Avessos Da Cidadania DENISE FONSECA Pucsp
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DENISE FARIAS DA FONSECA
AVESSOS DE CIDADANIA: UM EXERCICIO ANALITICO
MESTRADO: PSICOLOGIA CLINICA
PUC SO PAULO1997
DENISE FARIAS DA FONSECA
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AVESSOS DE CIDADANIA: UM EXERCICIO ANALITICO
Dissertao apresentada Banca Examinadorada Pontifcia Universidade Catlica de SoPaulo, como exigncia parcial para obteno dotitulo de MESTRE em Psicologia Clinica:estudos e Pesquisa da Subjetividade, sob aorientao do Prof. Doutor Pater Pl Pelbart.
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RESUMO
Este trabalho prope pensar a noo de cidadania no mbito da produo de
subjetividades, ramificando-se em trs direes. A primeira um esforo para produzir uma
anlise da noo de cidadania no mundo moderno, voltada para as conexes entre
elementos que compem o iderio liberal europeu, suas relaes com a constituio de uma
subjetividade capitalstica e conseqentemente com os processos de produo da noo de
cidadania enquanto um dos modos possveis de produzir este tipo de subjetivao.
A segunda direo vai percorrer alguns elementos de produo da noo de
cidadania no Brasil, propondo uma anlise desta produo a partir do confronto entre
diferentes tipos de fora em relao. Confronto de onde emergem tanto os sentidos e
valores em conformidade com princpios de ordenao de uma suposta matriz cidad
quanto as linhas desobedientes que por este motivo sofreram, e ainda sofrem, inmeros
embaraos.
A terceira e ltima direo, aberta para novas conexes, prope ultrapassar a
dicotomia cidadania consentida X cidadania conquistada, sugerindo pensar a noo de
cidadania produzida. Aponta para o engendramento de um tipo de vontade-de-cidadania
que se alastrou pelo corpo social brasileiro produzindo, sustentando e dissimulando os
mesmos tipos de degenerao das condies de vida que tanto repelimos. Para
problematizar alguns afeitos desta vontade, aponta para uma experimentao no campo da
tica visando a produo de outros modos de subjetivao possvel, engendrados atravs de
composies tico-polticas germinadas nos arredores da cidadania.
Trata-se, em suma, de um exerccio que visa por em anlise alguns sentidos e
valores que impregnam o nosso corpo sejam eles liberais, neoliberais ou
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qualquer similar fundado na diminuio da potncia dos corpos e coextensivamente no
enfraquecimento do corpo social.
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AVESSOS DE CIDADANIA: UM EXERCCIO ANALTICO
INTRODUO ....................................................................................................................1
1. AVESSOS DE CIDADANIA NO MUNDO MODERNO ......................................... 10
1.1 A Renncia como Prova de Civilidade ......................................................................... 13
1.2 O Consentimento como Sinal de Racionalidade e Garantia da Propriedade .................20
1.3 A Perspectiva da Vontade Geral ................................................................................... 27
1.4 Uma Nova Mecnica do Poder ..................................................................................... 32
1.5 Consumo e Controle ..................................................................................................... 37
2.AVESSOS DO AVESSO: O EMBARAO DAS LINHAS DESOBEDIENTES...43
2.1 Quem inventa o Cidado? ............................................................................................. 46
2.2 As Foras de Ordenao e de Higiene ......................................................................... .54
2.3 Foras do Desenvolvimento e da Segurana ................................................ ................61
2.4 A Imobilizao do Corpo Social como Condio de Estabilidade .......................... .75
3. EXERCCIO ANALTICO E TURBULNCIAS TICO-POLTICAS ................84
3.1 Cidadania e Processo de Subjetivao ..........................................................................86
3.2 A Vontade-de-Cidadania no Brasil ...........................................................................93
3.3 Uma Urgncia tico-Poltica ......................................................................................100
3.4 Qualidades e Estados do Cidado ...............................................................................108
ALGUMAS CONSIDERAES .................................................................................114
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ........................................................................ 117
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AVESSOS DE CIDADANIA: UM EXERCCIO ANALTICO
INTRODUO
... Ns nos dirigimos aos inconscientes que protestam.Buscamos aliados. Precisamos de aliados. E temos a impressode que esses aliados j existem, que eles no esperaram porns, que tem muita gente que est farta, que pensa, sente etrabalha em direes anlogas: no questo de moda, mas deum ar do tempo mais profundo, em que pesquisasconvergentes esto sendo realizadas em domnios muitodiversos...
(Deleuze, 1992, p.34)
O Encontro com a Cidadania
No estaramos exagerando se dissssemos que a palavra cidadania uma das mais
invocadas e aplicadas no atual momento brasileiro. Porm, poderamos dizer, ao mesmo
tempo, ser a cidadania um conjunto de prticas pouco colocado em anlise, tratada com
mais freqncia apenas como um direito inquestionvel, restando-nos somente ou esforos
para sua aquisio ou o ressarcimento por no t-la adquirido.
Nossa pretenso durante esse percurso s avessas ser poder afirmar a noo de
cidadania como uma produo. Uma produo histrica, um conjunto de prticas, um modo
de subjetivao ao qual corresponder o aparecimento de um tipo de corpo: o cidado.
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Propor uma anlise da noo de cidadania no mbito da subjetividade implica como
ponto de partida tornar claro que estamos falando em desacordo com toda uma tradio
filosfica e psicolgica de pensar a subjetividade como relacionada a uma identidade
individual, ou como uma espcie de entidade centrada no indivduo. Trata-se, ao contrrio,
de pensar a subjetividade como um efeito da conexo entre um conjunto heterogneo de
sistemas de referncia econmicos, polticos, tecnolgicos bem como de sistemas
afetivos, perceptivos, corporais, inconscientes etc.
Tal perspectiva apresentada ao longo da obra de Flix Guattari uma das principais
inspiraes desse exerccio analtico, na medida em que passamos a entender o conjunto de
prticas que aprendemos a conhecer pelo nome de cidadania, enquanto parte desse
complexo de fabricao, reproduo e suporte de um tipo de subjetividade. Neste sentido, a
noo de cidadania no pode ser pensada nem alm, nem aqum, nem ao lado dos
processos de produo de subjetividade, mas sim, como um modo de subjetivao. Uma
maneira de produzir condies de vida coletiva, relaes cotidianas, sensibilidades,
vontades etc.
Se a cidadania se apresenta para ns como uma produo, ser necessrio, durante o
nosso percurso, nos desvencilharmos de possveis armadilhas do senso comum, para
tentarmos ir ao encontro de algumas foras que lhe emprestam sentido. Cabe ento evocar a
idia nietzscheana de que a histria de alguma coisa geralmente ... a sucesso de foras
que dela se apodera e a coexistncia das foras que lutam para dela se apoderar.1 Todo
sentido, neste caso, ser inscrito em um jogo de foras que o condicionam e determinam
sua direo, que tanto pode se ajustar como pode provocar rupturas nos processos de
dominao e explorao do corpo social.
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1 DELEUZE, G. Nietzsche e a Filosofia. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976. p.03.
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Nosso percurso, marcado por transtornos e tentativas, se abre a uma ramificao em
trs direes.
Na primeira, tomamos o rumo dos avessos de cidadania a partir de seu percurso
ocidental moderno. Sugerimos neste caso, com base no pensamento de Flix Guattari, que
uma das caractersticas mais marcantes da produo de subjetividade a partir da
consolidao do capitalismo no mundo moderno o esvaziamento do carter processual da
existncia e a supervalorizao dos processos de normatizao e de centralizao ...em
torno de uma imagem, de um consenso subjetivo referido e sobrecodificado por uma lei
transcendental.2
Se assim, podemos observar que os diferentes dispositivos postos a servio da
confeco de civilidade no mundo moderno no s tomaram parte nessa produo, como
serviram de suporte aos efeitos hegemnicos dessa economia poltica e subjetiva. Inclui-se
neste caso, os diferentes princpios que serviram de base de sustentao do iderio liberal
europeu e conseqentemente da noo de cidadania que lhe correspondente: a idia de
renncia em favor da segurana que atravessa a produo do princpio de Estado, a idia de
consentimento em favor da preservao da propriedade que engendra a produo do
princpio de mercado e a idia de vontade geral que sustenta o princpio de comunidade.
Tais princpios heterogneos e complementares puderam consolidar a distino Estado-
Sociedade reatando ao mesmo tempo suas ligaes atravs da idia liberal de contrato-
social.
Trata-se de processos no lineares e aparentemente contraditrios que vo
possibilitar o aparecimento de um tipo de homem ao mesmo tempo em que vo implicar o
funcionamento de uma srie de dispositivos de assujeitamento e obedincia com o
conseqente enfraquecimento poltico do corpo social, condio fundamental para a
construo do capitalismo industrial.
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2 GUATTARI, F., ROLNIK, S. Micropoltica: cartografias do desejo. Petrpolis: Vozes, 1986. p.40.
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Sob este ponto de vista o cidado ser um dos efeitos dessa produo, do mesmo
modo que todas as crenas e valores a ele atribudos e dele propagados, a saber: identidade,
privacidade, liberdade, autonomia para gerir e defender seus bens, igualdade e felicidade.
O que se est propondo pensar que todo fenmeno correlato a um conjunto de
prticas e no existe antes delas. Sendo assim, impe-se problematizar a idia de uma
Cidadania que se pe na histria como uma meta a ser atingida, variando conforme as
diferentes atitudes daqueles que desejam alcan-la.
Logo, longe de querer desvendar o que teria se passado numa origem da cidadania,
importa-nos puxar algumas linhas que, do nosso ponto de vista, ajudaram a tecer sentidos
heterogneos, porm complementares, daquilo que passamos a reconhecer e a almejar
enquanto A Cidadania.
Pretendemos assinalar que as idias liberais, em seu solo primordial, tomaram
rumos diversos, muitas vezes divergentes entre si e com efeitos totalmente alheios aos seus
firmes propsitos. Trata-se de afirmar que a noo de cidadania, alm de sofrer
diferenciaes, vai funcionar, simultaneamente, como efeito e como instrumento da
economia poltica e subjetiva que lhe for correspondente.
Assim, tomamos o rumo dos avessos do avesso: segunda direo, onde se
pretende ultrapassar a mera constatao de que no Brasil inexistem os direitos e os
deveres que lhes so correspondentes pautados nos ideais de liberdade, igualdade,
fraternidade etc., para arriscar encarar a noo de cidadania na positividade do seu carter
produtivo, ou seja, na sua funo estratgica.
Vrios autores preocuparam-se em analisar as relaes entre os ideais do liberalismo
europeu e as prticas sociais brasileiras observando que estas idias da chamada
modernidade ocidental, ao penetrarem no Brasil, vo coexistir com idias antagnicas e at
mesmo incompatveis. Destacamos neste percurso, as anlises de Schwarz (1977), DaMatta
(1985), Carvalho (1987) que servem de suporte para anlises mais recentes sobre o assunto.
o caso de Figueiredo (1994) que, ao
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retomar elementos da obra de Roberto DaMatta e Roberto Schwarz, traa algumas
consideraes importantes sobre modos de subjetivao no Brasil.
A despeito das diferenas marcadas por cada uma dessas interpretaes, interessa-
nos destacar que elas compartilham uma espcie de eixo comum, a saber: afirmam o quanto
complicado querer explicar o Brasil a partir de modelos importados da experincia
moderna ocidental. E, mais do que isso, indicam que a conexo das idias liberais com a
tradio colonial escravista brasileira vai, conseqentemente, produzir obstculos para o
desenvolvimento da cidadania no Brasil.
Embora tais argumentaes reforcem a nossa ateno em direo ao campo das
conexes, o que nos interessa, no entanto, diferentemente das interpretaes destacadas,
afirmar este campo como um campo de foras de onde emergem tanto os sentidos e os
valores obedientes aos princpios de ordenao de uma subjetividade cidad, quanto
aqueles totalmente avessos a qualquer tipo de modelizao.
Interessa-nos ainda apontar de que maneira os processos de diferenciaes
brasileiros mediante as foras que delas se apoderaram foram sendo capturados e
despotencializados em nome de uma idia matriz cidad.
Deste ponto de vista, sugerimos o termo avessos para poder pensar tanto as linhas
marcadas pela idia de oposio quanto aquelas totalmente alheias s ordenaes que foram
produzindo esse Brasil avesso e seus avessos...
Tomamos emprestadas algumas anlises e alguns fragmentos de pesquisas de
autores brasileiros na tentativa de ir produzindo uma espcie de encaixe dentre as diferentes
foras que, da nossa perspectiva, constituram uma Vontade-de-Cidadania no Brasil, por
mais paradoxal que isto possa parecer.
Este exerccio que chamamos de analtico, esboado principalmente a partir da
perspectiva proposta por Flix Guattari, implica numa disponibilidade para perseguir
parmetros analticos os mais afastados possveis das ordenaes e da
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modelizao imposta pelos processos hegemnicos de subjetivao. Trata-se do esforo de
apreenso da coextensividade subjetividade/realidade social material e de reflexo de como
... reproduzimos (ou no) os modos de subjetivao dominantes.3 Alm disso
compreende tentativas de construo de instrumentos conceituais que sirvam para pr em
xeque o que persiste em ns de f nos princpios transcendentes como organizadores da
nossa subjetividade4 incluindo, neste caso, a f nas leis que ordenam a subjetividade
capitalstica e que, do nosso ponto de vista, so capazes de produzir as maneiras pelas quais
nos relacionamos at mesmo nossas relaes inconscientes incidindo nos modos ...
como se trabalha, como se ensinado, como se ama, como se trepa, como se fala.5
Este o rumo da nossa terceira direo, repleto de interrogaes e atropelos
engendrados por este exerccio complexo interessado em problematizar a relao entre a
produo da noo de cidadania conforme alguns elementos de sua constituio no
Brasil e a produo de subjetividade.
Se aceitamos esta espcie de linha de montagem subjetiva porque, conforme
observa Guattari,
... partimos do pressuposto de que esta a ordem do mundo,ordem que no pode ser tocada sem que se comprometa aprpria idia de vida social organizada.
(Guattari e Rolnik, 1986, p.42)
Deste modo, para alm da antiga dicotomia cidadania consentida X cidadania
conquistada sugere-se pensar a noo de cidadania produzida: manufaturada enquanto
efeito e instrumento de determinadas relaes de fora. Neste caso, suas conseqncias
indesejveis e suas deficincias no so seno sua
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3 Idem. p.133.4 ROLNIK, Suely. Esboo de uma cartografia da prtica analtica. So Paulo: PUC, 1995. p..01.
mimeo.5 GUATTARI, F., ROLNIK, S. Micropoltica: cartografias do desejo. Petrpolis: Vozes, 1986. p.42.
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eficcia, seus efeitos produtivos (desde que) interpretados do ponto de vista das foras que
as constituram.
Ultrapassar esta dicotomia implica pr em anlise uma espcie de subjetividade
cidad forjada a partir de uma determinada vontade-de-cidadania que, implcita ou
explicitamente, arrasta o nosso pensamento para longe do cotidiano brasileiro produzindo,
sustentando e dissimulando os mesmos tipos de degenerao das condies de vida que
tanto repelimos.Para problematizarmos alguns efeitos deste tipo de vontade
empreendemos uma experimentao no campo da tica, visando esboar outras
composies germinadas nos arredores da cidadania.
Da elegermos, como ferramenta conceitual, elementos que compem o pensamento
de Flix Guattari, suas conexes com a filosofia de Deleuze fertilizadas pelas idias de
Espinosa, Foucault e Nietzsche bem como a pesquisa e os estudos de diferentes autores
interessados em engendrar fatores de resistncia no campo da subjetividade.
Pr-em-Anlise, aqui entendemos como exerccio de esmiuar e desarticular
prticas totalizadoras que atravessam e modelam o corpo social. Como uma das maneiras
possveis de apostar na criao e na sustentao de vias de acesso aos processos de
transformao. Uma maneira de recusar os modos preestabelecidos de controle e regulao
do corpo social. Recus-los para tentar construir,
... modos de sensibilidade, modos de relao comoutro, modos de produo, modos de criatividadeque produzam uma subjetividade singular. Umasingularizao existencial que coincida com umdesejo, com um gosto de viver, com uma vontadede construir o mundo no qual nos encontramos, coma instaurao de dispositivos para mudar os tiposde sociedade, os tipos de valores que no so osnossos.. (Guattari e Rolnik, 1986, p.17)
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Para alm da interferncia de um analista, esta perspectiva indica o acontecimentocomo promotor de questes analticas e os agentes sociais em suas mltiplasvariaes como agentes de provoc-ao6, mediante os agenciamentos queconsigam pr para funcionar.
Trata-se de compor com a maior variao possvel de elementos a fim de produzir o
que Guattari chamou de componentes de passagem. Componentes que ... fazem
emergir de repente outras coordenadas, permitindo encontrar uma sada7. Permitindo,
quem sabe, fazer as paixes tristes dobrarem-se s paixes alegres com vistas a ...
modificar a direo do desejo e aumentar a potncia do nosso corpo.8
Designamos por corpo toda espcie de individuao complexa constituda por uma
multiplicidade de componentes heterogneos9, podendo aparecer caracterizada sob a
forma de um personagem individual ou sob a forma de organizaes sociais,
institucionais etc. Deste corpo, no sabemos o quanto ele pode, ... quais so as suas
foras nem o que elas preparam.10 Por este motivo podemos afirmar que todo corpo
biolgico, social, poltico etc. possui uma espcie de tenso, uma potncia
singular que o faz diferente de qualquer outro e diferente at de si mesmo durante sua
prpria existncia.
Assim, uma prtica analtica se constitui como um processo de experimentao de
articulaes funcionais e de sustentao de condies favorveis para que estas
potncias singulares no sejam sistematicamente neutralizadas e possam vir a funcionar
como disparadoras de processos diferenciados e criadores.
6 RODRIGUES, Heliana de Barros Conde. Psicanlise e anlise institucional. In: Grupos eInstituies em Anlise. Rio de Janeiro: Ed. Rosa dos Tempos, 1992. p.48.
7 Idem. p.222.8 Espinosa. Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1979. p.250.9 A noo de corpo aqui apresentada inspira-se no pensamento de Espinosa, onde o corpo
entendido como um complexo de corpos menores e constitudo por relaes de movimento erepouso. Ver Espinosa. Os Pensadores, So Paulo: Abril Cultural, 1979. p.149.
10 DELEUZE, G. Nietzsche e a Filosofia. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976. p.32.
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Se o modo capitalstico de produzir subjetividade se disseminou em escala mundial
contaminando todo o corpo social, no conseguiu conforme afirma Guattari evitar o
choque constante e os pontos de ruptura com os processos que ainda resistem ortopedia e
ao empobrecimento total dos modos de subjetivao.
Por acreditar nesta afirmao somos impelidos a pensar que precisamos aproveitar
todos os recursos que estiverem ao nosso alcance para favorecer os processos de resistncia
que atravessam as sociedades e os grupos sociais. E ainda, mais que isso, para produzir toda
espcie de curto-circuito possvel nos sistemas de manuteno dos modos de subjetivao
dominantes.
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1. AVESSOS DE CIDADANIA NO MUNDO MODERNO
... Os direitos do homem no nos obrigaro a abenoar asalegrias do capitalismo liberal do qual eles participamativamente.No h Estado democrtico que no esteja totalmentecomprometido nesta fabricao de misria humana.
(Gilles Deleuze, 1992, p.213)
A Europa do sculo XVII tem como trao marcante a ecloso de inmeras e radicais
mudanas. A Inglaterra, em especial, tornou-se cenrio de novas composies poltico-
subjetivas que vo evidenciar o processo de ruptura com sentidos e valores vigentes no
mundo medieval. So mudanas econmicas, conflitos religiosos rompendo com a
hegemonia catlica, invenes no campo da cincia e da arte. Revoltas, insurreies,
invases dos campos e massacres vo compor esse cenrio perturbador que contextualiza o
sculo XVII e parte do sculo XVIII.
Pode-se dizer que com a conquista do Novo Mundo o tecido social esgarado
dando passagem a combinaes de crenas e a distenso de limites. No choque entre foras
to diversas, engendram-se, ao mesmo tempo, o interesse pelo desconhecido e pela
incerteza criadora, assim como a ameaa da desordem, o medo e o desejo de controlar os
movimentos do corpo social.
Ferreira (1993) vai observar que este momento marcado por uma espcie de
perplexidade social,
... Talvez um dos mais ricos vividos no mundo ocidental, queculmina com um processo de laicizao, no qual se questionamo conhecimento, a autoridade e o direito. No s o artista e ohomem de cincia deixam sua marca. Tambm lavradores,homens, mulheres, crianas,
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trabalhadores annimos construram com seus corpos, a novaera...
(Ferreira, 1993, p.34)
No entanto, no podemos deixar de constatar que o conhecimento racional invade
esta nova era expurgando as misturas e os mistrios encarados neste momento como
fontes de ameaa estabilidade e ordem do mundo. Desde ento, a cincia e a poltica
no so mais consideradas como fruto de mandamentos ou ameaas divinas, mas como o
resultado da capacidade dos homens de com base em princpios racionais calcular,
prever e ordenar seus impulsos atravs da formulao de pactos, de acordos e contratos
de uma espcie de costura desse tecido social esgarado, com vistas a transform-lo em um
nico corpo.
Pode-se tambm constatar que esta estratgia no consegue impedir que as foras
da natureza reafirmem seu poder e seu estado permanente de guerra, conseqentemente,
seus efeitos de instabilizao.
Na tentativa de encontrar uma resposta razovel para essa virtual ameaa, corta-se o
tecido social ao meio, separando o campo das turbulncias interno do campo da
racionalidade social o campo externo. Defende-se os interesses individuais, pautados
nos princpios racionais tornando-os incompatveis com as paixes destrutivas e com a
obedincia irrefletida. Deste modo, obedecer a um poder real absoluto torna-se uma
obrigao indesejvel aos interesses da burguesia que a esta altura deseja autonomia para o
uso dos bens e da propriedade, bem como para expressar suas novas convices morais e
religiosas: autonomia para o campo da privacidade. Sendo assim, o territrio pblico,
campo das aes polticas, encarrega-se de instituir a autoridade civil, a obedincia e o
dever como garantia da liberdade individual e dos interesses privados. Trata-se da
emergncia de um tipo de poder poltico e subjetivo fundado atravs do pacto racional
firmado entre os
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indivduos, com a pretenso de garantir a moralidade social, os interesses individuais e a
prosperidade dos cidados.
A partir da, torna-se possvel distinguir trs modos de funcionamento que
predominaram na composio do iderio liberal europeu e conseqentemente, na produo
da noo de cidadania que lhe correspondente. A saber: renunciar ao prprio poder em
favor da segurana, consentir em outorgar esse poder como garantia da preservao da
propriedade, e abrir mo desse poder em nome de uma vontade geral.
Compreendemos que estes trs modos distintos no ficaram isolados uns dos outros.
Combinados, fertilizaram o solo de onde emerge a noo de cidadania em sua verso
ocidental moderna e liberal. Servem de fundamento para a reproduo de uma teoria do
poder poltico, segundo a qual cada homem possui um poder equivalente posse de um
bem ou de riquezas e da capacidade de cumprir os imperativos da razo que pode ser
cedido, transferido ou alienado atravs de um contrato social com vistas a alcanar a
soberania poltica.
A noo de cidadania, neste caso, emerge como expresso mxima dessa aquisio
e, conseqentemente, dessa entrega.
Percorrer estes avessos de cidadania no mundo moderno pretender na medida
do possvel elucidar um campo de subjetivao e, ao mesmo tempo, criar meios para
intervir efetivamente neste campo.
Isto no significa desprezar todos os pontos de ruptura e todos os focos de
resistncia poltica que enfrentaram e ainda enfrentam esses sistemas de modelizao.
Trata-se apenas de chamar a ateno para determinados modos de funcionamento
que tomaram parte no processo de reificao da noo de cidadania no chamado mundo
moderno e na sua propagao enquanto modelo hegemnico supostamente vlido para
qualquer tipo de sociedade.
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1.1. A Renncia como Prova de Civilidade
A natureza fez os homens iguais em corpo e esprito de forma que nenhum
deva aspirar ou reclamar qualquer tipo de benefcio a que outro homem no possa tambm
usufru-lo.11
Este parece ter sido um dos argumentos mais poderosos para o estabelecimento da
igualdade natural como um meio de combater a rede de privilgios que caracterizava o
mundo feudal.
Conforme observa Ferreira (1993),
... o direito feudal caracteriza-se pelo tratamento desigual aosdesiguais. Aos proprietrios dos meios de produo (nobreza,clero) conferido um sistema de privilgios: somente elespodem praticar determinados atos. Os produtores diretos soapenas sujeitos de deveres: somente eles devem praticar certosatos.
(Ferreira, 1993, p.54 - grifo meu)
Contrariando este sistema de privilgios aparece um novo modo de funcionamento
poltico e subjetivo forjado a partir da idia da constituio de um poder soberano nico
capaz de impor aos homens um conjunto de leis civis universais. Seria atravs do
cumprimento dessas leis que os homens poderiam definitivamente se igualar. Esta
igualdade, que ganha relevo na concepo social e poltica formulada por Hobbes (1588-
1679), teve como base de sustentao a idia de que todos os homens possuem o desejo
e o poder fundamental de autoconservao.
13
11 HOBBES, Thomas. Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1989. p.75.
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Porm Hobbes adverte para o fato de que como todos os homens tm direito a tudo e
podem fazer tudo esto constantemente sob a ameaa da destruio, j que todos podem, na
mesma medida, fazer valer o uso de seu direito.
... Deixado a si, o instinto de conservao a abertura para aviolncia que o reitera e, ao mesmo tempo, para a paz tticaque prometa conservao. esse o campo da lei natural.
(Hobbes, 1983, p. xv)
Sendo assim, os homens no poderiam viver sem um poder comum que os
mantivesse em situao de respeito mtuo.
... durante o tempo em que os homens vivem sem um podercomum capaz de manter a todos em respeito, eles se encontramnaquela condio a que se chama guerra; e uma guerra que de todos os homens contra todos os homens...
(Hobbes, 1983, p.75)
Paradoxalmente, a igualdade natural este direito que os homens possuem de
serem senhores de seu poder transforma-se em um dos argumentos mais importantes
para justificar a ordem e o uso de dispositivos de controle sobre o corpo social.
A civilidade passa a ser o nico meio para garantir a distino entre os interesses de
cada homem e, mais que isso, da distino que cada homem precisa fazer de seus prprios
interesses. Assim, guiados pela razo, os homens poderiam ultrapassar sua tendncia
impulsiva e apaixonada para poderem transitar no territrio da moral, das relaes sociais e
da prosperidade.
Conforme observa Figueiredo,
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... A civilidade, efetivamente, existe tanto como instrumentorepressivo quanto como defesa do homem natural. Asidentidades fictcias dos sditos e do soberano, que ocupam ese movimentam nos espaos pblicos, garantem asobrevivncia e do perspectiva de desenvolvimento aos seresnaturais, que se recolhem ao campo da privacidade, dosinteresses e negcios particulares, das opinies pessoais, dasassociaes ou sistemas privados, desde que legtimos.
(Figueiredo, 1992, p.99)
Na base desta ciso entre o campo da privacidade e o campo pblico, encontram-se
as tenses entre os ditames da conscincia individual e a obedincia autoridade: entre as
opinies e as aes.
Apontando Thomas Hobbes como o grande terico da separao entre interno e
externo, Figueiredo (1992) vai destacar como efeito desta separao a produo de um tipo
de homem desdobrado numa metade privada e numa metade pblica12. De um lado
devendo ficar as paixes, os excessos, os interesses individuais e do outro, a civilidade: o
territrio onde ir prevalecer o interesse geral e a segurana. A civilidade, deste ponto de
vista, significa a garantia do assujeitamento do indivduo natural com vistas a assegurar sua
sobrevivncia e seu espao privado de liberdade. Ao mesmo tempo a consolidao desta
autonomia da esfera da privacidade vai significar a garantia de que os juzos privados
livres no invadam o territrio pblico e, conseqentemente, no se transformem em
ao poltica.
Mas esta separao entre espao privado e espao pblico conforme os
investimentos do pensamento hobbesiano no significa impedir que os conflitos
reverberem e, que, como observa Figueiredo, sob o domnio do medo, ...a opo
15
12 A interpretao apresentada por Figueiredo tem como referncia a pesquisa elaborada pelosocilogo alemo R. Koselleck em que o autor analisa as relaes pblico-privado nopensamento hobbesiano. FIGUEIREDO, Luis Cludio. Quatro sculos de subjetivao: 1500-1900. So Paulo: Escuta: EDUC. 1992. p.109.
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prudente deva ser pela ordem pblica e pela obedincia, em detrimento da liberdade de
opinio que pode ser mantida apenas em segredo...13
Neste sentido, o direito interpretado como liberdade para fazer ou para omitir,
distinto deste modo da lei; entendida como uma obrigao ou uma determinao daquilo
que deve (ou no) ser feito.
... A lei e o direito se distinguem tanto como a obrigao e aliberdade, as quais so incompatveis quando se referem mesma matria.
(Hobbes, 1983, p.78)
Trata-se da distino entre o direito de natureza entendido como a liberdade que
os homens possuiriam para fazer o que sua razo lhes indicasse conveniente: sem
impedimentos externos, os homens usariam seu prprio poder como quisessem. E a lei de
natureza uma regra geral, estabelecida pela razo que proibiria um homem de destruir,
ou privar sua vida de qualquer meio que pudesse preserv-la.
A vida civil seria forjada como o meio razovel de superao do ingovernvel
estado de natureza no qual, por direito natural, habitariam os conflitos, as disputas e o
desejo de poder.
... enquanto perdurar este direito de cada homem a todos ascoisas, no poder haver para nenhum homem (por mais fortee sbio que seja) a segurana de viver todo o tempo quegeralmente a natureza permite aos homens viver.Conseqentemente, um preceito ou regra geral da razo, quetodo homem deva esforar-se pela paz, na medida em quetenha esperana de consegui-la, e
16
13 FIGUEIREDO, Luis Cludio. Quatro sculos de subjetivao: 1500-1900. So Paulo: Escuta:EDUC. 1992. p.110.
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caso no a consiga pode procurar usar todas as ajudas evantagens da guerra.
(Hobbes, 1983, p.79)
O esforo pela paz enquanto um preceito da razo induziria os homens
organizao e associao, j que o isolamento os colocaria numa posio vulnervel a
merc de seus apetites, dos excessos e do desejo de poder. Conclui-se que os homens
deveriam renunciar s suas paixes ao seu prprio poder para viverem em sociedade.
... que um homem concorde, quando os outros tambm ofaam, e na medida em que tal considere necessrio para a paze para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito todas as coisas, contentando-se, em relao aos outroshomens, com a mesma liberdade que aos outros homenspermite em relao a si mesmo.
(Hobbes, 1983, p.79 - grifo meu)
Deste modo, a igualdade natural pautada na liberdade e na autonomia individual
deve ser abdicada em favor da segurana e da paz e transferida para o soberano que
proporciona o bem aos que abrirem mo de seus direitos: de seu poder. Esta transferncia
de direitos, expressa pelo pensamento hobbesiano, significa o estabelecimento de um
contrato social um acordo cuja finalidade forjar uma instncia que assegure uns
contra os outros.
Neste caso, no h o estabelecimento de um contrato poltico, pois, conforme
observa Marilena Chau,
... um contrato pressupe partes contratantes livres e iguais, eno h igualdade entre cidados e o soberano, pois este resultada deciso anterior dos indivduos de alienar para ele seudireito natural. Entretanto, se no h
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contrato poltico, pois no possvel um contrato entre sditose o soberano, h contrato social, isto , um pacto pelo qual oshomens concordam entre si em alienar seu direito natural,transferindo-o para o soberano. Sem o pacto no haverEstado civil...
(Chau, l995, p.75)
Assim, a noo de cidadania vai emergir como um efeito da transferncia de poder
para algum neste caso para o Estado com vistas a salvaguardar os direitos dos
homens. Ser cidado vai pressupor a efetuao de uma entrega, uma espcie de resignao
e de submetimento a idia de Estado, j que sem esta submisso, o indivduo no adquire a
condio de cidado. Esta concepo de cidadania se institui atravs da prescrio moral de
que cada indivduo deve, por medo da morte e dos impulsos excessivos, preservar sua vida
e seus bens abrindo mo da ao poltica e transferindo a outro homem, a um colegiado ou
a uma assemblia sua capacidade de se autogovernar.
A partir da, comenta Ferreira,
... os indivduos autorizam que o governante seja portador desua prpria pessoa. Esse ato fundante da autoridade institui ogoverno como autor de todos os atos relacionados ao bemcomum. O corpo poltico, representado na figura dogovernante, sintetiza a unio de todos.
(Ferreira, 1993, p.62)
Cada homem lobo do homem aprenderia a reconhecer na presena do outro
um opositor, um rival, uma ameaa real ou imaginria justificando, assim, tanto a coero e
o controle impostos pela civilidade, quanto a obedincia, o sacrifcio e a renncia, em favor
da sustentao das foras dominantes, neste caso atualizadas sob a forma de um Estado.
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Um Estado que, conforme observa Ferreira, acaba por se tornar uma espcie de
Deus, ainda que a principal argumentao para sua criao fosse o rompimento com a
Igreja.
... Sua legitimidade se funda num sistema de crenas que nofoge do dualismo sagrado-profano. Em vez da ameaa docastigo do inferno, apela para a ameaa do caos. No lugar dasalvao eterna, promete ao grupo segurana e perpetuao.
(Ferreira, 1993, p.65)
As idias que sustentaram o absolutismo real foram afrontadas pela fora das idias
liberais que acabaram predominando no Parlamento Ingls. Alguns comentadores
concluram que a histria no teria dado razo a Hobbes preferindo a soluo liberal
defendida por seu conterrneo John Locke.14
Do nosso ponto de vista, porm, essas idias e suas respectivas objetivaes, no
foram ativadas, desdobradas, neutralizadas ou barradas por uma espcie de inteno
histrica ou mesmo pelas intenes daquele a quem atribumos a responsabilidade pela sua
criao. Ao contrrio, entendemos que elas foram afrontadas por foras de resistncia que
romperam sua unidade enfraquecendo seu efeito global de dominao. Ao mesmo tempo,
essas idias funcionaram, combinaram com outras idias e tomaram parte na constituio
de outros territrios polticos e subjetivos e no exerccio de outras relaes de dominao.
19
14 A este respeito ver, por exemplo, HOBBES, Thomas. Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural,1983. p. xviii.
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1.2. O Consentimento como Sinal de Racionalidade e Garantia da Propriedade
Ainda no sculo XVII consolidada a idia de que a civilidade deve defender a
natureza contra seus excessos garantindo, atravs de instrumentos democrtico-liberais, os
espaos de privacidade e de liberdade. Tais instrumentos, conforme observa Figueiredo,
... tero como funo conter dentro de limites muito estreitosas intervenes do Estado e a penetrao da ordem pblica nocampo dos assuntos particulares. Esta a frmula bsica doliberalismo clssico: a limitao dos poderes do Estado.
(Figueiredo, 1992, p.111)
Nesta verso do liberalismo que ganha sustentao atravs das idias de Locke
(1632-1704), os indivduos autnomos por intermdio do pacto livre, criam um tipo de
Estado que no mais interfere nem administra os espaos de privacidade, mas regula as
relaes entre esses indivduos, para garantir que no tenham os seus direitos violados:
principalmente os direitos liberdade e propriedade.
... para esse fim que os homens transferem todo podernatural que possuem sociedade para a qual entram, e acomunidade pe o poder legislativo nas mos que julga maisconveniente para esse encargo, a fim de que sejam governadospor leis declaradas, seno ainda ficaro na mesma incerteza apaz, a propriedade e a tranqilidade, como se encontravam noestado de natureza.
(Locke, 1983, p.88)
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No estado de natureza cada homem independente dos demais, seria livre de
qualquer constrangimento para exercer sua vida. Governado pela razo, cada homem
deveria conservar-se e conservar suas posses, zelando caso no corresse nenhum risco
pela preservao dos outros homens. Na formulao de Locke este estado pressupe o
autogoverno e a constituio de leis que garantam a universalidade dos direitos naturais.
Porm, conforme Macpherson (1979), o liberalismo de Locke no fugindo
perspectiva hobbesiana 15 sustenta que os homens so impulsionados principalmente por
apetites e averses;
... e que os apetites so to fortes que se fossem deixados aseu prprio impulso, levariam os homens subverso de toda amoralidade. As leis morais so estabelecidas como brido efreio a esses desejos exorbitantes.
(Macpherson, 1979, p.259)
Contudo, diferentemente de Hobbes, Locke acredita que os homens por perceberem
sua utilidade, so capazes de impor normas para si e por sua prpria paixo sem
necessidade de instituir um soberano.
... A fim de evitar esses inconvenientes que perturbam aspropriedades dos homens no estado de natureza, estes se unemem sociedade para que disponham da fora da sociedadeinteira para garantir-lhes e assegurar-lhes a propriedade, epara que gozem de leis fixas que a limitem, por meio das quaistodos saibam o que lhes pertence.
(Locke, 1983, p.88)
21
15 Macpherson considera o pensamento hobbesiano como precursor das idias que fundamentamo princpio de mercado e que posteriormente encontram em Locke seus dedobramentos. Nestesentido, aponta Hobbes como um pensador do mundo capitalista. Sobre o assunto, consultar:MACPHERSON, C. B. A teoria poltica do individualismo possessivo: de Hobbes a Locke. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1979.
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Locke considera que os homens originalmente inocentes, teriam conhecido a
abundncia das provises naturais que durante muito tempo existiram no mundo, no
havendo, portanto, lugar para ... controvrsias ou lutas relativamente propriedade
assim estabelecida.16 Porm com o aumento da populao e da riqueza veio a
escassez, com o uso do dinheiro foi dado valor terra e conseqentemente, por medo
da misria e da fome os homens se afastaram das leis naturais. Para evitar a misria,
os homens livres e iguais teriam abandonado o estado natural para criar a sociedade
poltica.
Ferreira (1993) observa que para Locke, a grande ameaa no teria sido a morte
violenta, mas a fome.
... A fome est, portanto, na origem de tudo, da produo troca, da propriedade posse, da acumulao disputa.
(Ferreira, 1993, p.73)
No entanto se a ameaa da fome serve como justificativa para o aparecimento do
processo de ordenao social e para a instituio do Estado como garantia dos direitos
naturais, ao mesmo tempo, servir como base para o desenvolvimento de uma teoria
poltica sustentada na valorizao do pleno desenvolvimento desta sociedade em sua forma
individualista e deste Estado como defensor e mantenedor da concentrao de riquezas nas
mos de poucos.
Locke sustentava a tese de que cada homem unido a outro homem, preservaria sua
vida, sua liberdade e sua propriedade. Juntos, reprimiriam qualquer tentativa de violao
desses direitos naturais garantidos pelo pacto social. Destes direitos destaca-se o direito
propriedade que segundo Locke se justificaria pela relao de cada homem com as coisas,
atravs do trabalho.
22
16 LOCKE, John. Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1983. p.47.
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... cada homem tem uma propriedade em sua prpria pessoa;a esta ningum tem qualquer direito seno ele mesmo. Otrabalho do seu corpo e a obra de suas mos, pode dizer-se sopropriamente dele...
(Locke, 1983, p.45)
Essa concepo de propriedade, que inclui a propriedade do prprio corpo, d
sustentao idia de que um homem pode vender seu trabalho o trabalho que seu corpo
efetua em troca de salrio.
Esta afirmao emerge de um tipo de sociedade que, conforme afirma Bresciani
(1994), se institui sobre o pressuposto da positividade do trabalho. Afinal, pontua a autora,
... so J. Locke e Adam Smith que desfazem a imagemnegativa do trabalho como patrimnio da pobreza, como fardoexclusivo dos que no possuem propriedade, e o definem comofonte de toda atividade criadora de riqueza.
(Bresciani, 1994, p.80)
Este homem livre para vender seu prprio corpo ter que ser capaz de gerar e
cumprir leis. Reflexivo e autoconsciente, este homem dever dominar sua vontade e se
esforar para vencer na vida, fazendo bom uso das oportunidades. Sendo assim, Locke
conclui que cada indivduo, dotado de vontade autnoma, no enriquece ou no trabalha se
no quiser, ou ainda, se no tiver competncia. Por este motivo, o xito econmico ser
interpretado como sinal de virtude do prprio homem e de sua capacidade para gerir sua
vida. A indiferena ao mundo do trabalho, por outro lado, representar uma ameaa
organizao social e uma agresso sociedade.
23
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Assim, seriam as leis estabelecidas com as mesmas regras para ricos e pobres
a garantia da formao de um povo como um conjunto de indivduos juridicamente
autnomos e iguais 17 . Essas mesmas leis vo assegurar que fiquem fora deste contexto de
igualdade e autonomia os escravos, as mulheres e os doentes mentais, considerados
incompatveis com a sustentao e o desenvolvimento da sociedade civil, j que a isonomia
dos direitos e deveres vedada queles que no possuem meios para garantir sua
sobrevivncia e o sustento de seus dependentes.
Este iderio, conforme observa Bresciani (1994) atravessado pela concepo
puritana dos eleitos: ... muitos sero chamados mas poucos sero escolhidos.18
De fato, apenas os homens proprietrios so reconhecidos como interessados na
preservao de suas propriedades e, portanto, julgados como capazes de uma vida racional.
De assumir um compromisso voluntrio para com a lei da razo considerada como : ...
base necessria para a plena participao na sociedade civil.19
Esse mesmo iderio que afirma a igualdade de todos perante a lei, pouco
importando a idade, a posio social ou econmica onde todos poderiam recorrer
mesma lei sem precisar dispor de privilgios encontra meios para justificar a excluso
daqueles que possuem apenas o prprio corpo e dele dispem para garantir sua
sobrevivncia. A respeito desta classe de pessoas os pobres ser produzido um
conjunto de discursos pautados na falta de disponibilidade de tempo e de oportunidade
para fazer uso do pensamento ou para atuar politicamente. E os que no trabalham
sejam desempregados ou
24
17 FERREIRA, Nilda Teves. Cidadania: uma questo para a educao. Rio de Janeiro: NovaFronteira, 1993. p.84.
18 BRESCIANI, Maria Stella M. Londres e Paris no sculo XIX: o espetculo da pobreza. SoPaulo: Brasiliense, 1994. p.85.
19 MACPHERSON, C. B. A teoria poltica do individualismo possessivo: de Hobbes a Locke. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1979. p.260.
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pobres vadios sero considerados como fruto da degenerao moral, do relaxamento
da disciplina e da corrupo dos costumes.20
Como observa Bresciani,
... os membros da classe trabalhadora no so consideradoscidados, mas sim um conjunto de fora de trabalho potencialou real disponvel para os objetivos da nao... Suaracionalidade incompleta e sua incapacidade de obter rendasuperior s suas necessidades vitais os impedem de estar emcondies de ser contribuintes, de sustentar o governo e,decorrentemente, de ter qualquer participao poltica.
(Bresciani, 1994, p.89)
Pode-se dizer que a noo de cidadania forjada no solo da teoria liberal a
expresso mxima desse conjunto de propriedades: a propriedade material, expressa pela
aquisio de bens, a propriedade fsica que asseguraria os corpos teis e produtivos e a
propriedade mental que garante a possibilidade do indivduo praticar atos por sua livre
vontade base de sustentao da idia de consentimento mtuo.
O consentimento, ao contrrio da renncia, funda um acordo efetivo entre o que fica
estabelecido pelos indivduos e o que feito, sugerindo, deste modo, que ningum deva
possuir poderes ilimitados nem possa descomprometer-se com o acordo estabelecido pela
maioria: ... o ato da maioria considera-se como sendo o ato de todos e, sem dvida,
decide, como tendo o poder de todos pela lei da natureza e da razo.21
Quando um homem concorda com outros homens em formar um corpo poltico sob
um governo,
25
20 BRESCIANI, Maria Stella M. Londres e Paris no sculo XIX: o espetculo da pobreza. SoPaulo: Brasiliense, 1994. p.85.
21 LOCKE, John. Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1983. p.71.
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... assume a obrigao para com todos os membros dessasociedade de submeter-se resoluo da maioria conforme aassentar; se assim no fosse, esse pacto inicial, pelo qual elejuntamente com outros se incorpora a uma sociedade, nadasignificaria, deixando de ser pacto, se aquele indivduo ficasselivre e sob nenhum outro vnculo seno aquele em que seachava no estado de natureza.
(Locke, 1983, p.71)
Deste modo a ao poltica por parte do povo interpretada como uma ao
negativa pois representaria o rompimento do consentimento que havia conferido ao
governo aos juizes imparciais poderes para preservar a propriedade e a paz da
sociedade.
A oposio legtima s seria justificada em momentos crticos, quando os
governantes excedendo no uso do poder agissem de maneira contrria ao encargo que lhe
havia sido conferido quando os direitos naturais fossem ameaados. Neste caso, seria at
compreensvel que o povo reagisse a fora, mas ainda assim, esta ao seria considerada
como negativa pois o Parlamento do ponto de vista desta perspectiva liberal seria
suficiente para gerir as questes de mbito pblico, liberando os cidados para cuidarem de
suas vidas.22
Essas idias serviram como base de sustentao para o funcionamento da doutrina
poltico-econmica liberal e para a auto-regulao da sociedade pelo mercado, consolidadas
ao final do sculo XVIII e incio do sculo XIX. Criaram condies para o pleno
desenvolvimento desse conjunto de unidades racionais e teoricamente idnticas: o conjunto
de cidados. Entidades dotadas de autonomia, privacidade, liberdade para estabelecer
contratos e trocar mercadorias e, alm disso, viver em prol de seus prprios interesses.
26
22FERREIRA, Nilda Teves. Cidadania: uma questo para a educao. Rio de Janeiro: NovaFronteira, 1993. p.93.
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1.3. A Perspectiva da Vontade Geral
Quando as idias inglesas chegam Frana encontram um solo frtil para sua
difuso. Essas idias so ento assimiladas por Rousseau (1712-1778) que as redimensiona,
tambm com o intuito de combater os privilgios que dominavam em seu pas.
Rousseau, tido como precursor da concepo democrtica-burguesa, pressups que
os homens nascem para a felicidade e no campo da civilizao, encontram amarras e seus
empecilhos.
Convivendo, os homens ultrapassam a liberdade natural e a sua solido penetrando
assim, no campo da moralidade e da racionalidade. A sociedade humana, desse ponto de
vista, anterior sociedade civil e portanto, nenhuma desigualdade social deriva da
simples convivncia entre os homens. Ser na sociedade civil e da propriedade dela
decorrente que o homem se defrontar com o logro.
Para Rousseau o advento da propriedade privada a fonte de toda misria humana,
da arrogncia e da inveja que tomam conta do corpo social. A propriedade engendra a
desigualdade levando os homens, necessariamente, a forjarem as primeiras sociedades civis
norteadas por leis.
... Sendo a fora insuficiente para conservar o que adquiriu, orico, a fim de legitimar sua posse, imagina dar aos homensmximas e instituies alm das naturais. Da a formao deassociaes e de governantes: da a perda da liberdade e dodireito natural.
(Rousseau, 1983, p.204 - comentrio)
Rousseau crtico com relao sociedade burguesa e seu individualismo perverso,
fundado em favores e na inviabilizao do bem-estar de todos. Alm disso
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questiona a legalidade do poder soberano, transpondo para a comunidade o ideal da
soberania. Desse ponto de vista crtico ele vai afirmar que a manifestao desta soberania
a vontade geral e no os interesses privados. A vontade geral entendida como a
materializao da verdade e dos princpios universais ser a maneira razovel de alcanar a
liberdade, a igualdade e do bem-estar de todos os homens.
Nesta condio de soberano, o povo passaria a desejar o interesse geral, como
prtica da vontade coletiva que deste ponto de vista, no poderia ser transferida para
outrem, perturbada ou dividida. por este motivo que o indivduo deve renunciar a sua
diferena, para se conformar harmoniosamente com o grupo, com os ideais de
solidariedade e fraternidade, com o intuito de transpor os obstculos preservao dos
direitos naturais.
Nessa perspectiva que contagiou o mundo ocidental moderno, ser o contrato
social, expresso pelo sonho de Rousseau, o instrumento possvel para a construo de uma
sociedade justa e pacfica. Para isso seria preciso forjar um tipo de homem ntegro,
trabalhador e ocupado com seus deveres, sem tempo para exageros e revolues. Tais
ideais necessitam encontrar uma espcie de unidade em conceitos como bem e mal, como
justo e injusto, como certo e errado, devendo assim os indivduos conformados em cidados
chegarem a um consenso.
... a vontade geral sempre certa, mas o julgamento que aorienta nem sempre esclarecido. preciso faz-la ver osobjetos tais como so, algumas vezes tais como eles devemperecer-lhe, mostrar-lhe o caminho certo que procura,defend-la da seduo das vontades particulares, aproximar aseus olhos os lugares e os tempos, pr em balano a tentaodas vantagens presentes e sensveis com o perigo dos malesdistantes e ocultos.
(Rousseau, 1983, p.56)
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Ferreira (1993) observa que o medo que levou Hobbes a produzir o Leviat talvez
tenha levado Rousseau a construir o contrato social e sua utopia de uma sociedade justa.23
O medo da des-ordem, do desarranjo de uma pseudo unidade do corpo social e da
diferena que, nesse caso, se confunde com a idia de desigualdade.
Nesse sentido, o homem ideal no pode ter tempo para paixes exticas. Deve
usufruir dos benefcios do progresso, da cincia e da arte desde que freando o consumo de
futilidades e os prazeres extravagantes.
Rousseau investigou as cidades e visualizou as descontinuidades da experincia
urbana, sendo o primeiro a desenvolver uma teoria do cosmopolitismo. Sua anlise
minuciosa das cidades vai lev-lo, conforme comenta Sennett (1988), a aprovar um tipo de
tirania: a tirania poltica.
Sennett observa que Rousseau foi o primeiro a ligar os cdigos de crena pblica na
cosmpolis com as experincias psicolgicas bsicas, como o caso dos jogos e da
confiana entre os homens. Foi ainda,
... o primeiro a relacionar a psicologia das cidades com umapsicologia da criatividade. E tudo isto, to analtico, toesquadrinhado, estava no entanto dirigido a uma finalidadeterrvel: a partir de sua anatomia da cidade grande, Rousseauconclui que a espcie humana poderia travar relaespsicologicamente autnticas o contrrio do cosmopolitismo apenas impondo a si mesma a tirania poltica. E esta tiraniaele aprova.
(Sennett, 1988, p.148)
Trata-se da formulao de uma teoria acerca da corrupo dos costumes e nesta
formulao, a corrupo vai aparecer como fruto de um desvio no contexto
29
23 Idem. p.128.
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da sobrevivncia funcional, quando os homens se dedicam aos prazeres e se afastam dos
princpios que regem o trabalho, a famlia e o dever cvico.
... Cidado , pois, aquele que aprende a inibir sua inclinaoa centrar-se em si mesmo, se libertar de seus prprios limites,encontrando sua plenitude na experincia poltica. Naconcepo rousseauriana de cidadania resta muito pouco, semdvida, para a vida particular. Espera-se que o indivduoesteja sempre pronto a se submeter ao ideal comum, sempre aservio da comunidade.
(Ferreira, 1993, p.134)
Contudo, necessrio preparar esses homens para a realizao concreta desse EU
comum dessa comunidade regida por sentimentos universais de amor, de compaixo e
de dignidade. Esse esforo consiste na formulao de uma pedagogia e de uma teoria
poltica que se desvencilha do caminho da razo e apela para o sentimento como sendo o
verdadeiro instrumento do conhecimento. (Rousseau, 1983).
A criana precisar ser educada para que no se torne m, j que o pressuposto
bsico desta teoria a crena da bondade natural do homem.
Rousseau supunha que os homens aceitariam espontaneamente a autoridade da
vontade geral e libertariam seu prprio ser individual encontrando assim a plenitude da
coletividade. Pode-se dizer que esta concepo de sociedade marcada por uma dimenso
religiosa que se expressa nas idias como as de sentimento universal, de amor por si e pelo
semelhante, de sacrifcio e de compaixo. A compaixo, por exemplo, passa a ser
interpretada como um dever poltico que ter como pressuposto, a admisso dos desvalidos
ao campo da poltica, enfraquecendo com isso a antiga crena no consentimento e
fortalecendo a idia da vontade geral.
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... com Rousseau, a repugnncia inata ante o sofrimentoalheio fora arrancada dos recnditos da intimidade pessoal.Esse sentimento novo, a compaixo, a chave para secompreender a mudana na prpria concepo de povo nodecorrer da Revoluo Francesa: no mais s os cidados,mas eles somados aos pobres.
(Bresciani, 1994, p.115 - grifo meu)
O direito poltico, neste caso, passa a ser o poder de autoridade dessa totalidade
soberana. Ao contrrio da renncia, os indivduos abrem mo de suas diferenas para se
conformarem a um conjunto que pretensamente pensa e age em unssono.
Deste modo, os indivduos tambm abririam mo de seus descontentamentos, de
suas divergncias e da sua heterogeneidade em benefcio dessa uniformidade.
Porm, suspeitando que o corpo social encontraria meios para escapar a este projeto
de modelizao, Rousseau vai propor uma profisso de f fixada atravs de sentimentos
de sociabilidade com os quais seria possvel produzir o bom cidado: um sdito fiel. E
como esses dogmas no poderiam ser impingidos a ningum, eles deveriam funcionar como
um meio para incapacitar politicamente ou mesmo punir se necessrio com a morte
queles que, depois de t-los reconhecido, viessem a se conduzir como se neles no
acreditassem.24
31
24 ROUSSEAU, J.-J. Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1983. p.144.
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1.4. Uma Nova Mecnica do Poder
Foucault (1979), em sua anlise microfsica do poder, desloca o problema
formulado pela concepo liberal do poder poltico. Problema este que consistiu em
interpretar o poder como um direito originrio. Um direito que os homens possuiriam
como um bem que poderia ser transfervel, ou alienvel atravs de uma ordem
contratual, constituindo deste modo, uma soberania.
Partindo da afirmao de que o poder ... no se d, no se troca, nem se retoma,
mas se exerce, s existe em ao...25 , Foucault orienta sua pesquisa colocando-se fora
dessa delimitao forjada pela soberania jurdica, para pensar o poder enquanto tcnica de
dominao.
Vale destacar que quando Foucault nos fala do poder, ele est se referindo a um
conjunto de aes, de prticas, de funes, que s existem em ao. O poder uma fora
sempre em relao com outras foras. Neste caso descarta-se a idia de pensar o poder
como algo exclusivo de uma classe sobre as outras ou de um indivduo sobre os outros. O
poder microfsico, circula, funciona e se exerce em rede. Enfim, o poder no um modo
de sujeio global nem mesmo um sistema geral de dominao.
por este motivo que Foucault vai afirmar que:
... A anlise em termos de poder no deve postular, comodados iniciais, a soberania do Estado, a forma da lei ou aunidade global de dominao: estas so apenas e, antes demais nada, suas formas terminais.
(Foucault, 1979, p.88)
Com base neste entendimento, Foucault analisa quatro papis distintos delineados
pela histria da teoria jurdico-poltica da soberania.
32
25 FOUCAULT, Michel. Microfsica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. p.175.
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Destaca que primeiramente esta teoria fazia referncia a um mecanismo de poder
efetivo, o poder da monarquia feudal. Posteriormente serviu como instrumento e
justificativa para o estabelecimento das monarquias administrativas. Em terceiro lugar,
sobretudo a partir do sculo XVII, foi usada tanto como limite quanto como reforo do
papel real: ... ela foi o grande instrumento da luta poltica e terica em relao aos
sistemas de poder dos sculos XVI e XVII.26 Por fim, Foucault aponta a presena da teoria
da soberania no sculo XVIII, atravessando o pensamento de Rousseau e de seus
contemporneos, desempenhando seu quarto papel. O papel de construir o modelo das
democracias parlamentares em oposio s monarquias absolutas, administrativas e
autoritrias.27
Ao examinar estes quatro papis desempenhados pela teoria jurdico-poltica da
soberania, Foucault observa que:
... a relao de soberania, quer no sentido amplo quer nosentido restrito, recobria a totalidade do corpo social. Comefeito, o modo como o poder era exercido podia ser transcrito,ao menos no essencial, nos termos da relao soberano-sdito.
(Foucault, 1979, p.187)
Porm os sculos XVII e XVIII puderam inventar uma mecnica do poder bem
diferente e at incompatvel com as relaes de soberania do antigo regime. A presena
desta nova mecnica do poder no exclui a presena da soberania. Ao contrrio, Foucault
observa que as sociedades modernas a partir do sculo XIX apresentam ... por um
lado um discurso, e uma organizao do direito pblico articulados em torno do princpio
do corpo social e da delegao de poder: e por outro, um sistema minucioso de coeres
disciplinares que garanta efetivamente a coeso deste mesmo corpo social.
33
26 Idem p.187.
27 Idem. p.187.
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Enquanto os sistemas jurdicos avaliam os sujeitos a partir de normas gerais e universais, a
disciplina redistribui, vigia e controla os corpos.
Para Foucault (1979), os processos de acumulao de homens e de capital no
podem ser separados. Ele observa que na combinao da explorao econmica com a
disciplina haver um aumento de foras do corpo em termos econmicos de utilidade e uma
diminuio dessas mesmas foras, em termos polticos de obedincia.
A disciplina dissocia o poder do corpo:
... faz dele por um lado uma aptido, uma capacidadeque ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia,a potncia que poderia resultar disso, e faz dela uma relaode sujeio estrita.
(Foucault, 1977, p.127)
Separando o corpo daquilo que ele pode esse mecanismo do poder foi capaz de
fabricar corpos submetidos e adestrados: corpos dceis.
Se anteriormente cabia aos mecanismos disciplinares a funo de neutralizar os
perigos, fixar as populaes inteis ou agitadas, ao longo dos sculos XVII e XVIII sua
funo principal passa a ser a de aumentar a utilidade possvel dos corpos e fabricar um tipo
de homem necessrio ao funcionamento e reproduo da sociedade industrial, capitalista.
Deste modo,
... a forma jurdica geral que garantia um sistema de direitosem princpio igualitrios era sustentada por esses mecanismosmidos, cotidianos e fsicos, por todos esses sistemas demicropoder essencialmente inigualitrios e assimtricos queconstituem as disciplinas. E se, de uma maneira formal, oregime representativo permite que direta ou indiretamente,com ou sem revezamento, a vontade de todos forme a instnciafundamental da
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soberania, as disciplinas do, na base, garantia dasubmisso das foras e dos corpos.
(Foucault, 1977, p.195)
Cabe observar que se o contrato social elemento fundamental de sustentao da
idia da vontade geral forja uma noo de cidadania fundamentada na igualdade
formal de todos os homens, as disciplinas garantem, na base, a submisso do corpo-
cidado.
interessante lembrar que a teoria poltica dos sculos XVII e XVIII obedeceu ao
esquema da associao contratual de sujeitos jurdicos, tendo como elemento constituinte
os indivduos, e que esta mesma poca desenvolveu uma tcnica para construir esses
mesmos indivduos como elementos correlatos de um poder e de um saber.
... O indivduo sem dvida um tomo fictcio de umarepresentao ideolgica de sociedade; mas tambm umarealidade fabricada por essa tecnologia especfica de poderque se chama disciplina.
(Foucault, 1977, p.172)
Este indivduo, e por que no dizer o cidado que lhe correspondente, um efeito
de um conjunto de prticas forjadas pelo iderio liberal de sociabilidade do sculo XVIII e
posteriormente do sculo XIX, combinados com a eficcia das novas tecnologias de
controle capazes de, mais do que apenas reprimir os indivduos indceis, engendrar uma
realidade social feita de corpos docilizados.28
Mas se o poder produz verdades, inventa realidades e objetivaes, este indivduo-
cidado tambm ser um dos instrumentos dessa produo, como tambm o ser toda a
espcie de conhecimento que dele nos possvel ter.
35
28 Idem. p.187.
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Deste ponto de vista, a cidadania, mais que uma concesso ou mesmo uma
conquista de direitos civis, polticos ou sociais atravs de um Estado precisar ser pensada
como um dos artefatos deste poder. E o corpo-cidado que lhe correspondente, uma
produo de poder-saber.
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1.5. Consumo e Controle
Nosso sculo, principalmente depois da Segunda Guerra Mundial, produzir uma
nova verso de Estado e, conseqentemente, uma nova interpretao do que sejam as
qualidades ou os estados do cidado.
O modelo clssico liberal de Estado acaba entrando em colapso, a auto-regulao do
mercado cai em descrdito, o capitalismo se reorganiza de modo que as trocas livres de
propriedade, defendidas pelo princpio de mercado, sejam ultrapassadas pela consolidao
dos monoplios industriais. O mundo do trabalho tambm sofre grandes modificaes,
reagindo ordem burguesa e tentando criar meios para ultrapassar as adversidades e o
massacre a que estavam submetidos os trabalhadores.
Novas foras se instalam lentamente, dando visibilidade a um tipo de relao
Estado-Sociedade que se materializar, principalmente, sob a forma das chamadas
polticas sociais aplicadas atravs de mltiplas instituies um conjunto de
ramificaes, uma espcie de rizoma as quais Guattari (1986) denominou de
equipamentos coletivos. 29
Estes equipamentos que atravessam o campo social, cujos efeitos aprendemos a
conhecer pelo nome de direitos sociais, obtiveram, sem dvida, algum sucesso tanto na
Europa quanto nos Estados Unidos; porm, eles funcionaram muito mais a servio das
novas castas burocrticas do que propriamente para contribuir com a construo de novas
possibilidades de vida. Para Ferreira (1993), esse Estado, a partir de sua funo
primria a segurana , passa a oferecer escolas, sade, transporte coletivo; passa
tambm a se preocupar com questes de moradia, saneamento, alimentao etc. e com o
problema mais grave: ... manter reduzida a populao desempregada, de forma
37
29 GUATTARI, F., ROLNIK, S. Micropoltica: cartografias do desejo. Petrpolis: Vozes, 1986. p.147.
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que no oferea ameaa 30. Para os excludos, dir Ferreira, sero aplicados os programas
assistenciais, de maneira que se mantenham minimamente satisfeitos.
Porm, cabe acrescentar a esta observao que este novo tipo de configurao de
Estado ter necessariamente que produzir suas margens, ou seja, aqueles que devem se
subordinar aos circuitos econmicos, para posteriormente serem reincorporados aos
diferentes modos de controle vigentes.
A esta configurao de Estado corresponder uma imensa mquina de produo de
subjetividade. Conforme afirma Guattari (1986), uma subjetividade industrializada e
nivelada a nvel mundial, transformada em alicerce para a formao da fora coletiva de
trabalho e da fora de controle coletivo.
Para alm da concepo de aparelhos ideolgicos visveis, Guattari (1986) ir
sugerir um funcionamento de Estado a nvel invisvel de integrao. Uma espcie de
modelizao que ser capaz de interferir at mesmo nas nossas relaes inconscientes,
penetrando nveis extremamente miniaturizados, indo muito alm do esquadrinhamento
social e do comportamento.
importante que se observe, tomando como referncia a pesquisa de Foucault, que
os diferentes equipamentos de poder vo se encarregar dos corpos, no para simplesmente
castig-los ou reprimi-los, ou at mesmo para proteg-los, mas, ao contrrio, se encarregam
dos corpos para assegurar o funcionamento, a incorporao e a reproduo das foras
dominantes.
Para Foucault, nas redes do poder, os indivduos no s circulam, como, tambm, se
encontram sempre em posio de exercer este poder, de sofrer sua ao: nunca so alvo
inerte ou consentido do poder, so sempre centros de transmisso 31
38
30 FERREIRA, Nilda Teves. Cidadania: uma questo para a educao. Rio de Janeiro: NovaFronteira, 1993. p.182.
31 FOUCAULT, M. Microfsica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. p.183.
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... uma classe dominante no uma abstrao, mas tambmno um dado prvio. Que uma classe se torne dominante, queela assegure sua dominao e que esta dominao sereproduza, estes so efeitos de um certo nmero de tticaseficazes, sistemticas, que funcionam no interior de grandesestratgias que asseguram esta dominao.
(Foucault, 1979, p.252)
Neste sentido, a prpria concepo de Estado, no entendimento de Foucault,
aparecer como uma espcie de abstrao mistificada, cuja importncia atual vai muito
alm de uma unidade ou de uma individualidade, tal como nos habituamos a pensar.
Foucault (1979) ao seu modo, chamando nossa ateno para o fato do poder no
estar reduzido violncia, excluso ou represso, nos faz ver que o poder supe
diferentes foras em relao, cujos efeitos so provocaes, produes e incluses. So
como que mutaes que se projetam enquanto realidade social e psquica, incidindo nas
nossas relaes com o mundo e com as nossas produes, no nosso prprio corpo.
Tendo como referncia a pesquisa de Foucault, Deleuze (1992) procura nos mostrar
como as chamadas sociedades disciplinares que atingiram seu apogeu no incio do sculo
XX sofreram uma srie de modificaes, conhecendo novas relaes de foras que se
precipitaram depois da Segunda Guerra Mundial.
Sociedades disciplinares, dir Deleuze (1992), o que deixvamos de ser, para dar
lugar ao aparecimento daquilo que o autor denominou de sociedades de controle.
... A famlia, a escola, o exrcito, a fbrica no so maisespaos anlogos distintos que convergem para umproprietrio, Estado ou potncia privada, mas so agora
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figuras cifradas, deformveis e transformveis, de uma mesmaempresa que s tem gerentes.
(Deleuze, 1992, p.224)
Podemos dizer que esta nova configurao de sociedade pe em cena sob a
mscara do cidado o consumidor. Uma incorporao de um conjunto de idias-prticas
fundadas no sentido da aquisio e do desperdcio, do devoramento e do descarte, no
apenas de produtos, mas de idias, imagens e at mesmo de pessoas.
Talvez seja este um dos motivos, como observa Deleuze, que fazem dos servios de
vendas das empresas, a alma dos negcios.
... Informam-nos que as empresas tm uma alma, o que efetivamente a notcia mais terrificante do mundo. Omarketing agora o instrumento de controle social, e forma araa impudente de nossos senhores [...] O homem no mais ohomem confinado, mas o homem endividado.
(Deleuze, 1992, p.224)
Na concepo de Deleuze (1992), o capitalismo do sculo XIX de concentrao,
para a produo e de propriedade cria a fbrica como meio de confinamento. O
capitalismo atual desloca-se da produo para a sobre-produo. Nem compra mais
matria-prima nem vende produtos acabados:
... compra produtos acabados, ou monta peas destacadas. Oque ele quer vender so servios, e o que quer comprar soaes. J no um capitalismo dirigido para a produo, maspara o produto, isto , para a venda ou para o mercado. Porisso ele essencialmente dispersivo, e a fbrica cedeu lugar empresa.
(Deleuze, 1992, p.223-224)
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Deleuze dir que a esta nova configurao de sociedade correspondem, no os antigos
procedimentos de confinamento, mas o controle contnuo e a comunicao instantnea.
Corresponde um processo diferente de produzir sanes, educao, sade etc. Este novo
tipo de processo parece incidir mais sobre o tempo do que sobre o espao, como no antigo
controle dos corpos.
A informtica pode ser um bom exemplo deste ideal de controle do tempo. Uma
espcie de ideal de abolio do tempo que almeja, como descreve Pelbart (1993), a
informao total,
... a memria absoluta que pudesse no s prever umacontecimento mas reagir a ele, antecipando-se a seu advento,neutralizando-o. evidente: o que j conhecido de antemono pode ser experimentado como acontecimento.
(Pelbart, 1993, p.33)
Peter Pelbart observa, tomando como referncia o pensamento de Franois Lyotard
(1993), que esta predestinao do futuro, seu estoque numa memria de computador,
antecipa esse futuro em relao ao presente, enfraquecendo sua dimenso imprevisvel:
presentificando-o.
Ainda difcil pensar nos desdobramentos desta economia poltica e subjetiva. No
entanto, cabe destacar seu poder de reabsoro e incorporao, em tempo recorde, dos
processos de resistncia. Processos que se caracterizam pela criao de sistemas de
referncia estranhos a qualquer tipo de ordenao da subjetividade.
No ser imprprio dizer que a produo de civilidade e a homogeneidade tm
caminhado juntas desprezando tudo aquilo que se diferencia, o desconhecido, o
imprevisvel enfim, os processos de singularizao.
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Esse, no nosso ponto de vista, o trao comum s diferentes modalidades de poder
que compartilham o subsolo de produo do que podemos chamar, em acordo com
Guattari, de sociedades capitalsticas.
Trata-se de diferentes tipos de economia poltica e subjetiva que fizeram e fazem
funcionar um conjunto de sistemas de valores, de mquinas de produo de subjetividade,
de tecnologias que no consistiram unicamente numa produo de poder para controlar as
relaes sociais e as relaes de produo. Constituem matria-prima de toda e qualquer
produo. (Guattari, 1986).
Entretanto, importante que se diga, em acordo com o pensamento de Flix
Guattari, que nenhum desses processos de homogeneidade de produo de civilidade foi
instalado sem que houvesse processos de resistncia, confrontos efetivos e prticas ativas.
No interior do pensamento e das prticas sociais, sempre surgiram e continuaro a surgir,
linhas de fuga ativas, desvios e potncias de resistncia, por mais que muitas vezes o corpo
social e o nosso prprio corpo emitam sinais de cansao.
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2. AVESSOS DO AVESSO: O EMBARAO DAS LINHAS DESOBEDIENTES
Quando comeamos a entrar em contato com elementos que tomaram parte na
composio da produo da noo de cidadania no Brasil nos deparamos com uma
complexidade de discursos e prticas que entrelaam esta noo aos processos de produo
poltica e subjetiva delineados pelo chamado iderio liberal europeu.
Observamos que, de um modo geral, as idias que tomaram parte na constituio do
iderio europeu acabaram servindo de base de sustentao para quase todos os autores que
se dedicaram a pensar as relaes sociais brasileiras, bem como a idia de cidadania no
Brasil.
Tornou-se comum pensar que, no Brasil, tanto as injustias sociais com todos os
seus efeitos colaterais, bem como os contornos bizarros e o perfil pouco ortodoxo do pas
seriam fruto de uma espcie de receita liberal que haveria desandado. Ao serem misturados
os ingredientes do liberalismo europeu com os picantes temperos escravistas teramos
produzido uma espcie de massa amorfa, cada vez mais destoante de sua fonte criadora, um
exemplar de disparidades e de contra-senso.
A sociedade brasileira, na maioria dos casos, acaba sendo tomada como uma
espcie de sociedade que se tornou avessa aos princpios do iderio moderno de
constituio da cidadania e o Brasil, uma espcie de avesso do mundo civilizado.
Disto tudo, uma coisa fica evidente e esta evidncia foi bem observada por Roberto
Schwarz quando diz:
... Envergonhando a uns, irritando a outros, que insistem nasua hipocrisia, estas idias em que gregos e troianos noreconhecem o Brasil so referncias para todos.
(Roberto Schwarz, 1977, p.13)
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Atrados por estas evidncias, enveredamos pelos Avessos de Cidadania no Mundo
Moderno, procurando manter nossa arriscada inteno, qual seja, a de efetuarmos alguns
desvios no decorrer daquele percurso.
O primeiro deles implicou em traarmos as diferentes interpretaes sobre os
processos de produo da noo de cidadania em sua verso liberal moderna, procurando
nos desvencilharmos de caminhos que nos conduzissem a uma pesquisa comparativa entre
a sociedade brasileira e os princpios do liberalismo europeu. Ao contrrio, implicou um
esforo para construir uma anlise voltada para as conexes entre elementos do iderio
liberal europeu, suas relaes com a constituio de uma subjetividade capitalstica e
conseqentemente com processos de produo da noo de cidadania enquanto um dos
modos possveis de produzir este tipo de subjetivao.
Vrios foram os autores brasileiros que procuraram interpretar as relaes entre o
iderio europeu e a nossa sociedade. Selecionamos para este percurso em avessos de
cidadania no Brasil elementos extrados de pesquisas de autores que ao analisarem estas
relaes, problematizaram um tipo de compreenso do Brasil calcada em modelos
importados da experincia moderna ocidental e apontaram ainda que por diferentes vias
que o encontro entre as idias liberais e as relaes sociais brasileiras teriam produzido
obstculos para o pleno desenvolvimento da idia de cidadania no Brasil. Destacamos,
neste caso, as anlises de Schwarz (1977), DaMatta (1985) e Carvalho (1987) que serviram
e ainda servem de suporte para pesquisas mais recentes sobre o assunto.
Todavia, levando em conta as pistas traadas por estes autores a respeito das
relaes entre o iderio liberal e a sociedade brasileira, pretende-se enfatizar que do
confronto que se estabelece entre esta diversidade de idias j que consideramos este
campo de idias como um campo de foras que emergem tanto os sentidos e valores em
conformidade com princpios de ordenao de uma
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suposta matriz cidad, quanto s linhas desobedientes que por este motivo sofreram e
ainda sofrem inmeros embaraos.
Tomaremos emprestadas algumas anlises e alguns fragmentos de pesquisas de
outros autores brasileiros que ao investirem na constituio de processos de transformao
da nossa sociedade encontram no campo da cidadania um campo de luta. Destacamos, entre
outras, as contribuies de Chalhoub (1990), Chau (1993) e Coimbra (1993) atravs das
quais pretende-se construir uma espcie de encaixe dentre as diferentes foras que da nossa
perspectiva, constituram uma Vontade-de-Cidadania no Brasil, por mais paradoxal que
isto possa parecer.
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2.1 Quem inventa o cidado?
As primeiras interpretaes formais de cidadania no Brasil vo aparecer a partir do
rompimento dos vnculos coloniais e da constituio da sociedade brasileira independente.
A primeira Constituio surge ainda no Imprio (1824) e, na sua formulao, a
maioria da populao no includa na sociedade civil.
... Os escravos e as mulheres no eram consideradoscidados. E os eleitores teriam que ter renda mnima de 100mil a 200 mil ris. Para candidatar-se a deputado, precisavater renda de 400 mil ris, e para senador, 800 mil ris. Era ochamado voto censitrio, pois s podia votar e ser candidatoquem tivesse renda. O sistema eleitoral censitrio eliminava davida poltica a maioria da populao: os escravos, os querecebiam baixos salrios, os pequenos sitiantes, os vaqueirosetc. Os pobres no tinham vez nem voz.
(Alencar, Ribeiro e Ceccon, 1990, p.93)
Com a passagem do regime monrquico para o regime republicano a noo de
cidadania tambm s ser aplicada aos grupos e setores dominantes na sociedade brasileira.
Assim, conforme observa Engel (1993),
... Alm dos analfabetos, a Constituio de 1891, privava dodireito do voto os menores de 21 anos, as mulheres, osmendigos, as praas de pr e os membros das ordensreligiosas, eliminando, portanto, da sociedade poltica a maiorparte da populao brasileira.
(Engel, 1993, p.02)
Por trs da concepo restritiva de participao, havia a inspirao liberal da distino
entre sociedade civil e sociedade poltica, discriminando os cidados em
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ativos e inativos. Os cidados ativos possuam os direitos civis e os direitos polticos. Os
chamados inativos ou simples possuam apenas os direitos civis relativos a cidadania.
(Carvalho, 1987).
... S os primeiros so cidados plenos, possuidores da juscivitatis do direito romano. O direito polticos, nestaconcepo no um direito natural: concedido pelasociedade queles que ela julga merecedores dele. O voto,antes de ser direito, uma funo social, um dever.
(Carvalho, 1987, p.44)
Pareceria razovel pensar que a Repblica seria o momento certo e a cidade seria o
local ideal para o desenvolvimento da cidadania. Porm, nem sempre a regra corresponde
cotidianeidade e, nestes casos, os efeitos podem parecer um verdadeiro contra-senso.
o que nos chama ateno no estudo intitulado Os Bestializados: o Rio de Janeiro
e a Repblica que no foi, onde Jos Murilo de Carvalho (1987) ao investigar as relaes
entre a Repblica, a cidade do Rio de Janeiro e a Cidadania, indicar um processo de
dissociao entre essas trs concepes histricas.
Observa-se que a Repblica, ainda que tenha se apresentado no Brasil como um
regime poltico voltado para a liberdade e para a igualdade, acabar sendo consolidada com
... um mnimo de participao eleitoral, sobre a excluso do envolvimento popular no
governo. 32 A noo de igualdade ser interpretada como relao de semelhana entre
pares e as diferenas, alm de no serem reconhecidas, precisaro ser muitas vezes
excludas e at mesmo punidas.
Em tese, observa Carvalho, deveria haver uma relao de positividade e de reforo
entre o regime poltico, a cidade e a ampliao da cidadania. Porm, tomando o Rio como
centro urbano que apresentava condies favorveis para a
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32 CARVALHO, Jos Murilo de. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a Repblica que no foi. SoPaulo: Cia das Letras, 1987. p.161.
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expanso do iderio europeu e para o crescimento da participao poltica pois alm de
ser a maior cidade era tambm o centro poltico e administrativo da Repblica, cujos efeitos
refletiam em todo pas o autor indicar que as relaes entre a Repblica e a produo
da cidade, agravaram a dissociao entre as duas e a cidadania.
Embora seu estudo tenha sido voltado para a cidade do Rio de Janeiro, podemos
apontar dois aspectos que, do nosso ponto de vista, vo reaparecer em diferentes linhas de
interpretao dos pr