Bobbio - Os Problemas Fundamentais Do Direito No Pens Amen To de Kant

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  • 5/10/2018 Bobbio - Os Problemas Fundamentais Do Direito No Pens Amen To de Kant

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    IIOs PROBLEMAS FUNDAMENTAlSDO DIREITO

    NO PENSAMENTO DE K A N T

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    1NOTA PREVIA

    A introducao hist6rica teve dois fins:1) conhecer alguns momentos fundamentais da formacao

    do Estado liberal e democratico, do qual a doutrina juri-dica de Kant e uma das manifestacoes mais altas e signi-ficativas:

    2) fixar alguns conceitos fundamentais da teoria politica ejuridica dos jusnaturalistas, cuja compreensao e impres-cindivel para entender 0 discurso politico e juridico deKant.

    Podemos enfrentar agora com experiencia maior os proble-mas da filosofia do direito de Kant. 0 metodo da nossa exposi-~ao sera essencialmente exegetico: tentaremos entender Kantatraves de uma leitura atenta do texto. Daremos entao impor-tancia particular a escolha dos trechos relevantes que permiti-rao uma exposicao que retina possivelmente os dois requisitosda c1areza e da fidelidade.o objeto principal do nosso estudo sera a Metajisica doscostumes (1797), obra dividida em duas partes intituladas res-pectivamente "Doutrina do direito" e "Doutrina da virtude"; exa-minaremos mais detidamente a primeira dessas duas partes.Outras duas obras de Kant podem ser consideradas, a primeiracomo introducao, a segunda como apendice. Como introducaoe necessario 0conhecimento da Fundameruacdo da metafisica

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    dos costumes (1785), na qual Kant expoe sua famosa teoria damoral do dever; como apendice e necessario 0conhecimentodo ensaio, nao menos notavel, Sobre a paz perpetua (1795), emque Kant exp6e seu projeto para a solucao das controversiasinternacionais.

    Entre as outras obras menores que pensamos uteis para osfins de ilustrar0pensamento politico e jurfdico de Kant, e asquais iremos entao nos referir principalmente na ultima parte,estao os escritos chamados de Filosofia da Hist6ria, porque nelesKant expoe suas ideias sobre as leis de desenvolvimento dahumanidade e sobre a direcao do progresso humano. Sao eles:

    2o QUE E A METAFISICA DOSCOSTUMES

    1) ideia de uma bistoria universal doponto de vista cosmo-polita (1784);

    2) resposta a questdo: 0que e 0Iluminismo? (1784);3) conjecturas sobre a origem da Hist6ria (1786);4) sobre 0dito comum: isso pode estar certo em teoria, mas

    ruio vale na prdtica (1793);5) se 0genera humano se encontra em progresso continuo

    em direcdo ao melhor (1798).

    Para entender 0 que Kant quer dizer com 'metaffsica doscostumes', sera oportuno analisar brevemente 0significado de'metafisica' e de 'costumes'.

    Como 'costumes' em geral Kant entende toda aquela com-plexidade de regras de conduta ou de leis (no sentido maisgeral da palavra) que disciplinam a acao do homem como serlivre. 0 homem como ser analisavel do ponto de vista fenome-nol6gico esta submetido as leis da natureza, que regulam avida de todos os outros seres naturais, mas como ser livre,pertencente ao mundo inteligivel,0homem foge das leis natu-rais e adapta suas acoes a uma forma diferente de Iegislacao: aIegislacao moral, que da origem ao mundo dos costumes, emcontraposicao ao mundo natural, como mundo da hist6ria hu-mana ou da civilizacao ou da cultura (como se diria hoje) emcontraposicao ao mundo da natureza. A palavra 'costume' (emalernao Sate), inclusive, corresponde ao latim mos e ao gregoethos, dos quais derivam tanto moral quanto etica, que indi-cam de fato a doutrina da conduta humana, em contraposicaoa doutrina da natureza, ou fisica.

    Exatamente no inicio da Fundamentacdo, Kant aceita atriparticao classics da filosofia em logica, ou estudo das rela-coes meramente formais entre os entes, etica, ou estudo dosoutros entes naturais, e fisica, ou estudo do mundo natural edas leis que 0regulam:

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    "Afilosofia grega antiga se dividia em tres ciencias: aFisica, a Ericae a Logica.Essadivisao e perfeitamente coe-rente com a natureza das coisas (...) cada conhecimentoracional, ou e material, e refere-se a urn objeto; ou e for-mal, e ocupa-se unicamente da forma do intelecto e darazao ou das regras do pensamento em geral, sem distin-cao de objeto. A filosofia formal chama-se Logica, a filoso-fia material, ao inves, que trata de objetos determinados edas leis as quais eles estao submetidos, divide-se por suavez em duas. Porque essas leis sao: ou as leis da nature-za ou as leis da liberdade. A ciencia que se ocupa dasprimeiras chama-se Fisica, a que se ocupa das segundas ea Etica; aquela e tambem chamada filosofia natural, esta,filosofia moral" (Edir;aoParavia, trad. Vidari, p. 1).*

    das leis que regulam a conduta humana sob urn ponto de vistameramente raciona!.

    Querendo referir-nos a textos de Kant, uma das definicoesmais claras de metafisica e a que se encontra nas primeiraspaginas dos Prolegomenos a toda metafisica futura que queiraapresentar-se como ciencia. "Emprimeiro lugar, no que diz res-peito as fontes do saber metafisico, esta implicito nao poderemser fontes ernpiricas, os princfpios nao devem, portanto, serderivados da experiencia, porque 0 saber metafisico e semprenao-fisico, razao pela qual nem a experiencia exterior, que e afonte da ffsica verdadeira, nem a interior, que e base da psico-logia empirica, podem servir como fundamento.

    "Este e urn saber a priori, derivado do intelecto puro e darazao pura; nesse caso, nao se diferenciaria em nada da mate-matica pura, chama-Io-ei, portanto, saber filosofico puro" (Edi-cao Paravia, trad. Madinetti, p. 182 n).Se nos referimos agora a esse conceito de 'metafisica' como'saber apriori' , derivado da razao pura, ou aquele objeto carac-terfstico do saber filosofico que sao os 'costumes', podemos en-tender claramente 0trecho seguinte da Fundamentacdo, decisi-vo para os fins do problema que colocamos neste paragrafo:

    Disso resulta claro que, quando Kant fala de 'costumes', pre-tende referir-se ao objeto tradicional da etica ou filosofia mo-ral distinta da logica e da fisica ou filosofia natura!'

    'Para compreender 0 termo 'metafisica', e preciso introduziruma distincao ulterior. Kant distingue uma parte empirica dequalquer forma de conhecimento e uma parte niio-empirica ouracional. Somente esta segunda pode receber 0nome de'metaffsica'. E,porque tal distincao vale tanto para a ffsicaquantapara a etica (mas nao vale para a logica, que nao pode ter umaparte empfrica tratando unicamente de relacoes formals), tere-mos uma ffsicaernpirica e uma fisica racional, uma etica empfricae uma etica racional, ou, em outras palavras, uma fisica da na-tureza perto de uma metafisica da natureza, assim como umaffsica dos costumes. Porque a logica nao conhece tal distincao,as partes constitutivas da filosofiaresultam ser cinco. Ametafisicados costumes e uma dessas cinco partes, ou seja, e 0estudo

    "Uma vez que minhas buscas visam especialmente afilosofia moral, limito, nestes termos estritos, a questaoacima exposta: se nao se pensa que seria da maior ne-cessidade elaborar finalmente uma Filosofia moral pura,completamente livre de tudo aquilo que e empirico e quepertence a antropologia, porque a necessidade da exis-tencia de uma tal filosofia decorre de maneira evidenteda ideia comum do dever e das leis morais. Cada urndeve admitir que uma lei se deve valer moralmente, ouseja, como fundamento de uma obrigacao, precisa impli-car em si uma necessidade absoluta; precisa que este im-perativo: 'Voce nao deve mentir', nao tenha valor somen-Traducao indireta do italiano, dos lexlos de Kant (N. T.).

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    te para os homens, deixando para outros seres racionaisa faculdade de nao leva-lo em conta, e assim e tarnbernpara todas as outras leis morais propriamente ditas. Econsequenternente 0principia da obrigacdo ndo deue serbuscado aqui na natureza do homem, nem nas circuns-tdncias nas quais ele e colocado neste mundo, mas a priorie.xclusivamente nos conceitos da razdo pura' (p, 3).

    Resta observar que a mesma diferenca existente entremetaffsica dos costumes e antropologia, no ambito da moral,existe tarnbem entre metafisica da natureza e fisicapropriamentedita, no ambito do estudo da natureza. E0proprio Kant escre-veu, paralelamente a Metafisica dos costumes, obra da qual nosocuparemos no nosso curso, uma obra intitulada Principiosmetafisicos da ciencia da natureza (1786), que completa 0 sis-tema da metaffsica ou doutrina racional da realidade.

    E claro entao que somente uma metafisica dos costumes,como estudo dos principios racionais a priori da nossa condu-ta, pode satisfazer a exigencia de expor os fundamentos dadoutrina moral. Disso segue que 0estudo empirico nao e fun-damento do estudo racional, mas 0racional, fundamento doempirico. Kant chamou 0estudo empirico da conduta moral deantropologia pragmatica ou, simplesmente, antropologia; e elemesmo desenvolveu essa busca numa obra intitulada de fatoAntropologia pragmdtica, do mesmo periodo da Metafisica doscostumes(1796-97). Ede fato na Introducao desta segunda obraesclarece a distincao entre metafisica dos costumes e antropolo-gia, com estas palavras:

    "0 oposto de uma metafisica dos costumes, qual ou-tro membro da divisao da filosofia pratica em geral, seriaa antropologia moral, que, porern, deve indicar somenteas condicoes subjetivas da natureza humana favoraveisou contrarias ao cumprimento das leis da metafisica, porexemplo os meios de produzir, difundir e reforcar os prin-cipios fundamentais morais c . . . ) e outras prescricoes se-melhantes e doutrinas que se baseiam na experiencia.

    "Essa segunda parte da filosofia pratica e indispensa-vel, mas ruio deve absolutamente preceder a primeira ouser conjundida com eia, porque entao teriamos 0perigode propor leis morais falsas ou pelo menos indulgentesdemais ..." (p, 392).

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    3 como born sem restricao, a nao ser somente uma boavontade" (p. 9).MORALIDADE E LEGALIDADE Por 'boa vontade' Kant entende aquela vontade que naoesta determinada por atitude alguma e por calculo interessado

    algum, mas somente pelo respeito ao dever.Portanto, sao tres os requisitos fundamentais da acao moral:

    N0ambito da conduta humana regulada pelas leis mo-rais, que Kant chama leis da liberdade, em contraposicao asleis da necessidade, que regulam os fenomenos do universonatural, 0primeiro e mais grave problema a ser enfrentado eo da distincao entre duas formas diversas de legislacao e deacoes. quer dizer, a distincao entre legislacdo moral propria-mente dita e legislacdo juridica, ou entre aciio moral e acdojuridica. Trata-se do classico problema da distincao entre morale direito, que e geralmente considerado como problema pre-liminar de qualquer filosofia do direito. Na obra de Kant en-contram-se nao somente urn, mas varies criterios de distin-cao, alguns explicitos, outros implicitos, que agora devemosexaminar separadamente.o primeiro criterio de distincao e puramente formal, no quediz respeito ao conteudo, respectivamente da lei moral e da lei[uridica, mas exclusivamente quanta a forma da obrigacdo; e eo criterio com base no qual Kant distingue a moralidade dalega/idade.

    Para esclarecer a natureza desse criterio e preciso conside-rar quais sao os elementos formais que distinguem a acao mo-ral no pensamento de Kant. A Pundameruacdo corneca comuma frase famosa:

    1) acao moral e a que e realizada nao para obedecer a umacerta atitude sensivel, a urn certo interesse material, massomente para obedecer a lei do dever. Existem acoes queaparentemente sao honestas, mas nao podem ser cha-madas morais, parque sao cumpridas par impulsos di-versos daquele do cumprimento do pr6prio dever. Kantda 0exemplo do comerciante que nao abusa do clienteingenue: se ele age assim, nao porque esse seja seu de-ver, mas unicamente porque seja de seu pr6prio interes-se, a sua acao nao e moral. 0 segundo exemplo e doshomens que nao se suicidam, mas contribuem para con-servar a pr6pria vida obedecendo ao instinto imediatoda pr6pria conservacao: tarnbem nesse caso, ainda quea conservacao da vida seja urn dever para cada homem,a acao nao e moral, porque nao e cumprida unicamentepor respeito ao dever. Tarnbern aquele que obedece auma atitude nobre, como e a de favorecer 0pr6ximo - eeste e 0 terceiro exemplo -, nao cumpre uma acao mo-ral se a acao de favorecer e cumprida nao para 0dever,mas por simpatia ao pr6ximo, ou seja, segundo uma ten-dencia sensivel;

    "Nao e possivel pensar nada no mundo, e em geraltambern nada fora dele, que possa ser considerado

    2) acao moral e aquela que e cumprida nao por urn fim,mas somente pela maxima que a determina. Em outraspalavras, a acao moral nao deve ser determinada por urnobjeto qualquer da nossa faculdade de desejar (por exem-

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    plo, pelo fim da felicidade, ou da saude, ou do bem-estar), mas unicamente pelo principia da vontade;

    3) a acao moral e aquela que nao e movida por outra incli-nacao a nao ser 0 respe i to a lei. Na conduta moral, cadaimpulso subjetivo deve ser excluido; 0unico impulsosubjetivo compativel com a moralidade e 0sentido derespeito a lei moral, que deve veneer qualquer outrainclinacao.

    la, pelo contrario, que nao compreen de esta ultima con-dicao na lei, e que, consequenternente, admite tambernurn impulso diferente da ideia do proprio dever, e juri-dica (p. 394).11

    E com outra formula:

    Em conclusao, e possivel dizer de maneira sintetica que,para que uma acao seja moral nao e suficiente, segundo Kant,que seja coerente com 0 deoer, e necessario que seja tarnbemcumprida pelo dever.

    Dessa proposicao Kant extrai 0primeiro criterio de distin-cao entre moralidade e legalidade. Tem-se a moralidade quan-do a acao e cumprida por dever; tem-se, ao inves, a pura esimples legalidade quando a acao e cumprida em conformi-dade ao dever, segundo alguma inclinacao ou interesse dife-rente do puro respeito ao dever. Em outras palavras, a legis-lacao moral e aquela que nao admite que uma acao possa sercumprida segundo inclinacao ou interesse; a legislacao juri-dica, ao contrario, e a que aceita simplesmente a conformida-de da acao a lei e nao se interessa pelas inclinacoes ou inte-resses que a determinaram. Finalmente, quando eu atuo dedeterminada maneira porque esse e 0meu dever, cumpro umaacao moral; por outro lado, quando atuo de determinadamaneira para conformar-me a lei, mas ao mesmo tempo por-que e do meu interesse ou corresponde a minha inclinacao,tal acao nao e moral, mas somente legal. Com as palavras deKant:

    "0 puro acordo ou desacordo de uma acao com rela-s;ao a lei, sem respeito algum ao impulso da mesma, cha-ma-se legalidade (conformidade a lei); quando, ao in-ves, a ideia do dever derivada da lei e ao mesmo tempoimpulso para a acao, temos a moralidade" (p. 394).

    "A legislacao que erige uma acao como dever, e 0dever ao mesmo tempo como impulso, e moral. Aque-

    Assim entendida, a distincao entre moral e direito ate agorae uma distincao puramente formal. De fato, a distincao naodiz respeito ao conteudo das acoes, mas somente a forma oua maneira de obrigar-se. E muito facil pensar num dever queseja comum tanto a moral quanto ao direito. 0 que faz daacao conforme a esse dever sucessivamente uma acao moralou juridica e a diferente motivacao da acao: a mesma acao emoral se foi cumprida unicamente por respeito ao dever, emeramente legal se foi cumprida por inclinacao ou por cal-culo. 0 fato de manter as promessas e urn dever: mas eucumpro uma acao moral se mantenho a promessa nao sendodeterminado por outro impulso a nao ser 0dever (devo por-que devo); cumpro uma acao meramente juridica ou legal semantenho a promessa porque disso vou receber uma vanta-gem. 0 que diferencia os dois casos, e justifica a distincao,nao e a lei (em ambos os casos a lei prescreve manter asprornessas), mas a maneira pela qual estou conforme a lei,no primeiro caso por respeito a lei, no segundo caso porinteresse. Esse fato e confirmado claramente pelas seguintespalavras de Kant:

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    "Adoutrina do direito e a doutrina da virtude distin-guem-se, portanto, ndo tanto com relacdo aos diferentesdeveres pr6prios, mas, melhor dito, pela diversidade dalegislacdo que une urn e outro impulso a lei" (p. 396).

    4LEGISLAc;AO INTERNA ELEGISLAc;AO EXTERNA

    Para explicar a distincao entre estas duas formas de legis-lacao, Kant usa constantemente a dupla de atributos interno eexterno, referida ora a acdo, ora ao dever, ora ainda a legisla-f(iio. Disso deriva a contraposicao entre moralidade e legalida-de, que se reflete na distincao ora entre acoes internas e acoesexternas, ora entre deveres internos e deveres externos, oraentre legislacao interna e legislacao externa.

    Para a distincao entre acoes internas e externas, leia-se 0trecho seguinte:

    "As leis da liberdade chamam-se morais para distin-guir-se das leis da natureza. Enquanto se referem somen-te as acoes externas e a conformidade a lei chamam-sejuridicas, se, porern, exigem ser consideradas em simes-mas, como principios que determinam as acoes, entao saoeticas, da-se 0nome de legalidade a conformidade dasacoes com as primeiras, e de moralidade a conformida-de com as demais" (p. 389).

    Para a distincao entre deveres internos e externos, que serelaciona com a anterior:

    "Os deveres impostos pela legislacao juridica podemser somente deveres extern os, porque essa legislacao nao

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    "AIegislacao etica (...) e a que ndo pode ser externa, alegislacao juridica e a que pode ser tambem externa. As-sim, e dever externo manter as proprias promessas emconformidade ao contrato, mas 0imperativo de faze-lounicamente porque e dever, sem levar em conta qualqueroutro impulso, pertence somente a legislacdo interna"(p. 396).

    cia comum nos ensina inclusive que, para ser urn homem legal-mente honesto, e suficiente ser urn born conformista; para serurn homem moralmente honesto, 0 simples conformismo nao emais suficiente. A acusacao de farisaismo que se baseia noponto de vista moral nao estaria baseada tambern no ponto devista juridico, uma vez que e proprio do direito contentar-secom que os individuos, aos quais a norma juridica e dirigida,executem 0que a norma prescreve sem indagar 0animus como qual e cumprida. A legislacao jundica nao pede ao cidadaoque mantenha as promessas por respeito ao dever; pede-Ihemanter as promessas, e nada mais, e 0ato e aceito como juridi-camente perfeito ainda que 0motive pelo qual foi cumpridotenha side meramente utilitario, como 0interesse de nao ser,por sua vez, decepcionado, nas proprias expectativas, por umapromessa descumprida, ou pelo medo da sancao etc.

    Fazendo coincidir a distincao entre moral e direito como afeita entre moralidade e legalidade, entre interioridade e exte-rioridade, Kant se inseria na tradicao do jusnaturalismo eiluminismo alernao, da qual 0maior representante tinha sideCristiano Thomasius (1655-1728). Essa tradicao havia expres-sado, na separacao entre moral e direito, entre ambito da interio-ridade e ambito da exterioridade, ou, como se dizia, entre foruminternum e forum externum, a exigencia dos limites do poderdo Estado. A tendencia a limitar 0poder do Estado, de quetratamos na primeira parte, se exprimia tarnbem na distincaoentre moralidade e legalidade.

    De fato, dizer-se que 0direito devia contentar-se com a ade-sao exterior significava dizer que 0Estado, de cuja vontade alei era a manifestacao principal, nao devia introrneter-se emquestoes de consciencia e, portanto, devia reconhecer para 0individuo urn ambito da propria personalidade destinado apermanecer livre de qualquer intervencao de urn poder exter-no como 0Estado. Era, portanto, 0reconhecimento de que 0poder do Estado tinha limites enquanto podia, sim, ampliar a

    exige que a ideia desse dever, que e claramente interna,seja por si mesma motivo que determina a vontade doagente, e porque essa legislacao precisa tambern de im-pulsos adequados as suas leis, somente pode admitirimpulsos externos" (pp. 394-395).Finalmente, para a distincao entre legislacao interna e exter-

    na, que pressupoe a distincao entre acoes internas e externas eentre deveres internos e extemos:

    Como deve ser entendido 0usa que Kant faz dos atributos'interno' e 'externo' referentes a distincao entre moralidade elegalidade? Deve-se entender, nesse sentido: a acao legal eexterna pelo fato de que a legislacao juridica, dita, portanto,legislacao externa, deseja unicamente uma adesao exterior assuas proprias leis, ou seja, uma adesao que vale independen-temente da pureza da intencdo com a qual a acao e cumprida,enquanto a legislacao moral, que e dita, portanto, intema, de-seja uma adesao intima as suas proprias leis, uma adesao dadacom intencao pura, ou seja, com a conviccao da bondade da-quela lei. Disso se segue que 0dever [uridico pode ser ditoextemo, porque legalmente eu sou obrigado somente a confor-mar a acao, e nao tambern a intencao com a qual cumpro aacao, segundo a lei; enquanto 0dever moral e dito internoporque moralmente eu sou obrigado nao somente a conformara acao, mas tarnbem a agir com pureza de intencao. Aexperien-

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    sua jurisdicao sobre fatos externos do individuo, mas nao tam-bern sobre fatos intern os, e existia ainda alguma coisa no indi-vfduo, a consciencia, que estava completamente excluida des sajurisdicao. Ate que os conceitos de moral e direito nao rece-bessem uma boa distincao, 0 Estado exigia a sujeicao nao so-mente dos comportamentos externos do individuo, mas tam-bern da sua consciencia, E de fato, segundo uma tradicao bernlonga, tinha-se pensado que as leis jurfdicas (ou pelo menos amaior parte delas) obrigassem os suditos na consciencia, ouseja, de maneira nao diferente das leis morais e religiosas, comose nao existisse diferenca alguma entre as regras do Estado, darazao integra ou de Deus. Somente atraves de uma distincaoclara entre leis que obrigam em consciencia e leis que nao obri-gam em consciencia e atribuindo ao Estado 0poder de exigir aobediencia somente das segundas, chegou-se a distinguir 0Es-tado, como legislacao externa, da Igreja ou da razao, como sis-temas de Iegislacao interna, e admitiu-se como legitimo para 0Estado urn ambito rnais restrito e mais delimitado de eficaciaque coincidia com 0ambito da legalidade distinta da moralidade.

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    5LmEHDADE INTEHNA ELIBEHDADE EXTEHNA

    o cri terio de distincao entre moral e direi to, examinadonos dois paragrafos precedentes, e, como foi dito, puramenteformal, no sentido de que a mesma acao pode ser tomada emconsideracao tanto pela legislacao interna quanta pela externa.o que muda nas duas diferentes legislacoes e somente 0modopelo qual a acao e cumprida. E certamente essa a distincao sobrea qual Kant desde 0inicio chama a atencao. Mas erraria quemacreditasse que e a unica. Penso que, em Kant, se encontra urnoutro criterio de distincao entre moral e direito, e que esse se-gundo criterio deve ser bern compreendido, se quisermos enten-der e justificar a definicao do direito que Kant propoe.A dificuldade em distinguir esses dois criterios deriva do

    fato de que, tambem para 0segundo criterio, Kant usa a mes-rna dupla de atributos, interno e externo. Mas desta vez trata-sede 'interno' e 'externo' nao rna is referentes a acao, a dever (ouimpulso), a Iegislacao, mas a palavra liberdade. Certamente umadas maneiras pela qual Kant fala da distincao entre moral edireito e a que se refere a distincao entre liberdade interna eexterna. 0 ambito da moralidade diz respeito a l iberdade in-terna, a do dire ito se amplia para a liberdade externa. Pode-seainda falar, com Kant, de uma liberdade moral, distinta da li-berdade juridica.Por 'liberdade moral' deve ser entendida, segundo Kant, a

    faculdade de adequacao as leis que a nossa razao da a n6s

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    mesrnos; por 'liberdade juridica',a faculdade de agirmos no mun-do externo, nao sendo impedidos pe!a liberdade igual dos de-mais seres humanos, livres como nos, interna e externamente.Sepor 'liberdade' se entende, numa das acepcoes mais comuns,a faculdade de fazer algo sem ser coagido ou liberdade como'nao-coacao', ou como 'liberdade de...' (aquela que, no capitulo12da parte I, chamamos de 'liberdade negativa'), liberdade mo-ral e a liberdade dos impedimentos que provem de nos mes-mos (as Inclinacoes, as paixoes, os Interesses), e liberacao inte-rior, esforco de adequacao a lei eliminando os obstaculos quederivam da nossa faculdade de desejar; liberdade juridica, po-rem, e a liberacao dos impedimentos que provern dos outros, ellberacao exterior, ou seja, eficaz no dominio do mundo exter-!no em concorrencia com os outros, esforco por alcancar umaesfera de liberdade na qual seja possivel para mim agir segun-

    - do 0meu talante sem ser perturbado pela acao dos outros.Levando em conta esses significados de liberdade interna e

    externa, podemos compreender que a distincao entre moral edireito, neles inspirada, adquire uma relevancia diversa da ex-posta nos dois paragrafos precedentes. Mais precisamente, noconceito de moralidade entendida como liberdade interna eevidente a referencia a uma relacdo de mim comigo mesmo; noconceito de direito entendido como liberdade externa e igual-mente evidente a referenda a uma relaciio minha com os ou-tros. E possivel entao dizer que 0novo criterio de distincaoentre moral e direito nao considera mais, como 0primeiro, arelacao entre a acao e a lei ou 0modo da obrigacao, mas amesma forma da acdo que no primeiro caso se esgota no inte-rior da minha consciencia e no segundo caso, abrindo-se parao exterior, chega a coincidir com ados outros.

    Nesse ponto sera born fazer uma breve advertencia: nao se-ria possivel pensar que a distincao assim formulada coincidacom a tradicional entre deveres com relacdo a si mesmo e deoe-res com relacdo aos outros? Que a moral seja a esfera da liber-

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    dade interna nao significa absolutamente, segundo Kant, quecoincida com a esfera dos deveres com relacao a si mesmo. Seoutros jusnaturalistas podem ter feito essa confusao, ela naodeve ser atribuida a Kant, para 0 qual a distincao entre liberda-de interna e liberdade externa nao coincide com aquela entredeveres com relacao a si mesmo e deveres com relacao aosoutros, ainda que liberdade interna signifique liberdade comrelacao a si mesmo e liberdade externa signifique liberdadecom relacao aos outros. E suficiente lembrar que, entre os de-veres da virtude, Kant coloca tarnbem deveres com relacao aosoutros, como resulta da grande reparticao que faz desses deve-res, distinguindo entre deveres com relacdo it propria perfeicdo(que sao deveres com relacao a si mesmo) e deveres com rela-fao it felicidade dos outros (que sao claramente deveres comrelacao aos outros).

    Assim, quando eu falo que a liberdade moral se esgota narelacao entre mim e mim, nao quero dizer que ela se refiraunicamente a uma acao com relacao a mimmesmo (por exem-plo, uma acao que tenha como fim a minha perfeicao), ou seja,nao dou indicacao alguma sobre a direcao da acao, mas querodizer - se interpretamos bern 0pensamento de Kant - quesou responsduel por aquela acdo somente diante de mim mesmo(ou seja, na minha consciencia); igualmente, quando falo quea liberdade juridica se amplia na minha propria relacao com osoutros, nao quero dizer que ela se refira a uma acao com rela-cao aos outros, ou seja, mais uma vez nao dou indicacao algu-rnasobre a direcao da acao, mas quero dizer que sou responsd-velpor aquela acao frente aos outros, no sentido de que outros,ou os outros considerados de maneira coletiva (e0Estado e arepresentacao concreta dessa vontade coletiva), podem me con-vocar para que assuma minha responsabilidade (e reciproca-mente os outros sao responsaveis frente a mim).

    Como e possivel constatar, a distincao entre deveres comrelacao a mim mesmo e deveres com relacao aos outros e a

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    distincao entre acoes pelas quais sou responsavel frente a mimmesmo e acoes pelas quais sou responsavel frente aos outrosnao coincidem. E a distincao entre moral e direito corresponde11segunda distincao e nao 11primeira. Demos 0 exemplo de urndever com relacao a mim mesmo, pelo qual eli seja responsa-vel com relacao aos outros: este e urn dever juridico. Demosem contraposicao 0exemplo de urn dever com relacao aos ou-tros, pelo qual eu seja responsavel somente frente a mim mes-mo: este e urn dever moral. Em outras palavras, podemos di-zer: legislacao moral nao e a que prescreve deveres com relacaoa si mesmo, mas aquela por cujo cumprimento somos respon-saveis somente frente a n6s mesmos; legislacao juridica nao e aque prescreve deveres com relacao aos outros, mas aquela porcujo cumprimento somos responsaveis frente 11coletividade.

    Essa nova distincao permite uma perspectiva muito interes-sante sobre a nocao de direito. Enquanto, na moral, os outrosexistem, quando existem, somente como objeto ou como termode referencia da nossa acao, a qual possui valor moral inde-pendentemente de uma resposta qualquer do outro; no direi-to, os outros existem como sujeitos que exigem de mim0cum-primento da acao. 0 fato de que, na acao juridica, eu sejaresponsavel frente aos outros, institui uma relacao determina-da entre mim e os outros, que e possivel chamar de relacaointersubjetiva (para urn aprofundamento ulterior, veja 0capitu-lo 8 desta parte). Emtal relacao, 11obrigacao ou dever de quemse adapta 11ei corresponde, no outro ou nos outros, urn podercoercitivo pelo qual tenho de cumprir a acao, e esse poder e 0que comumente se chama direito, em sentido subjetivo. Pode-mos entao dizer que a experiencia [uridica e caracterizada pelacorrespondencia de urn direito a urn dever e reciprocamente deurn dever a urn direito, ou pela presenca simultanea de urndever de urn lado e de urn direito do outro: 0que se chamarelaciio juridica. 0 conceito de relacao [uridica, como carac-teristico do direito em oposicao 11moral, pode ser derivado

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    da distincao, ilustrada neste paragrafo, entre liberdade ex-terna e liberdade interna. Do conceito de liberdade externaderiva a caracteristica do dever juridico de ser urn dever peloqual somos respons aveis frente aos outros; dessa caracterfs-tica do direito como liberdade externa de gerar uma respon-sabilidade frente aos outros deriva que os outros podemexigir de mim0cumprimento da minha obrigacao (0que sechama direito subjetivo); finalmente, do dire ito dos outrosde exigir 0cumprimento da minha obrigacao deriva a carac-teristica pr6pria da experiencia juridica de oferecer espacopara relacoes intersubjetivas de direito-dever, ou seja, pararelacoes juridicas.

    Acrescentamos que a relacao juridica pode ser instituidasomente entre dois seres humanos, ou seja, entre seres que seencontram numa relacao de limitacao recfproca da pr6pria li-berdade externa. Kant esta bern consciente dessa natureza pe-culiar da experiencia juridica e chega 11definicao da relacaojuridica como relacao de direito-dever entre seres humanos,excluindo, dessa maneira, 0resto. Podem existir quatro tipospossiveis de relacao entre 0 homem e outros seres:

    1) relacao do homem com seres que nao tern nem direitosnem deveres (por exemplo, os animals):

    2) relacao do homem com seres que tern direitos e deveres(por exemplo, os outros homens);

    3) relacao dos homens com seres que tern somente deverese nenhum direito (por exemplo, os escravos):4) relacao do homem com urn ser que tern somente direitos

    e nenhum dever (Deus).Kant afirma que desses quatro casos somente 0segundo,

    ou seja, a relacao do homem com outros seres humanos, podeconstituir uma verdadeira relacao juridica. Nao podemos, con-

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    tudo, excluir que uma relacao moral possa acontecer nos ou-tros tres casos. Disso deriva a confirrnacao de que a caracterls-tica do direito com relacao a moral e urn certo tipo de relacaoentre mim e os outros e que esse tipo de relacao, a qual damoso nome de relacao juridica, e constituida por uma reciprocida-de entre 0 dever como cumprimento da lei e 0 direito comofaculdade de obrigar ao cumprimento.

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    6AUTONOMIA E HETERONOMIA

    Examinamos dois criterios de distincao entre moral e di-reito, ambos explicitos, au seja, que podem ser derivados doproprio texto de Kant. Com base no primeiro, Kant distinguea moralidade, ou esfera dos deveres cumpridos segundo aobrigacao da legalidade e, ou esfera dos deveres para os quaise pedida somente uma conformidade exterior a lei. Com baseno segundo, Kant distingue a moral como esfera da liberdadeinterna ou da adequacao a lei da razao independentementedo direito dos outros, do direito como esfera da liberdadeexterna ou da adequacao a lei racional, obrigados a isso tam-bern pela experiencia dos outros. Junto a esses dois criteriosexplicitos, podem ser considerados, no texto de Kant, outrosdois criterios Implicitos: implicitos no sentido de que Kantcolocou suas premissas sem as desenvolver. Os exegetas deKant que sucessivamente, ainda que com contrastes, pens a-yam que fosse possivel derivar esses criterios dos textos eatribui-Ios, se nao a propria letra, pelo menos ao espirito dosistema.o primeiro desses criterios deriva da distincao kantiana en-tre autonomia e heteronomia e da atribuicao da autonomia avontade moral como carater distintivo da vontade boa em opo-sicao a vontade que e determinada, nao pelo respeito as leis,mas por urn objeto externo qualquer ou urn fim qualquer. NaFundamentacdo Kant diz:

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    "Aautonomia da vontade e a qualidade que a vonta-de tern de ser leipara si mesma (independentemente deuma qualidade qualquer dos objetivos do dever)" (p. 67).

    Essa definicao e por si mesma muito clara: se por autono-mia se entende a faculdade de dar leis a si mesmo, e certo quea vontade moral e por excelencia uma vontade autonoma; por-que, como ja muitas vezes foi dito, a vontade moral e aquela,segundo Kant, que nao obedece a outra lei a nao ser a lei mo-ral e nao se deixa determinar por inclinacoes ou calculos inte-ressados. Lembremos que essa definicao de autonomia coinci-de com a definicao dada por Rousseau a liberdade, entendidacomo a obediencia a lei que cada urn prescreve para simesmo(veja capitulo 13da parte I),o conceito de heteronomia e derivado, por antitese, do deautonomia. Eis as palavras de Kant:

    "Quando a vontade busca a lei que deve deterrnina-lanum lugar diferente daquele ao qual esta acostumada,segundo as suas maximas, a instituir uma legislacaouniversal, quando, consequenternente, superando a simesma, busca essa lei na qualidade de alguns dos seusobjetos, resulta sempre de tudo isso uma heteronomia. Avontade nao da, entao, a lei para si mesma: e 0 objeto,ao contrario, que the da, por efeito das suas relacoescom ela" (ib., p. 68).E not6ria a importancia que tern a distincao entre autono-

    mia e heteronomia para a deterrninacao da moral de Kant. Se-gundo Kant, a vontade moral ou e autonoma ou nao e moral:qualquer objeto que determine a vontade de maneira hetero-noma tira a vontade e a acao que derivam disso a qualidade demoral. Todos os sistemas morais tradicionais que colocaramcomo fim da vontade humana a perfeicao, ou a felicidade, ou

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    qualquer outro bern, sao ilegftimos: nao entenderam 0caraterprofundo e autentico da moralidade.

    Mas aqui e posta a pergunta: a distincao entre autonomia eheteronomia pode ser aplicada a distincao entre moral e direi-to?Uma vez reconhecido que a moral e a esfera da autonomia,e possivel derivar a consequencia de que 0direito e a esfera daheteronomia? Kant nao elaborou essa conclusao de maneiraexplicita. Mas n6s estamos ja suficientemente inforrnados so-bre a natureza do direito, segundo Kant, para buscar algumailacao.

    Que se considere 0 direito seja como legalidade, seja comoliberdade externa (segundo as duas definicoes explicitas ilus-tradas anteriormente), acreditamos que a vontade juridica pos-sa ser considerada somente como vontade beteronoma. Na con-dicao de legalidade, a vontade juridica se diferencia da vontademoral pelo fato de poder ser determinada por impulsos diver-sos do respeito a lei: e esta e de fato a pr6pria definicao daheteronomia. Para 0direito nao e importante que eu cumpra aacao prescrita, a fim de satisfazer urn interesse meu, uma vezque esta bern claro que tarnbem a acao mais honesta, cumpridapor interesse, nao e mais, por issomesmo, uma acao moral. Nacondicao de liberdade externa, a vontade juridica se diferenciada vontade moral, porque provoca nos outros titulares de igualliberdade externa 0poder de me obrigar e, portanto, e perfei-tamente compativel, como veremos melhor rnais adiante, coma coacao: mas, rnais uma vez, uma vontade determinada pelacoacao e uma vontade heteronoma, uma vez que e bern claroque tambern a acao rnais honesta, quando cumprida por medoda punicao, nao e mais uma acao moral.

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    7IMPEHATIVOS CATECOmCOSE IMPEHATIVOSHIPOTETICOS

    o segundo dos dois criterios distintivos entre direito emoral, que chamamos de implicitos, deriva da distincao de Kantentre imperativos categ6ricos e imperativos bipoteticos, e daqualificacao de 'categ6rico' dada ao imperativo moral, comodistinto de todas as outras formas de imperativo.As leis da conduta humana (cujo estudo e objeto dametafisica dos costumes) sao ordens, diferentemente entaodas leis naturais (cujo estudo e objeto da metafisica da natu-reza). Sao ordens porque, enquanto as leis naturais regulamos fenomenos naturais de maneira necessaria e expressamentre fato e consequencia uma relacao de necessidade, as leisque se referem ao homem, 0 qual e livre, diferentemente dosoutros seres naturais, estabelecem entre fato e consequenciauma relacao de obrigacao, que se expressa por meio do ver-bo 'dever', ou seja, nao descrevem, mas prescrevem. Assim dizKant na Fundamentacdo:

    "Todos os imperativos sao expressos por meio da pa-lavra dever e indicam com isso a relacao entre uma leiobjetiva da razao e uma vontade que, segundo a sua cons-tituicao subjetiva, ndo e necessariamente determinadapor e ssa le i (uma coacao). Elesdizem que seria born fazeruma tal coisa ou nao, mas 0 dizem a uma vontade que

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    nem sempre faz uma coisa porque the foi apresentadacomo boa para ser feita" (pp. 33-34).E urn pouco rnais adiante:

    "Os imperativos sao somente f6rmulas que expressama relacao entre as leis objetivas do querer em geral e aimperfeicao subjetiva da vontade deste ou daquele serracional, por exemplo, da vontade humana" (p, 35).Uma vez dito que as leis da conduta humana sao preceitos,

    Kantdistingue 0 genera 'preceito' em duas especies: categoricose bipoteticos. Categ6ricos sao os que prescrevem uma acao boapor si mesma, como por exemplo: "Voce nao deve mentir", echamam-se assim porque sao declarados por meio de um juizocateg6rico. Hipoteticos sao aqueles que prescrevem uma acaoboa para alcancar um certo fim, como por exemplo: "Se vocequer evitar ser condenado por falsidade, voce nao deve mentir",e chamam-se assim porque sao declarados por meio de um juizohipotetico. Por sua vez, os imperativos hipoteticos distinguern-se em duas subespecies, segundo 0 fato de que 0 fimseja, comodiz Kant,possivelou real, isto e, com nossas palavras, segundo 0fato de que 0 fim seja tal que sua obtencao ou nao-obtencao sejaindiferente (e, portanto, seja licitobusca-lo ou nao), como e, porexemplo, 0 fim de aprender 0 latim, ou seja, tal que dependa deuma necessidade natural, de modo que seja possivel afirmar quetodos os homens coloquern-no de fato como, por exemplo, afelicidade. Desses dois tipos de imperativos hipoteticos, Kantchama os primeiras tecnicos (enquanto sao pr6prios de cada arte),os segundos pragmdticos (enquanto se referem ao bern-estar emgeral). Urn exemplo dos primeiras pode ser 0 seguinte: "Sevocequer aprender latim, deve fazer muitos exerdcios"; um exemplodos segundos: "Se voce quer (ou porque voce quer) ser feliz,deve evitar qualquer excesso". Os primeiros prescrevem regras

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    de habilidade, os segundos, regras de prudencia. Concluindo,segundo Kant cxistem tres especies de imperativos:

    1) categ6ricosou morais, cuja formula e: "Vocedeve execu-tar a acao A";

    2) tecnicos ou de babilidade, cuja f6rmula e: "Se voce queralcancar B, deve executar a acao A";3) pragmaticos ou de prudencia, cuja f6rmula e : "Porque

    voce deve alcancar B, deve executar a acao A".

    Tambern diante dessa distincao coloca-se a pergunta quefizemos com relacao a distincao entre autonomia e heteronomia:a distincao entre imperativos categ6ricos e hipoteticos podeser ampliada para a distincao entre moral e direito? Nao haduvida que, para Kant, a moral conhece somente imperativoscateg6ricos: desta afirmacao e possivel tirar-se a consequencia,que Kant nao tirou de maneira explicita, de que os imperativosjuridicos sao hipoteticos? 0 problema foi debatido longamentepelos exegetas de Kant. Para0assunto, indico 0livro intituladoIIdiritto come norma tecnica (1911) de Adolfo Rava: do titulo efacil entender a tese do autor a respeito da questao que estamosexaminando. Rava, referindo-se de fato a distincao de Kant,sustenta que as normas juridicas sao imperativos tecnicos.

    De minha parte acredito que, se a questao da heteronomia eresolvida sustentando-se que a vontade juridica e heteronoma,deve-se resolver a questao do ambito do hipotetico sustentan-do-se que os imperativos juridicos sao hipoteticos. As duasquestoes sao estreitamente conexas, como resulta, de resto, doseguinte trecho de Kant:

    "Todas as vezes que se deve tomar como fundamentourn objeto da vontade para os fins de prescrever a vonta-de a rcgra que deve determina-la, essa regra e sempre

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    beteriinoma: 0 imperativo e condicionado, ou seja: se ouporque se deseja este objeto, deve-se agir deste ou da-quele modo; consequenternente ele nao pode nunca co-mandar moralmente, ou seja, de maneira categ6rica" (Fun-damentacdo, p. 72).E claro, nesse trecho, que da heteronomia da vontade deriva

    o ambito do hipotetico, assim como da autonomia deriva a esfe-ra do categ6rico. Se uma vontade e determinada por urn objetoexterno e, portanto, e heteronorna, e sinal de que 0imperativonao prescreveu uma acao boa por simesma, mas uma acao cujocumprimento depende da vontade de alcancar 0objetivo exter-no do pr6prio desejo. Se a vontade e autonoma, isso e sinal deque0imperativo e categ6rico, ou seja, prescreveu uma acao boapor simesma. Rigorosamente, deveriamos entao admitir sem ne-cessidade de uma prova ulterior que, uma vez atribuida a quali-ficacao de heteronoma a vontade juridica, seja possivel atribuira qualificacao de hipotetico ao imperativo juridico.

    De resto, a deducao pode ser facilmente confirmada logoque pensamos nos dois significados do direito: como legalida-de e como liberdade externa. Se0direito coincide com a lega-lidade, isso significa que urn imperativo juridico nao e formula-do desta maneira: "Voce deve manter as promessas", mas destaoutra maneira: "Porque 0fato de manter as promessas e vanta-gem para voce, voce deve agir em conformidade". Se depoisentendermos por obrigacao juridica aquilo que tern como cor-respondente a faculdade dos outros de me obrigar ao cumpri-~ento, devemos deduzir que a forrnulacao do imperativo juri-dico deveria ser feita desta maneira. "Se voce quer evitar serconstrangido pela forca a cumprir as obrigacoes assumidas, vocedeve manter as promessas". E com isso ficaria confirmado quecomandos categ6ricos sao somente os comandos morais, e quetambern nesse aspecto a esfera da juridicidade se distingue daesfera da moralidade.

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    8A DEFINI

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    externa nao pode ainda caracterizar suficientemente 0direito: tambern um ato de conveniencia, de cortesia,implica uma relacao externa: vamos acrescentar tambernum ato moral, quando se trata de deveres com relacaoaos outros, como os deveres de beneficencia, implica umarelacao externa. 0 mundo do intersubjetivo e mais am-plo do que 0mundo do direito. E necessaria uma carac-terizacao ulterior.

    2) "Emsegundo lugar [0 conceito do direitol c . . . ) nao signifi-ca uma relacao do arbitrio com 0 dese jo (em consequenciatambem da pura necessidade) dos outros, como acontecenos atos de beneficencia ou de crueldade, mas rejere-seexclusivamente a s relacoes cora 0 arbitrio dos outros."Atraves dessa segunda caracterizacao, Kant se propoe adistinguir a intersubjetividade juridlca de outra formaqualquer de intersubjetividade. E de fato ele observa que,para que exista uma relacao jurfdica, e necessario que 0meu arbitrio esteja relacionado com 0 arbitrio dos ou-tros: nao e suficiente que esteja relacionado com 0 dese-jo dos outros. Disso e possivel dizer-se que a primeiracaracterfstica da relacao juridica e aquela de ser uma re-lacdo entre dois arbitrios e nao entre um desejo e umarbitrio, ou entre um arbitrio e um desejo. Com relacaoao significado de arbitrio, em oposicao a desejo, remete-mos ao que Kant diz na p. 387:"Quando a faculdade de desejar esta ligada a conscien-cia pela capacidade que sua acao pode ter de produzir 0objeto, chama-se arbitrio; se falta essa consciencia, entaoo ato da faculdade de desejar chama-se aspiracdo"Desse trecho resulta que 0 arbitrio se distingue do merodesejo ou, rnais ainda, da aspiracao, pela consciencia dacapacidade de produzir um objeto determinado.

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    Observe-se a diferenca de significado destas duas expres-soes. "Emeu desejodar uma bela volta na montanha". "Emeu arbitrio dar uma bela volta na montanha." 0 desejoe a representacao de urn objeto determinado colocadocomo fim; 0 arbitrio e, ainda mais, a consciencia da pos-sibilidade de alcanca-lo. Quando Kant diz que 0 direitoconsiste numa relacao entre dois arbitrios, e nao entredois desejos, quer dizer que, para constituir-se uma rela-r,;:aourldica, e necessario que aconteca 0 encontro naosomente de dois desejos, ou de um arbitrio com um sim-ples desejo, mas de duas capacidades conscientes dopoder que cada um tem de alcancar 0 objeto do desejo.Para que seja possfveldar origema um contrato, por exem-plo uma compra e venda, nao e suficiente que 0 arbitriodo comprador se encontre com 0 desejo do vendedor,mas e preciso que tambern por parte do vendedor 0 de-sejo se resolva em arbitrio, ou seja, na capacidade deexecutar 0 que e 0 objeto do mero desejo. Para indicar adiferenca entre a relacao jurfdica e aquela que nao e tal,Kant da dois exemplos: os atos de beneuolencia e os atosde erueldade. De fato, num ato de benevolencia nao eabsolutamente necessario que meu arbltrio correspondaao dos outros, uma vez que 0 beneficiado encontra-sefrente a mim numa situacao de passividade, e a ele epedido somente 0 desejo puro e simples de receber aesmola. Ao mendigo nao e possivel atribuir a Frase: "Emeu arbitrio receber a esmola", mas pode-se bern atri-buir a ele esta outra Frase:" E meu desejo receber a esmo-la". Com relacao aos atos de crueldade, falta no sujeitopassivo nao somente uma forma qualquer de arbitrio,mas tambern 0desejo: 0 arbitrio do tirano que mata qual-quer um de que suspeite ter conjurado contra ele naopode levar a uma relacao juridica, sendo um mero ato deforca, em que ao arbitrio de um nao corresponde 0arbi-

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    trio igual do outro. Penso que e possivel interpretar 0significado desse segundo requisi to da relacao juridicadizendo que, para que exista uma relacao juridica, nao esuficiente a intersubjetiuidade (tambern os atos de bene-ficencia e de crueldade sao intersubjetivos), mas e preci-so tarnbem a reciprocidade, ou seja, que ao arbitrio deurn corresponda 0 arbitrio do outro.

    3) "Em terceiro lugar, nesta relacdo reciproca de urn arbitriocom 0 outro, nao se considera absolutamente a materiado arbitrio, ou seja, 0jim que uma pessoa se propoe porurn objeto que ela quer (. ..) mas somente a forma narelacao dos dois arbitrios, enquanto esses sao cons ide-rados absolutamente como livres."Com esse terceiro requisito, Kant quer dizer que 0 direi-to, na regulacao de uma relacao entre arbitrios, nao sepreocupa em estabelecer quais sejam os fins individuais,utilitarios, que os dois sujeitos pretendem, os interessesque estao em pauta, mas somente em prescrever a forma,ou seja, as modalidades atraves das quais aquele fim deveser alcancado, e aqueles interesses, regulados. Para se-guir 0 exemplo de Kant, quando 0 direito estabelece asregras do contrato de compra e venda, nao se preocupacom a vanta gem ou desvantagem que vendedor ou com-prador possam ter no cumprimento, mas somente com ascondicoes formais com base nas quais devera ser cum-prido. Dando urn outro exemplo, quando 0 direito regu-la a instituicao do casamento, nao estabelece nem comquem eu devo casar nem quais sao os fins individuaisque eu possa prop or-me a alcancar por meio do casa-mento; limita-se a fixar as modalidades por meio das quaisse torna possivel a atuacao das minhas intencoes,Nesse terceiro atributo da relacao juridica, esta a origemda doutrina moderna chamada de formalismo juridico,

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    cujos iniciadores foram exatamente os fil6sofos neo-kantianos do direito, como Stammler e Kelsen, na Ale-manha, e Del Vecchio, pelo menos na primeira fase doseu pensamento, na Italia. Segundo a formulas;:ao rnaisnpica do formalismo [uridico, que e de Stammler, 0 direi-to distingue-se da economia como a forma do conteudo:em qualquer relacao intersubjetiva 0elemento material eeconomico, 0 elemento formal, juridico. Em outras pala-vras, atribuir carater formal ao direito significa dizer queo direito prescreve nao tanto 0 que se deve fazer, mascomo se deve fazer. 0 que eu devo fazer para regular osmeus interesses e indicado pela economia; 0direito, comtodas as suas prescricoes, limita-se a me dizer como devoagir para alcancar, juntamente com os outros ou em con-correncla com os outros, os meus fins; ou seja, limita-sea fazer com que, independentemente do objeto de meudese]o, 0 meu arbitrio possa estar de acordo com 0 arbi-trio de todos os outros.

    Esse terceiro requisito abre de maneira definitiva a portapara a famosa deftrucao do direito de Kant, que aqui apresen-tames:

    "0 direito e 0 conjunto das condicoes por meio dasquais 0 arbitrio de urn pode estar de acordo com 0 arbi-trio de urn outro, segundo uma lei universal da liberda-de" (p. 407).Dessa definis;:ao deriva aquela que Kant chama a lei univer-

    sal do direito, assim formulada:"Atua externamente de maneira que 0 uso livre do teu

    arbitrio possa estar de acordo com a liberdade de qual-quer outro segundo uma lei universal" (p. 407).

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    Na definicao do direito podem ser relevados os tres requisi-tos dos quais falamos anteriormente: 9

    1) 0direito pertence ao mundo das relacoes externas;2) ele se constitui na relacao de dois ou rnais arbitrios,3) a sua funcao nao e de prescrever este ou aquele deversubstancial com relacao aos sujeitos dos varios arbitrios,

    mas de prescrever-Ihes a maneira de coexistir, ou seja, ascondicoes por meio das quais 0arbitrio de urn possa coe-xistir com0arbitrio de todos os outros. De fato, podemosdizer que, segundo Kant,0direito e a forma universal decoexistencia dos arbitrios dos simples. Enquanto tal, e acondicao ou 0 conjunto das condicoes segundo as quaisos homens podem conviver entre si, ou 0limite da liber-dade de cada urn, de maneira que todas as liberdades ex-ternas possam coexistir segundo uma lei universal. Final-mente, 0direito e 0que possibilita a livre coexistenciados homens, a coexistencia em nome da liberdade, por-que somente onde a liberdade e limitada, a liberdade deurn nao se transforma numa nao-Iiberdade para os outros,e cada urn pode usufruir da liberdade que the e concedidapelo direito de todos os outros de usufruir de uma liber-dade igual a dele.

    A JUSTI(:A COMO LmERDADE

    Una vez ilustrada a definicao de direito que Kant da, de-vemos perguntar: que valor tern essa definicao?Ela se refere a que direito e ou a que direito deve ser? Na terminologiamoderna, usada principalmente pelos fil6sofos neokantianos,Kant define 0conceito de direito ou a ideia de direito? Se nosreferirmos ao que dissemos no inicio do paragrafo precedente,nao ha duvida quanto ao fato de que 0problema que Kant estaresolvendo por meio de sua definicao nao e que e direito,mas que direito deve ser. 0 problema de Kant e , numa s6palavra, 0problema da justica, ou seja, do criterio com base noqual seja possivel distinguir0que e justo do que e injusto. Quan-do ele diz que 0 direito e "0 conjunto das condicoes por meiodas quais 0arbitrio de urn pode estar de acordo com 0arbitriode urn outro segundo uma lei universal da liberdade", nao en-tende estabelecer aquilo que e 0 direito na realidade hist6rica,mas aquilo que deveria ser 0direito para corresponder ao idealde justica. Nao esta dito, com efeito, que 0direito seja, na reali-dade, aquilo que Kant indica na sua definicao, Ao que Kant visae 0ideal do direito, ao qual qualquer legislacao deve adequar-se para poder ser considerada como justa. Ainda que nenhumalegislacao existente correspondesse plenamente aquele ideal, adefinicao de Kant nao seria menos verdadeira, uma vez que in-dica somente 0 ideal-limite ao qual 0 legislador deveria ade-quar-se, e nao uma generalizacao derivada da experiencia. Paraisso vale como confirrnacao a definicao que Kant da a acao justa:

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    1) a justica e ordem. Estateoria surge do fato de considerarcomo fim ultimo do direito a paz social. Ela sustenta quea exigencia fundamental segundo a qual os homens cria-ram0ordenamento jurfdico e de sair do estado de anar-quia e de guerra, no qual viveram no estado de natureza.o direito e 0rernedio primeiro e fundamental contra osmales que derivam do bellum ommium contra omnes. Eesse realiza seu fimquando, por meio de um poder cen-tral capaz de emanar normas coercitivas para todos osassociados, e estabelecida uma ordem social, qualquerque seja essa. 0 direito natural fundamental que estateoria deseja salvaguardar e 0 direito a vida. 0 direitocomo ordem e 0meio que os homens, no decorrer dacivilizacao,encontraram para garantir a seguranca da vida.Urn exemplo caracteristico desta concepcao da justicaencontra-se na filosofia politica de Hobbes.

    2) a justica e igualdade. Segundo esta concepcao, que e amais antiga e tradicional (deriva de Aristoteles na suaforrnulacao mais clara), 0fim do direito, ou seja, das re-gras coercitivas que disciplinam a conduta dos homensna sociedade, e de garantir a igualdade, seja nas rela-coes entre os individuos (0 que geralmente e chamadode justica comutativa), seja nas relacoes entre 0Estado eos individuos (0 que e chamado tradicionalmente justicadistributiua). 0 direito e aqui 0rernedio primeiro e fun-damental para as disparidades entre os homens, que po-dem derivar tanto das desigualdades naturais como dasdesigualdades sociais. Um ordenamento juridico naopode ser considerado justo se nao protege os fracos dosfortes, os pobres dos ricos, se nao estabelece com as pro-prias regras uma medida ou uma serie de medidas comas quais seja impedida a prevaricacao e todos os mem-bros de uma sociedade recebam igual tratamento combase em certos criterios fundamentais (que podem serora 0trabalho, ora 0merito, ora a necessidadeetc.). Se-gundo esta teoria, nao e suficiente que 0direito impo-nha uma ordem qualquer: e preciso que a ordem sejajusta e por 'justa' entende-se 'de fato fundada no respeitoa igualdade'. Se imaginamos a justica tendo a espada e abalanca, a teoria do direito como ordem visa a ressaltar aespada; a do direito com igualdade, a balanca. 0 direitonatural fundamental que esta na base desta concepcao eo direito a igualdade.

    3) a justica e liberdade. Com base nesta concepcao, 0fimultimo do direito e a liberdade (e entenda-se a liberda-de externa). A razao ultima pela qual os homens se reu-niram em sociedade e constituirarn 0Estado e a de ga-rantir a expressao maxima da propria personalidade,que nao seria possivel se um conjunto de normas coer-

    "Uma acao e justa quando, por meio dela, ou segun-do a sua maxima, a liberdade do arbitrio de urn podecontinuar com a liberdade de qualquer outro segundouma lei universal" (p. 407).

    Aqui e claro que Kant se preocupa em estabelecer 0criteriopara distinguir uma acao justa de uma acao injusta, e nao aque-le para distinguir uma acao juridica (conforme 0direito existen-te) de uma acao nao-juridica (nao conforme 0direito existente).

    Kant, portanto, nesse momenta realmente central da sua obra,apresenta um ideal de justica. De que ideal se trata? Penso queseria POSSIVe! defini-lo como 0 da justica como liberdade.

    Na historia do pensamento juridico foram sustentadas variasteorias da justica. Essas teorias distinguem-se com base na res-posta que deram a pergunta: qual e 0fim ultimo do direito?Acredito que as varias respostas a esta pergunta possam serdivididas em tres grupos:

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    citivas nao garantisse para cada urn uma esfera de liber-dade, impedindo a violacao por parte dos outros. 0ordenamento justo e somente aquele que consegue fa-zer com que todos os consociados possam usufruir deuma esfera de liberdade tal que lhes seja consentidodesenvolver a propria personalidade segundo 0talentopeculiar de cada urn. Aqui 0 direito e concebido comourn conjunto de lirnites as liberdades individuais, de ma-neira que cada urn tenha a seguranca de nao ser lesadona propria esfera de liceidade ate 0momento em quetarnbem nao lese a esfera de liceidade dos outros. Por-tanto, nao e suficiente, segundo 0ideal do direito comoliberdade, que 0ordenamento juridico estabeleca a or-dem, nem e suficiente que essa ordem seja fundada naigualdade (tarnbem uma sociedade na qual todos sejamescravos e uma sociedade de iguais, ainda que iguaisna escravidao). E necessario, para que brilhe a justicacom toda a sua luz, que os membros da associacao usu-fruam da mais ampla liberdade compativel com a exis-tencia da propria associacao. Motivo pelo qual seriajusto somente aquele ordenamento em que fosseestabelecida uma ordem na liberdade. 0 direito naturalfundamental pelo qual esta concepcao e reforcada e 0direito a liberdade ..

    Aqui e suficiente dizer que 0conceito de liberdade pro-prio a teoria liberal do Estado e 0conceito de liberdade comonao-impedimento. Como ja foi dito no capitulo 5 desta parte,quando Kant fala de liberdade interna ou externa, deseja fa-lar exatamente da faculdade que temos de agir nao sendoobstaculados ou pelas forcas inferiores das nossas paixoes,ou pela forca externa que provern do arbitrio dos outros. E a[ustica a que visa e somente 0 conjunto das garantias por meiodas quais posso expressar a minha liberdade externa naoimpedida pela nao-liberdade dos outros, ou seja, a ideia dacoexistencia das liberdades extern as, como coexistencia detantas esferas de nao-impedimento. E de fato 0que significapara Kant agir de maneira injusta? Significa interferir na esfe-ra da liberdade dos outros, ou seja, colocar obstaculos paraque os outros, com os quais eu devo conviver, possam exer-cer sua liberdade na propria esfera de liceidade. Como con-firmacao, leia-se este trecho que segue imediatamente a defi-nicao de acao justa, citada ha pouco:

    Parece-me claro que todo 0 pensamento juridico de Kantvisaa teorizar a justica como liberdade. E talvez a expressao maiscaracteristica e consequente dessa teoria; certamente, a mais res-peitavel. E se pensamos no fato de que a teoria da justica comoliberdade e aquela da qual nasce a inspiracao para a teoria doEstado liberal, devemos concluir que a teoria do direito de Kantdeve ser considerada como urn dos fundamentos te6ricos doEstado liberal, como veremos melhor quando tratarmos do di-reito publico, na quarta parte do curso.

    "Se, portanto, a minha acao ou, em geral, 0meu esta-do, pode estar de acordo com a liberdade de qualqueroutro, segundo uma lei universal, agird de maneira in-justa com relacdo a mim aquele que eoloear obstaculospara mim, porque esse obstaculo (essa oposicao) naopode subsistir com a liberdade, segundo as leis univer-sais" (p. 407).Se, como aparece nesse trecho, a injustica consiste em colo-

    car obstaculos contra a liberdade, a justica devera consistir emeliminar esses obstaculos, ou seja, fazer com que cada urn pos-sa usufruir da liberdade que the pode ser consentida pela li-berdade igual dos outros, entendendo por liberdade aquelaesfera na qual nao se e obstaculado, em suma, a esfera do ruio-impedimento.

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    ]a foi dito que as varias teorias da justica podem ser con-tradit6rias com base no direito natural, considerado funda-mental por elas, ou seja, tal que de va ser garantido acima eantes de qualquer outro.o direito natural fundamental de uma teoria da justica comoliberdade e 0direito a liberdade. Kant, ap6s ter feito a distin-cao entre direitos inatos e adquiridos, definindo os primeiroscomo os que sao transmitidos pela natureza independentementede qualquer ato juridico, e os outros como aqueles que preci-sam de um ato juridico para a transmissao, intitula um breveparagrafo desta maneira: 0 direito inato e um s6. (p. 416). Equal e esse unico direito inato? Eo direito a liberdade externa.

    ou seja, 0usufruto da vida, da liberdade, atraves da aqui-sicao ou posse da propriedade, e 0buscar e obter felici-dade e seguranca."

    "Liberdade (. ..) enquanto pode subsistir com a liber-dade de qualquer outro segundo uma lei geral: e este 0direito unico origindrio que cabe a cada homem segundoa sua propria humanidade" (p. 416).

    Entre os direitos natura is, a primeira declaracdo dos direi-tos, a francesa (1789), colocava a liberdade, a propriedade, aseguranca e a resistencia contra a opressdo; a da ConvencaoNacional (1793) acrescentava a igualdade e a garantia social, ado Ato Constitucional de 1793 reduzia os direitos a estes qua-tro, liberdade, propriedade, seguranca e igualdade. Kant esfor-cou-se em reduzir a uma unidade 0fundamento do direitoeliminando todos os direitos inatos, exceto urn: a liberdade.Fazendo isso mostra que 0direito de liberdade e verdadeira-mente a base sobre a qual entende montar todo 0sistema.

    Outros direitos, que geralmente sao considerados como di-reitos inatos, entre os quais tambern 0da igualdade, para Kantestao "compreendidos no principio da liberda de inata e naodiferem realmente dela". Essa reducao drastica de todos os di-reitos que a tradicao do jusnaturalismo inclui entre os direitosinatos e, com base na tradicao do jusnaturalismo, as varias de-claracoes dos direitos emanadas antes do escrito de Kant revelamais do que outra consideracao, que e 0fundamento ultimodo ideal de justica segundo Kant. Apresentamos, como exem-plo de todas, a primeira declaracdo dos direitos, do Estado daVirginia (1776):

    "Todos os homens sao por natureza igualmente livrese independentes, e possuem alguns direitos inatos, dosquais, entrando no estado de sociedade, nao podem, atra-yes de convencao, privar ou despir a sua posteridade:

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    10 Na hist6ria do jusnaturalismo moderno considera-se quetenha sido Cristiano Thomasius 0primeiro a eliminar da esferado direito 0 direito imperfeito, definindo como verdadeiro so-mente 0 direito perfeito e reunindo assim, de maneira definiti-va, a nocao do dire i to com a de coacao. Ele distingue, na ativi-dade pratica do homem, tres esferas: 0 iusturn, 0 honestum, 0decorum. Uma vez que os deveres [uridicos tern os doiscaracteres de intersubjetividade e de exterioridade e sao, por-tanto, coerciveis, nao sao coerciveis os deveres morais, subjeti-vos e internos, nem os deveres do decorum, subjetivos e exter-nos. Falou-se que, com Thomasius, cornecou a distincaomoderna entre 0 direito e moral , fundada exatamente no cri te-rio da presenca ou da ausencia de coacao. E a partir deThomasius todos os fi l6sofos do direito tomaram posicao fren-te ao problema, ficando ou ao lado de Thomasius em favor dacoacao como elemento constitutivo da nocao do direito, oucontra ele, em favor da dissociacao entre a nocao de direito e ade coacao.Sem diivida Kant pertence ao primeiro grupo: para ele a

    nocao de dire ito e estritamente ligada a nocao da coacao. Vi-mos que urn dos criterios de distincao entre moral e direito,segundo Kant, e 0 que se fundamenta na liberdade interna ena liberdade externa; e que desse criterio nasce a caracteristicado dever juridico de referir-se a uma acao pela qual eu souresponsavel frente aos outros. Mas exatamente disso surge 0fato de que os outros tern 0 direito de me obrigar a cumpri-Io. Ainterioridade do dever moral atua de maneira que ninguempode obrigar-me a cumpri-Io; se alguern me obrigasse e eu ce-desse a coacao, a minha acao, somente pelo fato de ter sidocumprida, nao por dever, mas por causa da coercao, nao seriarnais moral. Pelo contrario, 0 dever juridico, sendo externo, noduplo sentido de que nao impoe a acao pelo dever, mas so-mente a acao conforme 0 dever, e que impoe uma acao pelaqual sou responsavel frente aos outros, suscita nos outros 0

    DIREITO E COA (,AO

    Entre os problemas gerais do direito ocupa sempre urnlugar central 0 problema da coacdo, ou da coercibilidade dodireito. Discutiu-se e se discute a toda hora se a coacao deves)r considerada elemento essencial do conceito de direito, istoe , se somente a norma feita valer coativamente pode ser consi-derada norma juridica.Os romanos distinguiram as leges perfectae das leges

    imperfectae: estas ultimas eram chamadas assim porque inclu-lam 0 preceito, mas nao a sancao. 0 que demonstra que para a'perfeicao' da lei era pedido que 0 preceito colocasse a disposi-cao os meios para sua atuacao tambern sobre os indecisos. Natradicao do jusnaturalismo foi seguida de maneira constante adistincao entre ius perfectum e ius imperJectum, entendendo-sepelo primeiro 0direito que pode ser aplicado tambern atravesda forca, ou, ern outras palavras, 0 direito para 0 cumprimentodo qual e licito recorrer tambem a forca e, pelo segundo, 0direito que nao pode ser aplicado por meio da forca ou, emoutras palavras, para 0 cumprimento do qual 0 usa da forcaseria considerado ilegitimo. Por exemplo, e perfeito 0 direitoque eu tenho frente a quem me prometeu algo (com base nanorma juridica fundamental pacta sunt seruanda), e imperfeitoo direito do pobre frente ao rico quando este tern com relacaoa ele 0 dever meramente moral de oferecer 0 superfluo. Con-cluindo, segundo a tradicao do jusnaturalismo, era perfeitosomente 0direito coercivel, ou seja, exigivel por meio da forca,

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    direito de obrigar e nao exclui 0 fato de poder ser cumpridosomente pelo impulso do medo da coacao. Emoutras palavras,uma vez que moral e coacao sao para Kant incompativeis, di-reito e coacao sao perfeitamente compativeis, no sentido deque nao ha nada no conceito de coacao, ou coercao, ou recur-so a forca para executar uma obrigacao, que seja incompatfvelcom 0coneeito do dever externo de legalidade ou dever jurfdi-co; pelo contrario, a coacao e necessaria para 0 cumprimentodo dever juridico, como vemos muito claramente neste trecho:

    "0direito estrito fundamenta-se sem duvida na cons-ciencia da obrigacao de cada urn de conforrnar-se a lei;mas, para determinar a vontade de obedecer a essa leiruio se deve e ndo se pode, se 0direito deve ser puro,invocar essa consciencia como um impulse, esse direi toapoia-se unicamente sobre 0principio da possibilidade deuma coercao externa que possa coexistir com a liberda-de de cada urn segundo leis gerais" (pp. 408-409).Emconformidade com esse principio, estabelecido tao clara-

    mente, da compatibilidade entre as nocoes de direito e de coa-c;:aoe da necessidade da coacao para a realizacao do direito,Kant define em diferentes circunstancias0direito subjetivo comofaculdade de obrigar. Consequentemente, e possivel dizer queao meu dever externo juridico corresponde, no outro, urn direitode me obrigar a cumprir (0 que nao aconteceria, se meu deverFosse apenas interno e moral) e que 0dever e juridico quandosurge no outro a faculdade de obrigar, fato em que consiste 0aspecto correlacionado e oposto ao dever juridico, ou seja, 0direito subjetivo. Com relacao a definicao do direito subjetivo,como faculdade de obrigar, veja-se0trecho seguinte:

    "Se, portanto, diz-se: urn credor tern 0direito de exi-gir do devedor 0pagamento da sua divida, isso nao sig-

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    nifica que ele possa demonstrar que sua pr6pria razao 0obriga a essa restituicao; quer dizer somente que umacoacao que obriga cada urn a fazer isso pode muito bernestar de acordo, segundo uma lei externa e geral, com aliberdade de cada urn e, portanto, tambern com a dele.Direito efaculdade de obrigar significam, portanto, umacoisa s6" (p. 409).Surge ainda urn problema: num primeiro tempo foi dado

    particular relevo ao coneeito do direito como liberdade, agorafoi salientado 0nexo necessario que existe entre direito e coa-cao, Mas 'liberdade' e 'coacao' nao sao dois termos antiteticos?Como e possivel falar do direito como de urn aspecto da liber-dade humana e ao mesmo tempo liga-lo necessariamente a coa-cao?Como se concilia a liberdade, que devo respeitar para cum-prir a lei juridica fundamental, com a coacao, que tenho 0direitode exercer?Kant preocupa-se com esta aparente antinomia e dapara ela uma resposta muito clara.

    E verdade que 0direito e liberdade; mas e liberdade limi-tada pela presenca da liberdade dos outros. Sendo a liberda-de limitada e sendo eu urn ser livre, pode acontecer que al-guern transgrida os limites que me foram dados. Mas, uma vezque eu transgrida os limites, invadindo com minha liberdadea esfera de liberdade do outro, torno-me uma ndo-liberdadepara 0 outro. Exatamente porque "0 outro e livre como eu,ainda que com uma liberdade limitada, tern0direito de repe-lir 0meu ato de nao-liberdade". Pe!o fato de que nao poderepeli-lo a nao ser por meio da coacao, esta se apresenta comourn ato de ndo-liberdade cumprido para repelir a ato de ndo-liberdade do outro e, portanto - uma vez que duas negacoesafirmam -, como urn ato restaurador de liberdade. A coacaoe, pois, urn coneeito antitetico com relacao a liberdade, mas,enquanto surge como rernedio contra uma nao-liberdade an-terior, e negacao da negacao e, entao, afirmacao, Portanto,

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    ainda que seja antitetica com relacao a liberdade, a coacao enecessaria para a conservacao da liberdade.Podemos esclarecer 0 mesmo conceito usando termos con-

    siderados geralmente como antiteticos, ' just ica' e 'forca' . Comopode acontecer de a forca ser necessaria para a justica? A forcae necessaria para a justica quando a sua tarefa e de repelir umaoutra forca que impede a atuacao da justica, ou seja, a forcainjusta. E possivel falar de dois usos da forca. de urn uso legiti-mo ou justo e de urn usa ilegftimo ou injusto, segundo se refiraa forca usada para obrigar ao respeito do direito violado oupara violar 0direito. Da mesma maneira a nao-liberdade oucoacao pode ser incornpativel ou compativel com a liberdade,segundo vise a violacao ou a restauracao da liberdade inicial.Diz Kant:

    "Quando urn certo usa da pr6pria liberdade e urn im-pedimento para a liberdade segundo leis universais (ouseja, e injusto), a coercao oposta a tal usa, enquanta ser-vepara impedir um obstdculo pasta a liberdade, esta deacordo com a pr6pria l iberdade, segundo leis universais,au seja, e justa."

    "A resistencia que e oposta aquilo que impede urnefeito serve como auxiliar para este efeito e concordacom ele" (p. 408).o que significa: 1) eu quero buscar de maneira legitima urn

    certo fim (efeito), por exemplo, cult ivar em paz a minha lavou-ra; 2) voce tenta impedir que eu faca isso, por exemplo, entran-do na minha propriedade e levando as sementes ernbora; 3) euresisto a esse ato, usando tarnbem a forca fisica. Bern: 4) a re-sistencia que eu oponho ao impedimento e a unica coisa queme permite alcancar 0 efeito. E Kant continua, concretizandoseu pensamento:

    "Tudo aquilo que e injusto e urn impedimenta para aliberdade enquanto esta esta submetida a leis universais ea coercdo e um obstdculo ou uma resistencia a liberdade."Isso significa que a coercao, como impedimento para a li-

    berdade, e injusta? Nao. E porque:

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    11Dots CASOS ANoMALOS

    Como vimos, Kant considera a coacao como urn meioindispensavel para a atuacao do direito e expressa esse con-ceito de maneira drastica: "Qualquer direito em sentido es-trito (ius strictum) inclui a faculdade de coagir". Mas admiteduas situacoes, ainda que consideradas pelo direito, nasquais acontece uma dissociacao entre direito e coacao, de-vendo, portanto, ser consideradas como excepcionais. Naprimeira existe urn direito sem coacdo, e e 0casu da equidade;na segunda existe uma coacdo sem direito, e e 0casu doestado de necessidade.

    Por 'equidade' entende-se tradicionalmente a 'justica do casuconcreto', ou seja, aquela justica que nasce nao da adequacaorigida a uma lei geral e abstrata, mas da adequacao a naturezamesma do casu particular, que apresenta algumas peculiarida-des com relacao a circunstancias de tempo, de lugar e outras;motivo pelo qual se fala que existem casos nos quais a solucaojusta (ou seja, segundo a lei) nao e equanime, e a solucao equa-nime nao e justa. Kant da0exemplo do servo ao qual foi paga,no final do ano, a sua recompensa com uma moeda que, nocursu do ano, se desvalorizara. Aqui 0contraste entre justicaentendida de maneira abstrata e equidade entendida como so-lucao a ser dada aquele casu particular e evidente. Segundo ajustica, 0servo deve ser pago com a quantia em moeda, assimcomo foi estabelecido. Mas esta solucao, que e justa, e tambernequanirne? Nao e ele defraudado por causa de urn evento (a

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    desvalorizacao) que nao e imputavel a ele? Portanto existemdois direitos que concorrem: urn direito segundo a justica, e eo direito de receber a quantia em dinheiro que foi estabelecida,e urn direito segundo a equidade, e e 0direito de receber naoa quantia, mas0valor. Qual dos dois deve prevalecer? Segun-do Kant, nao ha duvida: deve prevalecer 0primeiro; mas en-tao e claro que 0 servo tern urn direito (com base na equidade)que nao pode ser aplicado de maneira coativa, ou seja, ternurn direito sem coacao. Kant nao admite urn tribunal daequidade, ou seja, urn tribunal que julgue nao com base nasleis gerais e abstratas, mas casu por caso. E justifica esse fatoda seguinte maneira:

    "0 lema da equidade de fato e este: '0 maximo dejustica e 0maximo de iniquidade (summus ius, summainiuria)', mas a esse mal ndo e possivel remediar com baseno proprio direito, ainda que se trate de uma exigenciafundada nele, porque a equidade pertence somente aotribunal da consciencia (forum poli) , uma vez que, pelocontrario, cada questao de direito propriamente dito deveser levada ao tribunal civil ( forum soli)" (p. 411).Excluindo-se 0tribunal que julgue com base nos criterios

    de equidade, podemos dizer que quem se encontra na situacaodo servo tern urn direito, mas nao tern a coacdo para que sejaaplicado, porque 0tribunal, de cuja decisao depende a aplica-cao da coacao, decide nao com base na equidade, mas na jus-tica abstrata, ou seja, com base numa forma de justica diferentedaquela a qual 0servo teria vontade de recorrer.o 'estado de necessidade' e definido por Kant de forma par-cial (no sentido de que ele indica urn casu s6, 0mais tipico,entre todos aqueles que podem ser compreendidos nesta cate-goria) e incompleta (no sentido de que nao leva em conta to-dos os requisitos indispensaveis para caracterizar 0conceito):

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    "Este pretenso direito seria a autorizacao, que eu teriano caso de perigo de perda da minha vida, de tirar a vidaa urn outro que nao fez mal algum contra mim" (p. 412).

    Trata-se, em outras palavras, de uma oiolencia permitida con-tra mim. Para tornar didatico 0 exemplo comurn, aceito tam-bern por Kant, considere-se urn naufrago que para poder so-breviver impede urn outro naufrago de apanhar uma tabua ouurn salva-vidas; ou, para dar urn exemplo mais atual, 0 alpinis-ta que corta a corda por meio da qual 0 companheiro esta de-pendurado, no caso em que a corda, gasta, nao possa maisaguentar os dois. Kant considera 0 estado de necessidade comourn caso de ndo-punibilidade, apresentando a argumentacaode que a punicao com a qual a lei ameaca 0culpado nao pode-ria nunca ser tao grande para ser eficaz e, portanto, seria per-feitamente inutil: ninguem de fato poderia ser induzido a abs-ter-se de urn mal certo(aquele de morrer afogado ou destrocado)atraves da arneaca de urn mal menos certo (a condenacao pe-nal). 0 que entao diminuiria no estado de necessidade seria,portanto, nao a culpa, mas somente a pen a: 0 que significaque, para Kant, 0 ato cumprido no estado de necessidade einjusto, ainda que nao seja punido por motivos praticos. En-quanto ato culpavel, ao qual nao corresponde a pena, 0estadode necessidade pode ser considerado como uma coacao (ouato de forca ou de violencia) sem 0 direito correspondente.

    (Sera born advertir que a doutrina dominante hoje segueuma tese diferente da de Kant e nao classifica 0 estado de ne-cessidade entre as causas de exclusao da punibilidade, mas daculpabilidade. 0 estado de necessidade e previsto no art. S4do C6digo Penal Italiano.)

    Resumindo, eis como 0 pr6prio Kant identifica a diferencaentre os casos de equidade e estado de necessidade: no pri-meiro caso, "0 que cada urn por si mesmo, com bons motivos,reconhece como justo, pode nao encontrar confirmacao frente

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    a urn tribunal"; no segundo caso, "0 que ele mesmo deve julgarcomo injusto pode obter indulgencia e absolvicao deste". Aanomalia desses dois casos esta, portanto, no fato de que, en-quanto a normalidade da relacao entre direito e coacao exigeque 0 direito seja satisfeito, e 0 erro, remediado, aqui existe deurn lado urn dire ito ndo-satisfeito, do outro urn erro nao-reme-diado. Emoutras palavras, seria possivel dizer assim: a nature-za da justica implica que seja dada razao a quem tern razao enegada a quem nao a tern. Nos dois casos anomalos, porern,existe esta alteracao: no primeiro caso, uma pessoa tem razdo endo the e dada, no segundo caso, uma pessoa ruio a tem e lhee dada.

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