos Humanos, sob pena de responsabilizao internacional da Repblica Federativa do Brasil pelo no cumprimento dessas decises.

    3 A HIERARQUIA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS

    No obstante a ratificao da Conveno Americana de Direitos Humanos pelo Brasil em 1992 e o reconhecimento da jurisdio da Corte Interamericana em 1998, verifica-se tanto na doutrina quanto na jurisprudncia serias divergncias quanto hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos, situao que tem causado dvidas e incertezas quanto a sua aplicao, prejudicando a proteo conferida em nvel normativo.

    Durante o perodo do segundo ps-guerra e com a promulgao da Declarao Universal dos Direitos Humanos de 1948, observa-se que as fronteiras entre os valores e o mundo do dever-ser comeam a se entrelaar. O fenmeno decorre dos eventos nefastos provocados pelo perodo de opresso do totalitarismo, em

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    resposta s atrocidades cometidas por estes regimes, bem como diante da excluso social gerada pela engenharia social tpica da modernidade. Diante desse cenrio, a Comunidade Internacional optou por editar uma nova programao para o sistema jurdico em nvel global, forando as ordens constitucionais a se readequarem segundo os axiomas da Declarao Universal dos Direitos Humanos, na busca da promoo e respeito da dignidade da pessoa humana em todas as suas dimenses. Ao tratar do Direito Internacional dos Direitos Humanos, afirma Richard B. Bilder:

    O movimento do direito internacional dos direitos humanos baseado na concepo de que toda nao tem a obrigao de respeitar os direitos humanos de seus cidados e de que todas as naes e a comunidade internacional tm o direito e a responsabilidade de protestar, se um Estado no cumprir suas obrigaes. O Direito Internacional dos Direitos Humanos consiste em um sistema de normas internacionais, procedimentos e instituies desenvolvidas para implementar esta concepo e promover o respeito dos direitos humanos em todos os pases, no mbito mundial. [...] Embora a idia de que os seres humanos tm direitos e liberdades fundamentais que lhe so inerentes tenha h muito tempo surgido no pensamento humano, a concepo de que os direitos humanos so objeto prprio de uma regulao internacional, por sua vez, bastante recente. [...] Muitos dos direitos que hoje constam do Direito Internacional dos Direitos Humanos surgiram apenas em 1945, quando, com as implicaes do holocausto e de outras violaes de direitos humanos cometidas pelo nazismo, as naes do mundo decidiram que a promoo de direitos humanos e liberdades fundamentais deve ser um dos principais propsitos da Organizaes das Naes Unidas.2

    Neste contexto, verifica-se que a proteo dos direitos huma-nos no deve ser reduzida ao plano domstico reservado ao Estado, isto , sua fiscalizao e promoo no podem ser legitimamente realizadas apenas no mbito da competncia legislativa e executiva nacional, ou deixada a cargo exclusivo da jurisdio interna, porque revela tema de interesse supranacional.

    2 BILDER, Richard B. An overview of international human rights law. In: HANNUM, Hurst (Editor). Guide to international human rights practice. 2. ed. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1992. p. 3-5.

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    O direito a ter direitos, proposio molecular criada por Hannah Arendt, denota o conceito de cidadania global, isto , nos conduz ideia do processo de internacionalizao de certos direitos inerentes a condio de ser humano. Logo, a partir dessa concepo filosfica, construda no seio da Comunidade Internacional, da qual o Brasil faz parte, o ser humano passou a ser considerado sujeito de direito internacional, erigindo-se todo um sistema normativo em nvel global, regional e local para sua proteo3. Este processo implicou na flexibilizao da soberania clssica dos Estados, os quais passaram a sofrer intervenes no plano nacional, em prol da proteo dos direitos humanos, atravs de formas de monitoramento e responsabilizao internacional quando esses direitos forem violados.

    Nesse sentido verifica-se que a Constituio da Repblica de 1988 faz parte desse processo de efetivao dos direitos humanos e expanso da cidadania, sendo que sua eficcia opera em nvel local. Os efeitos do segundo ps-guerra transformaram a concepo do constitucionalismo contemporneo de tal sorte que parte da doutrina nacional e estrangeira tem denominado o fenmeno de neoconstitucionalismo, ou neoconstitucionalismo(s). O reconhe-cimento da fora normativa e vinculante da constituio, a opo por um sistema de regras e princpios, a filtragem constitucional, a aplicao horizontal dos direitos fundamentais e sua eficcia irradiante, bem como a superao do positivismo e do mtodo exclusivamente silogstico, so exemplos deste novo cenrio.

    Na acepo de Daniel Sarmento:

    O Direito brasileiro vem sofrendo mudanas profundas nos ltimos tempos, relacionadas emergncia de um novo paradigma tanto na teoria jurdica quanto na prtica dos tribunais, que tem sido designado como neoconstitucionalismo. Estas mudanas, que se desenvolvem sob a gide da Constituio de 88, envolvem vrios fenmenos diferentes, mas reciprocamente implicados, que podem ser assim sintetizados: (a) reconhecimento da fora normativa dos princpios jurdicos e valorizao da sua importncia no processo de aplicao do Direito; (b) rejeio ao

    3 Cf. PIOVESAN, Flvia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12 Ed. So Paulo: Saraiva, 2011.

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    formalismo e recurso mais freqente a mtodos ou estilos mais abertos de raciocnio jurdico: ponderao, tpica, teorias da argumentao etc.; (c) constitucionalizao do Direito, com a irradiao das normas e valores constitucionais, sobretudo os relacionados aos direitos fundamentais, para todos os ramos do ordenamento; (d) reaproximao entre o Direito e a Moral, com a penetrao cada vez maior da Filosofia nos debates jurdicos; e (e) judicializao da poltica e das relaes sociais, com um significativo deslocamento de poder da esfera do Legislativo e do Executivo para o Poder Judicirio.4

    O modelo terico neoconstitucionalista, constri-se a partir da compreenso de trs marcos fundamentais que refletem a mudana de paradigma e a evoluo do direito constitucional, so eles o histrico, terico e o filosfico5.O marco histrico do novo direito constitucional, na Europa continental, foi o constitucionalismo normativo do 2 ps-guerra, especialmente na Alemanha e na Itlia. J no Brasil, o processo de redemocratizao impulsionado pela promulgao da Constituio da Repblica de 1988.

    Conforme Lus Roberto Barroso:

    A reconstitucionalizao da Europa, imediatamente aps a 2 Grande Guerra e ao longo da segunda metade do sculo XX, redefiniu o lugar da Constituio e a influncia do direito constitucional sobre as instituies contemporneas. A aproximao das idias de constitucionalismo e de democracia produziu uma nova forma de organizao poltica, que atende por nomes diversos: Estado democrtico de direito, Estado constitucional de direito, Estado constitucional democrtico.6

    nesse cenrio que se visualiza um constitucionalismo multinvel, que teve como gnese a Declarao Universal dos Direitos Humanos de 1948, cujo objetivo a reconstruo de um paradigma referencial tico, destinado a reorientar toda a ordem

    4 SARMENTO, Daniel. E SOUZA NETO, Claudio Pereira de. (org.) A constitucionalizao do Direito: Fundamentos Tericos e Aplicaes Especficas. Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2007, p.10.

    5 Cf. BARROSO,Luis Roberto. Interpretao e Aplicao da Constituio. 7 Ed. So Paulo:Saraiva, 2009.

    6 Idem, p. 203.

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    normativa mundial, na busca da promoo da dignidade da pessoa humana em suas mltiplas dimenses.

    Na viso de Flvia Piovesan7:

    Vale dizer, no mbito do Direito Internacional, comea a ser delineado o sistema normativo internacional de proteo dos direitos humanos. como se projetasse a vertente de um constitucionalismo global, vocaionado a proteger direitos fundamentais e limitar o poder do Estado, mediante a criao de um aparato internacional de proteo de direitos.

    J no prembulo da Lei Fundamental brasileira encontramos fragmentos hermenuticos que indicam as circunstncias histricas e polticas norteadoras de todo o ordenamento jurdico nacional, os quais revelam a inteno de se programar uma sociedade fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a soluo pacfica das controvrsias. Mais adiante, adentrando na parte normativa do texto, encontramos no art. 4, II o princpio da prevalncia dos direitos humanos (indito na histria constitucional brasileira) que denota o processo de internacionalizao dos direitos humanos, bem como a abertura da ordem jurdica interna ao sistema internacional de proteo dos direitos humanos.

    Com efeito, verifica-se no art. 5, 1, 2 e 3 da Consti-tuio da Repblica verdadeiro acoplamento estrutural entre o sistema de proteo interno dos direitos fundamentais com o siste-ma internacional de proteo dos direitos humanos. O pargrafo primeiro garante aos direitos fundamentais aplicabilidade imediata, isto , aptido para produzir efeitos jurdicos sem a necessidade de interveno legislativa ou regulamentar, ao passo que o segundo prescreve de forma expressa que: Os direitos e garantias expressos nesta Constituio no excluem outros decorrentes do regime e dos princpios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a Repblica Federativa do Brasil seja parte. Assim, forma-se o denominado bloco de constitucionalidade para alm daqueles

    7 PIOVESAN, Flvia. Direitos Humanos e Justia Internacional. 1Ed. So Paulo: Saraiva, 2006, p. 11.

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    direitos expressamente previstos no texto constitucional, onde se encontram os direitos humanos previstos na Conveno Americana, bem como nos demais tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil e vigentes no plano internacional.

    Esse o entendimento da doutrina alinhada ao constitucio-nalismo normativo do sculo XXI, nesse sentido Flvia Piovesan pontifica:

    nesse contexto que h de se interpretar o disposto no art. 5, 2 do texto, que tece a interao entre o Direito brasileiro e os tratados internacionais de direitos humanos. Ao fim da extensa Declarao de Direitos enunciada pelo art. 5, a Carta de 1988 estabelece que os direitos e garantias expressos na Constituio no excluem outros decorrentes do regime e dos princpios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a Repblica Federativa do Brasil seja parte. luz desse dispositivo constitucional, os direitos fundamentais podem ser organizados em trs distintos grupos: a) o dos direitos expressos na Constituio; b) o dos direitos implcitos, decorrentes do regime e dos princpios adotados pela Carta constitucional; e c) o dos direitos expressos nos tratados internacionais subscritos pelo Brasil. A Constituio de 1988 inova, assim, ao incluir, dentre os direitos constitucionalmente protegidos, os direitos enunciados nos tratados internacionais de que o Brasil seja signatrio. Ao efetuar tal incorporao, a Carta est a atribuir aos direitos internacionais uma hierarquia especial e diferenciada, qual seja, a de norma constitucional. [...]Logo, por fora do art. 5, 1 e 2, a Carta de 1988 atribui aos direitos enunciados em tratados internacionais a hierarquia de norma constitucional, incluindo-os no elenco dos direitos constitucionalmente garantidos, que apresentam aplicabilidade imediata.8

    No obstante todo o desenvolvimento doutrinrio acerca da hierarquia normativa dos tratados de direitos humanos e sua integrao com o sistema jurdico nacional observa-se que a jurisprudncia no caminha no melhor sentido.

    8 PIOVESAN, Flvia. Tratados Internacionais de Proteo dos Direitos Humanos: Jurisprudncia do STF. Disponvel em: . Acessado em 05.02.2014.

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    O caso paradigmtico que demonstra a supra-legalidade e infraconstitucionalidade dos tratados de direitos humanos est colacionado no RE 466.343, onde o Supremo Tribunal Federal, em 03.12.2008, por unanimidade, negou provimento ao referido recurso, estendendo a proibio da priso civil por dvida hiptese de alienao fiduciria em garantia, com fundamento na Conveno Americana de Direitos Humanos (art.7 7o). O dispositivo probe a priso civil por dvida, salvo no caso de inadimplemento inescusvel de obrigao alimentcia. Ao revs, a Constituio da Repblica de 1988, no artigo 5, LXVII, apesar de estabelecer a proibio da priso civil por dvida, excepciona as hipteses do depositrio infiel e do devedor de alimentos. O entendimento unnime do STF foi no sentido de conferir prevalncia ao valor da liberdade, em detrimento do valor da propriedade, em se tratando de priso civil do depositrio infiel, com nfase na importncia do respeito aos direitos humanos. O Supremo firmou, assim, orientao no sentido de que a priso civil por dvida no Brasil est restrita hiptese de inadimplemento voluntrio e inescusvel de prestao alimentcia.

    Ainda no citado recurso, a Suprema Corte decidiu conferir aos tratados de direitos humanos um regime especial e diferenciado, distinto do regime jurdico aplicvel aos tratados tradicionais. Entretanto, divergiu no que tange hierarquia atribuda aos tratados de direitos humanos, dividindo-se entre a tese da supra-legalidade (Ministro Gilmar Mendes) e a tese da constitucionalidade dos tratados de direitos humanos (Ministro Celso de Mello), sendo majoritria a primeira delas, vencidos os Ministros Celso de Mello, Cesar Peluso, Ellen Grace e Eros Grau, que conferiam aos tratados de direitos humanos status constitucional.

    A vitoriosa argumentao do Exmo. Ministro Gilmar Mendes, se pauta em interpretao controvertida do 3 do art. 5 da Constituio da Repblica. Afastando-se do postulado da mxima efetividade possvel dos direitos fundamentais e reduzindo sua fora normativa, o r. Ministro, confunde os status materialmente constitucional com o status formalmente constitucional.

    Apesar da interessante argumentao proposta por essa tese, parece que a discusso em torno do status constitucional dos tratados de

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    direitos humanos foi, de certa forma, esvaziada pela promulgao da Emenda Constitucional n 45/2004, a Reforma do Judicirio (oriunda do Projeto de Emenda Constitucional n 29/2000), a qual trouxe como um de seus estandartes a incorporao do 3 ao art. 5, com a seguinte disciplina: Os tratados e convenes internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por trs quintos dos votos dos respectivos membros, sero equivalentes s emendas constitucionais. Em termos prticos, trata-se de uma declarao eloqente de que os tratados j ratificados pelo Brasil, anteriormente mudana constitucional, e no submetidos ao processo legislativo especial de aprovao no Congresso Nacional, no podem ser comparados s normas constitucionais9.

    compreensvel a postura hermenutica do Exmo. Ministro Gilmar, levando em conta a concepo dworkiniana dos precedentes capitulados e seqenciados como em uma novela, mormente quando consideramos os julgados anteriores da Corte no sentido de conferir status de lei ordinria dos tratados internacionais. Assim, qualific-los com a mesma hierarquia da Constituio seria uma ruptura demasiadamente abrupta da jurisprudncia. Entretanto, verifica-se que a diferena entre os pargrafos 2 e 3 do art. 5 da Constituio da Repblica est em conferir s convenes internacionais de direitos humanos o status formalmente constitucional, equiparando-os s emendas constitucionais. Logo, o sentido do 3 afirma que os tratados de direitos humanos, j ratificados pelo Brasil (e, portanto com o status de norma constitucional, nos termos do 2) podero ser qualificados com o status formalmente constitucional, desde que, a qualquer tempo, aps sua entrada em vigor, sejam aprovados pelo quorum qualificado de votao tpico das emendas, o que lhes daria a proteo de clusula ptrea, impossibilitando a denncia no mbito internacional10.

    9 RE 466.3431 So Paulo Rel. MIN. CEZAR PELUSO. Julgado em: 03/12/2008.Disponvel em: . Acessado em: 07.02.2014.

    10 Cf. MAZZUOLI, Valrio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Pblico, 2 Ed, So Paulo: RT, 2007, p. 682-702.

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    4 A EFICCIA DO DECISUM NO CASO GOMES LUNDE E NA ADPF N 153

    A maioria das Constituies latino-americanas estabelece clusulas constitucionais abertas, as quais permitem a integrao entre a ordem constitucional e a ordem internacional, mormente no campo dos direitos humanos, ampliando e expandindo o bloco de constitucionalidade. Ao processo de constitucionalizao do Direito Internacional conjuga-se o processo de internacionalizao do Direito Constitucional.

    Nesse sentido, verificamos que a nossa Constituio da Repblica de 1988, estabeleceu como valor fonte e catalisador o princpio da dignidade da pessoa humana (art. 1, III). Ademais, no que diz respeito s relaes internacionais do Estado brasileiro, optou o constituinte originrio por estabelecer a prevalncia dos direitos humanos (art. 4,II). Nessa linha, o art. 5, 2 representa a opo por uma clusula de abertura que assegura o ingresso dos direitos humanos ratificados por tratados internacionais no sistema jurdico nacional, com status equivalente s normas de direitos fundamentais.

    Quanto eficcia da Conveno Americana de Direitos Humanos e ao reconhecimento da jurisdio da Corte Interamericana de Direitos Humanos, observou-se que o Estado brasileiro, por meio dos decretos: 678-92 (Art. 1 - A Conveno Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de So Jos da Costa Rica -, celebrada em So Jos da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, apensa por cpia ao presente decreto, dever ser cumprida to inteiramente como nela se contm) e 4463-02 (Art. 1 - reconhecida como obrigatria, de pleno direito e por prazo indeterminado, a competncia da Corte Interamericana de Direitos Humanos em todos os casos relativos interpretao ou aplicao da Conveno Americana de Direitos Humanos - Pacto de So Jos -, de 22 de novembro de 1969, de acordo com art. 62 da citada Conveno, sob reserva de reciprocidade e para fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998) conferiu a densidade normativa necessria produo dos efeitos jurdicos na ordem interna.

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    119Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 64, pp. 105 - 131, jan./jun. 2014

    Ademais, conforme o art. 7 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias verifica-se que o constituinte originrio tambm optou pela criao de um Tribunal Internacional de Direitos Humanos. Todavia, mesmo diante da vinculao legal aos tratados e jurisdio da Corte, observa-se que o Brasil mantm-se autrquico ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, sendo certo que nessa seara o STF prefere utilizar interpretaes da Corte Suprema americana e do Tribunal Constitucional Federal alemo ao invs de dialogar com a Corte Interamericana a qual est vinculado, razo pela qual o Estado brasileiro vem sendo sistematicamente condenado por violaes de direitos humanos.

    No obstante a condenao da Repblica Federativa do Brasil em outros casos pela Corte Interamericana, como: Damio Ximenes Lopes (4.07.06), Escher (06.07.09) e Garibaldi (23.09.09), o caso Gomes Lunde de 24 de dezembro de 2010, foi o primeiro em que foram impostas obrigaes de fazer aos trs poderes da repblica, bem como ao Ministrio Pblico Federal. No caso Gomes Lunde o Brasil foi condenado por diversas violaes Conveno Americana de Direitos Humanos, nos vrios episdios conhecidos como Guerrilha do Araguaia. Para a Corte Interamericana:

    Conforme salientou a Comisso, a demanda se refere alegada responsabilidade [do Estado] pela deteno arbitrria, tortura e desaparecimento (...)No Relatrio de Mrito No. 91/08, a Comisso concluiu que o Estado era responsvel pelas violaes dos direitos humanos estabelecidos nos artigos I, XXV e XXVI da Declarao Americana, bem como dos artigos 4, 5 e 7, em conexo com o artigo 1.1 da Conveno Americana, em detrimento das vtimas desaparecidas(....)nos artigos XVIII da Declarao Americana e 8.1 e 25 da Conveno Americana, em relao com os artigos 1.1 e 2 da mesma Conveno, em detrimento das vtimas desaparecidas e de seus familiares, em virtude da aplicao da Lei de Anistia, nos artigos XVIII da Declarao Americana e 8.1 e 25, em relao com o artigo 1.1 da Conveno Americana, em detrimento das vtimas desaparecidas e de seus familiares, em virtude da ineficcia das aes judiciais no penais interpostas no marco do presente caso (expediente de anexos demanda, apndice 3, tomo VII, folha 3655).4 forado de 70 pessoas, entre membros do Partido Comunista do Brasil [] e camponeses da regio, [] resultado de operaes do Exrcito brasileiro empreendidas entre 1972 e

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    1975 com o objetivo de erradicar a Guerrilha do Araguaia, no contexto da ditadura militar do Brasil (19641985). A Comisso tambm submeteu o caso Corte porque, em virtude da Lei No. 6.683/79 [], o Estado no realizou uma investigao penal com a finalidade de julgar e punir as pessoas responsveis pelo desaparecimento forado de 70 vtimas e a execuo extrajudicial de Maria Lcia Petit da Silva []; porque os recursos judiciais de natureza civil, com vistas a obter informaes sobre os fatos, no foram efetivos para assegurar aos familiares dos desaparecidos e da pessoa executada o acesso a informao sobre a Guerrilha do Araguaia; porque as medidas legislativas e administrativas adotadas pelo Estado restringiram indevidamente o direito de acesso informao pelos familiares; e porque o desaparecimento das vtimas, a execuo de Maria Lcia Petit da Silva, a impunidade dos responsveis e a falta de acesso justia, verdade e informao afetaram negativamente a integridade pessoal dos familiares dos desaparecidos e da pessoa executada. A Comisso solicitou ao Tribunal que declare que o Estado responsvel pela violao dos direitos estabelecidos nos artigos 3 (direito ao reconhecimento da personalidade jurdica), 4 (direito vida), 5 (direito integridade pessoal), 7 (direito liberdade pessoal), 8 (garantias judiciais), 13 (liberdade de pensamento e expresso) e 25 (proteo judicial), da Conveno Americana sobre Direitos Humanos, em conexo com as obrigaes previstas nos artigos 1.1 (obrigao geral de respeito e garantia dos direitos humanos) e 2 (dever de adotar disposies de direito interno) da mesma Conveno. Finalmente, solicitou Corte que ordene ao Estado a adoo de determinadas medidas de reparao11. (grifo nosso)

    A deciso da Corte Interamericana imps ao Brasil as obrigaes, dentre outras, de investigar, apurar e punir os responsveis pelos crimes de desaparecimento forado, tortura e homicdio, bem como de reajustar sua legislao interna de modo que essas violaes jamais voltem a ocorrer, tipificando o crime de desaparecimento forado e legislando de modo a garantir o acesso informao.

    11 Sentena proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Disponvel em: . Acessado em 10.01.2014.

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    Outra importante determinao foi a de no aplicar a lei de anistia a estes casos, o que implica efeitos diretos na ADPF 153 ajuizada pelo Conselho Federal da OAB objetivando a declarao de invalidade da Lei de Anistia n. 6683.79, em virtude da sua incompatibilidade com os preceitos da nova ordem constitucional.

    A lei n 6683/79 em seu art. 1 diz:

    Art. 1 concedida anistia a todos quantos, no perodo compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes polticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos polticos suspensos e aos servidores da Administrao Direta e Indireta, de fundaes vinculadas ao poder pblico, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judicirio, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares(vetado).

    1 - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes polticos ou praticados por motivao poltica.

    Assim, o objeto da ADPF justamente questionar se houve anistia quanto aos crimes de homicdio, desaparecimento forado, abuso de autoridade, leses corporais, estupro e atentado violento ao pudor contra os opositores do regime militar, bem como verificar a compatibilidade da lei com os preceitos fundamentais da Constituio de 1988.

    O argumento central o de que os militares no cometeram crimes polticos e sim comuns, visto que no se podem conferir ex lege os efeitos da conexo aos crimes supramencionados, pois nesse caso seria violado o princpio da legalidade (Art.5, XXXIX), ao deixar a cargo do Poder Judicirio a definio dos crimes de qualquer natureza que seriam anistiados. Ademais, a lei de anistia tambm viola o direito fundamental ao acesso informao, bem como do conhecimento da verdade (Art. 5,XXXIII). Alega-se ainda, que o ato normativo no fruto de deliberaes democrticas, violando o princpio do Estado Democrtico de Direito (Art. 1, caput) e a regra de proibio da tortura e tratamento degradante (art. 5,III), contrariando todo o ncleo de valores protetivos da pessoa humana inerente ao princpio da dignidade da pessoa humana (art. 1, III).

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    Considerando que houve julgamento de improcedncia da ADPF n 153 em 29.04.2010, ao fundamento de que anistia, por se tratar de pacto bilateral objetivando a reconciliao nacional, considerando o contexto histrico em que foi concedida, teve sim carter amplo, geral e irrestrito, mas que, at ento, no havia sentena internacional que determinasse a inaplicabilidade da lei de anistia como fica a situao jurdica dos casos que envolvem tortura e desaparecimento forado no Brasil? Qual deciso dever prevalecer apta a gerar os seus principais efeitos?

    Como j exposto linhas acima, o Brasil est vinculado jurisdio da Corte Interamericana de Direitos Humanos12 e deve cumprir suas decises, sob pena de cometer novo ilcito internacional, gerando nova condenao pelo descumprimento desta deciso.

    12 Decreto 678/92 cc Conveno America de Direitos Humanos - Artigo 68 - 1. Os Estados-partes na Conveno comprometem-se a cumprir a deciso da Corte em todo caso em que forem partes.

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    5 O CAMPO HERMENUTICO NO CUMPRIMENTO DA SENTENA

    Destarte, considerando que as instncias internacionais de proteo dos direitos humanos no determinam qual autoridade nacional deve ser responsvel pelo cumprimento do julgado, podendo o Estado cumpri-lo espontaneamente ou escolher os mecanismos internos para fazer cumprir o contedo da deciso judicial internacional, deve-se optar pelo mais clere e efetivo caminho no campo hermenutico que se abre.

    Existem regras internas de execuo e competncia delineadas na prpria Constituio da Repblica, aplicveis sentena internacional. No caso da Guerrilha do Araguaia, verifica-se que o Brasil vem cumprindo algumas determinaes da sentena exarada pela Corte Interamericana, a exemplo da criao da Comisso da Verdade, das indenizaes conferidas s famlias das vtimas, da recente legislao de acesso informao e do reconhecimento pblico da verdade dos fatos, acompanhado do formal pedido de desculpas, reparador da honra e a imagem das vtimas. Porm, no que diz respeito s demais medidas impostas no caso Gomes Lunde:

    (i) conduzir eficazmente, perante a jurisdio ordinria, a investigao penal dos fatos do presente caso a fim de esclarec-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanes e consequncias que a lei preveja, em conformidade com o estabelecido nos pargrafos 256 e 257 da presente Sentena13.

    (ii) O Estado deve adotar, em um prazo razovel, as medidas que sejam necessrias para tipificar o delito de desaparecimento forado de pessoas em conformidade com os parmetros interamericanos, nos termos do estabelecido no pargrafo 287 da presente Sentena. Enquanto cumpre com esta medida, o Estado deve adotar todas

    13 Sentena proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Disponvel em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf Acessado em 10.01.2014.

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    aquelas aes que garantam o efetivo julgamento, e se for o caso, a punio em relao aos fatos constitutivos de desaparecimento forado atravs dos mecanismos existentes no direito interno14.

    Verifica-se que o STF est prestes a obstaculizar o integral cumprimento do decisum, colocando a Repblica em iminente risco de cometer novo ilcito internacional, gerando futura responsabilidade para o Estado brasileiro por descumprir determinao da Corte Interamericana, no que diz respeito invalidade da lei de anistia e efetividade da persecuo criminal.

    A prolao da sentena pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 24 de novembro de 2010, posterior ao julgamento da ADPF n 153, ocorrido em abril do mesmo ano, representa fato novo na demanda, passvel de ser atacado por embargos declaratrios com efeitos infringentes visando modificao do julgado, uma vez que o acrdo do STF omisso quanto a competncia da Corte Interamericana para decidir a questo.

    Entretanto, no caso da ADPF n 153, verifica-se que a OAB j ops os embargos de declarao no prazo de cinco dias aps a publicao da sentena e na oportunidade no alegou qualquer vinculao do Estado brasileiro jurisdio da Corte Interamericana de Direitos Humanos e tampouco mencionou os pareceres da Comisso Interamericana no sentido da violao do Pacto de San Jos da Costa Rica e eventual condenao do Estado brasileiro. Sendo assim, a matria sofreu os efeitos da precluso consumativa e a OAB perdeu a oportunidade de requerer a suspenso do processo, com base no art. 265 do Cdigo de Processo Civil at que fosse decidia a questo prejudicial no mbito da Justia Internacional.

    J que a possibilidade de efeitos infringentes via embargos de declarao no mais vivel, tendo em vista os efeitos da precluso processual, surge questo de como o Estado brasileiro dar cumprimento integral sentena internacional. Alguns pases adotam as chamadas enabling legislations, que so legislaes nacionais de implementao das decises de instncias internacionais de proteo dos direitos humanos. No caso brasileiro verifica-se que

    14 Idem. p.115.

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    125Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 64, pp. 105 - 131, jan./jun. 2014

    este mecanismo no existe no sistema, mas a prpria Constituio da Repblica favorvel responsabilizao internacional do Estado brasileiro, interpretao que emerge da anlise dos arts. 7, ADCT cc 4 II cc 5, 2, CRFB.

    Nesse sentido, segundo Andr de Carvalho Ramos:

    Caso o Estado Brasileiro seja omisso no cumprimento dessas obrigaes a busca pela total reparao da vtima de violao de direitos humanos deve ser alcanada atravs do Poder Judicirio, com base no art. 5, XXXV, de nossa Constituio. Assim, em relao ao Brasil, observo que as obrigaes de fazer e no fazer porventura fixadas pela Corte podem ser exigidas pela vtima ou pelo Ministrio Pblico por meio do recurso ao Poder Judicirio.A ao proposta pelo Ministrio Pblico, no cumprimento de sua misso constitucional (art. 127 da Constituio ) deve utilizar a sentena internacional, enquanto obrigao de resultado e exigir o cumprimento da mesma, utilizando-se, na medida do possvel, o disposto no art. 461 do Cdigo de Processo Civil, que criou a tutela especfica das obrigaes de fazer e no fazer. Em analogia com a parte indenizatria da sentena internacional, a parte que contiver obirgao de fazer e no fazer deve ser considerada como ttulo executivo judicial, j que o Brasil obrigou-se a implementar, de boa-f, os comandos da sentena internacional, de acordo com o disposto no art. 63 da Conveno Americana de Direitos Humanos15.

    Com efeito, verifica-se que a deciso do Supremo Tribunal Federal no sentido de improcedncia da ADPF n 153, mesmo transitada em julgado, no ter eficcia alguma, considerando a sentena proferida pela Corte Interamericana em sentido oposto. Contra esta postura hermenutica lanam-se dois argumentos: Independncia constitucional do Poder Judicirio e respeito coisa julgada.

    Em primeiro lugar, o STF competente para decidir sobre a procedncia ou no da ADPF, cumprindo-lhe a guarda da Constituio, nos termos do art. 102, CRFB. No entanto no se verifica no dispositivo qualquer meno competncia do pretrio

    15 RAMOS, Andr de Carvalho. Direitos Humanos em Juzo: Comentrios aos casos contenciosos e consultivos da Corte Interamericana de Direitos Humanos. So Paulo: Lex Mond, 2001, p. 503.

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    excelso para decidir definitivamente sobre a interpretao dada aos tratados internacionais de direitos humanos. Essa competncia da Corte Interamericana, por disposio expressa da Conveno Americana de Direitos Humanos, que direito interno Art. 4 e 5, 2 cc 7 ADCT cc decretos: 678-92 cc4463-02:

    Artigo 62 - 1. Todo Estado-parte pode, no momento do depsito do seu instrumento de ratificao desta Conveno ou de adeso a ela, ou em qualquer momento posterior, declarar que reconhece como obrigatria, de pleno direito e sem conveno especial, a competncia da Corte em todos os casos relativos interpretao ou aplicao desta Conveno.2. A declarao pode ser feita incondicionalmente, ou sob condio de reciprocidade, por prazo determinado ou para casos especficos. Dever ser apresentada ao Secretrio Geral da Organizao, que encaminhar cpias da mesma a outros Estados-membros da Organizao e ao Secretrio da Corte.3. A Corte tem competncia para conhecer de qualquer caso, relativo interpretao e aplicao das disposies desta Conveno, que lhe seja submetido, desde que os Estados-partes no caso tenham reconhecido ou reconheam a referida competncia, seja por declarao especial, como prevem os incisos anteriores, seja por conveno especial.Artigo 63 - 1. Quando decidir que houve violao de um direito ou liberdade protegidos nesta Conveno, a Corte determinar que se assegure ao prejudicado o gozo do seu direito ou liberdade violados. Determinar tambm, se isso for procedente, que sejam reparadas as consequncias da medida ou situao que haja configurado a violao desses direitos, bem como o pagamento de indenizao justa parte lesada.

    No que diz respeito alegao de coisa julgada cedio que para sua formao necessrio a presena de todos os elementos da ao, isto : identidade de partes, pedido e causa de pedir, o que no ocorre entre causa local e causa internacional16. Na jurisdio internacional as partes so os Estados, o pedido no a condenao de uma pessoa (fsica ou jurdica, de direito pblico ou privado) e

    16 Cf. RAMOS, Andr de Carvalho. Direitos Humanos em Juzo: Comentrios aos casos contenciosos e consultivos da Corte Interamericana de Direitos Humanos. So Paulo: Lex Mond, 2001.

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    127Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 64, pp. 105 - 131, jan./jun. 2014

    tampouco se requer a invalidade de uma lei ou ato normativo, mas o cumprimento de obrigaes internacionais, o que gera novo objeto com base no Direito Internacional, podendo ocorrer deciso oposta aquela tomada pela jurisdio local. Assim, no caso em tela, a Corte Interamericana no tem competncia para revisar a sentena do STF, pois no h hierarquia entre os tribunais, mas pode condenar o Estado brasileiro por no cumprir suas decises.

    Sendo assim, existe a possibilidade de cumprimento forado da sentena internacional com base no art. 461 do CPC, sendo parte legtima para propor a ao na justia federal de 1 grau (art. 109, III,CRFB) tanto as vtimas, quanto o Ministrio Pblico Federal (Art. 127 cc LC 75/93). Nesse sentido, como corolrio da ineficcia da sentena proferida pelo STF, verifica-se a possibilidade do recebimento de denncias e eventual condenao dos acusados por crimes contra a humanidade.

    A fim de evitar eventual mal estar institucional, considerando a possibilidade de um juiz de 1 grau decidir de forma oposta ao Supremo Tribunal Federal, existe a possibilidade de cumprimento imediato pelo Poder Executivo, uma vez que est obrigado por expressa previso constitucional e legal a zelar pelo respeito dos direitos humanos e das decises de um Tribunal internacional de direitos humanos, sendo cabvel a edio de uma medida provisria para tanto, considerando a relevncia e a urgncia do tema, bem como as delongas do processo legislativo brasileiro.

    6 NOVAS POSSIBILIDADES DE TRANSCONSTITUCIO-NALISMO

    Segundo Marcelo Neves17:

    O transconstitucionalismo o entrelaamento de ordens jurdicas diversas, tanto estatais como transnacionais, internacionais e supranacionais, em torno dos mesmos problemas de natureza

    17 Entrevista concedia ao Conjur. Disponvel em: . Acessado em: 10.08.2013.

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    constitucional. Ou seja, problemas de direitos fundamentais e limitao de poder que so discutidos ao mesmo tempo por tribunais de ordens diversasNesse sentido, no seria adequado impor decises de um tribunal a outra e sim manter o dilogo e a troca de informaes entre as jurisdies.

    Assim, o denominado transconstitucionalismo18 representa o movimento de um constitucionalismo multinvel protagonizado pelo direito internacional dos direitos humanos, conjugado a abertura de ordens jurdicas internas na soluo de problemas transnacionais provocados pela globalizao, pela expanso dos meios telemticos, bem como pela necessidade de promoo e proteo da pessoa humana.

    O caso Gomes Lunde nos mostra a real dimenso do problema da aplicabilidade dos tratados de direitos humanos os quais, sob nossa tica, seriam mais bem resolvidos atravs do sobrestamento de aes dessa natureza no STF e utilizao da jurisdio consultiva da Corte Interamericana, para s ento decidir o caso luz desta jurisprudncia.

    CONCLUSO

    A partir do presente estudo, pode-se constatar que o desenvolvimento dos direitos humanos na Amrica Latina teve pressupostos diferentes do desenvolvimento na Europa, no obstante a preocupao em efetivar os direitos sociais, econmicos e culturais, a Organizao dos Estados Americanos foi criada com o intuito de promover a transio dos regimes ditatoriais para os democrticos, prevalecendo o foco nos direitos civis e polticos.

    Sob essa tica, pode-se dizer que o caso Gomes Lunde representa um marco importante no cumprimento dos propsitos da criao da OEA e da Conveno Americana de Direitos Humanos, sendo assim, o descumprimento da deciso da Corte Interamericana

    18 Cf. NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. 1 Ed. So Paulo: Martins Fontes, 2009.

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    pelo Estado brasileiro sinaliza total descompasso para com os objetivos da organizao, alm de representar frontal violao de alguns dispositivos de nossa Constituio da Repblica de 1988.

    Quanto hierarquia dos tratados de direitos humanos, verificou-se que a fundamentao do Supremo Tribunal Federal totalmente anacrnica e denota forte posio imperialista, em total desarmonia com o sistema regional de proteo dos direitos humanos. Como ressaltado linhas a cima, os tratados de direitos humanos ratificados e vigentes no plano internacional integram a Constituio e formam um bloco de constitucionalidade para alm do texto, implicando em uma nova hermenutica que deve considerar tanto o controle da constitucionalidade como o controle da convencionalidade das leis e atos normativos.

    Tambm pde-se concluir que mesmo transitada em julgado, a deciso de improcedncia da ADPF n 153, carece de eficcia (aptido para produzir efeitos na ordem jurdica), uma vez que o Brasil est vinculado jurisdio da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Logo, por fora da Conveno Americana de Direitos Humanos, precisamente em seu art. 63, verifica-se que a deciso funciona como ttulo executivo judicial, passvel de execuo forada em primeiro grau de jurisdio ou cumprimento automtico por parte do poder Executivo.

    Ademais, considerando as obrigaes impostas pela Corte Interamericana no que concerne a investigao penal dos fatos ocorridos, bem como no que diz respeito apurao das responsabilidades penais e aplicao das correspondentes sanes, verifica-se a possibilidade de recebimento de denncias e condenao dos envolvidos, tendo em vista a imprescritibilidade de crimes contra a humanidade.

    Por fim, a partir das premissas levantadas e da anlise do caso Gomes Lunde em cotejo com o julgamento da ADPF n 153, podemos concluir que tanto a doutrina quanto a jurisprudncia precisam atentar para a comunicao e aprendizado entre ordens jurdicas transnacionais na soluo de questes ligadas aplicao dos direitos humanos, bem como na soluo de problemas ligados ao meio ambiente, segurana da informao, trfico internacional e criminalidade organizada. Destarte, verifica-se que a hermenutica

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    contempornea no pode restringir-se aos manuais e decises jurdicas internas, uma vez constatada a abertura material de nosso ordenamento, bem como a emergncia de problemas jurdicos complexos que geram efeitos em vrios Estados ao mesmo tempo.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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    Recebido em 18/02/2014.

    Aprovado em 18/08/2014.