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    A MORTE DO AUTOR

    According to Barthes--no, I must not say "according to Barthes."Moreover, I must not say "I"; or if I do, I must acknowledge that as soon asI write the pronoun, it ceases to bear any relation to the extra-textualhuman being who wrote it:"Writing is that . . . space . . . where all identity is lost, starting with the

    very identity of the body writing." There is only the text. Damn! Better makethe text the subject of the sentence.

    "The Death of the Author" states that all writing--no, writing canstate nothing about writing or about anything else. The text is irrevocablycut off from that of which it attempts to speak: "the book itself is only atissue of signs, an imitation that is lost, infinitely deferred."

    Rather, writing is, as the linguists say, performative. "Call meIshmael" indistinguishable in function from "I now pronounce you man andwife." And not only in function, but also in substance, because "the text is . .. a multi-dimensional space in which a variety of writings, none of them

    original, blend and clash." Originality being impossible, all writings mustbear essentially the same meaning. Not that anybody can know thatmeaning: "writing ceaselessly posits meaning ceaselessly to evaporate it."So there.

    Now put this one in your pipe and smoke it: "In the multiplicity ofwriting, everything is to be disentangled, nothing deciphered." One mightwonder how to disentangle without deciphering, since things cannot beseparated from each other without first being identified as different fromeach other; but never mind.

    Far from demonstrating that the author is dead, this essay stands asa monument to the monstrous arrogance of a man whose authority derivessolely from his talent for uttering absolute rubbish in a tone of vaticinfallibility. "The Death of the Author" blows itself to pieces. I don't see howI can possibly be expected to summarize it. (Steve Schroer)

    Na sua novela Sarrasine, Balzac, falando de um castrado disfarado de mulher,escreve esta frase: Era a mulher, com os seus medos sbitos, os seus caprichos semrazo, as suas perturbaes instintivas, as suas audcias sem causa, as sua bravatase a sua deliciosa delicadeza de sentimentos - Quem fala assim? Ser o heri danovela, interessado em ignorar o castrado que se esconde sob a mulher? Ser oindividuo Balzac, provido pela sua experincia pessoal de uma filosofia da mulher?Ser o autor Balzac, professando idias literrias sobre a feminilidade? Ser asabedoria universal? A psicologia romntica? Ser para sempre impossvel sab-lo,pela boa razo de que a escrita destruio de toda a voz, de toda a origem. Aescrita esse neutro, esse compsito, esse obliquo para onde foge o nosso sujeito, opreto-e-branco aonde vem perder-se toda a identidade, a comear precisamente pelado corpo que escreve.

    Sem dvida que foi sempre assim: desde o momento em que um fato contado, para fins intransitivos, e no para agir diretamente sobre o real, quer dizer,finalmente fora de qualquer funo que no seja o prprio exerccio do smbolo,

    produz-se este desfasamento, a voz perde a sua origem, o autor entra na sua prpriamorte, a escrita comea. Todavia, o sentimento deste fenmeno tem sido varivel;nas sociedades etnogrficas no h nunca uma pessoa encarregada da narrativa, masum mediador, chmane ou recitador, de que podemos em rigor admirar a prestao

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    (quer dizer, o domnio do cdigo narrativo), mas nunca o gnio. O autor umapersonagem moderna, produzida sem dvida pela nossa sociedade, na medida emque, ao terminar a idade Mdia, com o empirismo ingls, o racionalismo francs e a fpessoal da Reforma, ela descobriu o prestigio pessoal do indivduo, ou como se dizmais nobremente, da pessoa humana. pois lgico que, em matria de literatura,tenha sido o positivismo, resumo e desfecho da ideologia capitalista, a conceder amaior importncia pessoa do autor.

    O autor reina ainda nos manuais de histria literria, nas biografias deescritores, nas entrevistas das revistas, e na prpria conscincia dos literatos,preocupados em juntar, graas ao seu dirio intimo, a sua pessoa e a sua obra; aimagem da literatura que podemos encontrar na cultura corrente tiranicamentecentrada no autor, na sua pessoa, na sua histria, nos seus gostos, nas suas paixes;a crtica consiste ainda, a maior parte das vezes, em dizer que a obra de Baudelaire o falhano do homem Baudelaire, que a de Van Gogh a sua loucura, a deTchaikowski o seu vcio: a explicao da obra sempre procurada do lado de quem aproduziu, como se, atravs da alegoria mais ou menos transparente da fico, fosse

    sempre afinal a voz de uma s e mesma pessoa, o autor, que nos entregasse a suaconfidencia.

    Apesar de o imprio do Autor ser ainda muito poderoso (a nova crtica no fezmuitas vezes seno consolid-lo), evidente que certos escritores j h muito tempotentaram abal-lo.

    Em Frana, Mallarm, sem dvida o primeiro, viu e previu em toda a suaamplitude a necessidade de pr a prpria linguagem no lugar daquele que at entose supunha ser o seu proprietrio; para ele, como para ns, a linguagem que fala,no o autor; escrever , atravs de uma impessoalidade prvia - impossvel dealguma vez ser confundida com a objetividade castradora do romancista realista -atingir aquele ponto em que s a linguagem atua, performa, e no eu: toda apotica de Mallarm consiste em suprimir o autor em proveito da escrita (o que ,como veremos, restituir o seu lugar ao leitor).

    Valry, muito envolvido numa psicologia do Eu, edulcorou muito a teoriamallarmeana, mas, reportando-se por gosto do classicismo s lies da retrica, nocessou de pr em dvida e em irriso o Autor, acentuou a natureza lingstica e comoque arriscada da sua atividade, e reivindicou sempre, ao longo dos seus livros emprosa, em favor da condio essencialmente verbal da literatura, perante a qualqualquer recurso interioridade do escritor lhe parecia pura superstio.

    O prprio Proust, a despeito do carter aparentemente psicolgico daquilo a quechamam as suas anlises, atribuiu-se visivelmente a tarefa de confundirinexoravelmente, por uma subtilizao extrema, a relao entre o escritor e as suaspersonagens:

    Ao fazer do narrador, no aquele que viu ou sentiu, nem sequer aquele queescreve, mas aquele que vai escrever(o jovem do romance - mas, afinal, que idadetem ele, e quem ele? quer escrever, mas no pode, e o romance termina quando

    finalmente a escrita se torna possvel), Proust deu escrita moderna a sua epopia.

    Por uma inverso radical, em lugar de pr a sua vida no seu romance, como sediz freqentemente, fez da sua prpria vida uma obra, da qual o seu livro foi como

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    que o modelo, de modo que nos fosse bem evidente que no Charlus que emitaMontesquiou, mas que Montesquiou, na sua realidade anedtica, histrica, no seno um fragmento secundrio, derivado, de Charlus.

    O Surrealismo enfim, para ficarmos por esta pr-histria da modernidade, nopodia atribuir linguagem um lugar soberano, na medida em que a linguagem sistema, uma subverso direta dos cdigos alis ilusria, porque um cdigo no se

    pode destruir, apenas podemos jog-lo; mas, ao recomendar sem cessar a ilusobrusca dos sentidos esperados (era o famoso safano surrealista), ao confiar moa preocupao de escrever to depressa quanto possvel o que a prpria cabeaignora (era a escrita automtica), ao aceitar o principio e a experincia de umaescrita a vrios, o Surrealismo contribuiu para dessacralizar a imagem do Autor.

    Enfim, de fora da prpria literatura (a bem dizer, estas distines tornam-seobsoletas), a lingstica acaba de fornecer destruio do Autor um instrumentoanaltico precioso, ao mostrar' que a enunciao inteiramente um processo vazioque funciona na perfeio sem precisar de ser preenchido pela pessoa dos'

    'interlocutores'; linguisticamente, o autor nunca nada mais para alm daquele queescreve, 'tal' como eu no seno aquele que diz eu: a linguagem conhece umsujeito, no uma pessoa, e esse sujeito, vazio fora da prpria enunciao que odefine, basta para fazer suportar a linguagem, quer dizer, para a esgotar.

    O afastamento do Autor (com Brecht, poderamos falar aqui de um verdadeirodistanciamento,' diminuindo o Autor como uma figurinha l ao fundo da cenaliterria) no apenas um fato histrico ou um ato de escrita: ele transforma deponta a ponta o texto moderno (ou o que a mesma coisa - o texto a partir deagora feito e lido de tal sorte que nele, a todos os seus nveis, o autor se ausenta). Otempo, em primeiro lugar, j no o mesmo.

    O Autor, quando se acredita nele, sempre concebido como o passado do seuprprio livro: o livro e o autor colocam-se a si prprios numa mesma linha, distribudacomo um antes e um depois: supe-se que o Autor alimenta o livro, quer dizer queexiste antes dele, pensa, sofre, vive com ele; tem com ele a mesma relao deantecedncia que um pai mantm com o seu filho.

    Exatamente ao contrrio, o scriptormoderno nasce ao mesmo tempo que o seutexto; no est de modo algum provido de um ser que precederia ou excederia a suaescrita, no de modo algum o sujeito de que o seu livro seria o predicado; noexiste outro tempo para alm do da enunciao, e todo o texto escrito eternamenteaquie agora.

    que (ou segue-se que) escrever j no pode designar uma operao deregisto, de verificao, de pintura (como diziam os Clssicos), mas sim aquilo a queos lingistas, na, seqncia da filosofia oxfordiana, chamam um performativo, formaverbal rara (exclusivamente dada na primeira pessoa e no presente), na qual aenunciao no tem outro contedo (outro enunciado) para alm do ato pelo qual proferida: algo como o Eu declaro dos reis ou o Eu canto dos poetas muito antigos;

    O scriptormoderno, tendo enterrado o Autor, j no pode portanto acreditar,segundo a viso pattica dos seus predecessores, que a sua mo demasiado lentapara o seu pensamento ou a sua paixo, e que em conseqncia, fazendo uma lei danecessidade, deve acentuar esse atraso e trabalhar indefinidamente a sua forma;

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    para ele, ao contrrio, a sua mo, desligada de toda a voz, levada por um puro gestode inscrio (e no de expresso), traa um campo sem origem - ou que, pelomenos, no tem outra origem para l da prpria linguagem, isto , exatamente aquiloque repe incessantemente em causa toda a origem.

    Sabemos agora que um texto no feito de uma linha de palavras, libertandoum sentido nico, de certo modo teolgico (que seria a mensagem do Autor-Deus),

    mas um espao de dimenses mltiplas, onde se casam e se contestam escritasvariadas, nenhuma das quais original: o texto um tecido de citaes, saldas dosmil focos da cultura.

    Parecido com Bouvard e Pcuchet, esses eternos copistas, ao mesmo temposublimes e cmicos, e cujo profundo ridculo designa precisamente a verdade daescrita, o escritor no pode deixar de imitar um gesto sempre anterior, nunca original.

    O seu nico poder o de misturar as escritas, de as contrariar umas s outras,de modo a nunca se apoiar numa delas; se quisesse exprimir-se, pelo menos deveria

    saber que a coisa interior que tem a pretenso de traduzir no passa de umdicionrio totalmente composto, cujas palavras s podem explicar-se atravs deoutras palavras, e isso indefinidamente: aventura que adveio exemplarmente aojovem Thomas de Quincey, tio bom em grego que, para traduzir para esta lnguamorta idias e imagens absolutamente modernas, diz-nos Baudelaire, tinha criadopara si um dicionrio sempre pronto, muito mais complexo e extenso do que aqueleque resulta da vulgar pacincia dos temas puramente literrios (Os ParasosArtificiais).

    Sucedendo ao Autor, o scriptor no tem j em si paixes, humores,sentimentos, impresses, mas sim esse imenso dicionrio onde vai buscar umaescrita que no pode conhecer nenhuma paragem: a vida nunca faz mais do queimitar o livro, e esse livro no ele prprio seno um tecido de signos, imitaoperdida, infinitamente recuada.

    Uma vez o autor afastado, a pretenso de decifrar um texto torna-setotalmente intil. Dar um Autor a um texto impor a esse texto um mecanismo desegurana, dot-lo de um significado ltimo, fechar a escrita.

    Esta concepo convm perfeitamente critica, que pretende ento atribuir-sea tarefa importante de descobrir o Autor (ou as suas hipstases: a sociedade, ahistria, a psique, a liberdade) sob a obra: encontrado o Autor, o texto explicado,o critico venceu; no h pois nada de espantoso no fato de, historicamente, o reinodo Autor ter sido tambm o do Critico, nem no de a critica (ainda que nova) ser hojeabalada ao mesmo tempo que o Autor.

    Na escrita moderna, com efeito, tudo est por deslindar, mas nada est pordecifrar; a estrutura pode ser seguida, apanhada (como se diz de uma malha demeia que cai) em todas as suas fases e em todos os seus nveis, mas no h fundo; oespao da escrita percorre-se, no se perfura; a escrita faz incessantemente sentido,mas sempre para o evaporar; procede a uma iseno sistemtica do sentido, por

    isso mesmo, a literatura (mais valia dizer, a partir de agora, a escrita), ao recusarconsignar ao texto (e ao mundo como texto) um segredo, quer dizer, um sentidoltimo, liberta uma atividade a que poderamos chamar contra4eolgica,propriamente revolucionria, pois recusar parar o sentido afinal recusar Deus e as

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    suas hipstases, a razo, a cincia, a lei.

    Regressemos frase de Balzac. Ningum (isto , nenhuma pessoa) a disse: asua origem, a sua voz no o verdadeiro lugar da escrita, a leitura. Um exemplo,bastante preciso, pode faz-lo a compreender: investigaes recentes (J.-P. Vernant)trouxeram luz a natureza constitutivamente ambgua da tragdia grega; o texto nela tecido com palavras de duplo sentido, que cada personagem compreende

    unilateralmente (este perptuo mal-entendido precisamente o trgico); hcontudo algum que entende cada palavra na sua duplicidade, e entende, alm disso,se assim podemos dizer, a prpria surdez das personagens que falam diante dele:esse algum precisamente o leitor (ou, aqui, o ouvinte).

    Assim se revela o ser total da escrita: um texto feito de escritas mltiplas,sadas de vrias culturas e que entram umas com as outras em dilogo, em pardia,em contestao; mas h um lugar em que essa multiplicidade se rene, e esse lugarno o autor, como se tem dito at aqui, o leitor: o leitor o espao exato em quese inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citaes de que uma escrita

    feita; a unidade de um texto no est na sua origem, mas no seu destino, mas estedestino j no pode ser pessoal: o leitor um homem sem histria, sem biografia,sem psicologia; apenas esse algum que tem reunidos num mesmo campo todos ostraos que constituem o escrito.

    por isso que irrisrio ouvir condenar a nova escrita em nome de umhumanismo que se faz hipocritamente passar por campeio dos direitos do leitor. Oleitor, a critica clssica nunca dele se ocupou; 'para ela, no h na literatura qualqueroutro homem para alm daquele que escreve. Comeamos hoje a deixar de nos iludircom essa espcie de antifrases pelas quais a boa sociedade recrimina soberbamenteem favor daquilo que precisamente pe de parte, ignora, sufoca ou destri; sabemosque, para devolver escrita o seu devir, preciso inverter o seu mito: o nascimentodo leitor tem de pagar-se com a morte do Autor.

    BARTHES, Roland. A Morte do Autor. In: BARTHES, Roland. O Rumor da Lngua, Lisboa,Edies 70, 1987.