CAPItulo INDIGENA Pages From Relatorio Final CNV Volume II

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5 texto violações de direitos humanos dos povos indígenas

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    Este texto foi elaborado sob a responsabilidade da conselhei-

    ra Maria Rita Kehl. Pesquisas, investigaes e redao foram

    desenvolvidas com a colaborao da Comisso da Verdade

    Indgena, como parte das atividades do Grupo de Trabalho

    da Comisso Nacional da Verdade sobre Graves Violaes de

    Direitos Humanos no Campo ou contra Indgenas. O resultado

    no teria sido o mesmo, no fosse o amplo processo de inter-

    locuo e colaborao com a sociedade civil na coleta, trata-

    mento e sistematizao dos dados analisados. Foi essencial o

    apoio dos pesquisadores Beto Ricardo, Cleber Buzzato, Clovis

    Brighenti, Daniel Pierri, Egon Heck, Egydio Schwade, Fany

    Ricardo, Gilberto Azanha, Ian Packer, Iara Ferraz, Inim

    Simes, Isabel Harari, Laura Faerman, Levi Marques Pereira,

    Luis Francisco de Carvalho Dias, Luiz Henrique Eloy Amado,

    Manuela Carneiro da Cunha, Marcelo de Souza Romo,

    Marcelo Zelic, Marco Antonio Delfino de Almeida, Maria

    Ins Ladeira, Neimar Machado de Sousa, Orlando Calheiros,

    Patrcia de Mendona Rodrigues, Porfrio Carvalho, Rafael

    Pacheco Marinho, Rogerio Duarte do Pateo, Spensy Pimentel,

    Tatiane Klein e Vincent Carelli. Agradecemos especialmente a

    todos os indgenas que prestaram depoimentos para esta pesquisa

    e que lutam pela busca da memria, da verdade e da justia em

    relao s graves violaes promovidas pelo Estado contra os seus

    povos, que mcula para toda a sociedade brasileira.

    A) resumo executivo

    1) umA polticA de estAdo de Ao e omisso

    Os povos indgenas no Brasil sofreram graves violaes de seus direitos humanos no pero-do entre 1946 e 1988. O que se apresenta neste captulo o resultado de casos documentados, uma pequena parcela do que se perpetrou contra os ndios. Por eles, possvel apenas entrever a extenso real desses crimes, avaliar o quanto ainda no se sabe e a necessidade de se continuar as investigaes. 1

    No so espordicas nem acidentais essas violaes: elas so sistmicas, na medida em que resultam diretamente de polticas estruturais de Estado, que respondem por elas, tanto por suas aes diretas quanto pelas suas omisses.

    Omisso e violncia direta do Estado sempre conviveram na poltica indigenista, mas seus pesos respectivos sofreram variaes. Poder-se-ia assim distinguir dois perodos entre 1946 e 1988, o primeiro em que a Unio estabeleceu condies propcias ao esbulho de terras indgenas e se caracterizou majoritariamente (mas no exclusivamente) pela omisso, acobertando o poder local, interesses privados e deixando de fiscalizar a corrupo em seus quadros; no segundo perodo, o protagonismo da Unio nas graves violaes de direitos dos ndios fica patente, sem que omisses letais, particularmente na rea de sade e no controle da corrupo, deixem de existir. Na esteira do Plano de Integrao Nacional, grandes interesses privados so favorecidos diretamente pela Unio,

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    atropelando direitos dos ndios. A transio entre os dois perodos pode ser datada: aquela que se inicia em dezembro de 1968, com o AI-5.

    Como resultados dessas polticas de Estado, foi possvel estimar ao menos 8.350 indgenas mortos no perodo de investigao da CNV, em decorrncia da ao direta de agentes governamentais ou da sua omisso. Essa cifra inclui apenas aqueles casos aqui estudados em relao aos quais foi pos-svel desenhar uma estimativa.2 O nmero real de indgenas mortos no perodo deve ser exponencial-mente maior, uma vez que apenas uma parcela muito restrita dos povos indgenas afetados foi analisada e que h casos em que a quantidade de mortos alta o bastante para desencorajar estimativas.3

    2) direitos indgenAs so subordinAdos A plAnos governAmentAis

    A subordinao do rgo tutor dos ndios, encarregado de defender seus direitos, em relao s polticas governamentais fica evidente quando se nota que o Servio de Proteo aos ndios (SPI) era rgo do Ministrio da Agricultura e que a Fundao Nacional do ndio (Funai), que substituiu o SPI em 1967, foi criada como rgo do Ministrio do Interior, o mesmo ministrio a cargo do qual estavam a abertura de estradas e a poltica desenvolvimentista em geral. Acrescente-se a esse quadro a anomalia jurdica de no haver um rgo curador a quem o rgo tutor dos ndios devesse prestar contas de suas aes. Assim, estrutural o fato de os rgos governamentais explicitamente encarregados da proteo aos ndios, o SPI e posteriormente a Funai, no desempenharem suas funes e se submeterem ou at se colocarem a servio de polticas estatais, quando no de interesses de grupos particulares e de seus prprios dirigentes.

    Nos estudos deste grupo de trabalho a responsabilidade do Estado evidenciada pela ao de vrios diretores do SPI e da Funai. Nas gestes do major aviador Luis Vinhas Neves, do general Bandeira de Mello e de Romero Juc, por exemplo, h casos de graves violaes de direitos humanos associados extrao de madeira e minrios, colonizao e a obras de infraestrutura.

    A apropriao de terras indgenas e seus recursos foi favorecida, a corrupo de funcionrios no foi controlada e a violncia extrema de grupos privados contra os ndios no foi punida. Com exceo de alguns casos esparsos, justia no foi feita.

    3) um reconhecimento de responsAbilidAde incipiente

    Algumas das graves violaes contra os povos indgenas no Brasil foram reconhecidas pelos tribunais e a responsabilidade do Estado ficou estabelecida. Em 1998, os Panar, que na d-cada de 1970 haviam sofrido remoes foradas e um contato sem cuidados sanitrios que dizimou metade de sua populao, obtiveram em juzo reparaes da Unio e da Funai. Os Akrtikatej (Gavio da Montanha), do estado do Par, removidos de suas terras pela construo da hidreltrica de Tucuru, obtiveram em 2002 a condenao da Eletronorte.

    Por sua vez, algumas autoridades brasileiras reconheceram um genocdio contra os n-dios: o caso do procurador Jader Figueiredo, em seu relatrio oficial de 1967, e do ex-ministro da Justia, Jarbas Passarinho, ao falar das polticas para com os Yanomami. O Ministrio Pblico do estado do Paran, baseando-se na definio de genocdio da Lei no 2.889/1956, no hesita em falar de genocdio no caso dos ndios Xet. Recentemente tambm, em julgamento histrico do caso dos Aikewara , a Comisso da Anistia do Ministrio da Justia reconheceu a ao de represso e exceo por parte do Estado brasileiro contra o conjunto de uma comunidade indgena, e pediu

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    oficialmente perdo, sendo esta a primeira conquista do movimento indgena rumo a um novo marco no conceito de Justia de Transio.

    4) o pApel dA comisso nAcionAl dA verdAde

    Cabe agora Comisso Nacional da Verdade pronunciar-se.A apurao de violaes contra os povos indgenas foi includa nos trabalhos da Comisso

    Nacional da Verdade visando ampliar o entendimento da sociedade sobre a abrangncia da ao de um Estado repressor na vida dos cidados. Prises, torturas, maus-tratos, assassinatos e desa-parecimentos forados aconteceram contra todos os segmentos atingidos pela violncia do Estado no perodo entre 1946 e 1988, mesmo aqueles em que os enfrentamentos se deram por motivaes polticas, contextos e formas de resistncia distintos das situaes vividas pelas organizaes de esquerda urbanas e rurais.

    Denncias surgiram nos depoimentos prestados em audincias pblicas e visitas da CNV aos povos indgenas atingidos, bem como em documentos produzidos pelo prprio Estado nos pe-rodos do SPI e da Funai, e tambm nos relatrios de casos sistematizados e enviados ao grupo de trabalho pela sociedade civil.

    Devido pouca sistematizao sobre esse tipo de violaes contra indgenas no Brasil, coube Comisso Nacional da Verdade trazer o assunto luz do dia e apontar sociedade que os ndios no Brasil tambm foram atingidos pela violncia do Estado: esta investigao precisa de continuidade para que esses povos participem e sejam beneficiados pelo processo de justia transicional em desenvolvimento no Brasil.

    b) introduo

    1) polticA FundiriA e esbulho de terrAs indgenAs

    So os planos governamentais que sistematicamente desencadeiam esbulho das terras indgenas.Na dcada de 1940, Getlio Vargas inicia uma poltica federal de explorao e ocupao do

    Centro-Oeste por colonos a chamada Marcha para o Oeste contatando populaes indgenas isoladas e favorecendo a invaso e titulao de terras indgenas a terceiros. Essa poltica de colonizao dirigida j vinha sendo adotada por vrios governos estaduais e se encontra desse modo reforada.

    Entre 1930 e 1960, o governo do estado do Paran titula terras indgenas para empresas de colonizao e particulares no oeste do estado. O governo de Moyss Lupion, em particular, no-tabiliza-se por prticas de espoliao de terras indgenas. Os interesses econmicos de proprietrios se faziam representar nas instncias de poder local para pressionar o avano da fronteira agrcola sobre reas indgenas. Em 1958, deputados da Assembleia Legislativa de Mato Grosso aprovaram o Projeto de Lei n 1.077,4 que tornava devolutas as terras dos ndios Kadiweu. Em 1961, o Supremo Tribunal Federal decide pela inconstitucionalidade da lei,5 mas, a essa altura, estava estabelecida a invaso, uma vez que as terras j tinham sido loteadas (Ribeiro, 1962, pp: 108-112).6 Alm das invases propriamente ditas, eram comuns arrendamentos de terras que no obedeciam s condies do contrato quando este havia ocupando enormes extenses de terras indgenas; constituindo, em alguns casos, situao de acomodao das irregularidades (invases praticadas e posteriormente legalizadas pelo SPI por meio de contratos de arrendamento).7

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    O relatrio da Comisso de Investigao do Ministrio do Interior de 1967,8 presidida pelo procurador Jader de Figueiredo Correia, constata a existncia de problemas desse tipo em quase todo o territrio nacional e, no caso do esbulho ocorrido no sul do antigo estado do Mato Grosso, traz anexa lista de nomes de beneficiados com terras indgenas e suas vinculaes com polticos, juzes, militares e funcionrios pblicos.9

    A articulao dessas polticas regionais com um projeto nacional explicitada, por exemplo, nas resolues e recomendaes aprovadas pela I Conferncia Brasileira de Imigrao e Colonizao, realizada entre abril e maio de 1949, em Goinia, pelo Conselho de Imigrao e Colonizao (CIC). Segundo elas (BRASIL, 1949a, p:4),10 a delimitao das terras habitadas pelos ndios deveria ser acompanhada pelo estabelecimento de colonizaes em moldes tcnicos nas proximidades: Facilitar-se-ia, assim, no s a penetrao e o desbravamento do hinterland brasileiro, como tambm a assimila-o desses nossos patrcios por um processo de aculturao (Idem). Imediatamente aps a Conferncia de Goinia, em maio do mesmo ano, o estado do Paran11 e o Ministrio da Agricultura firmam um acordo (BRASIL, 1949b) para a reestruturao das terras dos povos Guarani e Kaingang, conver-tendo terras indgenas ocupadas e tituladas no estado em terras devolutas.

    Essas violaes dos direitos territoriais indgenas que, note-se, estavam garantidos aos ndios na Constituio de 1934 (art. 129) e em todas as Constituies subsequentes12, esto na origem das graves violaes de direitos humanos como a tentativa de extino dos Xet no Paran, o genocdio dos Av-Canoeiro no Araguaia e os sucessivos massacres dos Cinta Larga no Mato Grosso, relatados neste texto.

    Foram emitidas amide declaraes oficiais fraudulentas que atestavam a inexistncia de ndios nas reas cobiadas por particulares. Para tomar posse dessas reas e tornar real essa extino de ndios no papel, empresas e particulares moveram tentativas de extino fsica de povos indgenas inteiros o que configura um genocdio terceirizado que chegaram a se valer de oferta de alimentos envenenados, contgios propositais, sequestros de crianas, assim como de massacres com armas de fogo. Em 1967, o Relatrio Figueiredo, encomendado pelo Ministrio do Interior, de mais de 7.000 pginas e 30 volumes, redescoberto em novembro de 2012, denuncia a introduo deliberada de va-rola, gripe, tuberculose e sarampo entre os ndios.13

    2) usurpAo de trAbAlho indgenA, conFinAmento e Abusos de poder

    As terras indgenas demarcadas pelo SPI no Mato Grosso caracterizaram-se por suas extenses diminutas. Jogados com violncia em caminhes e vendo suas casas sendo queimadas, ndios Guarani e Kaiow foram relocados fora nessas reas, em uma concentrao que provocou muitos conflitos inter-nos. Esse confinamento foi um mtodo de liberao de terras indgenas para a colonizao.

    Os chefes de posto exerciam um poder abusivo, impedindo o livre trnsito dos ndios, impondo-lhes detenes em celas ilegais, castigos e at tortura no tronco. Enriqueciam com o ar-rendamento do trabalho dos ndios em estabelecimentos agrcolas, vendendo madeira e arrendando terras. O Relatrio Figueiredo evidenciou essas torturas, maus tratos, prises abusivas, apropriao forada de trabalho indgena e apropriao indbita das riquezas de territrios indgenas por fun-cionrios de diversos nveis do rgo de proteo aos ndios, o SPI, fundado em 1910. Atestou no s a corrupo generalizada, tambm nos altos escales dos governos estaduais, como a omisso do sistema judicirio. 14

    Depoimentos de funcionrios do SPI constantes nos autos do processo do Relatrio aju-dam a evidenciar um esquema espoliativo, capitaneado pelo Ministrio da Agricultura, por meio

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    do seu Departamento de Terras e Colonizao envolvendo governadores e agentes do SPI, alm de rgos, personalidades polticas e atores econmicos locais. Segundo Helio Jorge Bucker, chefe da 5 Inspetoria Regional (IR) do SPI:

    dos esbulhos de terras indgenas de que tenho conhecimento (), nenhum foi mais estranho e chocante do que o procedido diretamente pelo Ministrio da Agricultura, atravs do seu Departamento de Terras e Colonizao. () O pr-prio rgo responsvel pela garantia da terra do ndio, o primeiro a despoj-lo. Penso que fica bem claro com esse exemplo que a espoliao tem a chancela oficial das cpulas administrativas, maiores responsveis pelas desditas dos ndios e do Servio de Proteo aos ndios, o bufo da grande comdia (). (Relatrio Fi-gueiredo, pp. 3.952-3.953, grifo nosso) 15

    Alguns anos mais tarde, a CPI instaurada em 1977 faria um diagnstico muito semelhante sobre a Funai:

    A Fundao Nacional do ndio segue, de certa maneira, a prtica do rgo ante-cessor, o Servio de Proteo ao ndio. Mas modernizaesta prtica e a justifica em termos de desenvolvimento nacional, no intuito de acelerar a integrao gradativa: absorve e dinamiza aquelas prticas, imprimindo-lhes a nvel admi-nistrativo uma gerncia empresarial (Renda Indgena, Programa Financeiro do Desenvolvimento de Comunidades, etc.). Assim, a prpria posio administrativa da Funai na estrutura nacional reflete a assimetria de relacionamento existente entre a sociedade nacional e as sociedades indgenas. Ao mesmo tempo em que a subordinao da Funai a um determinado ministrio, o do Interior, resulta numa hierarquizao de prioridade, que dificulta sua ao, ao nvel da prtica levada a efeito pelos dois rgos no existe qualquer descontinuidade, ou seja, com vistas a acelerao de uma integrao-evoluo meta da poltica oficial a Funai vincula-se ao ministrio dinmico responsvel pelos grandes projetos de desen-volvimento econmico-financeiro-regional.16

    3) cpis e condenAes no tribunAl russell

    As denncias de violaes cometidas contra povos indgenas e de corrupo no rgo indi-genista provocaram quatro Comisses Parlamentares de Inqurito no Senado, a CPI de 1955, e, na Cmara, as de 1963, 1968 e 1977. Em 1967 houve uma CPI na Assembleia Legislativa do estado do Rio Grande do Sul e, no mesmo ano, uma comisso de investigao do Ministrio do Interior pro-duziu o Relatrio Figueiredo, motivo da extino do SPI e criao da Funai. Trs misses internacio-nais foram realizadas no Brasil entre 1970 e 1971, sendo uma delas da Cruz Vermelha Internacional. Denncias de violaes de direitos humanos contra indgenas foram enviadas ao Tribunal Russell II,17 realizado entre 1974-1976, e tambm quarta sesso desse tribunal internacional, realizado em 1980 em Roterd. Nessa sesso foram julgados os casos Waimiri Atroari, Yanomami, Nambikwara e Kaingang de Manguerinha, tendo o Brasil sido condenado.

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    4) o endurecimento dA polticA indigenistA

    O ano de 1968, na esteira do endurecimento da ditadura militar com o AI-5, marca o incio de uma poltica indigenista mais agressiva inclusive com a criao de presdios para indgenas. O Plano de Integrao Nacional (PIN), editado em 1970, preconiza o estmulo ocupao da Amaznia. A Amaznia representada como um vazio populacional, ignorando assim a existncia de povos indgenas na regio. A ideia de integrao se apoia em abertura de estradas, particularmente a Transamaznica e a BR 163, de Cuiab a Santarm, alm das BR 174, 210 e 374. A meta era assentar umas 100 mil famlias ao longo das estradas, em mais de 2 milhes de quilmetros quadrados de terras expropriadas. Na poca, o ministro do Interior era o militar e poltico Jos Costa Cavalcanti, um dos signatrios do AI-5, que ficaria no cargo de 1969 at 1974, apoiado por Costa e Silva (a quem ajudara a ascender a presidente) e por Mdici.18 Costa Cavalcanti ele prprio declara que a Transamaznica cortaria terras de 29 etnias indgenas, sendo 11 grupos isolados e nove de contato intermitente acarretando em remoes foradas. Para a consecuo de tal programa, a Funai, ento dirigida pelo general Bandeira de Mello, firmou um convnio com a Superintendncia de Desenvolvimento da Amaznia (Sudam) para a pacificao de 30 grupos indgenas arredios e se tornou a executora de uma poltica de contato, atrao e remoo de ndios de seus territrios em benefcio das estradas e da colonizao pretendida.

    5) contAtos e remoes ForAdAs

    Esse foi um perodo atroz para muitos povos indgenas amaznidas. Atraes e contatos com po-vos isolados feitos sem as devidas precaues e vacinas levaram a quedas populacionais que chegaram, entre os Panar, no Mato Grosso e Par, por exemplo, a quase dois teros da populao. Mortandades, remoes foradas, transferncias para junto de inimigos tradicionais, foram moeda corrente nessa poca. Vrios casos sero relatados em detalhe neste texto. Segundo Ndia Farage (1999, p. 5):

    o desenvolvimentismo da era militar veio a recortar territrios indgenas, desalo-jar vrios povos e os levar mesmo beira do extermnio, conforme denunciaram intelectuais brasileiros e, sobretudo, organismos internacionais como a associao inglesa Aboriginal Protection Society ou o Working Group for Indigenous Affairs, da Dinamarca, entre outros (S. DAVIS, 1977, p. 105ss). Face pesada censura em que viviam os meios de comunicao no pas, a sociedade civil, praticamente, desco-nhecia o que se passava na Amaznia, em particular, seu nus social.

    Denncias de que as transferncias foradas no serviam apenas para viabilizar obras de in-fraestrutura, mas tambm para liberar terras indgenas para a implantao de projetos agroindustriais so frequentes na CPI da Funai de 1977. O sertanista Cotrim Neto refora esse ponto, afirmando que seu trabalho na Funai tem se limitado a simples administrador de interesses de grupos econmicos e segmentos nacionais, dada a poltica de concesso de reas indgenas pela Funai [...] (Folha de So Paulo de 20/5/1972). particularmente eloquente o documento em que o ento presidente da Funai, Bandeira de Mello, ao negar, em 1970, empresa Vila Bela Agropastoril S/A uma certido negativa de existncia de ndios Nambikwara, acrescenta: Logo que atrados e pacificados e transferidos para a reserva definitiva, esta presidncia poder atender ao pedido de V.Sa. [CPI (01) 77 GT 7/79 cx. 02: v.2, fl 849, pp. 247-25].19

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    No mesmo ano de 1970, comea no sul do Par a explorao de minrio no que viria a ser, em 1980, o Projeto Grande Carajs. Como infraestrutura de apoio, iniciam-se a Hidreltrica de Tucuru e a estrada de Ferro Carajs. Todas essas obras impactam diretamente vrios povos indgenas da regio. Os Parakan, por exemplo, contatados e removidos para possibilitar a estrada Transamaznica, seriam remo-vidos novamente para dar lugar ao lago de Tucuru. Seriam deslocados cinco vezes entre 1971 e 1977. 20

    Muitos povos indgenas removidos fora e isso durante todo o perodo coberto por este estudo empreenderam uma longa volta a p a seus territrios tradicionais. Os Krenak, por exemplo, foram transferidos com o aval do SPI de seu territrio, no municpio de Resplendor (MG) para a regio de guas Formosas em 1957. A deciso, que respondia ltima etapa da ao do rgo para li-berar as terras para colonizao, foi tomada de forma atropelada e sem nenhum incio do planejamento da direo acerca da transferncia dos Krenak. Frente s pssimas condies de vida no posto de guas Formosas, os indgenas retornam p, de carro e de trem em uma viagem de trs meses e cinco dias.

    Sobre a violncia na regio do Par, casos importantes foram mapeados e necessitam ser aprofundados como desdobramento das apuraes deste grupo de trabalho da CNV. Ainda se en-contram em estgios iniciais de investigao, por exemplo, massacres como o dos Kayap, na dcada de 1950, denunciado na imprensa21 em que o prprio governador do estado aparece envolvido nas denncias de expedies armadas organizadas pela empresa Alto Tapajs S.A. e as declaraes do agente do Departamento Estadual de Ordem Poltica e Social (DEOPS), Cludio Guerra, sobre ex-pedio realizada por agentes do estado para matar ndios no sul do Par e da Bahia, nos anos 1970.

    O Projeto Radam da Amaznia, de 1970, posteriormente Radam Brasil, permitiu mapear reas promissoras de recursos minerais e d incio s corridas minerais na Amaznia. A propsito dos Yanomami, o ex-ministro da Justia, Jarbas Passarinho, reconheceu em 1993:

    Logo que o Projeto Radam evidenciou a presena de ouro no subsolo, e a Perimetral Norte levou o acesso at a terra milenarmente ocupada pelos Yanomami, que aconte-ceu? A morte de mais de 50% da tribo de Catrimani, causada por gripe e doenas, que no so mortais para ns, mas o so para ndios no-aculturados.22 No foi s nessa tribo, mas em vrias outras, onde que se deu a presena dos garimpeiros. Eles poluram os rios com mercrio, afastaram a caa pelo barulho, provocaram a fome e a desnutri-o dos ndios, enquanto contra ns avolumava-se a acusao de que praticvamos o genocdio. No era exagerada a denncia. (PASSARINHO, 1993, pp. 15-17)

    A Bacia Platina, como a Amaznia, tambm foi alvo do PIN e de obras de infraestrutura. Em particular, o caso da construo da usina de Itaipu, concluda em 1982, que provocou o alagamento de reas Guarani do oeste do Paran e levou a uma nova onda de esbulho territorial, conforme abordado adiante.

    6) o estAtuto do ndio

    Em dezembro de 1973, aps quatro anos de gestao, e em poca de muitas crticas interna-cionais poltica indigenista do Brasil, promulga-se o Estatuto do ndio (Lei no 6.001/1973). Vrios dos seus artigos tornam legais, sob condies restritivas (que no sero respeitadas), prticas correntes e denunciadas desde o SPI. O artigo 43 estabelece a renda indgena, legalizando assim a explorao de madeira e outras riquezas das reas indgenas. Ostensivamente destinada aos ndios na lei, a renda indgena acaba por ser fonte de 80% do oramento da Funai23 e continuou, como nos tempos do SPI,

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    promovendo o enriquecimento ilcito de vrios de seus funcionrios.24 O artigo 20 introduz a possi-bilidade de remoo de populaes indgenas por imposio da segurana nacional, para a realizao de obras pblicas que interessem ao desenvolvimento nacional, e inclui a minerao. O que se pode entender por segurana nacional e por desenvolvimento deixado vago, mas ser usado na tentativa de proibir, na dcada de 1980, a demarcao de terras indgenas na faixa de fronteira.

    A possibilidade de remoo prevista apenas em carter excepcional, mediante decreto do presidente da Repblica, uma vez provada a inexistncia de alternativas, e prev realocao em reas ecologicamente adequadas, retorno quando possvel e ressarcimentos. Essas condies e ressarcimentos no sero observados na prtica, como ocorreu com os Tapayuna e os Panar, por exemplo.

    7) virtuAis inimigos internos: ndios como questo de segurAnA nAcionAl

    O regime militar opera uma inverso na tradio histrica brasileira: os ndios, que na Colnia, no Imprio e na Repblica foram vistos e empregados na conquista e na defesa do territrio brasileiro, so agora entendidos como um risco segurana e nacionalidade. De defensores das fron-teiras do Brasil, eles passam a suspeitos, a virtuais inimigos internos, sob a alegao de serem influen-ciados por interesses estrangeiros ou simplesmente por seu territrio ter riquezas minerais, estar situado nas fronteiras ou se encontrar no caminho de algum projeto de desenvolvimento.25 A plasticidade na caracterizao do inimigo interno, tal como propalada em 1973 pelo general Breno Borges Fortes na 10 Conferncia dos Exrcitos Americanos, em Caracas, eloquente:

    O inimigo indefinido, serve-se do mimetismo e adapta-se a qualquer ambiente, utilizando todos os meios, lcitos e ilcitos, para atingir seus objetivos. Mascara-se e disfara-se de sacerdote ou professor, de aluno ou de campons, de vigilante de-fensor da democracia ou de intelectual avanado, [...]; vai ao campo e s escolas, s fbricas e s igrejas, ctedra e magistratura [...].26

    Em 1970, a Funai passa a ter no s uma assessoria influente de informao e segurana (ASI), com militares egressos de rgos de informao, mas alguns de seus presidentes provm direta-mente de altos quadros desses servios: o general Bandeira de Mello, por exemplo, antes de assumir a presidncia da Funai, era Diretor da Diviso de Segurana e Informao do Ministrio do Interior. A questo indgena se torna assim, de forma patente, questo de segurana nacional. Enquanto no final da dcada de 1970, as ASI so desmobilizadas em outros rgos, na Funai, elas so, ao contrrio, refor-adas (E. HECK 1996, p. 63) e se capilarizam nas unidades regionais descentralizadas. A repercusso internacional das denncias de violaes de direitos humanos dos ndios incomodam o regime. Como demonstraremos na seo G, o movimento indgena e indigenista passa a ser monitorado e lideranas indgenas e seus apoiadores so taxados de comunistas e muitas vezes perseguidos.

    Essa atitude de suspeita sobre os ndios e seus apoiadores duradoura: em 1985, em ple-na redemocratizao do Brasil, elaborado o projeto Calha Norte, que s vem a pblico em 1986. Nos Yanomami de Roraima, esse projeto de vivificao das fronteiras que abre e logo abandona uma pista de pouso em Paapiu, pista que servir para a invaso macia de garimpeiros logo a seguir (RAMOS, 1993). Em documento do Conselho de Segurana Nacional, datado de 1986, uma srie de organizaes no governamentais que defendem direitos indgenas so colocadas sob suspeita, ao lado dos bispos e padres estrangeiros do Conselho Indigenista Missionrio (CIMI) que j vinham sendo

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    assim considerados.27 No mesmo documento, os autores queixam-se de que a proposta de impedir qualquer demarcao de terra indgena (TI) em uma faixa de 150km ao longo das fronteiras tenha sido desqualificada como inconstitucional por sua prpria assessoria jurdica.

    8) A guArdA rurAl indgenA

    Em 1969 criada a Guarda Rural Indgena (GRIN), que recruta ndios ao longo, sobretudo, do Araguaia e do Tocantins, alm de Minas Gerais, para atuarem como fora de polcia nas reas in-dgenas. A princpio festejada, a GRIN foi acusada em um inqurito proveniente da Chefia da Diviso de Segurana e Informaes do Ministrio do Interior de arbitrariedades, espancamentos, e abusos de toda a sorte (Jornal do Brasil de 6/6/1970, Jornal do Brasil e Estado de So Paulo de 7/6/1970 apud FREITAS, 2011, p. 14). O escndalo derrubou o presidente da Funai, mas a GRIN permaneceu ativa, ainda que de forma discreta, at o final dos anos 1970. A GRIN precisa ter suas investigaes apro-fundadas, para se apurarem responsabilidades dos militares envolvidos em sua criao e manuteno, bem como a necessidade de reparao aos indgenas atingidos.

    9) polticA de sAde: omisso A pArtir de 1969

    notrio que o primeiro contato com populaes indgenas particularmente perigoso para os ndios, que no tm imunidade a doenas dos no indgenas. Essa barreira epidemiolgica desfavorvel recorrentemente a explicao dada para depopulaes de indgenas mesmo aquelas que, nos tempos da Colnia, abateram os amerndios. Esse conhecido discurso, contudo, encobre o fato de que outros fatores, como as polticas de contato, atrao e concentrao de grupos, empregadas pelos rgos indigenistas no perodo em questo, foram capazes de intensificar ou mesmo propiciar as condies para tais mortandades.28 No Brasil, as polticas de ateno sade dos povos indgenas e as vacinaes preventivas s foram sistematizadas nos anos 1950, por iniciativa de Noel Nutels, mdico e indigenista, que, tendo participado da expedio Roncador-Xingu, de explorao do Brasil Central, nos anos 40, percebeu a importncia de um cordo sanitrio. Em 1956, d-se a criao do Servio de Unidades Sanitrias Areas (SUSA), que conta com apoio do Correio Areo Sanitrio da Fora Area Brasileira (FAB) at 1964. Em 1965, a Escola Paulista de Medicina inicia seu atendimento no Parque Nacional do Xingu, criado em 1961. O servio de sade melhora at 1968 com as Equipes Volantes de Sade (EVS) ou Unidades de Atendimento Especial (UAE), complementando o trabalho do SUSA. Em 1968, o SUSA e as UAE saem da Funai para o Ministrio da Sade e cessam as contrataes e renovao de pessoal.

    Os recursos para as UAE diminuem justamente quando se inicia uma poltica generalizada de atrao e contato e se extinguem ao longo da dcada. Na diviso de sade da Funai, as equipes s realizavam viagens espordicas s reas indgenas e a maior parte dos recursos... era gasta com salrios, transportes e dirias e com a remoo de doentes e pagamentos de servios mdicos em hospitais das cidades (COSTA, 1987, p. 396). Um dos exemplos mais bem documentados de omisso de vacina-o preventiva ocorre com os Yanomami, entre os quais estava sendo construda a rodovia Perimetral Norte. Em 1975, uma campanha de vacinao de trs semanas reduzida a dois dias e meio. A Diviso de Sade da Funai acusada de se negar a vacinar os ndios da regio de Surucucus. Ao todo, apenas 230 ndios da rea da Perimetral e da misso Mucaja foram vacinados.

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    A histria se repete 12 anos mais tarde. Em 1987, em plena epidemia de malria e gripe, trazida pela invaso de garimpeiros, o ento presidente da Funai, Romero Juc, alegando razes de segurana nacional, retira as equipes de sade da rea Yanomami.

    10) tentAtivA de Abolir sujeitos de direitos: o projeto de emAncipAo

    A poltica indigenista a partir de 1969 inova tambm ao querer apressar o que entende como uma desindianizao. Incomodada pela tradio jurdica do Brasil de respeito s terras ind-genas, a tentativa de soluo que ela adota de abolir por canetada os detentores desses direitos terra. Desde o Cdigo Civil de 1916, os ndios eram protegidos em seus negcios pelo instituto da capacidade relativa (assim como menores de idade entre 16 e 21 anos). O Estatuto do ndio de 1973 coloca a integrao dos ndios, entendida como assimilao cultural, como o propsito da poltica indigenista.29 O Ministro do Interior, Rangel Reis, declarara CPI da Funai em 1977 que o objeti-vo permanente da poltica indigenista a atrao, o convvio, a integrao e a futura emancipao.30 esse mesmo ministro quem, em 1978, tentar decretar a emancipao da tutela de boa parte dos ndios, a pretexto de que eles j esto integrados.

    Vrios dirigentes da Funai nessa poca insistem em aplicar critrios de indianida-de para descaracterizar os sujeitos de direitos. O protesto macio da sociedade civil em 1978 acaba por retirar esse expediente da pauta do governo. Mas no h dvida de que a poltica de assimilao cultural preconizada pelo desenvolvimentismo do Estado se caracteriza como um programa de etnocdio.

    O Estatuto do ndio de 1973 consagra na lei uma orientao muito diversa daquela que havia presidido criao do SPI em 1910. O movimento positivista que est na origem do SPI acre-ditava em uma evoluo inevitvel de ndios (fetichistas) a civilizados liberados de qualquer crena obscurantista em Deus. Mas essa transio, defendiam os positivistas, se faria em ritmo prprio, sem imposio externa, e no descaracterizava o fato de serem ndios. Cheia de contradies, a lei de 1973 preconiza ao contrrio uma poltica afirmativa de integrao, ao cabo da qual os ndios deixariam de ser entendidos legalmente como tais. Eliminando-se legalmente os sujeitos dos direitos territoriais, eliminava-se o que, no discurso oficial da poca, costumava-se chamar de empecilhos ao desenvolvimento, a saber, os ndios.

    11) certides negAtivAs FrAudulentAs de existnciA de ndios

    Com o estmulo do governo para investimentos na Amaznia, em 1969, a Sudam estipulou como pr-requisito para a concesso de incentivos fiscais para empreendimentos na Amaznia Legal que os interessados solicitassem junto Funai uma certido negativa para a existncia de grupos ind-genas na rea pleiteada. A CPI de 1977 constatou que vrias certides negativas foram concedidas para reas habitadas por populaes indgenas. O prprio presidente da Funai, General Ismarth Arajo de Oliveira, admitiu em depoimento CPI que o rgo no tinha total conhecimento das reas habitadas por populaes indgenas e que, portanto, no havia condies de determinar com exatido se havia ou no habitantes nas reas pleiteadas por investidores.31

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    c) expulso, remoo e intruso de territrios indgenAs

    A poltica de expulso dos ndios de seus territrios executada pelo Estado brasileiro no perodo de 1946-1988 pode ser exemplificada, inicialmente, por meio do que ocorreu no Mato Grosso do Sul e no oeste do Paran com os ndios Guarani-Kaiow e Ava-Guarani.

    Em grande parte concedido em arrendamento Cia. Matte Laranjeira no fim do sculo XIX, o sul de MS, antigo sul de Mato Grosso, historicamente ocupado pelos grupos de lngua guarani, permaneceu pouco povoado por no indgenas nas primeiras dcadas do sculo XX, sendo palco de disputas armadas entre os colonos e de um banditismo que foi uma das justificativas para o governo Vargas buscar povoar a regio nos anos 40, em sua Marcha para o Oeste.

    Entre 1915 e 1928, o SPI demarcou, na regio, oito reservas, com reas entre 700 e 3,6 mil hectares.32 Num primeiro momento, dezenas de grupos Kaiow e Guarani permaneceram vivendo nas abundantes matas da regio, sem se mudar para essas reas. Boa parte da populao recolhida nessas reser-vas, inicialmente, eram indgenas que trabalhavam para a Cia. Matte, em regime de escravido por dvida.

    Entre 1948 e 1949, a regio de Dourados foi palco de uma espcie de corrida da terra em funo das notcias sobre a distribuio de lotes da Colnia Agrcola Nacional de Dourados (CAND).33 A ao do governo de Mato Grosso reforou os problemas, ao dar margem ao de especuladores e a barganhas eleitorais (VIETTA, 2007, pp. 100-102).

    Documentos do SPI (1946-1947)34 mostram que os Kaiow da regio entre Dourados e Rio Brilhante comunicaram-se reiteradamente com o SPI para pedir auxlio diante do avano dos colonos, sem obter sucesso.

    Os Kaiow dessa regio tinham fornecido um contingente de trabalhadores para a abertu-ra da linha telegrfica na regio, efetuada na dcada de 1920 sob o comando do Marechal Rondon. Apesar de no existirem registros escritos a respeito, corrente entre os indgenas idosos a meno a um compromisso que o militar teria assumido de demarcar para eles 50 mil hectares de terra (cf. VIETTA, 2007, p. 92). Lder dos indgenas da regio, o capito Pedro Henrique escreveu direta-mente para Rondon na poca:

    Aqui venho pedir-vos ao Sr. General para mandar dividir as terras que toca para os ndios Caius, porque os outros esto s fazendo intrigas para ver se tomam as nossas terras.35

    O referido lder Kaiow chegou a ser preso aps conflito em que um colono foi baleado (VIETTA, 2007, pp. 107-113). Em 1947, h notcia, tambm, de um ataque da Polcia Indgena da TI Dourados, por ordem do SPI. Os indgenas acusam o representante local do SPI de vender-se ao administrador da Colnia Agrcola (VIETTA, 2007, p. 110).

    Em 1948, inicia-se a negociao para a demarcao de uma rea mnima para garantir a sobrevivncia dos Kaiow da regio. Nos anos 1950, restaram aos indgenas sete lotes da CAND, nos quais eles resistiriam pelas dcadas seguintes. Ainda assim, entre 1961 e 1963, h vrios registros de reclamaes dos indgenas em funo da invaso de suas terras por fazendeiros que diziam ter ttulos dados pelo Estado (VIETTA, 2007, p. 123).36

    O que os grupos de Panambi e Panambizinho lograram foi quase uma exceo. O mais comum no processo de expropriao territorial que atingiu os indgenas do sul de MS foi a trans-ferncia compulsria dos grupos para dentro das oito pequenas reservas previamente criadas ou a simples expulso desses grupos das reas colonizadas, em aes violentas, envolvendo prticas como queima de casas, espancamentos e mesmo assassinatos.

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    J na passagem entre os anos 1940 e 1950, h depoimentos de indgenas e correspondn-cias do SPI sobre expulses de grupos de Kaiow e Guarani em regies como Amambai, Bela Vista37 e Juti (BRAND, 1997, p. 98). Em alguns casos, como na regio de Paranhos, atuam no processo missionrios evanglicos, oferecendo vantagens aos grupos que aceitem deixar suas terras (BRAND, 1997, p. 101). frequente a meno de que muitos indgenas se refugiaram no Paraguai nesse pero-do, em funo do assdio e ameaas dos colonos. O regresso ao Brasil, nas ltimas dcadas, visto pelos Guarani e Kaiow como a volta de um exlio forado.

    Na comunidade de Taquara, em Juti, a remoo de quase 80 pessoas para a reserva de Caarap acontece em 1953, com apoio explcito do SPI, que produz farta documentao sobre o episdio (BRAND, 1997, p. 99); PEREIRA, 2005). Sabe-se que a ao custou 200 cruzeiros, pagos pelo posto indgena Jos Bonifcio (hoje, TI Caarap) a partir do dinheiro arrecadado com a venda de erva-mate extrada pelos prprios indgenas:

    Os relatos dos Kaiow mais velhos que presenciaram o despejo [...] so enfticos sobre a ocorrncia de violncia, muita confuso e correria; [...] casas foram quei-madas, pessoas amarradas e colocadas fora na carroceria do caminho que realizou o transporte das pessoas e dos poucos pertences recolhidos s pressas. [...] Os ndios afirmam que dias depois da retirada das famlias, ndios procedentes de Jarar encontraram dois corpos carbonizados em uma casa queimada pelos agentes que perpetraram a expulso, o de uma anci e o de uma criana. Outra criana teria cado no rio Taquara na tentativa desesperada de fugir para a aldeia Lechucha e se afogado nas guas, sendo encontrada pelos mesmos ndios presa s ramagens da margem (PEREIRA, 2005, pp. 147-148).

    Na regio de Laguna Carap, acontece, entre 1977 e 1979, um dos dois primeiros casos em que uma dessas remoes teve visibilidade nacional, por conta de denncias de indigenistas e lideran-as indgenas imprensa de So Paulo e Rio.38 A comunidade de Rancho Jakare, que se encontrava instalada em antigas terras da Matte Laranjeira, , por duas vezes, removida. Na segunda delas, em 1978, a Funai, em dilogo com os fazendeiros, toma a iniciativa de levar os indgenas para a reserva Kadiweu, a mais de 400km dali, no Pantanal. No local onde foram despejados, enfrentaram as amea-as de posseiros que pleiteavam aquelas terras (SILVA, 2005, p. 125).

    Meses depois, os indgenas retornam a p para sua terra. Devido s ms condies na jorna-da, eclode uma epidemia de sarampo, e trs crianas morrem.39 Silva registrou o testemunho da idosa Livrada Rodrigues, de Rancho Jakare, sobre o episdio:

    Daqui eles nos levaram em gaiola, gaiola mesmo, vieram trs gaiolas, na gaiola que ns fomos. [...] Pelo caminho, dormimos, nos alimentaram, nos davam pozinho para no morrermos de fome, tampavam da gente a gaiola para no vermos nosso rastro. (SILVA, 2005, p. 125).

    Aps o escndalo e depois de muita presso, a Funai estabelece acordo com os detentores de ttulos da terra para que, em 1984, sejam doadas aos indgenas duas pores de terra, as TIs Rancho Jakare e Guaimb.

    O episdio no foi uma exceo. Desde os anos 1940, o SPI realizava aes similares. Os Kinikinau40 foram levados para a reserva Kadiweu no incio dos anos 1940, l residindo at hoje.

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    Vivem situao de conflito com parte dos Kadiweu. Os Ofai, por sua vez, tambm foram transfe-ridos para a reserva Kadiweu em 1978 e passaram oito anos ali, em meio s ameaas dos posseiros. Hoje, vivem na TI Ofai-Xavante, em Brasilndia.

    A prpria presena de posseiros na reserva Kadiweu, sabe-se, era fruto das aes e omisses do SPI e da Funai, que agiram para legalizar o arrendamento de reas dentro da terra indgena. A Lei Estadual no 1.077/1958 buscava reduzir para 100 mil hectares a extenso da reserva, estabelecida em 1 milho de hectares aps doao feita por Dom Pedro II, como gratido pela participao desses indgenas na Guerra do Paraguai.

    Posteriormente, a prpria Funai terminou por endossar uma reduo de quase 50%, ho-mologando a TI com 538.535 hectares em 1981. At hoje, os Kadiweu ainda lutam para retirar invasores que criam gado em cerca de 150 mil hectares na rea deles.41

    Entre 1976 e 1979, a comunidade Kaiow residente na rea conhecida como Paraguassu, em Paranhos, tambm enfrentou tentativas de expulso violenta, em outro processo bastante divul-gado na imprensa brasileira. Em 1980, o grupo foi efetivamente retirado da rea, retornando em 1984.42 Nos anos 1990, a terra do grupo foi homologada.

    Documentos de 1981 comprovam que a Funai atuava decisivamente no processo de re-moo dos grupos Kaiow e Guarani, disponibilizando veculos, motoristas e gneros alimentcios para viabilizar as mudanas das famlias que eram buscadas nas fazendas (BRAND, 1997, p. 104). Foi a partir da denncia de outro desses casos, na rea conhecida como Piraku, em Bela Vista, que o lder guarani Maral de Souza passou a se expor a ameaas de fazendeiros. Em 25/11/1983, ele foi assassinado por pistoleiros, na aldeia de Campestre, em Antonio Joo. Os acusados pelo crime foram absolvidos pelo jri, em dois julgamentos realizados nos anos 1990.

    Desde os anos 1970, Maral e seus familiares j sofriam ameaas e agresses por se oporem ao regime estabelecido pela Funai no interior das reservas.43 Em Dourados, o domnio da chamada Polcia Indgena era criticado por Maral e por ele relacionado onda de suicdios, principalmente de jovens, que assola a aldeia desde o incio dos anos 1980.44

    Em maro de 1985, um despejo na rea conhecida como Jaguapir exps a vinculao direta de agentes da segurana pblica com esses processos. Cerca de 30 homens atacaram os indgenas incluindo se vrios policiais militares, que teriam sido convocados pelo prefeito de Tacuru.45 Uma das vtimas desse ataque, Silvio Benites, assim descreveu o episdio em depoimento ao antroplogo Kaiow Tonico Benites:

    Ao cercar as nossas casas, [...] os policiais j dominaram e amarraram crianas, mu-lheres, homens, e carregaram na carroceria do caminho. Alm disso, comearam a lanar tiros sobre ns, chutaram nas pernas dos homens. A minha perna foi fraturada pelos jagunos, costela de meu irmo Amilto foi fraturado e desmaiado (sic) [...]. En-quanto isso, os dois tratores j comearam a destruir as nossas casas e nossas roas. Os homens karai [brancos] j queimaram as nossas coisas (apud Benites, 2014, p. 12)

    Semelhante situao de envolvimento de autoridades locais em despejos deu-se na TI Sucuriy, em 1986. O ento prefeito de Maracaju, Jair do Couto, segundo notcias da poca, envol-veu-se pessoalmente na ao e tambm disponibilizou caminhes da prefeitura, que chegaram a ser apreendidos pelos indgenas.46

    Outro caso desse perodo demonstra como se dava a ao direta do governo militar contra os direitos indgenas na regio. Em julho de 1986, o grupo Kaiow da TI Jarar retornou rea da qual fora anteriormente removido, ento transformada em fazenda.47 Para negociar a identificao

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    dessa rea, bem como a de outras quatro terras reivindicadas poca, lideranas do movimento Kaiow e Guarani foram a Braslia conversar com a Funai e o Conselho de Segurana Nacional. Segundo as notcias, o rgo se negava a permitir a demarcao de terras indgenas na chamada faixa de fronteira48 e propunha, em substituio, criar colnias agrcolas indgenas nessas regies a primeira das quais seria instalada no Alto Rio Negro.49 O objetivo dessa inovao, baseada no Estatuto do ndio, de 1973, seria permitir a integrao entre a ocupao indgena e projetos econmicos no caso do Pari Cachoeira, no Rio Negro, visava-se a um acordo com a empresa Paranapanema, que atua principalmente na minerao de cobre.

    Essa restrio se aplicava s reas de Piraku, Jaguapir e Takuaraty/Yvykuarusu (tambm chamada de Paraguassu), e era efetivada por meio do chamado Grupo de Trabalho Interministerial, conhecido como Grupo. At 1990, pelo menos, essas decises do Grupo ainda eram utilizadas para embasar medidas que restringiam os direitos indgenas, como decises judiciais de despejo, baseadas no fato de que no seria permitido demarcar terras indgenas em faixa de fronteira.50

    A exemplo do MS, o processo de colonizao do oeste do Paran51 ocorreu com ampla partici-pao de agentes de segurana pblica. Como aponta Myskiw (2009, p. 73), nas dcadas de 1950 e 1960,

    as intervenes militares em levantes, revoltas e conflitos agrrios, em territrio paranaense, costumavam ser cercadas de muita violncia e mortes (). Na revolta de posseiros de 1961 (), no municpio de Medianeira, a Polcia Militar, auxiliada por jagunos, dava cobertura colonizadora Alto Paran no Sudoeste do Paran, a Polcia Civil dava cobertura atuao das empresas colonizadoras Companhia Alto Paran, pertencente a Lauro Camargo.

    Aps o golpe de 1964, segundo ele (2009, p. 73), qualquer manifestao, revolta ou le-vante de posseiros era considerado pelo Regime Militar, como subverso. A violncia desse perodo e a maneira como ela se abateu sobre os Guarani e marcou suas vidas expressa em depoimento do ancio guarani Damsio Martinez. Ele se recorda de quando seu pai foi morto por colonos que buscavam tomar-lhes as terras:

    At 1959, a gente ficou em Sanga-Funda, perto de Guabiroba, perto do rio Paran [atual municpio de Foz do Iguau] [...] Foi ali que meu pai foi morto. Quando deram os tiros eu j vi o meu pai deitado no cho [...]. Os Brancos j tinham vin-do pedir para meu pai as terras e o meu pai no quis dar. Ele era tipo um cacique [...]. Foram os Brancos que mandaram o jaguno. Depois que o meu pai morreu as pessoas comearam a sair. Uns foram para Mato Grosso, outros para Paraguai, outros para o centro. De manh eu segui e depois eu fui depor, para contar o que que aconteceu com meu pai. Quando eu estava perto da Bela Vista eu cruzei com os policiais. [...] E me levaram na delegacia. E falaram para mim que eu que tinha matado meu pai. [...] E me prenderam. E eu falei que no tinha sido eu, e o policial disse que ouviu falar que tinha sido eu. Eu jamais faria isso com meu pai. Depois de seis meses eu sa. Quando eu voltei todo mundo j tinha ido embora.52

    O depoimento demonstra com clareza a forma como a expropriao territorial sofrida pelos Guarani no oeste do Paran contou com amplo acobertamento e apoio de foras pblicas de represso, valendo-se inclusive da execuo e do encarceramento de lideranas.

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    No Mato Grosso, com os Xavante de Mariwatsde, no foi diferente.53 Eles passaram por diversos processos de remoes foradas entre os anos de 1946 e 1966, realizadas por misses de pacificao levadas a cabo pelo SPI para a ocupao de terceiros na rea e, posteriormente, por em-preendimentos financiados por instncias governamentais.

    Ainda na primeira metade do sculo XX, chegaram ao leste mato-grossense colonos vin-dos principalmente da regio Nordeste, formando povoados que deram origem a cidades como So Flix do Araguaia. Dali partiram no indgenas que avanaram sobre o territrio de Mariwatsd, provocando a reao dos Xavante que ali viviam e, consequentemente, desencadeando um perodo de agresses recprocas, segundo se pode averiguar nos documentos produzidos por Ismael da Silva Leito, encarregado do posto indgena Pimentel Barbosa.

    Em vrios momentos durante a dcada de 1950, Leito informou a seus superiores sobre a difcil situao em que se encontravam os Xavante de Mariwatsd e solicitou, em vo, providncias a esse respeito, como a criao de um posto para atend-los e a reserva de terras para o grupo.54 Essa difcil situao inclua: 1) a invaso sistemtica do territrio; 2) assassinatos, inclusive com requin-tes de crueldade, como a execuo de crianas e a cremao de ndios ainda vivos, ocasionados por expedies punitivas de extermnio dos Xavante, verdadeiras caadas organizadas por no-ndios; 3) requerimentos de titulao das terras de Mariwatsd55.

    Em 1962, constituda a Agropecuria Sui-Missu Limitada, fazenda criada com benefcios fiscais concedidos pelo Estado brasileiro em pleno territrio tradicional de Mariwatsd.56 Nesse perodo, os Xavante j se encontravam fragilizados e tinham abandonado boa parte de suas aldeias tradicionais, devido aos confrontos com os no indgenas. Nesse contexto, os remanescentes do grupo de Mariwatsd aceitaram transferir-se para uma aldeia prxima sede da fazenda, onde trabalharam na derrubada da vegetao nativa para a formao de pistas de pouso de avio, de roas e de pastos para a criao de gado, recebendo apenas comida por esse pesado servio, o que pode ser caracterizado como um regime de trabalho anlogo escravido. Damio Paridzan, atual cacique da TI Mariwatsd, relembra em depoimento: Foi trabalhando como [...] escravo, morreu muita gente. Trabalhando sem receber dinheiro, sem ganhar nada, sem assistncia de sade nenhuma.

    Quando os proprietrios da fazenda no precisavam mais dos Xavante, mandaram-nos para uma regio fora dos limites da fazenda, imprpria para a sobrevivncia do grupo por localizar-se em uma rea alagadia. L, ficaram expostos fome e a doenas.

    Em agosto de 1966, o grupo foi obrigado a abandonar essa aldeia e a se deslocar para a sede da fazenda Sui-Miss, de onde foram transportados compulsoriamente para a Misso Salesiana de So Marcos, localizada a mais de 400km ao sul dali e onde se encontravam outros grupos xavante.

    Da transferncia dos 263 remanescentes, realizada a pedido da Sui-Missu, participaram o SPI, a FAB e a Misso Salesiana.57 L chegando, os Xavante de Mariwatsd foram recepcionados por uma epidemia de sarampo que matou 83 de seus membros (1.977). Alm das mortes por sarampo, quatro crianas xavante sumiram na misso. Aps sofrerem mais esse duro golpe, ocorreu, ainda, a fragmentao do grupo por outras reservas xavante. Logo, inicia-se um movimento de reorganizao para a retomada de seu antigo territrio. Tal movimento concretizou seu objetivo maior em janeiro de 2013, 46 anos aps sua deportao, com a devoluo da TI para os remanescentes de Mariwatsd e seus descendentes.

    As remoes tambm foram prtica corrente quando se tratava de realizar empreendimentos em reas com presena indgena. Tomaremos, inicialmente, o caso da construo da usina hidroeltrica de Itaipu como ilustrao dessa poltica, para depois demonstrar como o mesmo ocorreu em outras regies do pas.

    O aproveitamento do potencial energtico do rio Paran e a possibilidade de se construir a hidroel-trica de Sete Quedas estava na agenda do Estado brasileiro desde os anos 1950, quando tambm se cogitou criar

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    ali o Parque Nacional das Sete Quedas para abrigar o grupo indgena Xet (cf. seo sobre desagregao social e extermnio). O empreendimento logo se tornou um assunto de grande interesse geopoltico e de segurana nacional quando o Paraguai, na poca sob a ditadura de Alfredo Stroessner, tambm passou a fazer estudos na regio. O acordo de parceria entre os dois pases foi construdo na Ata das Cataratas (1967) e no Tratado de Itaipu (1973). O projeto da usina previu a inundao de uma rea de 1.350 km2 (cerca de 135 mil hectares), sendo 770 km2 do lado brasileiro, incidindo sobre os municpios de Foz do Iguau, Santa Helena, Marechal Cndido Rondon e Guara. As sucessivas fraudes cometidas pelos rgos responsveis pela situao dos ndios e pela questo fundiria esto bem registradas para os territrios guarani de Foz do Iguau conhecidos como Oco-Jakutinga e Colnia Guarani, conforme documentao reunida no Setor de Documentao da Funai (processo 1.053/76). Esses territrios eram os ltimos que haviam restado aos Guarani do oeste do Paran como consequncia do violento processo de esbulho sofrido nas dcadas anteriores.

    Ao longo de todo o processo, a Funai subordinou-se aos interesses do Incra e do IBDF sobre as terras ocupadas pelos ndios, no aplicando a legislao indigenista em vigor num claro alinhamento orientao do regime militar, aludida na introduo desse relatrio, de no demarcar terras indgenas dentro da Faixa de Fronteira. A Funai permitiu assim que o Incra desenvolvesse dois projetos de colonizao (PIC-Oco I e II) dentro do territrio guarani visando (i) assentar colonos que a partir de 1967 passaram a ser removidos do in-terior do Parque Nacional do Iguau (PNI) e (ii) definir a rea que seria inundada pelo reservatrio de Itaipu.58

    Em 1976, foi formado um primeiro GT entre Incra e Funai, em cujo relatrio afirmava-se que na rea do PIC-OCOI I, j totalmente invadida pelos colonos, no havia qualquer resqucio de elementos indgenas, e na rea do PIC-OCOI II, existiam apenas 11 famlias guarani em processo de aculturao.59 Na sequncia do processo, formou-se novo GT, dessa vez entre a Funai e Itaipu, quando se procedeu titulao individual da terra ocupada pelas famlias guarani, descaracterizando o direito indgena terra e violando a legislao em vigor. No bastou ao Estado, contudo, expulsar os Guarani de sua terra: buscou tambm negar sua identidade. Em 1981, Clio Horst, filho de criao de Ernesto Geisel, empunhando os critrios de indianidade que haviam sido elaborados pelo coronel Ivan Zanoni Hausen e introduzidos nos procedimentos fraudulentos da Funai a partir de 1979, pro-duziu laudo em que reduziu o nmero de famlias guarani que teriam direito terra de 11 para cinco.

    A situao se encaminhou em 1982 para a remoo e confinamento dos Guarani numa ex-gua faixa de terra beira do lago de Itaipu, sem qualquer paridade em tamanho e condies ambientais com o territrio ocupado anteriormente, o que tambm violava a legislao indigenista vigente. Nesse local, a populao guarani foi acometida por surtos de malria e doenas decorrentes do uso de agro-txico pelos colonos vizinhos, surtos esses que dizimaram parte da populao.60

    Ao longo desse processo, a populao guarani lutou intensamente contra essa supresso de direitos, recorrendo a advogados, antroplogos e ao prprio Banco Mundial (financiador da UHE Itaipu) para denunciar as sucessivas fraudes de que foi vtima e cobrar uma reparao justa ao prejuzo sofrido.

    Em um documento confidencial de Itaipu datado de 1987, Clvis Ferro Costa, ento diretor jurdico de Itaipu, afirmava:

    No dia 27 de maro, promovi contato com representantes da comunidade Ava-Guarani a fim de encaminhar uma soluo possvel para a pendncia que instaurara contra ns. Temos conversado sobre o assunto e evolu da antiga posio de contes-tao pura e simples para um exame mais aprofundado do tema. A minha convico pessoal, hoje, de que o pleito dos ndios no desarrazoado, de um lado; de outro, evidente que o relatrio sobre o qual se baseou Itaipu no veraz.

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    Digo isso em carter confidencial, para evitar exploraes judiciais e polticas.

    Com efeito, os Ava-Guarani foram apresentados como tendo anteriormente apenas rea em torno de 34 ha. E como Itaipu transferiu-lhes cerca de 250, a nossa postura teria sido generosa. Ocorre que o dado inicial manifestamente incorreto, j pelos antecedentes de ocupao da rea, j pelas informaes coligidas. O prprio alegado nomadismo dos ndios, contraposto com elementos em seu desfavor, induz evidn-cia de que no se reuniriam eles numa rea to pequena.

    Dessa maneira, ao invs de Itaipu ter sido generosa, provavelmente ter subtrado muita rea aos indgenas.

    claro que no digo isso publicamente, mas, em correspondncia reservada, no tenho dvidas em suscitar o problema.61

    Prevaleceu, contudo, a verso oficial dos ndios inexistentes e da generosidade de Itaipu, conforme pode ser verificado em documento oficial publicado por Itaipu em 1988.62 Para alm das ilegalidades e fraudes cometidas contra os Guarani hoje em Ocoy, esto em jogo os procedimentos de Itaipu em relao a grupos da etnia que habitavam a margem do Paran nos outros municpios da regio (Santa Helena, Marechal Cndido Rondon, Guara), de onde tambm foram expulsos num processo ainda hoje pouco conhecido. Como testemunha o ancio Loureno Figueiredo63 a respeito do territrio guarani Dois Irmos, em Santa Helena:

    Aqui mesmo, em Dois Irmos, tinha 70 famlias indgenas [...]. Eu era cacique tambm. Depois veio Itaipu e mandou tudo embora [...]. Falou que ia vir a gua e que pode se mandar. E o que que ns ia fazer?! Naquele tempo o exrcito manda. Fazer o que n?! [...] Choremo tudo, vai pra Paraguai, vai pra no sei aonde.... [...] Foi em 1983 (sic).

    Processos como esses no so exclusivos de Mato Grosso do Sul e do Paran. Em Santa Catarina, no Vale do Itaja, o Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) iniciou a construo de uma barragem para conteno de cheias em maro de 1976. A barragem, cuja construo foi autorizada pela Funai sem qualquer estudo de impacto ambiental e sem consulta s comunidades indgenas, ficava a menos de 500 metros a jusante do limite da TI Ibirama Lakln do povo Xokleng. Por conta das obras, na primeira grande enchente, em 1983, esta aldeia xokleng foi totalmente destruda e a comunidade foi forada a dividir-se em pequenas aldeias. Pelo menos 900 hectares da TI ficaram disposio do lago.

    A comunidade xokleng nunca foi indenizada e as consequncias persistem at os dias atuais. Quando o lago enche, de trs a quatro vezes ao ano, as escolas ficam sem aula, o atendimento mdico suspenso e aldeias ficam isoladas. Desde 1991, foram ao menos cinco ocupaes no canteiro de obras e nas comportas para exigir indenizaes e reparaes. Atualmente, duas aldeias esto condenadas por conta da oscilao do terreno influenciado pelas guas (PEREIRA, 1998).

    J na regio de Itabuna, no sul da Bahia, destaca-se o caso dos Patax-Hhhe da reserva Caramuru-Paraguau. O Relatrio Figueiredo, em sua sntese, caracteriza como genocdio os epi-sdios ocorridos na regio entre os anos 1950 e 1960. Jamais foram apuradas as denncias de que foi inoculado o vrus da varola nos infelizes indgenas para que se pudessem distribuir suas terras entre figures do governo, destaca o procurador.

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    Arrendamentos praticados com chancela do SPI terminavam por consolidar-se como esbu-lho havendo pagamento de propina aos funcionrios, para que fizessem vista grossa em relao situao. Em 1967, o depoimento de Helio Jorge Bucker, funcionrio do SPI que atuou como chefe de postos indgenas em vrios estados, apontou que era generalizado, pas afora, esse tipo de dinmi-ca.64 Com relao s terras dos Patax-Hhhe, especificamente, Bucker citava o governador Juracy Magalhes,65 apontando como beneficirios do esbulho o ento chefe de polcia da Bahia, general Liberato de Carvalho, e o ex-ministro Manuel Novaes, entre outros prepostos de Juracy. Outros depoimentos anteriores j denunciavam esse esquema. Em depoimento CPI de 1963, Cildo Meirelles, irmo do indigenista Francisco Meirelles, ligado ao SPI, tambm apontava o deputado Azziz Maron como um dos grandes invasores da rea, bem como o filho do senador Juracy Magalhes.66

    Aps essas denncias, o sertanista Cildo Meirelles foi demitido do SPI.O que se notar ao longo das prximas sees que os processos de expulso e remoo dos

    indgenas de seus territrios foram, ao longo do perodo em exame, a fora motriz para todas as graves violaes de direitos humanos cometidas contra povos indgenas. Em quase todos os casos, no apenas uma, mas mltiplas violaes ocorreram contra um mesmo povo.

    A emisso de certides negativas foi um dos mecanismos utilizados pelos rgos de Estado para legitimar esse processo de expropriao. Essa poltica foi exigncia instituda por resoluo da Sudam, em 1969, para acesso aos programas de financiamento na Amaznia Legal.

    A falsificao de tais certides implica responsabilidade direta do Estado nas violaes de direitos ocorridas por conta desses projetos desenvolvimentistas e de colonizao em reas indgenas.

    A necessidade de investigar a emisso das certides negativas foi notada por vrios observa-dores e envolvidos com a questo indgena j em 1977, por ocasio da CPI da Funai, destinada a apurar denncias relativas invaso de reservas indgenas. Os depoentes, diversas vezes, abordam o tema das certides negativas e sua suscetibilidade a erros e fraudes.

    Quanto sistemtica de sua expedio, necessrio ressaltar a grande possibilidade de erro ou de fraude a que ela d margem que foi admitida inclusive pelo prprio presidente da Funai ao depor nesta CPI:

    [...] em s conscincia, eu no posso afirmar que uma certido negativa fornecida pela Funai, corresponda realidade. A base de apreciao o mapa cadastral com a lotao da rea (fornecida pelo interessado). Se essa lotao for errada, ser dada a certido negativa para uma rea e na realidade a sua localizao outra, podendo inclusive [...] se localizar dentro da rea indgena. Juridicamente, a certido est perfeita, mas no corresponde realidade. Mais cedo ou mais tarde, esse erro ser descoberto e a Funai proceder anulao da certido fornecida.67

    Os elementos e concluses do relatrio da CPI de 1977 demonstram que, em muitos ca-sos, a Funai emitiu certides negativas mesmo sem ter conhecimento e informaes suficientes para afirmar com certeza que um dado territrio no era de ocupao indgena. Em outros casos, emitiu certido negativa, mesmo municiada de conhecimento e informaes que indicavam ocupao de um ou mais povos na regio.

    A sistemtica emisso de certides negativas sobre o territrio dos Nambikwara do Vale do Guapor (MT), a partir de 1969, ilustra essa poltica de expropriao territorial, instituda por instncias do governo associadas a empreendimentos privados. No perodo de 1946-1988, o povo nambikwara sofreu graves violaes aos seus direitos fundamentais em consequncia de polticas im-

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    plementadas pelo governo federal ou apoiados por ele no Vale do Guapor, regio fronteiria entre o Brasil e a Bolvia. O territrio nambikwara no Vale do Guapor foi aberto invaso no indgena em 1963, quando, sob o governo de Juscelino Kubitschek, a rodovia Cuiab-Porto Velho (BR 364) rasgou o noroeste do Mato Grosso.

    Em 1968, com a Funai recm-criada, o diretor do ento Departamento do Patrimnio Indgena do rgo promoveu estudos para a criao de trs pequenas reservas indgenas no Vale do Guapor, nos territrios tradicionais de fixao dos Nambikwara, mas que no foram aprovadas pela presidncia da Funai poca. O decreto de criao da reserva indgena Nambikwara (no 63.368), publicado em outubro de 1968, foi feito com base em informaes inadequadas mencionando at mesmo acidentes geogrficos inexistentes ,68 cobrindo uma regio de terras ridas e pouco habitada pelos Nambikwara, na Chapada dos Parecis, e excluindo as terras frteis de ocupao tradicional desse povo no Vale do Guapor.

    Logo aps a demarcao, a Funai iniciou a emisso de certides negativas, atestando que no havia ndios no Vale do Guapor e autorizando, dessa forma, que empresas particulares se beneficiassem dos recursos federais da Sudam para implementarem seus projetos agropecurios.69 O processo marchou a toque de caixa quando o coronel Costa Cavalcanti assumiu o Ministrio do Interior, e o general Bandeira de Mello, a presidncia da Funai. Entre 1970 e 1971, o vale inteiro j estava tomado pela pecuria.

    Os grupos mais atingidos pela ocupao das empresas agropastoris foram os ndios que perma-neceram no Vale por no terem suas terras asseguradas. O resultado foi uma epidemia de sarampo que matou toda a populao nambikwara menor de 15 anos. No final de 1971, a Fora Area Brasileira e a Funai realizam operao de emergncia a Operao Sarar para resgatar os ndios que ali ficaram.

    Para tentar solucionar o problema, a Funai promove a ampliao da reserva Nambikwara, levando o seu limite oeste at o Rio 12 de Outubro70 e realiza inmeras tentativas de transferncia desses grupos para a reserva todas malsucedidas. Em um mesmo ano, ela transfere os Mamaind, Negarot, Alantesu e Wasusu, mas muitos se negam mudana. Eles no conseguem adaptar-se nova terra, de solo infrtil, e passam a caminhar de volta a suas terras no Vale do Guapor que, no entanto, j haviam sido ocupadas por pecuaristas que desmataram grande parte da floresta para a criao de pastos. Alguns grupos so obrigados pela prpria Funai a permanecer na reserva, mas, para sobreviverem voltam a pescar, caar e cultivar no vale frtil de que haviam sido expropriados.

    Desorientados e com fome, os ndios comeam a procurar por conta prpria o cami-nho de suas antigas moradas. At fins de 1974, todos os Alantesus e Wasusus esto de volta ao Vale do Guapor. Os Mamainds e Nagarots, por presso da Funai, continu-am na reserva. Mas vo caar, pescar e cultivar seus roados no Vale, em terras que a lei branca lhes tirou por interesse nacional. (CARELLI & SEVERIANO, 1980, p. 14)

    Alm de sofrerem com a contaminao por doenas como malria e gripe, os Nambikwara tiveram suas roas destrudas pelo desfolhante qumico Tordon 155-BR, mais conhecido como Agente Laranja, e passam a sofrer sistematicamente de disenteria causada pela contaminao dos rios em con-sequncia do uso do produto. Os grupos que conseguiram voltar a viver no Vale do Guapor tiveram suas malocas cercadas por arames e suas roas destrudas pelo gado.

    Na dcada de 1980, o traado da BR-364 alterado e o Banco Mundial decide financiar a pavimentao da rodovia, que agora atravessa a regio habitada por quatro grupos nambikwara, cujas terras ainda no haviam sido demarcadas, e passa pelas proximidades das pequenas reas demarcadas para outros trs grupos. D-se incio, a, a uma intensa explorao madeireira e garimpeira na regio.

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    Nesse conjunto de casos, temos uma ilustrao clara do modus operandi do Estado brasi-leiro quando seu objetivo foi liberar terras indgenas para a colonizao e para a realizao de gran-des empreendimentos. Vemos tambm como diversos povos indgenas foram atingidos por atos de exceo que caracterizaram a atuao do Estado brasileiro no perodo 1946-1988 e por ele punidos com a transferncia e a remoo forada para lugares distantes de seu local de ocupao tradicional.

    Alm dos casos analisados, que demonstram o carter sistemtico e deliberado da atuao ilegal do Estado diante dos povos indgenas, esse tipo de violao forma um eixo que articula as demais violaes descritas nas prximas sees , por meio das quais as remoes foradas, expulses, intruses de territrios indgenas foram perpetradas. Essa violaes incidiram tambm sobre os povos: Akuntsu, Aparai, Apinaj, Canela, Enawew-Naw, Jamamadi, Juma, Kano, Makuxi, Oro Win, Pankararu, Potiguara, Surui Paiter, Tenharim, Uru-Eu-Wau-Wau, Wajpi, Xocleng, Xicrin Kayap e muitos outros.

    d) desAgregAo sociAl e extermnio

    Outra caracterstica sistemtica das violaes cometidas contra indgenas no perodo em questo reside no fato de que, ainda que tenham se dirigido a indivduos, tiveram como alvos povos como um todo e enquanto tais. Liberar terras para fins de colonizao ou para a construo de obras de infraestrutura levou no s a tentativas de negao formal da existncia de certos povos indgenas, em determinadas regies, mas tambm a meios de tornar esse apagamento realidade.

    Nessa seo, apresentando casos de violaes contra indgenas cuja tnica esteve na desa-gregao social e nas tentativas de extermnio, trazemos luz formas de produo de vazios demo-grficos as quais se efetivavam por meio da separao de famlias e/ou subgrupos; as transferncias compulsrias para reas habitadas por povos inimigos; os casamentos forados com povos inimigos; o sequestro de crianas; a contaminao proposital por doenas infectocontagiosas; as perseguies, humilhaes e prises; entre outras.

    Um dos casos em que tais prticas foram conjugadas o dos Xet de Serra dos Dourados, habitantes da margem esquerda do Rio Iva, no atual noroeste paranaense, processo caracterizado como genocdio pelo Ministrio Pblico do Paran, em documento elaborado no mbito da Comisso Estadual da Verdade Teresa Urban.

    1) o extermnio dos xet

    Sob a gide poltico-econmica do movimento deflagrado pela Marcha para o Oeste varguista, o governo do Paran empreendeu, a partir da dcada de 1940, uma poltica de colonizao: a ocupao das reas ao longo da fronteira com o Paraguai, ao norte e noroeste paranaenses, consideradas como um imenso vazio demogrfico,71 e a expanso da fronteira agrcola, notadamente a cafeicultura. A Serra dos Dourados, territrio Xet, includa na rea de incidncia do plano oficial de colonizao dirigida do governo do Paran, enunciado pelo governador Moyses Lupion (PARAN, 1949), e aquelas terras foram cedidas companhia colonizadora Suemitsu Miyamura & Cia. Ltda em 1949, substituda em 1951 pela Companhia Brasileira de Imigrao e Colonizao (Cobrinco), empresa do grupo Bradesco.

    Conforme relatrio do inspetor Deocleciano de Souza Nen (1952), a existncia dos Xet em Serra dos Dourados foi constatada pelo SPI em 1949 e reiterada em 1951, em expedies realizadas por ele e pelo auxiliar de sertanista Wismar da Costa Filho, que solicitaram 7 Inspetoria Regional

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    medidas de proteo fsica dos ndios e de seus territrios. Essas medidas foram negadas pelo chefe da 7 Inspetoria Regional, Lourival da Mota Cabral, sob a alegao de no mais haver ndios sem contato no estado do Paran. Mota Cabral foi apontado pelo procurador Jder de Figueiredo Correia como um dos funcionrios do SPI envolvidos com empresas madeireiras e que se favoreciam da explorao madeireira ilegal em terras indgenas no sul do pas.

    revelia das notcias da presena dos Xet em Serra dos Dourados, em 1951 o estado do Paran cedeu, por permuta, um terreno de 1.400 alqueires na rea ao fazendeiro e deputado estadual Antonio Lustosa de Oliveira, amigo pessoal e apoiador poltico do governador Moyses Lupion. A fazenda Santa Rosa, instalada no ano seguinte, e cujo administrador era o sobrinho do deputado, Antonio Lustosa de Freitas, se estendeu sobre um dos campos de caa de um dos grupos Xet.

    A Associao Nacional de Apoio ao ndio no Paran (ANA, 1983, p. 14) e o antroplogo Jos Loureiro Fernandes (1959, p. 29) indicaram que as expedies do SPI a Serra dos Dourados foram realizadas aps vrios entendimentos entre o deputado Lustosa de Oliveira e a 7 IR/SPI, com vistas remoo dos Xet de seu territrio, pois o deputado Lustosa de Oliveira pretendia alienar suas terras a uma colonizadora paulista o que de fato ocorreu em 1951, quando, por um ato sbito, a concesso de Suemitsu Miyamura anulada e transferida Cobrinco.

    Em entrevista ao jornal Folha de Londrina, em 1994, o ex-corretor de terras na regio de Serra dos Dourados poca, sr. Frans Licha, revelou um pacto entre o governo do Paran Cobrinco e ao SPI:

    Segundo ele, at a dcada de 1950, poca do governo de Moiss Lupion, as terras de Serra Dourada [sic] estavam sendo colonizadas pela Suemitsu Miyamura Cia. Ltda que j tinha demarcado uma rea de 50 mil alqueires para os ndios. Com Munhoz Neto substituindo Lupion no Governo do Paran, armou-se um jogo poltico ne-buloso que at hoje no foi explicado. [...] Contando com o apoio do governador Munhoz da Rocha e do SPI, a primeira coisa que a Cobrinco fez ao assumir a coloni-zao foi transferir os ndios para a reserva, revelou Licha. No local ainda sobraram alguns xets porque faltou caminho [...]

    A dcada de 1950 marcada por uma sistemtica de sequestros de crianas Xet por fa-zendeiros e funcionrios das colonizadoras, prtica que passa a ser adotada pelo prprio SPI. Entre as dcadas de 1950-1960, diversas crianas Xet so retiradas de suas famlias fora e distribudas entre famlias no indgenas, renomeadas e igualmente foradas a assumir novos hbitos.

    Em 1952, duas crianas Xet, Tikuein Uei (Kaiu) e Anhambu Guak (Tuca), foram capturadas por agrimensores e entregues ao inspetor do SPI, Deocleciano de Sousa Nen, que as conduziu e manteve em Curitiba. Sousa Nen justificava a posse dos meninos por sua utilidade como intrpretes nas futuras expedies de busca, o que de fato ocorreu at meados dos anos 1960.72

    Belarmina Paran, viva de Anhambu Guak (Tucanamb Jos Paran), no filme O ltimo guerreiro dos Xet, de Bruno Xet, relatou as condies do sequestro de Tuca, desmentindo a verso frequentemente informada de que as crianas eram encontradas perdidas na floresta:

    O homem branco chegou na terra deles [...], pegaram eles, depois que eles [os brancos] tiveram contato com eles [os Xet] mesmo, ele [Tuca] tava trepado numa madeira, a eles derrubaram e pegaram ele, ele e mais o outro, que falecido, o Antonio Guair Paran, era o nome dele, do outro Xet. Da trouxeram eles, amarraram e trouxeram de avio para Curitiba. (315 452)73

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    Durante os trabalhos de atrao, entre 1955-1956, os funcionrios do SPI promoveram outra onda de sequestros de crianas, que eram retiradas de suas famlias, uma a uma, e mantidas em Curitiba. O prprio Lustosa de Freitas, designado pelo SPI responsvel74 pelos Xet, sequestrou duas crianas ao longo desse perodo: Guayrak (que renomeou Geraldo Brasil) e Tigu (renomeada Ana Maria). s tentativas dos pais de retomar as crianas, Lustosa de Freitas respondia com violncia:

    A me dele ficou uns trs ou quatro dias em redor para roub-lo [sic]. Quando foi um belo dia, ela ameaou peg-lo. Foi quando eu peguei uma vara de bater em vaca e a ameacei. Depois disso, ela nunca mais tentou. O M tentou, chegou a peg-lo, mas eu fiz a mesma coisa. (ANTONIO LUSTOSA DE FREITAS, 1989 apud SILVA, 1998, p. 80)

    A partir da instalao do posto de atrao na fazenda Santa Rosa em 1957, o SPI inicia um processo de disperso dos Xet, ao promover transferncias deles para reas indgenas Guarani e Kaingang em outras regies do Paran.

    Os sobreviventes relataram tambm que os Xet que se aproximaram da fazenda Santa Rosa, inclusive as crianas, foram condicionados ao trabalho na roa da propriedade, convergindo com apontamentos de Loureiro Fernandes (1957).

    Trabalhvamos duro na lavoura. A minha vida toda, desde quando eu sa do mato, o branco me ensinou a trabalhar na enxada, na foice e no machado. [...] Ajudei a formar muito caf, quando eu j era maior [...] Eu devia ter uns sete anos, quando conheci branco mais de perto, da me formei mais um pouco, e j comecei a trabalhar. Esse Senhor Antonio Lustosa me ensinou a andar a cavalo. Quando menino, comecei a trabalhar com ele, como diz, lidar com gado (TI-KUEIN apud SILVA, 1998, pp. 81-82)

    Os sobreviventes Xet reconhecem o efeito das aes do SPI na desagregao de seu povo. No apenas a separao fsica, mas tambm o processo de esfacelamento cultural forado pela mu-dana abrupta, a retirada de adornos, a perda da lngua e a imposio de hbitos da sociedade no indgena s crianas, agora em poder de famlias urbanas. Moko, levada ainda menina para Curitiba pelo inspetor Dival de Souza em 1955, diz:

    Podamos estar juntos se no tivessem nos separado. Todos quiseram nos ajudar e nos atrapalharam, nos separaram, tiraram a gente do nosso lugar. Perdemos tudo, alguns de ns perderam at as lembranas de nossa gente, fomos levados igual bicho, cada um para um lado e com um dono (). Estou cansada de morar na terra dos outros [...] No tinha como praticar as coisas de meu povo, porque fiquei sozinha e no tenho como praticar [...] ( apud SILVA, 1998, p. 73)

    Alm dos sequestros e das remoes foradas realizadas pelo SPI, a Cobrinco tambm acusada de ter feito desaparecerem ndios e de ter contratado jagunos para atac-los, bem como s famlias de pequenos posseiros na regio. Em Memorial sobre os Xet, feito a pedido do Conselho Nacional de Proteo aos ndios (CNPI) em 1958, o antroplogo Jos Loureiro Fernandes levou ao conhecimento do governo federal as violncias cometidas contra os Xet com a inteno de

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    destruir provas dos direitos constitucionais desses ndios s suas terras. O jornal Gazeta do Povo publicou, em 1959, uma matria reproduzindo denncia feita pelo antroplogo Jos Loureiro Fernandes em Memorial sobre os Xet:

    [...] seus caminhes teriam sido vistos pelo menos duas vezes conduzindo os ndios para fora da Serra dos Dourados. Qual o destino? No se sabe. Ningum, ao que parece, at agora procurou averiguar. Pessoas temem fazer denncias.

    Apesar de denncias terem sido levadas por funcionrios do rgo e acadmicos chefia da 7 IR/SPI, ao CNPI e mesmo ao Congresso Nacional,75 e tornadas pblicas sobretudo pela imprensa local, no foram adotadas pelo Estado quaisquer medidas de proteo. Mais tarde, a Revista Panorama (1978)76 revelou que a Cobrinco acobertava suas aes no territrio Xet com o silncio imposto fora por meio de tcnicas de tortura.

    Um dos elementos do processo de extermnio dos Xet foi a negao sistemtica de seus direitos territoriais. O ano de 1956 marca o incio da luta pela criao de uma reserva como poss-vel territrio para os Xet. Uma proposta do deputado Lustosa de Oliveira para criar de um parque estadual, apesar de aprovada pela Assembleia Legislativa do Paran, vetada pelo governador Bento Munhoz sob a alegao de que para a rea indicada no projeto j haviam sido deferidos muitos ttulos de compra. De fato, conforme registra Sousa Nen, o SPI, enquanto aguardava solues por parte do governo estadual quanto questo da terra Xet, teria sido surpreendido com a venda de todas as suas terras (SPI, 1957). E, em 1961, por meio do Decreto n 50665, do presidente Jnio Quadros, institudo o Parque Nacional de Sete Quedas, em Guara. Sete Quedas, no entanto, constituiu-se em simples ato administrativo, uma vez que nenhum procedimento de estudo e demarcao foi realizado.

    A partir da dcada de 1960, o Estado consolida o processo de esbulho territorial dos Xet, ao pro-mover a remoo dos ltimos ndios ainda em contato na fazenda Santa Rosa. Durante a ditadura, os Xet, separados, so jogados no esquecimento a partir de quando so considerados extintos; os Xet foram mantidos em separao e desterritorializao foradas, e mesmo sem o conhecimento da existncia de outros parentes vivos. Segundo os relatos dos sobreviventes, bem como registros feitos por etnlogos (Vladimir Kosk e Aryon Rodrigues, por exemplo) e documentos do prprio SPI, os Xet foram abandonados em diversos postos indgenas, adoentados de tuberculose e famintos. Kosk (1969 apud Silva, 1998:82) registrou em uma de suas viagens que encontrou os Xet doentes com varola [...] [e] no tinham o que comer.

    Aos Xet seria negado, novamente, o direito de se reunirem e viverem juntos: em 1981, tam-bm por decreto presidencial, extinto o Parque Nacional de Sete Quedas, e toda a rea inundada para receber a lagoa da usina hidreltrica de Itaipu.

    Os Xet vivos, sobreviventes, ento separados em diversas reservas indgenas, foram considera-dos pelo Estado brasileiro oficialmente como povo extinto at o final da dcada de 1980, quando, em virtude da realizao do Projeto Memria Indgena do Paran,77 seus depoimentos foram colhidos e sua histria comeou a ser recontada. Removidos de seu territrio e separados de seus familiares, os Xet se entendem como inquilinos dos Guarani e Kaingang, que os acolheram. Paradoxalmente, os ento sobreviventes Xet foram as crianas, hoje adultas, retiradas de Serra dos Dourados. Quanto aos outros subgrupos Xet que resistiram ao contato com os brancos, no se teve mais notcias, e o SPI no se empe-nhou em procur-los. Mesmo aqueles que eram encontrados, eram posteriormente espalhados pelo SPI.

    Os Xet retornariam ao cenrio e geopoltica paranaense a partir da dcada de 1990, quan-do os sobreviventes realizaram encontros e deflagraram uma luta pelo seu reconhecimento pelo Estado, pela valorizao de sua lngua e cultura e pela retomada de sua terra tradicional, da qual foram expulsos.

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    2) o cAso dos tApAyunA (beio-de-pAu)

    Os Tapayuna (conhecidos como Beio-de-Pau), no oeste Mato Grosso, tambm sofreram tentativas de extermnio no perodo entre 1953 a 1971, aproximadamente, no processo de reocupao de seu territrio, durante o ciclo de expanso da fronteira agrcola que vitimou os Xet e outros povos. Sua populao, calculada pela Funai na dcada de 1960, era de cerca de 1.220 pessoas. Dizimados por envenenamento, armas de fogo, gripe e remoes foradas, restaram, 20 anos aps o contato, cerca de 40 indivduos da etnia. A morte da maior parte dos indgenas ocorreu por negligncia do rgo indigenista oficial, que, em 1969, permitiu a participao de um jornalista gripado na expedio con-duzida pelo sertanista Joo Amrico Peret, no havendo a vacinao prvia necessria para situaes de contato. Alm da epidemia, a concesso de terras indgenas Brasul e colonizadora Conamali por parte do governo de Mato Grosso resultou em uma srie de conflitos e assassinatos.

    Principalmente a partir de 1951, aps a concesso das terras indgenas pelo estado do Mato Grosso, uma srie de empreendimentos na regio do antigo municpio de Diamantino foram consoli-dando um sentimento de insegurana nos ndios que ali viviam, incluindo os Tapayuna. Com a omisso dos rgos responsveis pela garantia dos direitos indgenas, a aproximao dos no indgenas atravs de inmeros projetos por exemplo, as linhas telegrficas de Rondon, a abertura de estradas, a construo de fazendas e o aumento da navegao na regio dos rios Miguel de Castro e Tom de Frana (afluentes do rio Arinos) acabaram fornecendo base para futuros conflitos atravs deste sbito contato.

    Tentando impedir o extermnio completo dos Tapayuna, aps cinco tentativas de pacifi-cao, a Funai realizou a transferncia dos sobreviventes de seu territrio tradicional para o Parque Indgena do Xingu (PIX), em 1971, junto ao povo Ksdj. No entanto, essa ao tardia no s no evitou a continuidade do genocdio como contribuiu com o seu agravamento, pois a remoo, feita sem estudos prvios, realocou os indgenas em um territrio ocupado por povos rivais, aumentando a sua situao de vulnerabilidade social que caracteriza etnocdio. Aps a morte de lideranas Tapayuna, muitos fugiram do parque e os que ficaram entre inimigos estavam impedidos de viver sua cultura.

    impossvel escutar as histrias dos Suy Ocidentais [Tapayuna] sobre o ato de matar e serem mortos sem atribuir o horror de sua dizimao a uma combinao de proteo inadequada por parte do rgo indigenista, avidez/voracidade dos fazen-deiros locais e fraqueza da equipe de pacificao. Em poucos anos, mais de 90% da populao morreu ou foi morta (SEEGER, 1981, p. 55, grifo nosso.)

    O processo de remoo em si acarretou a morte de ao menos dez indgenas durante o per-curso por questes de sade; para alm disso, muitos dos Tapayuna que no tinham condies de sair ou que se recusaram a peregrinar at o PIX acabaram falecendo nas aldeias de origem. Em 1971, o sertanista Antnio de Souza Campinas, junto com um Tapayuna do Xingu, foi enviado para buscar sobreviventes na antiga regio onde localizavam-se os Tapayuna; l foram encontrados somente ossos revirados por porcos selvagens. Entre os mortos, estava a noiva do cacique Tariri:

    Tariri disse que esses ndios que ficaram para trs naquela poca foram convidados pelos seus patrcios a viverem, digo a virem se integrarem junto ao branco, ou seja, padre Tomaz, com finalidade de tomar remdios, mais eles no quiseram aceitar a proposta, ento precisava de uma pessoa ir na aldeia medic-los, justamente para quem conhece o trabalho o que seria certo, mais isto no aconteceu, resultado,

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    morreram. Eu vi coisas desagradveis nesta viagem, pela segunda vez que vejo ndios desesperados, em uma das vezes em que eu insistia com o ndio Tariri para irmos mais para frente, ele olhou para mim, sentou-se, ps as duas mos na cabea, depois bateu com a mo direita em cima do corao e nesta altura j estava cho-rando olhando para os ossos todos fuados pelos porcos da mata, lembrando que no meio daqueles ossos, estavam os ossos da moa que ia ser sua esposa e falou as seguintes palavras: Kara-tn-aitinnvaine Kre, Ktt Kue n, que significa: vocs civi-lizados mataram todos, tudo acabado, estas palavras falou