Boca do Inferno número 22
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BO
CA
DO
IN
FER
NO
Estamos de volta!
NESTA EDIÇÃO
A B R I L D E 2 0 1 0 E D I Ç Ã O N º 2 2
Jornal do Centro Acadêmico de Letras da Universidade Federal do Paraná
Professora nos deu um depoi-
mento digno de autobiografia
(tanto dela como da Universida-
de, acreditem!). Temos também
a participação (espantosa, em
vista de antes) de vários colegas,
com textos que vão da produção
artística e literária à análise his-
tórica e cultural.
Além disso, contamos com a
participação mais que bem vinda
dos professores para abrilhantar
este nosso ―velho-novo‖ Boca.
Neste temos o Professor Paulo
Soethe, da área de Alemão, tra-
tando do novo convenio entre
UFPR e a Universidade de Za-
greb, na Croacia (p.2) .
Enfim, caros colegas, vocês
têm em mãos um periódico bem
eclético, descolado e, acima de
tudo, democrático. Então, não
hesitem: abram, leiam, folheiem,
comentem, falem, discutam, gri-
tem.... Sintam-se à vontade!
Com visual novo, novas ca-
racterísticas, o Boca do inferno
está de volta! Queremos, desta
vez, que torne-se um periódico de
fato, um instrumento de informa-
ção e divulgação DE e PARA os
alunos de Letras da UFPR.
Entenda melhor: a partir
desta edição, o jornal passa a ter
seções, colunas e outros fru-frus,
que facilitam a leitura e dinami-
zam o espaço do folhetim. Entre
estas, temos as colunas ―sub-
realidade‖, sob a pena (a literá-
ria, não a punitiva) do Willian
Pinheiro e ―Abrindo a boca‖, que
traz as polêmicas que nos rodei-
am e os assuntos que circulam
pelos corredores dos ―Dons Pe-
dros‖.
Na seção ―Entre e Vista‖,
falamos com uma de nossas ilus-
tres professoras, Prof. Dra. Mari-
lene Weinhardt, atual presidente
da ABRALIC - Associação Brasi-
leira de Literatura Comparada. A
2 8 15
4 12 16
6 14 20
P Á G I N A 2
Cooperação UFPR - Croácia
A Croácia tem 4,5 milhões de ha-
bitantes e cerca de 700 mil deles vivem
em Zagreb, capital do país. Mais re-
centemente, em vista de sua história
milenar, foi parte do Império Áustro-
Húngaro, passou por breve período de
autonomia, depois integrou a Iugoslá-
via. Com o fim dos estados socialistas e
depois da pacificação dos conflitos ét-
nicos na região, a Croácia existe como
Estado nacional desde 1991. Para as
proporções do Brasil, é um país peque-
no, mas tem grande importância geo-
política e cultural na Europa Meridio-
nal e nos Bálcãs.
Com o Brasil, a Croácia mantém
boas relações comerciais. Nosso país
fornece cerca de 6% do total das impor-
B O C A D O I N F E R N O
AL
ÉM
- M
AR
Por Paulo Soethe
tações croatas de alimentos, por exem-
plo. Culturalmente, há presença de i-
migrantes croatas no Brasil (uma co-
munidade de ap roximadamente
25.000 pessoas, sobretudo em São
Paulo), e as relações históricas estão
descritas em detalhes em obra sobre
as relações croato-brasileiras, escritas
não casualmente pelo titular da cáte-
dra de Português na Universidade de
Zagreb, o professor Nikica Talan.
A Universidade de Zagreb tem
40.000 alunos, e abriga uma área de
Português dinâmica e em crescimento,
que nos últimos anos tem merecido
atenção na mídia na época do vestibu-
lar: ao lado de cursos tradicionais co-
mo Direito e Medicina, Português
P Á G I N A 3 E D I Ç Ã O N º 2 2
A B R I L D E 2 0 1 0
(com um total de 30 vagas) tem a pro-
cura de 25 candidatos por vaga, para
um curso de 3 anos (um ―bachelor‖, no
modelo de Bologna) e possibilidade de
continuidade de estudos em um
―master‖ de dois anos (segundo esse
mesmo modelo).
Em abril e outubro de 2006, o
Programa de Pós-graduação em Letras
da UFPR tomou contato com a Univer-
sidade de Zagreb, inicialmente por in-
termédio do Professor Davor Dukic
(que esteve em Curitiba em 2007), e
desde então estabeleceu vínculos sóli-
dos com os colegas da área de Portu-
guês de lá. Em abril de 2006, as pri-
meiras atividades de ensino e missão
de trabalho em Zagreb (reuniões e um
curso intensivo de Introdução à litera-
tura brasileira) receberam apoio signi-
ficativo do Ministério das Relações
Exteriores em Brasília, com a destina-
ção e envio de material de divulgação
cultural em grande quantidade, para
doação a docentes e estudantes. Estava
em vista, por coincidência, a instalação
da Embaixada do Brasil em Zagreb,
que se deu em julho de 2006.
Em outubro de 2006, em nova
atividade de ensino (um curso sobre
Lavoura arcaica, de Raduan Nassar),
houve reunião com o Senhor Guilher-
me Paul, diplomata brasileiro da re-
cém-instalada Embaixada brasileira, e
longa conversa telefônica com o Em-
baixador Haroldo Valladão Filho. O
principal ponto foi a criação de um
Leitorado de Português e Literatura
Brasileira, com financiamento bilate-
ral. Em fevereiro de 2007 abriu-se o
processo de instalação do leitorado,
seleção e orientação do Leitor, pela
CAPES. O primeiro Leitor, que ainda
A Universidade Federal do Para-
ná mantém convênios com universida-
des brasileiras e também de vários paí-
ses do mundo, com projetos de inter-
câmbio, firmados entre as instituições
ou entre a diplomacia brasileira e a es-
trangeira.
Os alunos que desejam fazer in-
tercâmbio estudantil, seja dentro do
Brasil, seja em outros países, podem
procurar a UIMA—Unidade de Inter-
cambio e Mobilidade Acadêmica da
UFPR. Para saber mais sobre inter-
cambio visite o sitio http: //
www.intercambio.ufpr.br ou ligue para (41)
3360-5367. O endereço eletrônico é inter-
Serviço: Intercâmbio
se encontra em Zagreb, é o Prof. José
Luiz Foureaux de Souza Jr. (UFOP).
Em dezembro de 2007, formali-
zou-se acordo de cooperação entre a
UFPR e a Universidade de Zagreb, por
iniciativa do Programa de Pós-
graduação em Letras, apoiado pelo Se-
tor de Ciências Humanas. Durante o
ano de 2008, esteve na UFPR a Profª.
Majda Bojic, para estudo e pesquisa
em nível de doutorado, e para co-
ministrar disciplina no Programa. Ela
contou com auxílio da UFPR no pri-
meiro semestre, depois com bolsa do
governo croata, no segundo. No início
de 2009, a UFPR recebeu visita de
dirigentes da Faculdade de Filosofia da
Universidade de Zagreb, e há boas
perspectivas de intensificação das
ações de cooperação.
P Á G I N A 4
B O C A D O I N F E R N O
AB
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A B
OC
A:
CE
LIN
Em casa de ferreiro quem
tem um olho é rei... ou ―Em busca de Nêmesis‖
c u l t u r a e i n t e r c u l t u r a l i d a d e ; p o -
r é m , e x i s t e o r e v e r s o d e s t a m e d a -
l h a , q u e c a r e c e d e t o d o e s t e b r i -
l h o t ã o h a b i l m e n t e d i v u l g a d o a o s
m e i o s d e c o m u n i c a ç ã o , e , q u e
p r e c i s a s e r r e v e l a d o à o p i n i ã o
p ú b l i c a . U m a d a s d i s t o r ç õ e s q u e
v e m o c o r r e n d o n o C e l i n , j á h á
m u i t o t e m p o , a q u a l n o s m o v e
n e s t a d e n ú n c i a , é q u e a l u n o s d a
g r a d u a ç ã o , d a s l i c e n c i a t u r a s d o
C u r s o d e L e t r a s d a U F P R , v ê m
s e n d o p r e t e r i d o s n o s e u d i r e i t o
d e e s t á g i o e m b e n e f í c i o d e p r o -
f e s s o r e s p r o f i s s i o n a i s ; n u m e r o -
s o s n o c o r p o d o c e n t e d a i n s t i t u i -
ç ã o , m u i t o s s e q u e r t ê m a g r a d u a -
ç ã o e m l e t r a s e m u i t o m e n o s
q u a l q u e r l i c e n c i a t u r a . P r á t i c a
c o m u m e m e s c o l a s p a r t i c u l a r e s
d e i d i o m a s , a c o n t r a t a ç ã o d e n ã o
g r a d u a d o s , c o m o m ã o - d e - o b r a , é
e x e c r á v e l e m u m a U n i v e r s i d a d e
P ú b l i c a , q u e f o r m a p r o f e s s o r e s
d e l í n g u a s .
O C e l i n e x i g e , p a r a o i n -
g r e s s o e m s e u s q u a d r o s , a c o n -
c l u s ã o d e u m c u r s o q u e r e c e b e
u m a p r e t e n s i o s a d e n o m i n a ç ã o
d e : ― F o r m a ç ã o d e P r o f e s s o r e s ‖ ,
c o m u m a c a r g a h o r á r i a d e p o u c a s
d e z e n a s d e h o r a s . U m a l i c e n c i a -
t u r a p l e n a t e m a d u r a ç ã o d e 4 , 5
a n o s e m n o s s a u n i v e r s i d a d e . O
r e f e r i d o c u r s o d e a d m i s s ã o , o u
m e l h o r , d e ― E x t e n s ã o U n i v e r s i t á -
r i a ‖ l e v a a c h a n c e l a d a U F P R e
f u n c i o n a c o m o u m e f i c i e n t e m e -
c a n i s m o p a r a d e s c a r t a r e s t u d a n -
t e s d e l e t r a s , p o s s í v e i s e s t a g i á -
O C u r s o d e L e t r a s d a U n i -
v e r s i d a d e F e d e r a l d o P a r a n á p o s -
s u i a t u a l m e n t e , a l é m d o P o r t u -
g u ê s , s e t e h a b i l i t a ç õ e s e m l í n -
g u a s e s t r a n g e i r a s , à s q u a i s p o d e -
m o s a c r e s c e n t a r g r e g o e l a t i m .
A p e n a s d u a s d e s t a s s ã o r e c e n t e s :
J a p o n ê s e P o l o n ê s ; e t o d a s a s s e -
t e o f e r e c e m a o p ç ã o d e l i c e n c i a -
t u r a p l e n a . S e c o n s i d e r a r m o s
t a m b é m o s b a c h a r e l a d o s , s ã o 5 4
p o s s i b i l i d a d e s f o r m a t i v a s , s e g u n -
d o o s n o s s o s i n t e r e s s e s e e s c o -
l h a s .
N ó s f o m o s a p r o v a d o s e m
c o n c u r s o v e s t i b u l a r o u t r a n s f e r i -
d o s p o r r e a p r o v e i t a m e n t o d e v a -
g a s . S o m o s q u a s e 1 0 0 0 a l u n o s d a
g r a d u a ç ã o . A o s e s t u d a n t e s d a s
l i c e n c i a t u r a s é f a c u l t a d o o e s t á -
g i o r e m u n e r a d o , p o d e n d o a t u a r
c o m o p r o f e s s o r a p r e n d i z d o C e n -
t r o d e L í n g u a s e I n t e r c u l t u r a l i -
d a d e - C e l i n , u m a e s c o l a - e s c o l a
d e l í n g u a s c r i a d a n o n o s s o C u r s o
d e L e t r a s p a r a e s t e f i m , q u e h o j e
a t e n d e m a j o r i t a r i a m e n t e à c o m u -
n i d a d e e x t e r n a p a g a n t e . C o m o
c e n t r o d e l í n g u a s e l e j á t e v e m a i s
d e 4 . 7 0 0 a l u n o s m a t r i c u l a d o s .
D e p o i s d e q u i n z e a n o s d a s u a
f u n d a ç ã o o a t u a l C e l i n é u m v u l -
t o s o e m p r e e n d i m e n t o n o s e t o r d e
e s c o l a s ; m a s , n ã o n o s e s q u e ç a -
m o s , é u m a i n s t i t u i ç ã o d a U F P R ,
q u e f u n c i o n a a t r a v é s d a F u n p a r ,
q u e é u m a f u n d a ç ã o .
O C e l i n t e m s i d o f r e q u e n t e -
m e n t e f e s t e j a d o c o m o u m c a s o d e
s u c e s s o , u m p ó l o d e d i f u s ã o d e
P Á G I N A 5 E D I Ç Ã O N º 2 2
A B R I L D E 2 0 1 0
r i o s , e t a m b é m a r r e g i m e n t a r e
v a l i d a r a c o n t r a t a ç ã o d e p r o f i s -
s i o n a i s n ã o h a b i l i t a d o s ( n ã o g r a -
d u a d o s e m L e t r a s ) m e s m o p a r a
a s l í n g u a s d a s l i c e n c i a t u r a s d o
n o s s o C u r s o d e L e t r a s . T o d o s r e -
c e b e m u m ― C e r t i f i c a d o d e C a p a -
c i t a ç ã o ‖ c o m o t i m b r e d a U F P R .
I s t o é i n j u s t i f i c á v e l , n ã o é
é t i c o , n ã o é m o r a l . S e r á l í c i t o ?
I n e x p l i c a v e l m e n t e e s t a s e l e ç ã o
a r b i t r á r i a é f e i t a p e l o s n o s s o s
p r ó p r i o s p r o f e s s o r e s , e l e s s ã o c o -
o r d e n a d o r e s d a s r e s p e c t i v a s l í n -
g u a s n a i n s t i t u i ç ã o , s ã o e l e s p r ó -
p r i o s q u e a t e s t a m a n o s s a f a l t a
d e c a p a c i d a d e e e x p e r i ê n c i a p a r a
a t u a r n o C e l i n , a l é m d i s s o , d ã o -
n o s a d e s c u l p a d e s e m p r e f a l t a -
r e m v a g a s , o u q u e e s t e s d e p r o -
f i s s i o n a i s d e ― c a r r e i r a ‖ s ã o o s
m e l h o r e s p a r a a t u a r n a i n s t i t u i -
ç ã o . A l g u m a s l í n g u a s c h e g a m a
f u n c i o n a r n o C e l i n c o m o e s c o l i -
n h a s p a r t i c u l a r e s d e i d i o m a s ,
c o n t r a t a n d o o s ― m e l h o r e s p r o f e s -
s o r e s ‖ , c o n t r a r i a n d o a f i l o s o f i a
d o a m b i e n t e u n i v e r s i t á r i o n a s
q u a i s s e i n s e r e m , s e m t e r e m u m a
p o s t u r a d i d á t i c a e p e d a g ó g i c a d e
u m a e s c o l a d e a p l i c a ç ã o , i n t e n -
ç ã o p r i m o r d i a l d a i n s t i t u i ç ã o .
N ã o p o d e m o s e n t e n d e r a r a -
z ã o d i s t o . N ã o p o d e m o s s e q u e r
i m a g i n a r q u a l é a i n t e n c i o n a l i d a -
d e i m p l í c i t a n e s t a p r á t i c a , q u e
r e p u t a m o s , s e m d ú v i d a , i s e n t a d e
c o e r ê n c i a e d e l i s u r a a c a d ê m i c a .
O s a d m i t i d o s n o n a e s c o l a , q u e
n ã o s ã o e s t a g i á r i o s , g r a d u a d o s
e m L e t r a s o u n ã o , s ã o c o n t r a t a -
d o s a t r a v é s d a C e i l i n , u m a c o o -
p e r a t i v a ― f i l h a ‖ d o C e l i n , q u e l e -
g a l i z a i n d i s t i n t a m e n t e e s t a m ã o -
d e - o b r a .
É n o t ó r i a a a v i d e z p e l o s n ú -
m e r o s n a i n s t i t u i ç ã o , r e p r e s e n t a -
d a p e l o i n c h a ç o d a i n s t i t u i ç ã o e o
c o n s e q u e n t e a u m e n t o d e f a t u r a -
m e n t o . A t e n d e r à d e m a n d a n ã o
j u s t i f i c a a a r b i t r a r i e d a d e . É p r e -
c i s o a t e n d e r a d e m a n d a ? I s t o a -
c o n t e c e e m p r o v e i t o d e q u e m ?
S e m d ú v i d a n ã o é d o s a l u n o s d o
C u r s o d e L e t r a s d a U n i v e r s i d a d e
F e d e r a l d o P a r a n á . M u i t o s t a m -
b é m s ã o o s n o s s o s c o l e g a s , c o m a
l i c e n c i a t u r a e m l í n g u a s d a g r a d u -
a ç ã o d a U F P R q u e , n ã o t i v e r a m e
n ã o t ê m o p o r t u n i d a d e n o C e l i n ,
q u e j á e x i s t e h á q u i n z e a n o s ,
t e m p o m a i s q u e s u f i c i e n t e p a r a
f o r m a r e m a n t e r u m c o r p o d o c e n -
t e g r a d u a d o , b a s e p a r a f o r m a ç ã o
d o s a l u n o s e s t a g i á r i o s d a s n o s s a s
l i c e n c i a t u r a s . L e m b r a m o s t a m -
b é m q u e t o d a s a s l i c e n c i a t u r a s , à
e x c e ç ã o d o s c u r s o s d e j a p o n ê s e
p o l o n ê s , j á f u n c i o n a m e m n o s s a
u n i v e r s i d a d e h á m u i t a s d é c a d a s ,
j á c h e g a r a m à m a t u r i d a d e , f o r -
m a r a m m i l h a r e s d e p r o f e s s o r e s
n a q u e l e q u e é u m d o s m e l h o r e s
c u r s o s d e L e t r a s d o p a í s .
O C e l i n é , n ã o e s q u e ç a m o s ,
p a r t e d e u m a U n i v e r s i d a d e P ú b l i -
c a , q u e n ã o p o d e s e r o b j e t o d e
u m a a ç ã o v e n a l e m d e t r i m e n t o d e
s e u s p r ó p r i o s a l u n o s , p r o f i s s i o -
n a i s p o r e l a g r a d u a d o s e d a c o -
m u n i d a d e q u e b u s c a o a p r e n d i z a -
d o d e l í n g u a s . O s t e n t a n d o o
n o m e d a U n i v e r s i d a d e F e d e r a l d o
P a r a n á , r e c e b e n d o s e u a v a l e
f u n c i o n a n d o n o â m b i t o d e u m a
f u n d a ç ã o , o C e l i n p r e c i s a m u d a r
u r g e n t e m e n t e e p r e s t a r c o n t a s à
s o c i e d a d e . E m u m p a í s o n d e é
t r a d i ç ã o a a p r o p r i a ç ã o d o p ú b l i -
c o p e l o p r i v a d o , p r e t e r i r e s t u -
d a n t e s d e l e t r a s o u j o v e n s p r o -
f e s s o r e s g r a d u a d o s é r o u b a r e s -
p e r a n ç a s .
P Á G I N A 6
B O C A D O I N F E R N O
―Trágico, deprimente, elegíaco y
levemente mórbido con algunos espas-
módicos brotes épicos. Es posible tam-
bién señalar el espíritu aventurero por
la elección y exaltación defiguras he-
roicas, arquetipos revolucionarios,
etc. [...]”
Roque Vallejos
Em uma literatura criada à mar-
gem de guerras e conflitos é difícil ima-
ginar algo que não tenha um tom trági-
co, deprimente e, às vezes, mórbido.
Da mesma forma me parece impossível
conceber a criação literária neste ambi-
ente sem pitadas épicas e bélicas, o que
dá base para uma das partes mais im-
portantes e representativas do Roman-
ticismo Paraguayo, o militante, que
traz atrelado a si o sentimental, com a
questão do auto-sacrifício pela pátria,
a sobreposição do sentimento à razão
na maioria das situações em que se tem
que escolher entre si mesmo e a pátria,
o que, na verdade, é uma única opção
porque, neste período, o individuo não
era nada além da sua própria pátria
e por ela vive e morre, se lhe parece
necessário.
A literatura paraguaia desde os
seus primórdios tem uma construção
singular, porque cresce em um ambien-
te onde os elementos externos — literá-
rios e culturais — não conseguem se
fazer acessíveis pelo isolamento criado
Um breve olhar à também breve Literatura Romântica Paraguaya
LIT
ER
AT
UR
A
Por Julio Cezar Marques
na ocasião da Ditadura, quando as
fronteiras estavam impenetravelmente
fechadas sob o comando do Dr. José
Gaspar Rodríguez de Francia y Velasco,
ou O Supremo, ou o Karai Guazu,
quem por vinte e seis anos, no período
compreendido entre 1814 e 1840, proi-
biu a saída e a entrada de pessoas do/
no país sem sua prévia autorização e
proibiu ainda a atuação da imprensa,
não só do Paraguai, mas também a
entrada de periódicos estrangeiros
que não fossem para ele mesmo. Co-
nhecer os limites da censura neste mo-
mento é fundamental para compreen-
der o desenvolvimento cultural e soci-
al do país e para perceber o porque da
sua atual estrutura nas diversas esferas
passíveis de análises. A exaltação da
pátria e a entrega pessoal por sua liber-
dade, congregam em um significativo
patriotismo que impulsiona tanto a li-
teratura e como todo o povo paraguaio.
O desenvolvimento dessa literatura ba-
seada, sobretudo em elementos nacio-
nais no Paraguai se contrapõe à litera-
tura argentina do mesmo período, que
recebeu muitas influências estrangei-
ras, as quais se misturaram com as
nacionais quase se sobressaindo a e-
las, gerando um bloqueio na criação
nacionalista, por assim dizer, culmi-
nando em uma literatura com claras
intenções, frustradas, de ser européia.
É importante citar alguns dados que
considero significativos na justificativa
da pouca produção literária desse
P Á G I N A 7 E D I Ç Ã O N º 2 2
Por Teurra Vailatti
A B R I L D E 2 0 1 0
período.
Por ocasião da Guerra da Tríplice
Aliança, 75% da população foi perdido
no processo bélico; de um inicial de
1.300.000 paraguaios vivos no princi-
pio da guerra, apenas 300.000 conse-
guiram sobreviver, sendo estes, em
sua grande maioria, crianças e mulhe-
res, diminuindo o círculo de poetas,
e possíveis aspirantes, que já não era
grande. Literariamente este foi um pe-
ríodo de pouca expressão quantitativa,
mas de grande valor qualitativo, tem-se
aí uns poucos poetas e quase nada de
publicações, mas essa produção res-
ponde plenamente à pergunta: O que
necessitava expressar internamente a
literatura paraguaia naquele momento?
O que produziram esses poetas regis-
tra o momento dos conflitos bélicos,
sociais e pessoais da forma necessária,
sem demasias nem limitações criativas.
Literatura para quem?
A literatura tem uma íntima rela-
ção com a sociedade. Por se tratar de
um processo artístico, ela absorve e
expressa o contexto social em que é
produzida, e assim, estabelece uma li-
gação entre a realidade social e o pro-
cesso de artístico de criação (ou recria-
ção) desta realidade.
Desta maneira, esta ligação vem
da expressão individual do autor que
retrata sua percepção da realidade e a
coloca à luz, de forma a aprofundar re-
flexões ligando-as à arte através do
trabalho com a linguagem e procedi-
mentos estéticos, que são componentes
que fazem o autor se apropriar do
mundo, e criar sua própria realidade.
Porém, por se tratar de um pro-
cesso de criação individual, como a li-
teratura pode retratar a realidade cole-
tiva e não ser somente uma percepção
pessoal?
O autor, como indivíduo, compar-
tilha das mesmas características da so-
ciedade em que vive, pois sua consci-
ência individual não é pura, ela é arbi
trária no sentido de que é construída
através da escolha e da identificação
pessoal com elementos que compõem
esta sociedade.
Assim, toda literatura está inti-
mamente ligada à sociedade através
desta relação que o autor, como indiví-
duo, estabelece com seu meio. Por isso,
se ele entender sua obra como um ins-
trumento crítico, como um veículo de
idéias, valores e opiniões, ela terá
grande importância para sua própria
sociedade.
Concluindo, é preciso entender a
literatura não como uma atividade au-
tônoma, mas sim como um processo
que está relacionado às condições ma-
teriais de sua produção. Não se trata de
negar a existência da criatividade ou
da ficcionalidade, mas sim considerá-
las parte da dinâmica social, e nesta
perspectiva, ter a literatura como parte
de um todo, feita para todos.
P Á G I N A 8
B O C A D O I N F E R N O
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PR e o contrato eu fiz um curso de especializa-
ção em literatura brasileira que houve aqui. Aí,
em 1977 eu comecei o Mestrado na USP. A gen-
te não conseguia ter licença para estudar, por-
que éramos professores novos e não havia um
número significativo de professores na casa.
Então, seria como dizer ―acabou de chegar e já
está querendo sair‖. Então, eu viajava todo final
de semana para São Paulo, assistia às aulas e
voltava para cá. Terminei o Mestrado em 1982.
Aí eu decidi que ia fazer o Doutorado quando
eu pudesse ter licença de fato, porque eu preci-
sava ter mais tempo para estudar. Além do quê,
não se dava licença para o doutorado sem que a
pessoa ―estivesse na vez‖. Por isso eu precisei
esperar bastante tempo para começar o Douto-
rado.
Quando comecei o Doutorado, a carreira era
muito diferente. Ter grau de doutor era quase
um ―coroamento‖. Não exatamente, mas quase
um ―final de carreira‖. Foi em 1989 que conse-
gui um afastamento para fazer Doutorado.
Quando retornei do Doutorado, abriu um con-
curso para Professor Titular, em 1995.
Mas nesse período entre o fim do Mes-
trado e o cargo de titular a senhora per-
manecia no mesmo cargo? Como era is-
so?
Nessa época, havia o plano de carreira. Entra-
vamos como auxiliar, depois assistente, adjunto
e associado, este último ainda não havia na é-
poca. Já o professor titular tem outro caráter. É
uma nova carreira, um novo cargo. Para ele, é
necessário ter uma nova tese, novo trabalho,
etc. É um outro estágio da profissão.
Dentro da sua pesquisa houve muita di-
ferença entre os objetos de estudo do
Mestrado e do Doutorado?
Sim, houve diferença. A minha primeira elei-
ção de pesquisa foi o Suplemento Literário d‘O
Estado de São Paulo. Isso foi uma espécie de
―tentativa de sair da província‖. Foi um cumprir
um ritual de leitura que eu não havia cumprido
por outras formas. Então, com o contato com
esse material, tive oportunidade de ler os críti-
cos que estavam escrevendo no suplemento li-
terário e sobre o que eles estavam escrevendo,
porque aí eu precisava ir atrás dos títulos dos
quais eles tratavam no suplemento. Então, foi
Para começar, gostaria que a senhora fa-
lasse um pouco sobre a sua formação e
sua carreira, desde o princípio até agora
ou adiante, se for o caso.
Esta história é longa... Desde a minha formação
até a minha carreira...
Eu sei que começa aqui mesmo na UFPR,
nao?
Sim, eu fiz a graduação aqui mesmo na UFPR,
no tempo em que a estrutura da Universidade
era outra. A divisão era em Faculdades e não Se-
tores, como é hoje. Fiz o curso de Letras, habili-
tação dupla em Português e Francês, era uma
licenciatura. Durante esse período já dava aulas,
naquela época não havia muita gente formada,
então a gente dava aula no que se chamava na
época de professor suplementarista no Estado,
que é esse contrato anual. Não havia concurso no
Estado. E enquanto eu estava fazendo o curso
aqui, eu dava aula na minha cidade, Lapa. Eu
viajava todo dia para cá. Assistia às aulas de ma-
nhã e à tarde e à noite eu dava aulas lá. Terminei
a faculdade. Não existia nem um curso de especi-
alização naquele momento aqui, quanto mais
mestrado e doutorado. E eu sabia que queria
continuar, fazer alguma coisa mais e sabia que
era na área de literatura. Pensava então em pro-
curar faculdades estaduais, naquela época existi-
am particulares também, mas poucas. Pensava
em dar aulas em uma faculdade estadual, de for-
ma que eu tivesse condições de continuar, mas
continuei dando aulas no colégio na Lapa, onde
eu já estava desde o primeiro ano.
Em 1974, logo que terminei o curso, fui convida-
da para participar do processo, que não era con-
curso, semelhante ao que é hoje aquele para
(professor) substituto em Literatura Brasileira.
Eu fui aprovada nesta seleção, mas demorava
muito para sair o contrato. Eu continuei a dar
aulas na Lapa até que, em julho de 1075, saiu o
meu contrato que, naquela época, se chamava
auxiliar de ensino.
Mas (o auxiliar de ensino) fazia a mesma
coisa que um professor, não é?
Sim! Dava aulas e trabalhava em pesquisa. Na
verdade um pouco na pesquisa dos outros pro-
fessores que já estavam na casa.
Bom, nesse intervalo entre a seleção para a UF-
uma ―entrada no universo não mais restrito do
universo local‖. Não vamos esquecer que a USP
era tida como o ―top‖ na área de Letras, mais es-
pecificamente de Literatura Brasileira. Não ne-
cessariamente de Letras porque em Lingüística
não era exatamente o caso. Então, o ‗ir fazer
mestrado em São Paulo e trabalhar com o suple-
mento literário d‘O Estado de São Paulo‘ signifi-
cou tomar contato com ―o restante do mundo‖.
Fiquei durante vários anos trabalhando nessa
pesquisa, foi um trabalho longo e acabou sendo
publicado depois que ganhei um prêmio do Ins-
tituto Nacional do Livro, que era a publicação do
trabalho. Então ele foi publicado, embora tenha
ficado como uma espécie de publicação clandes-
tina, porque era uma época de final de governo.
Saiu a publicação, mas como era do INL não era
colocada à venda, mas sim para distribuição em
bibliotecas. Houve uma tiragem de oitocentos
exemplares e eu não sei se foram de fato envia-
dos às bibliotecas ou para onde foi. As pessoas
que eu sei que têm esse trabalho são aquelas pa-
ra quem eu dei um exemplar.
Depois eu voltei para o que era o meu ponto de
partida de gosto pela literatura, que era a ficção
histórica. No projeto que fiz para o Doutorado,
definido um ano após o início da especialização,
em 1990, tratei da ficção histórica de Paraná,
Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Desde en-
tão, trabalho com esta ficção e outros recortes
entre produção literária e produção histórica,
especialmente a produção literária que dialoga
de perto com a História.
Uma pesquisa, aliás, interessantíssima...
Tanto eu acho que estou nela há vários anos e
continuo nela. Mas não é só o que existe para se
fazer em Literatura. A questão é que precisamos
nos conformar com os nossos limites. Nós não
conseguimos acompanhar a produção literária e
a produção teórica e crítica numa gama muito
ampla. Nós precisamos fazer recortes. E o recor-
te que eu resolvi fazer foi este.
No último semestre (de 2009) a senhora
ofertou disciplina que tratava da ficção de
Machado de Assis. Alguma consideração
especial, além é claro da „canonização‟ já
existente no país?
Veja, eu faço este trabalho com ficção histórica
dentro da ficção brasileira. Eu, como leitora de
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poesia não posso dizer que sou uma leitora profis-
sional. Eu leio, sim, e até trabalho em algumas dis-
ciplinas quando é preciso trabalhar com este pano-
rama, mas não é realmente a que eu me dedico.
Agora, para se trabalhar com a ficção histórica con-
temporânea, não se pode isolá-la da produção an-
terior, isto é, tenho que trabalhar com a história da
ficção no Brasil. E, na História da Ficção no Brasil,
eu destaco pelo menos três pontos fulcrais: José de
Alencar, Machado de Assis e Guimarães Rosa.
Fechou?
Não, não fechou. Acho que nunca se pode dizer
―fechou‖. Na verdade é um ―abre por aí‖. Eu não
posso me considerar uma professora razoável de
Literatura Brasileira sem ter lido o canônico e mais
alguns textos. Até mesmo para reconhecer por que
o canônico é canônico ou para reclamar por que ‗o
outro‘ não está no cânone. Afinal, podemos recla-
mar disso. E também para discutir a questão do
canônico. Então, precisamos necessariamente ter
uma pluralidade de leituras. Eu contemplei agora,
em especial, Machado e Guimarães Rosa, porque
por circunstâncias deste curso, da distribuição de
aulas e dos diferentes momentos, eu acabei traba-
lhando com disciplinas que tinham como objeto
estes dois autores. E acho que não se pode passar
por um curso de Letras sem ter lido minimamente
esses autores. Então periodicamente eu ofereço
disciplinas que trabalham com eles (autores).
Sobre as publicações, o primeiro livro foi
aquele que a senhora citou, das
“misteriosas oitocentas cópias desapareci-
das”...
Como você deve saber, faz parte do trabalho acadê-
mico publicar artigos em periódicos, revistas, capí-
tulos de livros. Isso faz parte das obrigações da car-
reira, afinal de contas (professores) somos pagos
para dar aulas e ser pesquisadores e a forma de
mostrarmos que estamos produzindo nas pesqui-
sas é publicando. Meu primeiro livro foi este de
que falei, que tem caráter documental, um levanta-
mento do suplemento literário d‘O Estado de São
Paulo desde 1956 até 1967, que é o período de du-
ração da primeira Direção do suplemento, do Pro-
fessor Décio de Almeida Prado. Depois disso, mi-
nha produção se encaminhou para a vertente da
ficção histórica. Publiquei um recorte do trabalho
que, originalmente foi o trabalho do Doutorado,
num concurso e este recebeu um prêmio e foi pu-
blicado, mas nesta forma de recorte. Publiquei
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B O C A D O I N F E R N O
também um estudo sobre as ficcionalizações sobre
o Contestado. E a produção mais recente é toda de
artigos, publicados em revistas especializadas da
área, eventualmente sobre um romance específico,
eventualmente reflexão a respeito de conjuntos,
estes sempre dentro da ficção histórica brasileira.
E sobre a ABRALIC? Como foi o processo
até a sua ascensão como presidente?
Eu sou associada da Associação Brasileira de Lite-
ratura Comparada desde sua fundação, há vinte e
cinco anos atrás, no Rio Grande do Sul, que desde
então não tem um caráter muito específico, muito
fechado de professores de Literatura Comparada.
Ela é uma associação que reúne professores de Li-
teratura de diferentes nacionalidades e de Teoria
da Literatura, isto é, as pessoas no país que refle-
tem sobre o fenômeno literário de forma sistemáti-
ca, profissional e acadêmica. Em alguns momentos
estive mais próxima da Associação quando da par-
ticipação em congressos, em outros não. Então não
é uma coisa que eu diga que esteve sempre no meu
horizonte.
Em 2009, haveria o Congresso Internacional e é
nele em que há a renovação da Diretoria. Nessa
época, algumas pessoas do cenário nacional dentro
da associação entraram em contato comigo comen-
tando da importância de fazer com que a diretoria
circulasse, porque é uma diretoria itinerante, e pa-
ra que saísse dos centros em que costumeiramente
esteve: Rio Grande do Sul, onde ela surgiu, o eixo
Rio-São Paulo, Belo Horizonte, Florianópolis e Sal-
vador. Então havia a intenção de tirar um pouco
desses lugares. Nos perguntaram se nós tínhamos
interesse em organizar aqui uma diretoria. Em
princípio, você sabe que é natural do ser humano
fugir um pouco do trabalho, né? Eu cheguei a apre-
sentar para o grupo de professores de estudos lite-
rários da Pós-Graduação. Nós consideramos as
vantagens, as desvantagens, discutimos um pouco
e achamos que não íamos encarar essa. Porque é
um trabalho estafante, a gente precisa abrir mão
do trabalho da pesquisa – da docência não pode-
mos deixar, claro – ou diminuir muito o trabalho
para conseguir dar conta, como o resto das ativida-
des administrativas que precisam ser realizadas
dentro da Universidade.
Veja, um chefe de Departamento ou um Coordena-
dor de Curso diminui sempre as suas atividades e
além do que, sacrifica também outros aspectos da
vida que não o profissional porque tem as exigên-
cias do tempo, das ocupações do trabalho. Então
num primeiro momento pensamos ―Não, vamos
deixar, de repente aparece outro grupo aí...‖ Pas-
sados alguns meses o assunto esfriou e nós estáva-
mos nos considerando meio liberados. Passado
esse tempo, recebi e-mails, telefonemas e contatos
de pessoas de fora voltando a insistir na importân-
cia de nós procurarmos aqui constituir uma dire-
toria e ver como é que iríamos nos postular nesse
encargo. Voltamos a discutir, todos nós bastante
preocupados em o que significava organizarmos
aqui este evento em termos de quantidade de tra-
balho e de como conseguiríamos faze-lo acontecer
aqui. Pesou para nós o argumento de que estamos
dentro de uma universidade federal, num curso de
Letras que tem graduação e pós graduação em
dois níveis (Mestrado e Doutorado) e estávamos
maduros para marcarmos algumas posições e que
nós, no Paraná, somos muito tímidos em apresen-
tar o nosso trabalho. Todo mundo conhece aquelas
piadinhas do Paraná... ―Num balde de caranguejos
não precisa por tampa porque não saímos de den-
tro e se um for sair o outro caranguejinho do fun-
do puxa pra dentro de volta pelo pé...‖ Então, tal-
vez precisássemos efetivamente de, além de traba-
lharmos nas pesquisas, além de procurarmos pu-
blicações, nós precisávamos assumir algumas po-
sições diante do cenário nacional. Foi assim que
acabamos constituindo esse grupo de trabalho
(mais que uma diretoria de associação, este é um
grupo de trabalho) e no Congresso Internacional
de 2009, apresentamos nossa candidatura . E es-
tamos trabalhando desde então. Excepcionalmen-
te esta gestão ficou para três anos (as outras eram
de dois anos), porque havia o interesse de desen-
contrar do Encontro Nacional da ANPOLL, que é a
Associação Nacional de Pós-Graduação em Lin-
güística e Letras, que acontecia sempre nos anos
pares e no mesmo mês que a nossa. E as pessoas
tinham não só a dificuldade pessoal de ir como
também de conseguir recursos das universidades e
das agencias de fomento.
Atualmente a ABRALIC fica nos anos ímpares e a
ANPOLL nos anos pares. E nos anos pares a A-
BRALIC faz também o que se chamava de Encon-
tro Regional, mas que não tem mais esse caráter
regional apenas, chamado agora de ―Encontro Pe-
queno‖ justamente por não ter o caráter do Encon-
tro Internacional.
P Á G I N A 1 1 E D I Ç Ã O N º 2 2
A B R I L D E 2 0 1 0
E como está o andamento do próximo en-
contro?
Será no final de abril, de 27 a 29. Nós fizemos o
projeto, apresentamos para as agências de fomen-
to, como CNPq, CAPES e Fundação Araucária. Em
alguns já temos o resultado, em outros temos algu-
mas exigências a satisfazer, especialmente com a
Fundação Araucária, como a documentação que
uma associação como a nossa não tem condições
de fornecer... Mas a programação do encontro (as
mesas, os convites, está tudo feito). Nós temos al-
guns convidados internacionais. As conferências de
abertura e de encerramento serão com professores
estrangeiros. Temos mais dois professores estran-
geiros participando das mesas.
O encontro será fundamentalmente composto por
duas conferências, mesas redondas sobre temas
específicos – quatro delas em torno de temas aca-
dêmicos e duas ‗técnicas‘, estas últimas sobre o
funcionamento da ABRALIC. Introduzimos uma
novidade, que não existia na ABRALIC: serão mi-
nistrados dois cursos pequenos, com quatro horas
e meia, com especialistas em Literatura Compara-
da. São cursos efetivamente voltados para a Litera-
tura Comparada e têm em vista o público discente
mesmo – alunos de graduação e de pós-graduação.
A dificuldade com a qual nos deparamos, mas não
esperávamos, é o problema do espaço. Gostaría-
mos que o Encontro fosse realizado no Complexo
da Reitoria, sede do Setor de Humanas, Letras e
Artes. No entanto, não conseguimos agenda para o
teatro da Reitoria e não temos nenhum outro audi-
tório suficientemente grande aqui perto. Em nome
disso, tivemos que limitar o número de participan-
tes para duzentas e cinqüenta pessoas. Apesar da
limitação já existente do teatro da Reitoria, ainda
sim não seria tão drástica como está. Alguns dos
anfiteatros estão em condições precárias e temos as
dificuldades estruturais do prédio.
E esta tem sido a maior dificuldade: encontrar um
espaço fora do Complexo da Reitoria, que fosse
próximo, para darmos mais conforto aos convida-
dos e participantes e para que nossos alunos não
sejam deslocados e não precisem passar por um
processo mais complicado de transporte.
Talvez seja interessante acrescentar que a decisão
que tivemos foi de fazer o evento nas dependências
do Hotel Alta Reggia, a trezentos metros da Reito-
ria. O hotel vai ceder espaço para realização do e-
vento.
Então ficou impossível realizar na Reitoria?
Pois é, não conseguimos. Talvez os cursos sejam rea-
lizados aqui. Depende muito da questão política. Nós
queremos muito fazer aqui, porque nós trabalhamos
na UFPR e é aqui que nós encontramos afinal a nos-
sa identidade, o nosso centro de trabalho é aqui. Es-
sa foi uma solução de forma a não haver um desloca-
mento. O hotel vai nos ceder um espaço, sem custos.
Então os convidados ficam acomodados lá. Esta foi a
solução ―menos pior‖ encontrada. A menos dificulto-
sa.
Não sei se seria interessante para a senhora
falar sobre isso: o fim das suas atividades na
graduação.
Fim das suas atividades na graduação é uma coisa
que as pessoas querem saber, né? Por enquanto não
parei, ainda. Penso em continuar... Olha, a questão é
a seguinte: é claro que é sempre tentador se pensar
em não precisar mais assistir reuniões, não precisar
mais fazer ―isso‖ nem fazer ―aquele outro‖, mas você
precisa construir o que você vai fazer. A minha opção
pelo trabalho como pesquisadora e como professora
eu considero que ainda não está vencida, no sentido
de ―é isso que eu gosto de fazer‖, ―é isso para que eu
me preparei‖
É isso que te faz bem, diríamos.
Eu espero que pelo menos não faça mal. Mas isso
significa alguns custos, no sentido de ―tem que fazer,
participar‖, tem que fazer algumas atividades. Den-
tro disso tem um conjunto de atividades que eu pen-
saria ―é muito melhor que eu não precisasse fazer‖.
Mas aí não tem escolha: ou se faz tudo ou não se faz
nada. E a gente também não pode entrar nesse de
ficar dizendo ―não me incomodem muito porque eu
vou me aposentar!‖. Eu procuro não entrar nessa
porque ela não é saudável pra mim e não é saudável
para o Departamento, não é saudável para ninguém.
Por enquanto estou procurando manter as atividades
num ritmo normal, não excessivo, mas normal.
Não está tão normal justamente por causa da
ABRALIC e tal...
É, não está tão normal por isso, mas não temos afi-
nal só um emprego, nós temos um trabalho. Aí não
dá pra escolher muito ―o que é mais gostosinho‖ de
fazer e deixar pra lá os outros, faz parte da carreira.
B O C A D O I N F E R N O
A sensação claustrofóbica é aterrori-
zante dentro de um elevador. O que
pode amedrontar mais do que uma
pequena caixa de ferro — quando não
de madeira! — puxada de baixo a cima
por correntes? A caixa é sempre, na
verdade, minúscula. O ranger da ma-
deira, os baques assustadores que a-
quilo dá quando começa ou termina
uma viagem, o hesitar da porta antes
de abrir quando o elevador chega no
destino — que parecem horas para a-
queles que anseiam por sair dali; nada
disso ajuda o claustrófobo a se sentir à
vontade.
Nada como os espelhos. É sempre tão
bom abrir a porta do elevador e ter a
sensação de que a parede não é o seu
fim; como se além daquele espaço pal-
pável tivesse um espaço muito maior
que — sem tentar encontrar uma ex-
plicação plausível — está, paradoxal-
mente, habitado por um você que não
parece estar tão amedrontado e passa
uma aura tranquilizadora.
Mas o elevador daquele prédio era di-
ferente; nele não se via nada de tran-
quilização. Sempre que entrava na-
quele cubículo, que se esperava que
fosse bem menor do que parecia, ele
tinha a sensação de se ter voltado ao
caos da cidade, dos carros, das pessoas
lá fora. A expectativa de tranquilidade
que ele buscava para assim que che-
gasse em casa era destruída pelos
espelhos que não só compunham a pa-
rede do fundo do elevador, oposta à
porta, mas também as duas paredes
laterais. Assim que entrava naquela
caixa, vários outros ele entravam jun-
to, refletidos infinitamente ao seu la-
do. Ele via as pessoas, via seus contor-
nos, mas não conseguia ver seus ros-
tos, que estavam sempre escondidos
por trás daquele rosto que, sempre
com olhos inseguros e curiosos, olha-
vam-lhe avidamente nos olhos. Estar
naquele elevador era-lhe sempre uma
tortura; ele não via a hora em que a
jornada acabasse e ele pudesse se ver
livre.
Naquele dia, em especial, ele até cogi-
tou subir pelas escadas, mas estava
cansado, queria acabar logo com aqui-
lo, queria logo chegar a serenidade do
lugar que, absolutamente, é seu. Assim
que atravessou o corredor da entra-
da, depois de ter cumprimentado o seu
Alceu, ele apertou o botão de chamar o
elevador e balbuciou uma melodia.
Cantava uma música de tom alegre,
porque sabia que o porteiro psicanali-
sava cada um de seus movimentos e sa-
bia que todo mundo ficaria sabendo se
o fofoqueiro do prédio descobrisse que
ele estava ali, na verdade, tremendo de
medo, querendo por tudo não entrar
naquela caixa de tortura.
Entrou no elevador e tentou não focar
no que via; assim que a porta se fechou
e ele tinha certeza de que o porteiro
não mais o via, ele cerrou os olhos com
força. Pensou nos tempos de criança,
naquela tarde ensolarada em que toda
aquela turma de colegas de classe joga-
vam bola depois da aula; pensou no
quanto doeu aquela canelada que certa
vez deu na trave e no quanto o barulho
das correntes se assemelhava com o
som que reverberou no oco da trave e
no quanto odiou aquele monte de cri-
anças rindo e de nenhum modo se com-
padecendo de sua dor. O balançar do
chão o deixava desequilibrado, como se
sentia quando estava dentro de um
ônibus, fez o que pôde para enganar a
si mesmo e fingir que aquele monte de
pessoas em seu redor eram passagei-
ros do mesmo ônibus e que não eram
infinitos — mesmo sendo muito nu-
SU
B-R
EA
LID
AD
E
P Á G I N A 1 2
Por Willian Pinheiro
A B R I L D E 2 0 1 0
merosos, capazes de lotar por completo
o ônibus, elas são aquele número de
pessoas e não passa disso. Foi pensar
nisso que o fez não perder a sanidade
ali dentro.
Conseguiu sair de lá são e salvo. Saiu
balbuciando aquela mesma música —
só que desta vez sem o sorriso forçado.
O corredor do terceiro andar estava va-
zio; ele não teve a curiosidade de ver se
havia alguém, nunca; ele apenas saía
do elevador e seguia em linha reta à
porta de seu apartamento.
Dentro de seu apartamento, por todos
os cantos, havia letras coloridas de di-
ferentes cores, tamanhos e materiais;
grudadas nas paredes, no teto, por so-
bre os móveis, coladas às lâmpadas;
do tamanho de moedas, no formato de
sapatos, com meio metro de compri-
mento. Aquele era um lugar não muito
grande; lá havia poucos móveis, justa-
mente por não caber muita coisa; para
poder chegar onde queria lá dentro ele
precisava se esgueirar por entre todo
aquele lixo entulhado. Mas era ali que
P Á G I N A 1 3 E D I Ç Ã O N º 2 2
ele se sentia à vontade. Naquele lugar
onde mal cabia ele, onde ele podia pôr
as coisinhas que lhe agradavam — e,
devido à sua filosofia, agradavam-lhe
por completo: ele não precisava de
muito pra se sentir satisfeito.
No canto, onde era o que se podia se
considerar uma sala de estar, ele se
sentou no chão, onde não cabia um so-
fá, empurrando aquele monte de letras
para longe de si. Acendeu um cigarro,
pegou o controle remoto e ligou a tele-
visão; sobre sua cabeça, a janela semi-
aberta, pela qual jamais poderia ele
nem ver a cidade lá embaixo, engolia
a fumaça de seu cigarro e guspia pra
dentro da sala todos os barulhos lá de
fora. Em meio ao barulho das buzinas, dos
incessantes motores, do grito inquietante
da sirene da ambulância que se aproximava
de longe, ele tentava ouvir a televisão.
Ali mesmo, no chão, enquanto via o te-
lejornal, ele dormiu. No seu rosto, um
sorriso; ele sonhava com as luzes da
cidade: dirigindo seu carro, ele via os
prédios que completavam o horizonte.
Ilustração: Luana do Valle
[sub-realidade.blogspot.com]
P Á G I N A 1 4
ri-sonho
B O C A D O I N F E R N O
Por Helder Santana
AR
TE
& M
AN
HA
Ele não sabia rir. Não sei, não sabe,
não sabia. Parecia ter nascido sem sa-
ber. Talvez fosse algum trauma de in-
fância, medo de palhaço, vergonha de
sua dentadura torta e amarelada. Tal-
vez sufocamento nos tempos de útero,
carência de oxigenação de algum en-
dereço cerebral. Na verdade não sabia
de onde vinha, ou mesmo se vinha de
algum lugar. Sabia que não sabia.
Simplesmente não conseguia rir.
Decerto não aprendera, não fora esti-
mulado a isso. Sua família, é preciso
dizer, não era muito dada a risos; a
gargalhada era espécime raro e o sor-
riso um máximo denominador co-
mum. E, não raro, mesmo os sorrisos
que vinham daquela família, costuma-
vam se apresentar em bocas fechadas,
fachadas. Esboços de riso. Disfarces.
Talvez faltasse algum gene hilariante
naquela constelação familiar.
Tinham aqueles amigos que não se
conformavam com sua ausência de
riso. Não concebiam uma existência
que nunca experimentasse rir. Então
tentavam de tudo. Casualidades, mi-
rabolâncias, piadas boas, piadas ruins,
sustos, saltos e sobressaltos, truques,
tiques e traques, tudo para lhe assaltar
um milagroso riso desprevenido. Cla-
ro que sempre tinha aquele que tenta-
va lhe aplicar as famigeradas cosqui-
nhas. As cosquinhas! Será que tinha
coisa mais incompreensível para ele
do que as cosquinhas? Ele entendia
menos as cosquinhas do que o próprio
riso. Aqueles apertos inconvenientes,
intrometidos e dolorosos naqueles
lugares de sempre... só poderia ser
piada de mal gosto mesmo. Como al-
guém que se ofende com o sexo antes
de descobri-lo prazer.
Por vezes, seu humor era facilmente
confundido com ironia. E sua ironia,
ahhh!, adorava aquele campo fértil de
expressões comedidas.
Alguns garantiam que, estando ele
alegre, ficava com cara de paisagem.
Mas parecia mesmo era compensar o
riso com tiques próprios de corpo. Al-
guns diziam que seu riso era toda vez
que seu nariz se mexia. Outros jura-
vam que ria era rebolando, chacoa-
lhando todo o quadro do quadril. Co-
mo se o riso, desorientado, quisesse
sair pelo buraquinho do cu. Talvez
como um cachorro que sorri pelo ra-
bo, entre abanos e abraços. O riso de-
ve ser mesmo isso: alguma coisa que
não mais se comporta e escapa. Certa-
mente em parentesco com o choro.
há quem diga que o gene do riso se en-
contre no bairro das expressões, ali no
hemisfério tropical do córtex sensorioso,
sendo o Riso a esquina da rua Harmoni-
a com a travessa do Ridículo. era co-
mum alguém usar o Ridículo para che-
gar à Harmonia passando pelo Riso.
numa dada geração da família, os mo-
radores da travessa do Ridículo devem
ter ridicularizado aquela rua tão–tão
harmoniosa. quem vivia na Harmonia se
ofendeu e passou a não mais visitar o
Ridículo, inutilizando a esquina do Riso.
faz carinho que eu gosto mais!
será que consigo rir de tanto chorar?
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P Á G I N A 1 5
Às vezes, ele tentava rir e se concen-
trava nisso. Virava exercício, escola,
propósito. Criava métodos. Geralmen-
te, quando tentava rir, assoprava. Era
mesmo um desajeitado no riso. Então
tentava cenicamente, ensaiava atenta-
mente as cenas. Chegou a elaborar o
que chamava de riso em apuros. E por
vezes enganava até os mais apurados.
Aprendeu mesmo a simular os mais
diversos risos, cada um vestido de u-
ma ocasião. Risos circunstanciais, o-
portunistas. Providenciais, convenien-
tes. O problema é que riso disfarçado,
quando detectado, acaba mais chate-
ando do que contagiando. Começou a
se convencer que era melhor se vestir
de silêncio em vez do riso forçar. Ficar
falando é que não poderia: já tinha
aprendido que riso costuma vir em
lugar de pausa.
Mas ele não era infeliz, não. Ao con-
trário, e no tocante oscilatório da roda
-vida, considerava-se pessoa dita F E
L I Z. Conseguia misturar humor com
naturalidade e fazia, da seriedade, sua
eterna máscara cômica.
Um dia começou a perceber que esta-
va ficando cego.
E quando a cegueira pousou-lhe por
completo, finalmente descobriu:
Ria pelos olhos.
ri-SOS
shhh: não tá vendo que eu tô rindo?
mas ele não pára de falar sério!
Por Aguinaldo Roberto Moreira
* Dedicado aos colegas “japas” e ao Edson, que é carteiro.
E r a s e u d i a d e d e s c a n s o ,
p e g o u s u a b i c i c l e t a , s a i u , f o i p e s c a r
C o n h e c e r a t o d o s o s c a m i n h o s
q u e n ã o s a b e r i a v o l t a r
números sem Casas
casas sem Ruas
ruas sem Cidade
cidade sem Pessoas
pessoas sem Rostos
rostos sem Vozes
vozes sem Palavras
palavras sem Sentido
e o Silêncio Insuportável
de Todos os Templos
A Memória nunca deu
um dia de folga
a o c a r t e i r o d e H i r o x i m a .
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B O C A D O I N F E R N O
Tic Tac A
RT
E &
MA
NH
A
Por Daiane Pereira Rodrigues
Tic tac. Os cachorros ladram ao longe, a ga-
roa embala o sonho de alguém. O apito do
guarda noturno ecoa. Tic tac. Deitada na
cama ela sonha com aquele mundo real-
maravilhoso das crônicas de viagem. Ela
esteve lá, descobrindo as maravilhas de um
novo mundo. Lembranças, impressões e
sensações voltando à mente. Tic tac. Mes-
mo continente e realidades tão distintas.
Não foi com Sevilla que ela comparou toda
uma cidade, foi com a Curitiba dos farois da
XV. Tic tac. Havia dormido mal durante
toda a viagem. O motorista a sacudiu ―você
tem que descer aqui‖. Ambiente escuro, pe-
numbra e pó, madeira velha e uma música
em língua estranha ao fundo. Tic tac - mal-
dito relógio que não deixa dormir. Aqui não
se come, mas estou com fome – pensou na-
quela manhã. Hoje em dia já diria che
vare‘a. Tic tac. Podia levantar agora e aque-
cer o leite, com essa chuvinha não há reló-
gio que resista. Tentou comprar duas empa-
nadas naquela manhã, su. Nunca soube se o
podia chamar assim: Grande Senhor. Leu
num livro de Roa Bastos. Queria ter dito
―rohaihu, che karai guasu‖
mas mal conseguia dizer ―eu
te amo‖, não sabia o que sen-
tia. Tic tac. Agora ainda é
meia-noite na cidade de José
Assunção Flores e ela tem
saudade, ela quer ouvir aque-
las canções que embalaram
seu amor impossível. Não,
não gosta de falar de amor,
prefere ouvir as canções da
sua aventura no exterior, da
sua relação passageira pela
hispano-américa. Echar de
menos, extrañar, não sabia ao
certo o que era em castelha-
no. Era simplesmente a vontade de dizer
―che raku eterei nderehe‖ e de sentir-se ple-
na. Tic tac, talvez não seja o relógio que não
a deixe dormir. Quer olhar a bahia de As-
sunção más allá de la Chacarita, sentir o
cheiro do verde e o ruido dos pássaros, ver
os índios na rua vendendo seu artesanato
colorido, ao lado dos vendedores de cds pi-
ratas. Agora não tem a bahia, tem o Jardim
Botânico, o Museu espanhol meio truncado,
insegurança, medo. Não entendia aquela
prosódia guarani da velha banguela. Pelo
menos o banheiro era limpo, e a cozinha?
Será que era? Tic tac. Ainda ouve os cães.
Havia muito ovo nas empanadas que devi-
am ser de frango. Quase deu a quantia erra-
da de dinheiro por esses pastéis de ovo, não
se habituara ao cambio, talvez nunca apren-
desse a cambiar, sempre mudando de um
país a outro. Tic tac, a moto do guarda passa
cuidadosamente, mas ela não se sente pro-
tegida. Protegida ela se sentia nos braços do
seu karai gua-Curitiba, seu Oscar Nieme-
yer . Ontem ela quis ir ao museu. Mas de
repente sentiu que não era ali onde queria
estar, era no Hotel del Lago em San Bernar-
dino, era na velha casinha de Casaccia que
agora era um hotelito em Areguá, cenário
daquele romance que gostou tanto. Leu na
cidade de Espinoza, pode percorrer os mes-
mos caminhos que Ramón Fleitas. Talvez
também estivesse sob o efeito de alguma
babosa, veneno cruel, fofoca infundada,
conservadorismos que a prendiam num mu-
ro de medo e incertezas. Antiga e nova aris-
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P Á G I N A 1 7
tocracias do país, isso disseram os professo-
res. Tanto ficou por conhecer dessas cida-
des... Tic tac. Já não ouve os latidos, mas o
relógio a atormenta, quer se concentrar no
barulho da chuva para dormir. É inútil. Tic
tac. Haverá aberto o balcão dos seus olhos
de gata? Se recusa a pensar que foi só um
amor de verão, nem era verão... Tic tac, já
passam das 2h. O apito está tão distante a-
gora, em alguns minutos estará mais alto de
novo, toda noite é a mesma coisa. Todo dia
tem sido a mesma coisa. ―Estoy aburrida‖
diria, esta vida tekorei não a deixa feliz. Pre-
cisa de ação, só funciona fazendo mil coisas
ao mesmo tempo. Um paraguaio talvez dis-
sesse ―che kueraima‖ para esse sentimento
de chateação. Nunca pensou que a melhor
tradução fora ―estou chateada‖ – nós fica-
mos chateadas quando estamos tristes com
alguma coisa, pensava. Está ansiosa. A pon-
to de só perceber o tic tac do relógio e os
ruidos noturnos. Lembra o que seus amigos
diziam: ―como tiembras, mi vida. Tenés que
ir a un médico‖, ―lo que admiro en vos es tu
capacidad de autorreflexión‖, ―no se puede
hablar de algo si uno no lo tiene aclarado‖,
―mentime na, decime na que me amás, por
favor‖. Ela dizia, mas nunca soube se estava
mentindo. Tanta coisa em tão pouco tempo.
Tic tac, ela pode sair e ver o céu, mas com
essa chuva não poderá ver a lua. A essa hora
deve fazer uns 24°C do outro lado da fron-
teira, em plena madrugada, ela estaria ven-
do a lua cheia, sentindo o perfume dos jas-
mins. Esse sempre será o cheiro de Assun-
ção para ela, e também aquele cheiro de uri-
na, de fossa, das esquinas imundas aos arre-
dores de casa. Uma vez choveu forte por lá.
Tic tac. De repente a luz apagou, os vidros
quebraram, árvores e postes cairam. Tic tac.
Nunca sentiu tanto medo. Tic. Nunca se di-
vertiu tanto. Tac. A vida realmente não
precisa ser perfeita, pensa esquecendo o re-
lógio. Molhou os pés na água do lixo naque-
la noite em que ganhou o apodo de musa
das cerejeiras. Cerejeiras? Por que cerejas?
Não gostava muito de cerejas. Continua a
chuva. Tic tac. o capítulo que sempre lhe
pareceu a descrição perfeita da cidade vem à
mente. Tic tac. ―no había casi tránsito‖. Tic
tac. ―Ardían las piedras de las calles y las
paredes de los edificios‖ Tic. ―Un viento
norte caliente se encajonaba en las calles y
azotaba el rostro de los pocos trauseúntes
con sus mil lenguas de fuego‖ tac. A cidade
de fato está um forno, nunca se sentiu tão
personagem como neste instante, é mais um
transeunte sofrendo com as línguas de fogo
daquele vento. ―Parece que estou sob um
secador de cabelo‖ diz rindo de si mesma
enquanto sente falta do clima curitibano. O
que estava pensando sobre o clima? Chove
há dias, nem parece verão, mas é tão gosto-
so dormir com chuva, e poder estar tranqui-
la, sem excessos. Um clima perfeito. Sempre
pensou assim. Mas agora, tic tac, tic tac, tic
tac, conta as horas para voltar ao calor e ar-
der naquele laranjal tic tac tic tac tic... O re-
lógio vai sumindo no horizonte do lago Ypa-
carai... Ela já não controla seus sonhos.
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B O C A D O I N F E R N O
AR
TE
&
M
AN
HA
Andando pela casa de manhã ce-
do, me chamou a atenção um pássa-
ro de porcelana em cima da estante.
Sabia que não era algo novo não só
por uma vaga força das minhas remi-
niscências, que reconheciam a peculi-
aridade do objeto como também
pelo seu péssimo aspecto.
Quando eu tinha vinte, tinha pa-
vor de coisas velhas, de pessoas ve-
lhas. Tanto umas como as outras tra-
tavam de envelhecer muito rápido,
buscando o fim como algo natural. Eu
não queria uma vida normal aos vinte.
Queria viajar, conhecer muitas coisas
e lugares e jamais envelhecer mental-
mente. A vida pra mim era o elixir da
alma. Viver me dava forças pra viver.
Mesmo que isso não fosse sempre pos-
to em prática. Não queria que filhos
estragassem tudo, meu corpo, minha
juventude e meu humor. Nunca gostei
de crianças, mesmo quando ainda era
uma. Gostava mesmo do diferente.
Um dia vi um cachorro lindo na TV e
decidi que queria ter um. Ele era ma-
ravilhoso, uma graça. Olhos de coita-
dinho, patas curtas, desengonçado e
de orelhas tortas, achei fantástico. Co-
mecei a pensar em quais coisas eu de-
veria fazer para que um dia tivesse um
bicho daquele. Vi que deveria ter u-
ma casa. Um bom espaço para o ca-
chorro caminhar, pular, brincar, fazer
besteiras e cocozinho. Tinha que ter
grama para que quando eu chegasse
me jogasse com ele nela. Mas aos vin-
te eu morava de aluguel e não ganhava
muito bem. Não tinha feito ainda nada
do que eu queria. Então no dia se-
guinte comecei a estudar. Estudava
oito horas por dia. Fiz isso por três
anos com intenções de entrar em al-
gum banco ou coisa assim. Eu ia to-
dos os dias na biblioteca pública. Era
bem limpa e completa. Eu almoçava
sempre alguma coisa na rua e voltava
para lá até a hora de trabalhar. Um
dia eu estava voltando pra casa e um
homem me parou umas duas quadras
depois da avenida. Falou que estava
precisando de dinheiro pra alguma
coisa da qual não me lembro. Mas na-
quela hora eu não sabia que não era
nada disso e ele queria possuir meu
corpo naquela noite. Ele me derrubou
no chão quando eu me distraí. Não
sabia o que fazer. Ele me apertou forte
no chão com o peso do seu corpo e or-
denou que eu não gritasse. Eu não
gritei. Ele separou as minhas pernas e
me possuiu violentamente no chão, eu
mordia seu ombro com força numa
junção embaraçosa de dor e prazer e
ele terminou o que queria fazer. Le-
vantou-se sentindo seu ombro san-
grar e viu meus dentes ainda serrados
vermelhos de seu sangue. Por fim,
ele me deu um soco no nariz com toda
força e eu desmaiei sem ter tempo de
pedir seu telefone.
Passaram-se dois meses e eu en-
trei num banco estadual. Trabalhei
duro e criei meu filho até seus vinte
sob meu lar. Um confortável lar que
ao invés de um cachorro havia dois
gatos. Sempre trabalhei demais e eu e
meu filho nunca conversávamos
muito. Ele saía sempre e eu dormia
sempre. Num dia das mães, ele não
saiu. Eu não dormi. Fizemos sexo a
noite toda como eu nunca havia visto
antes. Ele explodia de prazer várias
vezes e foi violento como o pai. Eu sa-
bia que tinha um filho saudável. Ao
final, ao ver o meu êxtase de prazer,
permaneceu deitado sobre mim por
alguns minutos em silêncio. Levantou
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A B R I L D E 2 0 1 0
Cúmulo nulo Por Luiz Seman
Esta que embota e perde
Faz o fogo que arde
Ser arte que, em parte
Se anula e cede.
Ao ouvi-la e tê-la
Absurda e muda
De lugar em fuga
Por não ser, vê-la.
Por estar no escuro
Se volta ao cúmulo
Do infinito nulo
De seu buraco negro.
Já foi tão bela
Ora nem pode,
Sem querer explode,
É difícil lê-la.
Vá, cínica excreção
Ter seu sucesso sujo
Enquanto eu me encontro
Em teu sinistro chão.
Por Vinícius da Cruz dos Santos
-se, tirou um pacote pardo da mo-
chila e deixou sobre a penteadei-
ra. Me olhou mais alguns instan-
tes até deixar soltar uma lágrima.
Depois, saiu. Não entendo por que
os homens são tão complicados e
frágeis. Abri o pacote e vi aquele
pássaro horroroso dentro dele.
era verde e pintado à mão. Eu
pensei ser um presente, de péssi-
mo gosto. Ouvi um barulho gran-
de na sala e me vesti. Pensei ser
alguma coisa que o gato derruba-
ra. Encontrei inerte no chão da
sala o corpo do meu filho imerso
numa poça de sangue, manchando
o assoalho com o fluído do seu
caráter. Os homens realmente
são complicados e frágeis.
(25/11/2009)
P Á G I N A 2 0 E D I Ç Ã O N º 2 2
Expediente
A menina de uniforme Por Mylle Silva
Tão igual a qualquer uma,
estava sentada na escadaria de
uma velha casa, uma menina
de uniforme. Mala nas costas,
rabo de cavalo , l ivro velho na
m ã o . B r o c h u r a d o b r a d a a o
meio, l ia a página, v irava da
par para a ímpar num misto de
t é d i o e i n t e r e s s e . V i v i a a
espera divert ida, o bom l ivro
na s i tuação ruim. Fino era,
provável ser infant o -juveni l .
Calça azul e camis eta branca,
tantas outras passam mas só
ela s entou -se para ler . Já sa-
bia ler , grande era, devia saber
sonhar também. Livro amassa-
do, páginas amareladas, talvez
meladas de café por alguém.
Num mundo qualquer , talvez
um amor platônico, infant i l
e proibido. Talvez correndo
atrás de um coelho e dando de
c a r a c o m u m c h a p e l e i r o
maluco.
A v ida longe da sombra fresca
era um mistér io , mal se sabia
andar fora dal i . Enquanto l ia ,
tão igual era única e bela como
uma fruta nova, como um l ivro
que se dá sem vergonha. Era
ela s im, fora do seu corpo,
inteira.
O conteúdo expresso nos textos publicados não corresponde necessariamente à
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Responsável José Olivir de Freitas Junior
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Conselho Editorial
Centro Acadêmico de Letras
Artigos/Entrevistas Aguinaldo Roberto Moreira José Olivir de Freitas Junior Julio Cezar Marques da Silva
Professor Paulo Soethe Teurra Vailatti
Textos Aguinaldo Roberto Moreira Daiane Pereira Rodrigues
Helder Santana Luiz Seman Mylle Silva
Vinícius da Cruz dos Santos Willian Pinheiro
Agradecimento
Alzira Isabel Steckel André de Medeiros Biora Araújo Professora Marilene Weinhardt
Silmara Regina Lenz
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