At Raged i a de Santamaria

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Livro espirita

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  • YVONE A. PEREIRA

    A TRAGDIADE SANTA MARIA

    Pelo EspritoAdolfo Bezerra de Menezes

    FEDERAO ESPRITA BRASILEIRADEPARTAMENTO EDITORIAL

    3 Edio1976

  • 4SUMRIO

    Advertncia........................................................................................................ 4Primeira parte Os redivivosUma jovem esprita............................................................................................ 6Amor de outra vida............................................................................................ 13O solar de Santa Maria..................................................................................... 19Max..................................................................................................................... 25Sombras do ontem sobre o hoje................................................................. 32Segunda parte Esmeralda de BarbedoA noite de Natal de 1863.................................................................................. 41Bentinho.............................................................................................................. 48Invigilncia.......................................................................................................... 56Coraes em flor................................................................................................ 63Me e filha......................................................................................................... 70Vitria fcil........................................................................................................ 79Os esponsais....................................................................................................... 92Terceira parte A tragdiaPrenncios funestos........................................................................................... 97Ronda sinistra...................................................................................................O crime...............................................................................................................Dor suprema!.....................................................................................................Quarta parte Os segredos do tmuloQuando o cu se revela....................................................................................Quando o inferno se rasga................................................................................Quando o Amor inspira......................................................................................... E quando Deus permite!................................................................................

  • 5AdvertnciaA histria que passarei a contar nada apresentar de interessante para os

    entendimentos que se homiziaram sombra do mundanismo confuso e pessimista da hora detransio que convulsiona as sociedades terrenas. Dirijo-me de preferncia aos moos - a essaliberal juventude, franca e sequiosa de progresso, cujo carter bem traduz a prolixidade dosideais que lhe fervilham nas profundidades do corao.

    Muito esperam da juventude destes ltimos decnios de sculo os prepostos doMestre Divino aqueles cultivadores da sua Vinha Sagrada porque zeladores da sua Doutrinade Eleio, cujo esplendor vinte sculos de incompreenses e hostilidades no lograramarrefecer. Ser indispensvel, mesmo urgente, porm, lecionar a essa juventude to rica degenerosos pendores, to enamorada de ardentes ideais quanta desordenada e inconsequenteem suas diretrizes, e a quem escasseiam exemplos edificantes, lies enaltecedoras capazes deimpulsion-la, para a padronizao do Bem, porque as escolas do sculo XX no falam aossentimentos do corao como no revigoram as lidimas aspiraes da alma juvenil, enquantoque as futilidades destrutivas conluiadas com o comodismo criminoso do sculo, aboletadasno seio dos prprios lares, arredaram para muito longe o antigo dulor dos conselhos ma-ternos como a respeitabilidade dos exemplos paternos, os quais muito raramente, agora, seimpem, indiferentes ao dever de burilar coraes dirigindo a educao dos filhos para asverdadeiras, legtimas finalidades da existncia. Livros nocivos proliferam em estantes deonde os exemplos moralizadores ou educativos desertaram, corridos pela intromissocomercialista de uma literatura deprimente; criminosa na facilidade com que se expande,viciando ou pervertendo os coraes em flor de jovens a quem mes descuidosas noapresentaram leituras adequadas; enquanto revistas levianas, desedificativas, destilando ovrus da inconvenincia generalizada, seguem com os moos cujas mentes, muitas vezesdotadas de ardores generosos, se abastardam e estiolam vencidas por irrupes letais, qualplantazinha mimosa falta do ar e da luz portadores da Vida! Preocupa-se, por isso mesmo, oMundo Invisvel, de onde os olhares amorveis dos paladinos do Zelador Incomparvelcontemplam to melanclicos panoramas, visto que a hora que passa das mais graves para aHumanidade que h milnios transita pela Terra atravs de fluxos e refluxos reencarnatrios. que o crepsculo de uma civilizao materialista prenuncia a alvorada de um renascimentode valores morais-espirituais; em que o Ideal Cristo infiltrara novas seivas nos coraessedentos de luz e de justia. Ser imprescindvel, portanto, que os obreiros espirituais doGrande Educador de Nazar acorram solcitos, aqui e alm, desdobrando-se em vigilnciasincansveis em todos os setores em que se movimenta a Humanidade - nos pertinentes literatura tambm, cuidadosos dos primrdios da grande renovao que j se vislumbra noshorizontes do porvir.

    Ento, colaboram eles com os homens, ansiosos por ajud-los a se adestrarem para osublime evento. Surgem mdiuns pelos quatro cantos do planeta, dispostos aos rigoresinerentes aos mandatos especiais que lhes couberam. E os ditados de Alm-tmulo seavolumam na sociedade terrena, apresentando ao homem - juventude - o passatempoliterrio que lhes convm, em contraposio s ms leituras a que se habituaram... assimrealizando, de um modo ou de outro, o que as escolas e os lares se descuraram prevenir: - o

  • 6ensino da Moral, o culto sincero e respeitoso a Deus, a Honra e a Famlia!Qual modesto trabalhador da Eira Sagrada, enamorado do mesmo Ideal que h dois

    milnios irradia do alto do Calvrio, convidando as criaturas comunho com o Bem e oAmor, aqui me tendes, pronto a batalhar pelo ressurgimento da Moral, voltando ainda esempre para a Terra, hospitaleiro e abendioado reformatrio, onde venho efetuando o meugiro evolutivo, tentando, junto de vs outros, o cumprimento de deveres que me cabem. Ouvi-me, pois, que vos falo em nome do Senhor.

    Na Vila do lbiret, Estado de Minas Gerais, aos 31 de Maio de 1956.

    Adolfo Bezerra de Menezes

  • 7PRIMEIRA PARTE

    Os redivivosCAPTULO I

    Uma jovem esprita

    Em certo dia do ano de 1951, eu me encontrava absorto dasatraes terrenas, atendendo a lides espirituais afetas as minhasresponsabilidades de obreiro humlimo da Estncia Bendita, em regio doEspao prxima a cidade de S. Sebastio do Rio de Janeiro, quandoenrgica vibrao mental, partida da Terra e emitida por algum cujas irra-diaes plenamente se harmonizavam com as minhas, repercutiu em meusensrio espiritual, causando-me surpresa pela intensidade da forapositiva com que me buscava. Voltei-me, pressuroso, a indagar quem assimpensava em mim, terna e confiantemente, em orao singela... e um vultode mulher, doce e triste, apresentou-se a minha viso psquica assentadapara o local de onde provinha o chamamento. Ambiente pauprrimo entreviento. Mas uma alma coroada de f e sedenta de progresso e luz celestedestacou-se como seu nico e solitrio habitante... Regozijei-me: - Quemassim me acenava mentalmente era um ser sumamente caro ao meuEsprito para que me pudesse permanecer indiferente aos seus apelos...

    Que me falava, porem? Curioso, perscrutei seus pensamentos...Descobri, envolta em indecises e desejos nobres, uma tese moral-doutrinria-esprita aproveitvel.

    Ofereciam-me uma tese? Porque desdenh-la se homens eEspritos se devem colaborao fraterna, caminho da redeno detodos?!...

    Aceitei-a, pois. Examinei-a, estudei-a, cultivei-a qual o horticultor queno rejeita a semente do vizinho amvel... Enovelei-a a episdios a que eumesmo havia assistido e at vivido muito intimamente, na Terra como noEspao... e hoje, finalmente, coloco-a ao teu dispor, meu jovem leitor,desejoso que me sinto de privar com tua mente durante os momentos emque esflorares estas despretensiosas paginas.

    Vejamos, porem, o assunto inspirado naquela tese:A manh dos idos de Novembro de 19... raiara fartamente iluminada

    pelo Sol flamejante que deslumbra a sedutora capital brasileira, enleando-aem ondas de um calor que se revelava j rigoroso e qui insuportvel, noobstante o domnio da Primavera, ainda no visitada pelos aguaceiros tocomuns na dita metrpole .

    Pamela, jovem fluminense de vinte anos de idade, desceu do carrode primeira classe que a trouxera do interior do pas, no antigo prefixo S4 -da Estrada de Ferro Central do Brasil, o qual a ferica cidade do grandeEstcio de S aportava diariamente, estridente e festivo, as nove horas e

  • 8quarenta minutos, despejando na plataforma da Estao de D. Pedro IIpassageiros afanosos, impacientes por chegarem ao destino, cogitando dasmltiplas operosidades a que se obrigariam uma vez visitando a capital.Chegava desacompanhada de quem quer que fosse. E, pisando pela vez pri-meira o irrequieto torro carioca, sentiu que inslita comoo lhe acelerava oritmo das pulsaes arteriais, produzindo-lhe penoso tremor nervoso.

    rf e pobre, a necessidade obrigara a jovem Pamela a emigrar parao ambiente populoso da capital, a procura de meios para a prpriasubsistncia - tal como diariamente sucede a numeroso contingente deforasteiros sequiosos de vitria fcil. Formosa e atraente, sem serpropriamente linda, trazia grandes olhos escuros, pensativos e melanclicos,fartos cabelos castanhos, sedosos e ondulantes, e porte esbelto e grave. Oque, porem, de preferncia impressionava na sua personalidade era aserenidade das expresses, o encanto sugestivo do olhar irradiando alenidade do corao reeducado em normas invulgares, como o equilbrio damente voltada para ideais superiores. Ela fora, com efeito, educada em sosprincpios de Moral e, por isso mesmo, asilava nos refolhos do ser aquela finquebrantvel abeberada em doutrinas filosficas-crists muitotranscendentes, as quais bem cedo lhe forneceram no apenas a confianaem si mesma, como ainda a certeza inabalvel nos promissores destinos dacriatura que batalha nas eiras da existncia aureolando-se daquela superiorvontade de vencer que remove todos os percalos- porquanto construda naldima confiana em um Ser Supremo e Paternal dirigindo toda a Criao!

    Meu Esprito amava profundamente essa Pamela a quem, do MundoInvisvel, eu vira nascer havia vinte anos, e que agora eu contemplava en-volvida no turbilho da metrpole galante qual frgil alcone ao sabor dastempestades marinhas. Do Espao, procurei encaminh-Ia protetoramente,comovido, ao endereo que trazia, uma vez observando que nenhum amigose dignara acorrer, amvel, servindo-a na emergncia crtica. E l se foi,sob meu olhar, demandando subrbio afastado, tendo frente rduostestemunhos a apresentar Legislao Divina no embate das tentaes deum grande agrupamento social, como provas de resolues inadiveistomadas ao reencarnar, mas tambm como bases lucificantes de umdestino de eleio - se altura de mritos espirituais se portasse na arenaterrvel!

    Cerca de sessenta anos antes, achando-me ainda encarnado eresidindo nesse mesmo amvel torro carioca, eu conhecera Pamela soboutra indumentria fsica, ou seja, existindo em outra configurao corporale se impondo sociedade com os valores de outro nome de famlia ediferente condio social.

    Eu e seu pai de ento framos amigos ntimos, vizinhos deresidncia em S. Cristvo, bairro em que durante tantos anos residi, tendomesmo a honra de ser convidado por aquele digno varo a lev-la pia

  • 9batismal, dois anos depois do seu nascimento, considerao a que anu deboamente, reconhecido. Fora, portanto, seu padrinho antes que elaexistisse sob o prenome de Pamela; e quantas vezes, durante sua infnciade outrora, acorri, pressuroso, a ministrar-lhe tratamento, procurando com-bater pequenas enfermidades prprias da idade, com a experincia daMedicina que abracei!

    Sabia-a, agora, lealmente resolvida a exercer apostolado eficienteentre os deserdados da fortuna, sombra do Evangelho Remissortraduzido nas diretrizes da Doutrina dos Espritos, e, por isso, comovia-meante sua figura frgil de quase adolescente, mas valorosa qual monumentode F, preparando-se como em uma Iniciao Sacrossanta, para futurosdesempenhos em torno da Beneficncia. .

    Aportando, pois, Estao D. Pedro II a fim de se conduzir sozinha,pauprrima, jovem, formosa, num ambiente social onde escasseiamexemplificaes honestas e as virtudes jazem ignoradas sob o anonimato,Pamela nada mais faria seno provar aos seus Instrutores Espirituais asresolues enobrecedoras que dela exigiriam todos os valores morais deque fosse capaz.

    No me assaltaram dvidas de que se tornasse vitoriosa. Preparadose encontrava o seu Esprito para o certame reabilitador luz deensinamentos to altamente educativos e orientadores que eu previamentea contemplava triunfante, certo de que bem cedo adviria o momento emque me seria permitido verificar-lhe a fronte assinalada por aquelafosforescente aurola indicadora das conscincias tranquilas, das mentesreeducadas sobre as magnificncias do Evangelho!

    E' que Pamela professava a Doutrina Esprita! E o adepto convictodesse generoso repositrio de benesses espirituais tem o deversacrossanto de se conduzir altiva e nobremente em qualquer estncia aque for chamado a operar, como cidado terreno ou espiritual, portando-se altura da honra da f que comunga em todo o ngulo social a que ascircunstncias da existncia ou os prprios testemunhos o obriguem aenfrentar, dever conferido pela cincia, que necessariamente ter, das leisda Vida que a Doutrina Esprita confere aos seus aprendizes.No obstante, e por mais singular que parecesse, Pamela era herdeira deuma grande fortuna e at possua instruo aprecivel. Educara-se nointerior, entre religiosas que lhe burilaram a inteligncia com um cursonormal brilhante, do qual fizera parte tambm o estudo caprichoso da Msi-ca. Aos dezoito anos, j de posse de seu honroso ttulo de professora,revelara-se tambm futurosa pianista, interpretando com boa tcnica egrande sentimento nmeros clssicos que emocionavam 08 ouvintes. Seuspais, no entanto, haviam sido de condio social modesta, e a possibilidadede instruir-se adviera da fortuna que lhe deixara em testamento o velhoComendador Antnio Jos de Maria e Sequeira de Barbedo, seu tio bisav,

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    fortuna que s deveria passar ao seu poder, no entanto, ao contar ela vinte ecinco anos de idade1. Um procurador facilitara-lhe a bolsa para os estudos,assim cumprindo a vontade do testador, administrando ainda no apenas osvalores depositados num Banco da Capital, a renderem juros, mas tambma Fazenda de Santa Maria - nobre propriedade que datava dos tempos daColonizao do pas, conservada com inteligncia e zelos especiais pelodigno Comendador at a data do seu passamento e, at o momento quedescrevemos, por servos fidelssimos no cumprimento do dever, dentreoutros um nascido escravo mas liberto no dia do prprio batizado, por umacarta de alforria fornecida pelos padrinhos, os quais justamente haviam sidoo Comendador e sua filha Esmeralda. O servo, padro de honradez efidelidade inconfundvel, era de descendncia africana e vivia no vetustopalcio desde o nascimento, mostrando discernimento e sanidade mentalincomuns, o que permitia continuasse como zelador da rica propriedade deseus antigos senhores. Seu nome, como, de resto, o de todos nascidosescravos, traduzia o do velho senhor, do qual fora propriedade. E porque sebatizasse no dia de S. Miguel Arcanjo, acrescentaram-lhe o do bom anjo,nomeado seu protetor espiritual por discricionrio decreto do digno vigrio daParquia desde o momento solenssimo em que as guas do batismo otransformaram em legtimo cristo. Chamava-se, portanto, Antnio MiguelBarbedo ou Antnio Miguel, simplesmente. O orgulho do velho proprietrio,porm, como vemos, e como seria natural na poca e, decerto, ainda nosdias presentes, suprimira a excelncia do "de Maria e Sequeira de", honraque lembraria ancestrais portugueses demasiadamente ilustres paraemprestarem nobreza e fidalguia a um msero rebento de escravos africanosvindo luz do mundo num recanto do Brasil.

    Ora, Pamela era bisneta de uma irm do Sr. Sequeira de Barbedo,senhora a quem jamais a fortuna financeira sorrira. Casado em primeirasnpcias com Maria Susana, loura e linda criatura a quem a morte arrebatarano terceiro ano dos esponsais, o Sr. Barbedo, por motivos que o leitorconhecer posteriormente, legara sua Fazenda e seu ouro bisneta de suairm, uma vez que no possua herdeiros diretos; e, pelos mesmos motivos,lavrara o quesito singular que somente aos vinte e cinco anos permitiriaPamela entrar na posse da herana. Por tudo isso era que a jovem esprita,em chegando s plagas cariocas, nada mais era do que uma moa instruda,cuidadosamente educada, mas criada em ambientes pobres, cuja nobreza deprincpios e fortaleza de carter seriam postos a provas durssimas nocontacto com o torvelinho malso de uma grande cidade ainda nopadronizada pelas normas da Moral.

    Sem contar com verdadeiras ou desinteressadas afeies ao redorde si; porquanto, rf, a parentela despeitada e prevenida nela apenas

    1 Os nomes das nossas personagens so fictcios. Que o leitor no os adapte a quaisqueroutros idnticos que porventura conhea. - (Nota do Autor.)

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    distinguiria a rica herdeira que lhe arrebatara as possibilidades de tambmherdar, foi bem certo que a jovem provinciana conheceu no Rio de Janeirosperos dias de lutas e adversidades, entre os quais as humilhaes seaglomeraram junto a contratempos e imprevistos que desanimariamqualquer outra tmpera que no aquela forjada no calor conformativo dapujante crena esprita. que faz do seu fiel uma fortaleza de nimo e depacincia capaz de resistir a todos os embates da provao. Noimportavam o diploma legitimamente adquirido e to-pouco os clssicos queinterpretava ao piano - se mo amiga, respeitosa e desinteressada, vendo-lhe a inexperincia, lhe no favorecia auxlio honesto para coloc-la emlocal condigno, correspondente ao grau de cultura que possua. Serianecessrio nutrir-se, vestir-se, residir em alguma parte. E a moa, casta eidealista, em dificuldades financeiras no obstante herdeira de fortunaimensa, deslocada no ambiente bulicioso da capital, tmida e aturdida, masa quem nem as vaidades sociais enredavam em ciladas precipitosas, nemos complexos deprimiam criando impasses embaraosos - no se diminuiu'ante o prprio conceito servindo-se do primeiro ensejo de trabalho honestoque se lhe deparou, protetor e digno, solucionando a agrura do desem-prego em que se debatia. Assim foi que se honorificou, ante a prpriaconceituao de esprita, sentando-se a uma banca de operria, em certaoficina de costura e roupas feitas, laborando serenamente ao lado degrrulas companheiras que lhe estimavam as maneiras polidas,estranhando-lhe, contudo, a conduta severa dos costumes, por ignoraremtratar com um carter superior e um corao alicerado em ideaisincompreensveis s suas concluses ainda pouco aprofundadas em as-suntos da espiritualidade. Assim vivendo em ambientes aqum dos queteria direito a aspirar, durante cinco anos se lhe depararam mltiplas mo-dalidades de infortnios e testemunhos, os quais, rigorosamentesuportados sem impacincia nem lamrias, ampliaram sua experincia,fornecendo-lhe ensejos magnficos de cultivar nos arcanos anmics,valiosas qualidades morais, tais como a pacincia, a resignao, atolerncia, a prudncia das atitudes, a coragem moral finalmente, como aprpria resistncia fsica. Sobejaram privaes, enquanto ininterrupto seriao desconforto. Habitou humildes domiclios, residncias coletivas ondecada vizinho hostiliza o companheiro de romagem expiatria pelo simplescomprazer de infelicitar o prximo; suportou remoques e insultos, por seno prestar ao desleixo dos costumes e atitudes de que se via rodeada;conformando-se, de boamente, situao que secreta intuio lhe apontavacomo preparo prvio para futuras realizaes em setores diferentes.

    Certamente, pelo decorrer do tempo, advieram oportunidadesrisonhas, acenando, para as aspiraes que pudesse alimentar, colocaesbem remuneradas, que lhe permitissem habitar locais mais justos, econsentneos com a sua educao. Tolheu-a, porm, a timidez de se arriscar

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    aos meios sedutores, considerando-os propcios s tentaes domundanismo, que, com todo cuidado e perspiccia, desejava evitar. Viu-se,porm, ainda assim, importunada pelos requestadores inescrupulosos queenxameiam nos grandes centros sociais, os quais, percebendo-adesprotegida das atenes de uma famlia, tentavam convenc-Ia asituaes incompatveis com o pudor e a honra femininos. Repelia, serena,to ingratas investidas das regies das trevas, fortalecida na corageminquebrantvel haurida naquela f superior que flamejava em suas poten-cialidades anmicas.

    noite, porm, recolhia-se - a conscincia tranquila, o corao alentadopelo reconforto do dever cumprido, exausta das pelejas do dia. Alava, em silncio,o pensamento fervoroso at s luminosas esferas do Bem, atravs de preceshumildes e amorosas, em procura de energias psquicas renovadoras, para odesenrolar do dia seguinte. Oh! Ento, que de eflvios lenificadores, revigorantes,cascateavam dos planos espirituais para orvalharem sua organizao fsico-psquica, fraternalmente socorrendo-a em meio dos fogos dos testemunhos! Que devalores morais e mentais advinham para o seu Esprito sequioso de ensinamentoelevado, ao esflorar o livro ureo dos espiritistas - "O Evangelho segundo oEspiritismo", de Allan Kardec -, como adepta que era da magna Cincia, em cujaspginas, desde a primeira juventude, vinha alimentando sua alma ansiosade luz e de justia!

    luz de modesta lmpada, eis que uma voz celeste sussurra, uma vezainda, sublimes ensinamentos ao seu corao humilde e fervoroso, como ao seuentendimento atento e encantado frente a to fecundo manancial, as prudentesadvertncias dos Instrutores Espirituais, que deixam as flgidas regies da paz para,solcitos e amorveis, se darem ao labor de revigorar o nimo desfalecido dossofredores terrestres, exortando-os aos caminhos serenos do dever e da f! Aqui oconselheiro paternal que alerta contra as sedues mundanas... Mais alm umsussurro flbil qual balada sugestiva que narrasse o retorno do Divino Mestre paraenxugar o pranto causticante da desgraa com os blsamos daquela celestecaridade que dele fez o Supremo Consolador dos homens:

    - "E tu, donzela, pobre criana lanada ao trabalho, s privaes,porque esses tristes pensamentos? Porque choras? Dirige a Deus, piedosoe sereno, o teu olhar: - Ele d alimento aos passarinhos. "Tem-lheconfiana: - Ele no te abandonar. .. O rudo das festas, dos prazeres domundo, te faz bater o corao... Tambm desejaras adornar de flores osteus cabelos e misturar-te com os venturosos da Terra. Dizes de ti paracontigo que, como essas mulheres que vs passar, despreocupadas erisonhas, tambm poderias ser rica. Oh! cala-te, criana! Se soubessesquantas lgrimas e dores inominveis se ocultam sob esses vestidosrecamados, quantos soluos so abafados pelos sons dessa orquestrarumorosa, preferirias o teu humilde retiro e a tua pobreza! Conserva-te puraaos olhos de Deus, se no queres que o teu anjo guardio para o seu seio

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    volte, cobrindo o semblante com suas brancas asas e deixando-te com osteus remorsos, sem guia, sem amparo, neste mundo, onde ficaria perdida, aaguardar a punio no outro." 2

    "Venho instruir e consolar os pobres deserdados. Venho dizer-Ihesque elevem a sua resignao ao nvel de suas provas, que chorem,porquanto a dor foi sagrada no Jardim das Oliveiras; mas, que esperem, poisque tambm a eles os anjos consoladores lhes viro enxugar as lgrimas."3

    Deixava o livro, enternecida. As lgrimas cintilavam nos olhos castose ela adormecia recomendando-se a seus desvelados amigos espirituais, osquais sabia fiis ao mandato de a assistirem e aconselharem durante astrguas que o sono benfazejo impunha ao seu Esprito enamorado dasbnos do Progresso...

    2 O Evangelho Segundo o Espiritismo Allan Kardeck, Cap. VII, "Bem aventurados ospobres de esprito - Comunicao do Esprito de Lacordaire.3 Idem, Cap. VI, "O Cristo Consolador" - Comunicao do Esprito de Verdade.

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    CAPTULO II

    Amor de outra vida

    - Durante o sono a alma repousa como o corpo?- "No, o Esprito jamais est Inativo. Durante o sono, afrouxam-se os laosque o prendem ao corpo e, no precisando este ento da sua presena, elese lana pelo espao e entra em relao mais direta com os outrosEspritos."

    .... * .... * ....

    - Podem duas pessoas que se conhecem visitar-se durante o sono?- "Certo, e muitos que julgam no se conhecerem costumam reunir-se efalar-se. Podeis ter, sem que o suspeiteis, amigos em outro pais. tohabitual o fato de irdes encontrar-vos, durante o sono, com amigos eparentes, com os que conheceis e que vos podem ser teis, que quasetodas as noites fazeis essas visitas."4

    Os mdiuns, mais que quaisquer outras personalidades, tm a possibilidadede se transportar em corpo espiritual -. ou em perisprito - de um a outro lado daTerra, como do Invisvel, e a se entregarem a atividades de variados matizes,Frequentemente eles o fazem, conquanto nem sempre conservem lembranas dasoperosidades efetivadas, ao retornarem ao crcere corporal. Ditosa a criatura -mdium ou no - que, operosa, passiva s advertncias do Dever, como sbenfazejas inspiraes da prpria boa vontade, emprega tais oportunidades aservio de causas justas ou nobres, a bem do progresso prprio ou alheio, dando-sea lides meritrias, desdobrando-se ininterruptamente em aes produtivas em tornodo Amor e da Fraternidade.

    Minha querida Pamela era mdium. Muito embora os absorventes deveresda profisso escolhida para a prpria manuteno, modesta e obscura, preferindorefugiar-se no anonimato de uma banca de oficina quando possua talento eaptides para mais elevados desempenhos, e isso, como dissemos, por desejaresquivar-se a ambientes que favorecessem o domnio das sedues, era bem certoque, aos sbados, ela se permitia o ensejo de reunies com os veros companheirosde ideal cristo, na sede de um ou outro agrupamento de espiritistas afins. DoInvisvel, eu me propunha a auxili-la em seu progresso quanto mo permitissemminhas possibilidades e os mritos dela prpria, enternecido ante o desejo por elaperseverantemente apresentado, de se enobrecer moral e espiritualmente aos fulgo-

    4 "O Livro dos Espritos", Allan Kardec, Capitulo VIII - "Da emancipao da alma".Perguntas 401 e 414.

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    res dos ensinamentos divinos, renovando o prprio carter diriamente, e sehabilitando, consequentemente, de todas as formas, para encargos e missesconferidos pela Cincia do Invisvel, de que era, como sabemos, aprendiz convicta.Por isso mesmo, do Alto eu recebia algumas vezes permisso para oferecer-lherefrigrios espirituais muito variados, dentre outros - facultar possibilidade evigilncia para viagens em corpo espiritual, que muito gratas seriam ao seu corao,uma vez que, assim, tambm aceleraria o bom desenvolvimento das faculdadesmedi nicas que em sua organizao perispiritual floresciam, formosas,prometedoras de abundantes messes doutrinrias - frutos de abendioados laboresdo seu Esprito, atravs de servios evolutivos dentro do tempo. No raro, portanto,imersa sua frgil vestidura carnal em sono profundo, sono que eu procurava,comumente, aprofundar para a letargia com hbeis descargas magnticas, paramaior segurana e a benefcio dos seus prprios dons - Pamela, parcialmente des-prendida, mas muito lcida, como geralmente ocorre com os sensitivosgrandemente passivos, alava a mente ao Infinito, em splicas frvidas e vee-mentes, para que seus Mentores Espirituais lhe permitissem rpida visita a Zurique,na Sua, onde, uma vez afrouxadas as ataduras magnticas que comprimiam suasfaculdades nas cadeias do corpo carnal, sabia existir algum que lhe era muito caroao corao, mas do qual, em viglia, s se recordava atravs do que julgava tratar-se apenas de um sonho, no obstante as instrues apreendidas nos cdigos daCincia Esprita. Discretamente assistida, portanto, por mim, como por vigilantes doplano invisvel, pois no nos permitamos intervir diretamente em assuntospertinentes ao livre arbtrio de cada um, repetia as visitas formosa cidade docentro da Europa; perlustrava com desembarao as ruas silenciosas e limpas a quemuitas vezes camadas de neve branqueavam; dirigia-se a um vetusto edifcio detrs andares, sombrio e entristecedor; penetrava singelo aposento onde um jovemlouro e esbelto repousava, adormecido, e murmurava, traindo ternura infinita:

    - Bentinho! ...Um fantasma, como envolvido em denso vu de neblina, elevava-se do

    envoltrio masculino que se estirava sobre o leito, vencido por sono reparador;apertava-a nos braos ternamente osculando-a com doura e saudade; e,enlaando-a pela cinta, desciam ambos as escadarias, estreitamente enleados, paraaprazvel passeio pelas ruas de Zurique.

    Eram, com efeito, duas almas enamoradas que se buscavam atravs dasdistncias, e que, em esprito, se encontravam para terno convvio, atradas pelasvibraes dos prprios pensamentos que evocavam um passado remoto, no qual sehaviam ardentemente amado, vivendo uma outra existncia planetria, ainda esempre unidas por indissolveis laos espirituais!

    Todavia, o jovem, por ela denominado Bentinho, era agora suo denascimento, trazendo nome por ela desconhecido, pois que, se em poca j extinta,em existncia pregressa, o conhecera com aquele apelido, a verdade era que, nopresente, chamava-se Maximiliano Niemeyer, era de origem alem e tornara-seconhecido no grupo de relaes que cultivava apenas pela abreviatura de Max.

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    Culto, esbelto, corado e sadio, Max, no entanto, carecia de bens de fortuna,no obstante a brilhante tese de Agronomia que defendera na Universidade de suaterra natal. Se as faculdades psquicas de Pamela, por mais lcidas e desenvolvidasainda, lograssem destacar pormenores, perceberiam que seu amorvel amigotrajava-se modestamente, sofria privaes na triste mansarda do terceiro andar e seentristecia com a impossibilidade de emigrar para se permitir livre curso sambies que nutria, atendendo s imperiosas necessidades por que se via sitiado.

    De certa feita, durante confortativos devaneios espirituais pelos jardinsperfumosos de Zurique, confessou a Pamela o fiel companheiro de outras vidas:

    - "Pesa-me profundamente a solido em que vivo, apartado do teu amorosoconvvio, minha querida Esmeralda"... Tua ausncia de minha vida desencoraja-mee penaliza-me, no permitindo trgua ao meu Esprito para integralmente esquecero drama atroz que nos separou... Apenas durante estes nossos rpidos encontroslogro lenitivo e valor suficiente para me permitir arrastar o fardo da existncia. ..Durante a viglia, no decorrer das lides cotidianas, no passo de um corao insatis-feito, a quem tudo falta, um homem entristecido que no consegue atrativos aoredor de si, e cujo carter vai descambando para a descrena e para a neurastenia.Agora, na esperana de conseguir refrigrio para a nostalgia que me crucia, acabode me filiar a um grmio humanitrio, onde o estudo do idioma Esperanto serindispensvel... Peo-te, minha querida, que imites o meu gesto, l em tua Ptria...pois sei que existem ncleos disseminadores do fraterno idioma pelo mundointeiro... Quem sabe, assim chegaremos a corresponder-nos um dia, atravs dealguma revista ou jornal de propaganda do Esperanto?.. j que nossas almas sebuscam, ansiosas, sem outras possibilidades ou oportunidades de se avistaremseno as que nos permitem o sono do corpo fsico?... Amanh, despertando tu noRio de Janeiro e eu aqui, em Zurique, teremos olvidado tudo quanto nos falamos,apenas logrando a impresso deliciosa de um lindo sonho de amor... Cultivando oEsperanto, porm, ser mais do que provvel que, com facilidade, nos ponhamosum diante do outro, renovando, depois, para o futuro, a felicidade que toduramente nos foi arrebatada no passado..."

    Nenhuma regra das leis que regem o mundo espiritual, pelas quais meoriento, coibia-me recordar a Pamela, quando em viglia, uma vez que outra, apromessa feita ao ansioso Max, durante as curtas evases em corpo astral. Eu ofazia, pois, discreta e gratamente, sempre que possvel, servindo-me do auxilio desugestes sutis, mesmo criando pequeninas oportunidades aparentemente filhas doacaso... Aos Espritos tambm grato uma ou outra gentileza para com aqueles,humanos ou no, que lhes ficam na rota... e, assim agindo, que mais faria eu senoobservar as ldimas leis da Fraternidade?... O Esperanto est a servio da Fra-ternidade como a Beneficncia a servio do Amor ... e introduzir a mocidade ao seuestudo racional adverti-Ia a se preparar para um futuro radioso, que tender aenlaar a Humanidade num mesmo elo de vibraes afetivas ...

    Com efeito! O assunto interessava vivamente jovem espiritista, visto queos adeptos da Doutrina dos Espritos cedo compreendem o valioso concurso do

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    idioma Esperanto ao ideal de unificao humana que esposam. Retendo nasubconscincia o veemente apelo do amvel companheiro de giros espirituais,assim as minhas insinuaes durante sua viglia, pouco a pouco passou ela a in-teressar-se pelo Esperanto e procurou penetrar seus segredos lingusticos. No Riode Janeiro fcil a um estudioso ou pensador, espiritista ou no, fazer a cintilanteaquisio intelectual. O esprita, qui melhor ainda que qualquer outro idealista,encontra no Esperanto afinidade e ensejos para o desdobramento dos dilatadassonhos de solidariedade humana que lhe transbordam do seio. Pamela estudou-ocom dedicao e prazer. Retirou das prprias horas de lazer os melhores momentose entregou-se ao nobre servio, sinceramente aspirando a penetrar os segredos dasua construo literria... No fim de algum tempo, tornava-se colaboradora deapreciadas revistas esperantistas; e to vastas eram as suas preocupaes,ampliando atenes pelo mundo inteiro, pois logo de incio alargara o crculo desuas relaes atravs de correspondncias amistosas com habitantes at das maisremotas regies da Europa e da sia, que no se apercebia de que o tempotranscorria rapidamente, aproximando-se o momento em que completaria as vinte ecinco primaveras...

    Certa noite, ao dirigir-se para a sala das reunies na sede do ncleo espritaque frequentava, Pamela viu sobre pequena cadeira uma revista ali deixadacasualmente... Tomou-a e, reconhecendo ser escrita em Esperanto, interessou-se,pondo-se a folhe-la... Em dado instante, surpreendeu-se: - acabava de descobriruma informao, acompanhada de clich do seu autor. Tratava-se de um jovemagrnomo suo, autor de laureadas teses agrrias, o qual, no s desejavatransferir-se para a Amrica do Sul, como at oferecia seus servios profissionais alavradores brasileiros, por pequena remunerao, simpatizante que se confessavada grande e futurosa nao que o Brasil. Chamava-se Max Niemeyer, contavatrinta anos de idade e indicava a prpria residncia, em Zurique, para quaisquereventualidades.

    Profundamente impressionada, a herdeira do Comendador Barbedointerrogava-se, enquanto o erudito presidente da instituio convidava a assistnciaao recolhimento que antecede abertura das ditas reunies:

    - Onde j vi eu to doce expresso de olhar e o sorriso amvel e franco,estampados naquele clich? Max Niemeyer... Onde vi, Deus meu?! ... Conheo-o,porventura?... No, certamente!... pois reside na Sua!

    Orou por ele, comovida, adivinhando-o em angustiosas dificuldadesfinanceiras, dado o noticirio a seu respeito, desejando-lhe boa sorte nos intentos.Todavia, ao trmino dos trabalhos da respeitvel assemblia, procura o possuidorda revista e roga-lhe a gentileza de lhe permitir lev-la consigo. Passaram-se osdias e, em outra revista, do mesmo idioma, encontra idntica informao, desta vez,porm, acompanhada de formosa e fecundssima tese sobre a cultura da cana deacar, to apreciada e cultivada no Brasil, e da melhor forma de irrigaes para assearas dos climas tropicais.

    Encantada, como futura fazendeira, decidiu-se a felicitar o autor pela

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    comprovada sagacidade e compreenso de climas to diversos daqueles em quevivia, nele percebendo trabalhador estudioso alm de culto companheiro de idealesperantista. No vacilou, portanto, e teceu excelente e vvido comentrio em tornoda agricultura no Brasil, onde escasseiam as searas, oferecendo-o literariamente aoilustre autor das aludidas teses, terminando por felicit-lo pela inconfundvelcompetncia comprovada, quer como tcnico de Agronomia, quer como emritobeletrista esperantista, remetendo-lhe igualmente encantador soneto buclico, emque messes surgiam como bnos dadivosas do Cu sobre aqueles que sepreocupam com o sagrado amanho das sementeiras nas entranhas fecundas egenerosas da Terra.

    Como seria de esperar, amvel correspondncia estabeleceu-se entre osdois jovens esperantistas. Confessavam ambos, no decorrer de assduas epstolas,que se julgavam unidos por laos de afinidades indefinveis e recprocas; inslitaconfiana levou-o a perseverar nesse terno meio de comunicao, vinculando amtua simpatia que intelectualmente os atraa. A verdade era, porm, que, sem queambos pudessem sequer conhecer mentalmente a origem de to grande atrao,seus Espritos desde muito se conheciam e amavam e at, como j vimos, seencontravam com frequncia durante a letargia do fardo corporal terreno. PorquantoPamela, a quem faculdades medinicas belssimas engrandeciam o carter, setransportava procura do amigo bem querido. J que este, dada a ignorncia dascincias transcendentais, no cultivando devidamente os poderes da alma, seria im-potente para, mesmo em esprito, transpor com segurana os imensurveis espaosem busca daquela cuja lembrana se decalcava ocultamente nos refolhos da suaalma como nos arcanos do corao.

    Fotografias e confidncias foram trocadas... ambos a si mesmoconfessando que as dulurosas emoes de um grandioso sentimento afetivo pe-netravam no apenas as potencialidades dos seus espritos, mas ainda todas ashoras que viviam ...

    Finalmente, cinco anos se escoaram, lentos e exaustivos, desde aquelamanh luminosa e abrasadora de estio, em que Pamela ingressara na vida ativa dagrande metrpole, e acabava ela de completar as vinte e cinco primaveras quando,certa tarde, ao chegar ao humilde domiclio, de volta do trabalho, aguardava-asubstanciosa correspondncia do procurador, convidando-a a uma visita ao seuescritrio a fim de tomar posse da herana que lhe coubera por morte doComendador Sequeira de Barbedo.

    Preenchidas todas as formalidades legais, PameIa foi reconhecida legitimaproprietria da Fazenda de Santa Maria, localizada nos arredores de certacidadezinha aprazvel e fresca do Estado do Rio de Janeiro, como da grande fortunaem valores mveis que a acompanhavam, no se excetuando nem mesmo as jiasda famlia de Barbedo. Urgia, no entanto, deixar a capital formosa, transferir-se paraa vetusta propriedade, passar em revista e dirigir, finalmente, o que de mos togenerosas recebera como que por magia de um sonho encantador...

    E foi assim que, por outra clara manh de um dia de vero, aquela jovem

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    singular, que vivera s na colmia ardente de uma grande cidade, sem secontaminar no oprbrio de quaisquer deslizes, rumou para o interior do Pais,tomando uma passagem de primeira classe no antigo prefixo - S1 - da E. de F.Central do Brasil, o qual partiu, resfolegante e barulhento, da Estao D. Pedro II ...

    Serena e altiva, no se lhe descobria nas feies calmas e regulares nem ojbilo da cobia satisfeita nem a alacridade daquele que se supe triunfante sobreas glrias do mundo. Contemplava a paisagem, simplesmente, despreocupada, en-quanto, ligeiro, o comboio vencia distncias...

    Observei-a, comovido, e um sorriso aflorou aos lbios do meu Esprito.Murmurei-lhe ao ouvido, valendo-me das ondas vibratrias da intuio:

    - Que o Senhor seja contigo, minha querida Pamela... Eu sabia que, sob asbnos protetoras da Doutrina do Amor e da Luz lograrias suficientes energiaspara a vitria dos testemunhos na batalha contra ti mesma, espancadas que foramas ltimas sombras que te entenebreciam a conscincia no contacto com os ardoresdas sedues humanas, que soubeste vencer! Que novas e mais flreas energiasreanimem tuas foras intrnsecas nos testemunhos das realizaes que hoje iniciasnos ureos campos da Beneficncia e do Amor ao prximo...

    Era uma pgina que se voltava sob meus olhos no imenso livro da vida deum Esprito em marcha pelos caminhos da redeno...

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    CAPTULO III

    O Solar de Santa Maria

    1.A cidade de X... uma pequena localidade llituada ao sul do Estado

    do Rio de Janeiro, cujo clima excelente, pois conta cerca de quatrocentosmetros sobre o nvel do mar, atrai para seu convvio alegres veranistas, quepara l transmigram peridicamente, no fim do ano, ansiosos por merecidorepouso aps longo perodo de cruentas fadigas sob o desenrolar dasperipcias cotidianas da capital do Pas. Pequenina e silenciosa, tambmpitoresca, assim romnticamente ornamentada com o seu casario brancoem estilo de "chals" orlados de jardins viosos, onde o excitante perfumedas aglaias, casando-se ao aroma sulil dos roseirais caprichosos,rescendem noite, dilatando ondas aromticas at transform-la emsanturio de olores gratos ao olfato como ao corao de cada um. Pomares,hortas e chcaras bem tratados emprestam um carter de nobre vetustez esuma dignidade s residncias discretas, de persianas corridas, que aindarecordam os tempos luzentes dos bares e gentis cavalheiros do Imprio.Ao alto a cruz do templo evocativo, a Igreja Matriz, nobre e docementesugestiva com sua torre esguia apontando para o cu, como indicando odever das criaturas para com o seu Criador.

    E, abaixo, ruazinhas poeirentas e sonhadoras, sombreadas poralamedas de magnlias ou coqueiros galantes, levando o pensador, ou osentimental, a extrair das camadas vibratrias que cercam o recinto algo demuito interessante e lindo que outrora ali mesmo se houvesse desenrolado ese perpetuasse, fotografando-se lentamente, de vibrao em vibrao, nasondas da luz, em derredor do seu agrupamento.

    Eram doze horas e quarenta minutos quando Pamela pisou aplataforma da estao singela e pequenina.

    Os bem-te-vis e pintassilgos orquestravam inefveis melodias entreas galhadas dos arvoredos pujantes; e o Sol, de luz brilhante e quente, sua-vizada pelo frescor de vivificante aragem, lourejava festivamente a formosaregio, como que lhe apresentando as boas-vindas. Dir-se-ia a Pamela quetudo sorria... e, extasiada ante o bucolismo grato da paisagem, alongou oolhar como em abrao terno e sorriu tambm, encantada e feliz ...

    Ela nascera naquela cidade. Mas, deixando-a quando contavaapenas poucos meses de idade, visto que s acidentalmente o importanteevento ali ocorrera, somente agora retornava, iniciando etapa nova em seudestino. estao, apenas seu procurador, o administrador da Fazenda e ovelho Antnio Miguel, nos seus setenta anos de idade, mas ainda vivaz,prestativo e diligente.

    - Seja benvinda a Santa Maria, "minha sinh"... que h muitos anos

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    choro, esperando sua volta... - exclamou, saudando-a, o negro, em fraseadotosco, trmulo e comovido, enquanto, surpreendida, Pamela observava ahumildade de uma lgrima discreta em seus olhos melanclicos.

    A jovem estendeu-lhe a mo, afvel e sorridente, que ele osculoucom venerao e respeito, como se em sua imagem graciosa revissealgum a quem outrora muito amara, talvez uma antiga senhora deescravos...

    - Quer ter a bondade de indicar a conduo da sua preferncia,senhorita? O velho Miguel teimou em atrelar o trole, que h cerca de vinteanos no deixava os galpes de Santa Maria para experimentar asenferrujadas rodas... Felizmente aqui est tambm o automvel. " Oudesejaria antes residir no "Chal Grande" da cidade?.. pois que tambm eleest preparado para receb-la - indagou galantemente o administfador,"capito" Incio, a quem a antiga passagem pela Fora Pblica local, nomodesto posto de sargento, valera a alcunha da patente que no alcanara,e a quem, do mesmo modo, os filmes cinematogrficos ensinaram a trajarde vaqueiro do Extremo Oeste norte-americano.

    Ela preferiu o trole, o que arrancou um sorriso franco dos lbios deAntnio Miguel, e desejou seguir imediatamente para a Fazenda, assimaumentando a agradvel emoo do velho servo e ocasionando singularespanto de Incio, que no chegou a compreender como uma jovemmoderna, habituada ao conforto da capital, rejeitaria um "Studebaker" luzidioe macio por um barulhento carroo puxado a dois cavalos e que serviraainda ao tempo do Comendador Barbedo...

    O trole, porm, seguiu, ao trote de linda parelha de animais, ao longoda estrada fresca marginada de cedros e bambuais. Dentro em poucopenetrou os terrenos do antigo solar... e s ento Pamela, caindo em si dosonho que vivia, pde entrever, na realidade da sua verdadeira expresso, opatrimnio imenso que lhe haviam ofertado, a grande fortuna de que tomavaposse... e o gesto do Comendador, legando-lhos, mais singular e enigmticose lhe apresentou meditao!

    - Por que excepcional motivo teria o bom velhinho doado a mim, e noa outrem, to vultosos cabedais? - pensou, enternecida. - Sim! Ele constituiuum grande enigma para todos ns. Somente Antnio Miguel ocompreendia... Diziam-no, porm, esprita... e minha me narrava, surpre-endida, que, durante minha infncia, me preferia sempre a todos os demaissobrinhos... Abraava-me, a chorar, comigo brincando sobre os joelhos,enquanto repetia, meio sorridente e comovido: "Como te pareces com minhaEsmeralda!... Tu, Pamela!. .. O mesmo sinal no ngulo esquerdo da face, amesma expresso serena e doce do olhar ... O que "ela" advertiu, cumpriu-se ... Deus do Cu! Ela mesma escolheu o nome, e aqui est... voltou paraos meus braos! Oh! Como tudo isto sublime e consolador!" A que sereferiria, porm, o bom Comendador? Ningum jamais o soube, seno

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    Antnio Miguel, que com ele parecia concertar estranho entendimento.Entretanto, dos estofos negros da velha viatura, cujas almofadas

    mantas veludosas cobriam, descortinava Pamela as messes ricas eprometedoras que se estendiam pelos campos e colinas de plantio: -arrozais maduros, baloiando os cachos pesados ao impulso da viraocheirosa; os milharais macios, acenando com suas fitas irrequietas como asaudarem sua jovem proprietria, que chegava; os canaviais apetitosos,lembrando ao seu corao enternecido a tese magnfica do amigo es-perantista que alm-mar se conservava ainda, to distante, inatingvel, comoos cafezais pujantes padro generoso de uma vida nacional - abrindorenques majestosos pelo dorso das colinas, ou o gado feliz, em bandosafins, roendo a pastagem vitaminosa ou bebendo acol, no riacho fresco emurmurante, que cintilava nos raios do Astro-Rei como que sorrindo suapassagem...

    - Dir-se-ia, meu Deus! - que estas paisagens, estes campos de culturaforam indelevelmente gravados em minha alma! . Reconheo-os, amo-os,sinto estremecerem todas as fibras do meu corao ao contempl-los e, noentanto, no os vi jamais, seno neste momento! Daqui me afastei aos seismeses de idade. E porque a imagem de Max, a quem "nunca" vipessoalmente, se associa tanto a estes panoramas, impondo-se s minhassaudades e recordaes? Pobre Max! Solitrio e sofredor em Zurique, comose sentiria ditoso se lhe fsse concedida a oportunidade de dirigir estasterras! - pensou, embevecida, o olhar atento para uma e outra margem daestrada.

    Eis, porm, o macio dos pomares, anunciando a proximidade daresidncia dos antigos Barbedos. Ao virar de uma curva do caminho, lsurge o solar imponente, no seu estilo singular - meio colonial portugus,meio florentino - obedecendo certamente orientao de dois construtoresde nacionalidades diferentes, mostrando as trs fachadas originais divididaspor duas reentrncias, cada uma das quais podendo ser habitada porfamlias diferentes, com entradas e sadas independentes umas das outras,mas toda a casa se comunicando internamente por um ajuntamentoharmonioso e singular de dependncias e passagens.

    Pamela assestou o binculo. No conhecia o solar de Santa Maria. Via-o agora pela primeira vez! Distinguiu as trs fachadas em relevo, com suasrespectivas entradas e o imenso varandim a contorn-lo todo, e excitaoindmita, inslita comoo f-la retirar vivamente dos olhos o instrumentoprecioso: - lembrara-se subitamente de que essa mesma singular disposiodo nobre edifcio dera causa a uma dolorosa tragdia na famlia de Barbedo,e que longos anos se haviam passado sem que se desvanecessem acontento as interrogaes de que a mesma se cercara. A tradio lutuosa ea mgoa sem precedncia na famlia permaneceram desde ento, e a casa,interditada, por assim dizer, desde a poca malsinada, no fra jamais

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    habitada por nenhum familiar de Barbedo, seno apenas por Antnio Miguel,que era o nico a penetrar as dependncias solitrias da sombria manso; eas quais, vrias dcadas depois dos dramticos acontecimentos,conservariam a mesma disposio interna, a mesma decorao do diasinistro, como sagradas relquias que passaram a ser para o velhoComendador e seu afilhado Miguel.

    Impressionante silncio circundava o magnfico solar. Tudo eranostalgia e quietao, como se as cercanias no voltassem ainda a si dotraumatismo sofrido na manh dos idos de Agosto de 1886. No jardim,tabuleiros de flores viosas e lindas diziam dos pacientes zelos de Miguel; eas trepadeiras graciosas, marchetadas de pencas multicores, emprestavamgarridice casa, enlaando-a aqui e alm com seus abraos de galhadasfloridas.

    Pamela desceu do carro como exttica, o subconsciente precipitado notrabalho de reminiscncias difcies, mesmo impossveis, mas aclaradaspelos arremessos da psicometria5, os olhos cravados no imponente edifcio.Dir-se-ia manter a mente relacionada com uma poca que no poderia pre-cisar, tais as fortes impresses que se aviventavam em torno dela,chocando-a, comovendo-a, enquanto as imagens do velho Comendador ede Max surgiam das profundidades do seu corao, indecisas eestranhamente saudosas.

    Pequeno grupo de criados esperava-a no ptio, como outrora fariamescravos chegada do novo senhor. Cumprimentou-os risonha, mas, nochegou a distingui-los realmente, continuando abismada na contemplaodo ambiente. Subiu a escadaria com passadas firmes e desenvoltas. Nosalo de espera, mobilado com arte severa, dois grandes quadros a leodespertaram-lhe a ateno, provocando-lhe benvolo sorriso. Allan Kardecse estampava em um deles, o olhar perscrutador irradiando inteligncia eponderao, lembrando remotos iniciados celtas; enquanto que o outro abondade do Comendador Barbedo deliberara fsse o nosso, dada a estimaque nos unira no passado. Ela a ambos ofereceu carinhoso sculo de boas-vindas, atirando-o ao ar nos dedos unidos em flor e prosseguiu rumando ointerior, como familiarizada com o labirinto de corredores e sales. proporo, porm, que se aproximava dos aposentos do centro, notaraMiguel que a jovem empalidecia, enquanto penosamente se acentuava asingular comoo que a acometera chegada, provocando-lhe tremor ner-voso. Resoluta, abria portas e desvendava aposentos com certeza absoluta,como se desde muito se habitusse a faz-lo. De sbito, porm, passando,desenvolta, pelo rico salo de recepes onde se encontrava ainda abertoum rico "Pleyel" com a partitura que muitos anos antes fra tocada pela

    5 Lindo e curioso fenmeno medlnlco, que per mlte ao Indlvlduo dotado da dita faculdade- ver e ouvir o que foi acontecido ou realizado no local que visita, depois de muitos anosdecorridos sobre os mesmos acontecimentos. (Vlde - "Os Enigmas da Pslcometrla", deErnesto Bozzano.)

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    ltima vez, enquanto uma flauta de prata jazia abandonada sobre o mesmo,encaminhou-se para pequena sala-de-estar que deitava portas para osalpendres do jardim, e cujas janelas, agora de persianas corridas, quandoabertas deixavam penetrar para o interior as galhadas das roseiras floridas,plantadas ao longo de toda aquela fachada. Pamela abriu-as possuda deinslita sofreguido e voltou-se abruptamente, nervosa, para outra porta quese desenhava em ngulo imediato, a qual, semi-encoberta por pesadoreposteiro verde-malva, deixava visvel, no entanto, um quadro com molduranegra onde o perfil de linda mulher, aos vinte anos de idade, trajada devaporosas vestes nupciais, era seguido desta compugida inscrio:

    "Neste aposento morreu Esmeralda. No o profaneis. Orai por ela."Junto, Antnio Miguel, ansioso, contemplava a recm-chegada, como

    que lhe perscrutando a identidade espiritual. Esta, porm, acalmava-se apouco e pouco, pois que sorria... e, em dado instante, retirando o quadro epassando-o ao acompanhante, investiu para a maaneta de cristal, abriu-acom estrpito e penetrou o recinto vedado, os modos rudes, repentinos,como assustados.

    Rico aposento de casal em estilo manuelino apareceu a seus olhosdilatados e penetrantes, como se sua alma antes vislumbrasse o interior desi mesma, enquanto, no umbral, o negro observava, silencioso. Mas, tosignificativo era o desalinho em que se encontrava o leito, como, de resto,toda a dependncia, que no se pde ela conter e interrogou, grave:

    - Porque jamais recompuseram este aposento?- Ah! - explicou Miguel, emocionado - Foi pela manh... Eram oito

    horas... A senhora acabara de levantar-se... Ainda ali se encontram os obje-tos de que se utilizou para a primeira "toilette"... e acol, no salo, o pianoainda aberto, com a partitura que acabara de ensaiar, como era hbito antesde deixar os aposentos. Meu senhor Comendador jamais permitiu quealgum os tocasse...

    - Pobre Sr. Barbedo!. "Seus sofrimentos deveriam ter sido bem atrozesao perder a filha, para que se deixasse assim dominar por uma saudadesentimental. - murmprou tristemente, alongando o olhar pelo recinto emdesordem at ao alto da parede do fundo, onde um painel, retratando aformosa Esmeralda em tamanho natural, traduzia com perfeio a fascinantebeleza de que fra dotada, graas s cores vivas da pintura.

    - Minha senhora - suspirou timidamente o humilde servo - a dor queabateu meu velho amo intraduzvel em linguagem humana! Oh! Parece-meainda ouvir seus desesperados gritos ao longo destes corredores,imprecando os Cus, blasfemando contra Deus, a interrogar entreexpresses soluantes e raivosas de perfeito demnio, o corao dilaceradono mais profundo do seu ser: - "Porque, Senhor Deus?!... Porque mecastigaste assim?! Porque "isto" pde acontecer? Se te ofendi com meusatos de impiedade, que culpa teve ela? Porque no me feriste tu, mas s a

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    mim? Porqu? Porqu? Ele sofreu tudo o que h de mais insuportveldentro do mundo para destroar um corao humano! Como no enlouque-ceu de vez o pobre Comendador ou no sucumbiu sob o golpe atroz -somente o sabe a misericrdia do Todo-Poderoso, que veio em socorrodele...

    - O meu generoso amigo professava a Doutrina Esprita, caro Miguel, eos adeptos desse credo consolador sabem sofrer, porque elevam a Deus ocorao ulcerado, nas irradiaes da prpria f, com que lhe rogam foraspara os testemunhos inapelveis!

    - Sim, minha senhora, verdade! Mas, na ocasio a que me reporto,no professava ainda... S mais tarde, depois que o Sr. Dr. Bezerra veiobusc-lo, levando-o a contragosto para a Corte, pde conhecer e adotaressa doutrina de Amor e Redeno, resignando-se, ento, ao irremedivel.

    - Sim... Recordo-me de ter ouvido de minha me, que muitas vezes seaprazia em narrar seus primeiros tempos de esprita... Merc de Deus, hojeestar desfrutando no Alm a paz a que fz jus durante o acervo das.rspidas provaes que suportou... e frur, decerto, justas alegrias ao ladoda sua to querida Esmeralda ...

    Antnio Miguel sorriu, enigmtico, enquanto a nova proprietriaprosseguia:

    - Desejo habitar as mesmas dependncias de Esmeralda, meu caroMiguel... Este ser o meu quarto de dormir... Providencie para que minhabagagem suba. Eu prpria recomporei este aposento.

    - Senhora... tendes, pois, coragem de habitar estes mesmosaposentos? Oh! Tantos anos so passados e ainda hoje sinto horror... Eu fuitestemunha, senhora!... Acol, a porta da alcova onde ...

    - Sim, Miguel! Providencie a subida de minha bagagem...O velho servo afastou-se em silncio, depois de polida e humilde vnia.Mas, se Pamela o tivesse observado ao retirar-se, verificaria que eleajuntara discretamente as mos, elevando-as ao cu em gesto piedoso, aopasso que murmurava, enquanto duas discretas lgrimas lhe humedeciamas plpebras:

    - Louvado sejais, meu Deus, que me concedestes vida para presenciara sua volta!

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    CAPTULO IV

    Max

    1.Passaram-se alguns meses desde a venturosa manh em que o

    sombrio Solar de Santa Maria recebera de retorno, reencarnada na pessoade Pamela, a beno inestimvel da presena da sua antiga senhora.Durante os primeiros dias, a novel proprietria mantivera-se recolhida,absorta na leitura das recomendaes constantes do testamento que atornara possuidora da Fazenda, e, particularmente, do dirio ntimo doComendador, onde importantes segredos de famlia e revelaes de sumagravidade foram escritos propositadamente para ela, a orient-la parasucessos futuros. Com a sucesso dos dias, porem, visvel transformaooperava-se no s no interior da velha residncia, mas at mesmo na maisafastada rea de plantio. Dir-se-ia que as velhas dependncias despertarampara nova fase de utilizaes depois do letrgico pesadelo que durara cercade sessenta longos anos! E, conquanto conservasse carinhosamente as rel-quias tradicionais da famlia, como baixelas, mobilirio de estilo, colees dearte, cmaras e gabinetes preferidos e, principalmente, os objetos de usopertencentes bela Esmeralda, Pamela imprimira em tudo o cunhoencantador da sua prpria personalidade, afastando tanto quanto possvelas lembranas amargurosas do nefasto pretrito s inspiraes do seuidealismo esprita-evanglico, assim despertando sugestes sadias erenovadoras para um presente sereno e um futuro promissor.

    Compreendendo, outrossim, as probabilidades da enorme reaagrcola que lhe viera s mos e, como esprita, a grave responsabilidadeque assumira perante as divinas leis ao ser empossada de to grandesriquezas, concordou com a prpria conscincia em prestar de boamente aoSenhor o testemunho das mesmas, como to bem prestara o da pobreza, naqual nascera e vivera at ali. Orou, portanto, elevando-se em comunhoplena com seus Guias Espirituais, ao Todo-Poderoso Criador suplicandoinspiraes e ensejos de bem aplicar, no seio da sociedade como naintimidade do lar, o emprstimo que o Cu lhe fazia tornando-a depositriada fortuna dos antigos Barbedos. Comovidos e atentos, aqueles lcidosobreiros da Vinha Celeste no lhe recusaram a merc, pois que a viamsincera nos propsitos, entrando todos a lhe perscrutar as possibilidades etendncias aproveitveis para o caso, visando a sagrada programao deintuies, e a mim mesmo incumbindo de uma vigilncia direta epermanente a fim de lhe facilitar os nobres anelos, sem, todavia, interferir noseu livre arbtrio, desmerecendo-lhe os mritos que pudesse adquirir se-gundo as normas por que se conduzisse na sublime peleja. Dispus-me entoa observ-la, valendo-me da autoridade de que fora investido, examinando

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    seus atos, perscrutando-lhe os pensamentos e intenes, a estasdiscretamente incentivando se as percebia razoveis, atravs de fugazesintuies; ou advertindo-a sob o mesmo sutil processo, no raro tambmdurante sonhos inteligentes, se porventura se deixava arrastar pelosimpulsos generosos, mas pouco comedidos e prudentes, do seutemperamento franco e confiante em excesso, pois que Pamela possuacorao simples e angelical, incapaz de aes menos sinceras, tornando-secredora, por isso mesmo, do incentivo que lhe concedamos. Assim foi que avi em conferencia com o seu administrador e demais auxiliaresresponsveis, discutindo a necessidade de substituir os mtodos agrriosempregados nos servios da Fazenda, por antiquados e ineficientes, poroutros mais modernos, harmonizados com as necessidades impostas peloprogresso. E isso a fim de que o patrimnio de Santa Maria viesse aconsolidar, agora, a tradio de lavoura fecunda, e celeiro rico e abenoadoque fora noutros tempos.

    - Ser urgente - sugeria, surpreendendo pelo acerto dos conceitos,ela que, ainda ontem, vivera a existncia penosa de uma grande cidade,onde jamais se cogita de assuntos agrcolas seno a hora do almoo ou dojantar, quando escasseiam hortalias -, ser urgente transformarmos nossoscampos em messes abenoadas onde o Senhor Jesus gostaria de demorarseu divino olhar, louvando nossos esforos por produzirmos abundancia deprodutos para quantos nos cercam. No me seduzem lucros excessivos,cobiando para mim mesma vida faustosa e prdiga ao embalo dos prazeresmundanos! Ao contrrio, no conservo ambies de ampliar os haveresdeixados pelo Sr. Barbedo seno no sentido de conservar o suficiente paradesenvolver um programa humanitrio e fraternal junto dos que trabalham esofrem dentro da sociedade, os quais no podemos desprezar, segundo osprincpios filosficos e religiosos que esposo e as recomendaes domesmo Sr. Barbedo, lavradas em testamento, as quais ele prprio receberiado nobre Esprito de sua filha, com quem se comunicava, segundo afirmaem seu dirio ntimo, frequentemente, por via medinica.

    - Aprovo os seus projetos, minha senhora, honrosos e humanitrios,dignos de uma descendente de Barbedo. Estou ao seu inteiro dispor,ansioso por emprestar minha colaborao ao programa estabelecido. Comopretende, porem, iniciar? - adveio o "capito" Incio, admirando asdisposies varonis da corajosa jovem.

    - Bem... Principiaremos a renovadora peleja demolindo os miserveiscasebres em que residem estes pobres colonos, e que datam ainda dostempos do Comendador. Tomaremos a inadivel medida de construir novashabitaes, pequenas residncias mais confortveis e higinicas, capazesde extirpar os complexos de humilhao e inferioridade que se observamnesses infelizes trabalhadores agrcolas, to abandonados sempre doamparo que lhes devido pelos valorosos proprietrios. Eu me sentirei

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    humilhada e contrafeita perante minha prpria conscincia, "capito" Incio,residindo neste solar esplendido, enquanto os obreiros das minhas searassofrerem insolveis penrias naqueles tugrios de misria e oprbrio, queacol distingo estigmatizando nossos campos to formosos na suaexuberncia produtiva, com seus vultos desoladores evidenciandodesconforto e abandono! Sim! Aplicaremos leis humanitrias e protetoras aotrabalhador de nossas eiras! Facultaremos amparo social s suas famlias,educao conveniente a ele prprio como aos seus familiares, reformandotanto quanto possvel o seu primitivo modo de existncia a fim de que sesinta confiante e esperanado nas ardentes lides campestres,despreocupado da desero para os grandes centros industriais,abandonando a lavoura, que, necessariamente, se ressentiria, decrescendocom tal abandono.

    - Vejo que alimenta idias avanadas no plano social, minhasenhora, e felicito-me por partilhar das mesmas. Percebo que se inspira,com efeito, em diretrizes modernas e muito democratas, o que equivale dizer- humanitrias e fraternas. Compreendo, por isso mesmo, que muito h arealizar-se em Santa Maria... e para a eficincia de tal programao sugiro apresena urgente de um tcnico consciente e experimentado.

    Pamela sorriu, pensativa, alongando as irradiaes mentais paramuito distante do gabinete onde a conferencia se realizava, mesmo paramuito longe de Santa Maria, e respondeu, suavemente enternecida:

    - Sim, "capito" Incio... H urgncia de um tcnico... e prefiro queseja europeu.Havemos de mand-lo vir da Sua.

    ...E Max Niemeyer chegou finalmente a Santa Maria, por umapotetico entardecer do ms de Abril, quando os aromas festivos dosjardins engalanavam os ares com a ardncia da suas manifestaes.Somente ento fora ele informado de quem, realmente, requisitara suasexperincias de agrnomo para a rica manso, uma vez que, temendo ferir-lhe as possveis suscetibilidades, Pamela incumbira aqueles auxiliares dasprovidencias para a sua vinda para o Brasil, tal como sabia ser o seu maisardente desejo, preferindo, porem, manter-se em plano discreto.

    Confessou-se encantado e feliz o jovem europeu, conquantosurpreendido. E ao se abraarem efusivamente, risonhos e felizes quaisternos amantes separados desde muito, ambos intimamente se confessaramque a comoo de que se sentiam possudos era algo de mais vivo eenternecedor do que seria de esperar. Nenhuma sombra de dificuldade parao entendimento lingustico que se fazia indispensvel viera arrefecer asatisfao de que se sentiam invadidos. Entenderam-se em Esperanto,magnificamente, agora que pessoalmente se conheciam, como antesatravs da correspondncia epistolar e da literatura. E "capito" Incio, ami-go do progresso e cioso da boa figura que se prometera apresentar por todaparte, por uma tica toda pessoal que entendera desenvolver, bem cedo fez

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    de Max um dileto amigo. Pois a amabilidade de Pamela, que comeara agui-lo pelos meandros sutis e futurosos do precioso Idioma, permitiu-lhepalestras e entendimentos muito teis e interessantes com o jovem suo,para as operosidades que se faziam mister na Fazenda. A vida, ento, co-meou a decorrer ativa e febrilmente em Santa Maria. Max era culto,inteligente, desambicioso, dinmico! Dir-se-ia haver acumulado na prpriapersonalidade os sculos de experincias que so o mais eficientepatrimnio dos povos europeus. Aos mais delicados impasses atendia comfacilidade e acerto. Os mais complexos problemas que se lhe antepunhamna sua nova carreira, solucionava-os com prudncia e eficincia dignas demeno. Em Santa Maria sentiu-se como em seus aprazveis cantes ou emseus exuberantes vales. Era-lhe tudo familiar e grato ao corao. Amavaaqueles stios, percorria-os, sorridente e simpatizado, a cavalo ou a p, apele muito branca a crestar-se ao sol rigoroso, os olhos muito azuis e muitoternos, quais os de um adolescente, protegidos contra a inclemncia da luzpor grandes culos escuros, dos quais se fizera inseparvel. Renovou apropriedade, rpida e eficientemente. Remodelou prticas antiquadas,reeducou antigos hbitos, ampliou programas, dedicando-se a um laborincansvel, em cada detalhe das realizaes apresentadas, demonstrandoaquele padro inconfundvel do idealista lgico e construtivo, empenhando-se no trabalho exaustivo com devotamento intraduzvel. Como algum quereencarnasse desejando a prpria conscincia como a Divina Legislaotestemunhar disposies novas para novas e inadiveis resolues, assimressarcindo graves distrbios de um passado espiritual remoto, deslizes deetapas reencarnatrias s reparveis atravs dos testemunhos rduos deoperosidades conscienciosas e honestas.

    Pamela, que era esprita culta e lcida, familiarizada com ossegredos da Doutrina Excelsa que tudo explica e desvenda em torno daalma humana e seus destinos, e, ao demais, esclarecida a sua mentevigorosa por jactos de intuies inconfundveis, talvez mesmoreminiscncias do passado por ambos vivido em existncias pretritas,compreendia-o plenamente, ao v-lo grave e sbrio em todas as atitudes,dedicado Fazenda sem outras ambies seno o desejo de bem servir,fazendo brilhante jus, portanto, ao salrio que percebia. Ela amava-oprofunda, ternamente, nele reconhecendo a sublime realizao das suasaspiraes de moa. Mas o jovem Niemeyer, amvel e perfeito cavalheiro,que lhe escrevera outrora da velha e nostlgica Zurique to doces epistolasem Esperanto, buriladas de encantadoras insinuaes amorosas, esperan-ado em porvir risonho, agora que se transportara para seu lado, como tantoparecera desejar, mantinha-se irritantemente discreto, alheado dos antigossonhos, no deixando jamais transparecer suas impresses ao avist-la, talse se houvera decepcionado ao conhece-Ia pessoalmente.

    E assim acontecera, realmente.

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    Sentia-se diminudo, rodeando-se de incmodos complexos pela verto altamente colocada na sociedade, senhora de enormes cabedais, queno sabia sequer avaliar, no seu justo valor. Outrora, lendo as dulurosasexpresses de reconforto que periodicamente lhe enviara para a Sua,apegara-se ao desejo de se expatriar para o Brasil, animado, porventuraainda mais, pela certeza de que, em sua personalidade superior, encontrariao ideal de amor que lhe convinha, a ele, que se reconhecia insatisfeito,incompreendido nas prprias aspiraes sentimentais. Ento, jubiloso,supunha-a modesta professora a se desdobrar em labores, como elemesmo, digna e heroicamente, pela prpria manuteno. Eis, porem, que aencontrava na posse de cabedais imensos, rica, incensada por uma corte debajuladores, enquanto ele prprio no passava de um operrio seu, servidorde suas vastas propriedades. Sob quais direitos a ela confessaria ossentimentos que lhe abrasavam o corao? Onde o valor suficiente para lherecordar os castos anseios de amor, os sonhos de um futuro encantadorexpressos nas missivas com que se correspondiam em Esperanto?"Solicitar-lhe a mo, para a realizao dos esponsais? Certamente que todoo seu ser no almejava seno por uma hora sacrossanta, em que a pudesseestreitar contra o corao abrasado, a ela vinculado pelos rseos laos domatrimonio. Decerto que sua alma a elegera convictamente, certificando-o,desde o ingresso em Santa Maria, de que em sua figurinha atraente eserena se acumulavam todos os dotes necessrios mulher para se tornara companheira ideal de um homem como ele. Mas, pobre emigrado do beronatal, destitudo de bens materiais, sem nenhuma projeo numa sociedadea que no se impusera ainda, e, acima de tudo, simples empregado delaprpria, como ousaria propor-lhe aliana matrimonial?

    Max era excessivamente altivo para se expor ao ridculo ante osprprios conceitos. E o orgulho, ento, domou em seu seio os arroubosamorosos, tolhendo-os sob urna atitude to intransigentemente discreta queprovocava frequentes lgrimas a pobre Pamela, levando-a a acreditar noser absolutamente amada.

    Comumente eu os observava, a sorrir, do meu posto de modestotutelar de alm-tmulo, investido, consoante j o confessei, de incumbnciasrecebidas de planos superiores do Espao em torno de Pamela, e,necessariamente, tambm de Max, que a ela eu sabia ligado por liamesespirituais indestrutveis. E pensava, por vezes entristecido:

    - "Como as convenes sociais terrenas infelicitam as criaturas! Elasprprias, emaranhadas nos enredos preconceituosos que tecem,estabelecem o agravo das prprias provaes, permitindo-sedescontentamentos penosssimos, divorciadas que se aprazem de ficar dasimplicidade do corao, que tudo facilitaria em torno dos seus passos!"

    Oh! Eu via a minha doce Pamela debulhar-se em lagrimas ocultas detodos, amargurada e sofredora, ela que tanto merecia ser feliz, isolada com

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    as prprias magoas nos belos aposentos que pertenceram a minha afilhadaEsmeralda, supondo-se menosprezada por um corao que, no entanto, aidolatrava, mas o qual tambm se torturava, desencorajado de manifestar-se, escudado em pontos de vista que considerava como dignidade pessoal,mas que, em verdade, no passava de inferior sentimento de orgulho edespeito por no se ver em condies de tambm ofuscar a outrem comidnticos cabedais! Eu sabia ser o corao de Pamela, simples e sereno,incapaz de distinguir na fortuna que herdara quaisquer impedimentos arealizao das suas nobres aspiraes em tomo do agrnomo suo. Mastambm a este via passar noites insones e desoladas, esbulhando a mentepara a soluo de interrogativas desesperadoras, na crena de que a jovemfazendeira, ouvindo-lhe os protestos de amor, pudesse suspeit-lo torpeambicioso capaz de trocar-se por benesses pecunirias. Dizia, ento, co-migo mesmo: - "Que se avenham com os preconceitos! J tempo de sepautarem por diretrizes mais concordes com o bom-senso. No interferireiem pormenores que s a eles mesmos dizem respeito. Esto atadosespiritualmente pelos mais sublimes laos de afetividade. Ho de se enten-der mais tarde ou mais cedo, pela prpria fora do sentimento que osirmana..."

    No obstante, tais contratempos no afetavam o progresso das eirasde Santa Maria, que prosperavam a olhos vistos. Max trabalhava com amora prpria profisso, para a mulher a quem adorava; e, bem inspirado tantono dever como nas gradas vibraes do empolgante sentimento a que seescravizava, era bem certo que operava milagres na antiga estncia doComendador Sequeira de Barbedo. Vilas residenciais para colonos efuncionrios surgiram onde outrora s se distinguiam casebres inspitos -tristes remanescentes dos tempos da escravatura, que o meu dignocompadre Antonio de Maria no soubera a tempo expungir de suas terras -;e surgiram, sob as mos do inteligente Max, graciosas e confortveis na suasingeleza campestre, para jbilo dos empregados da Fazenda, desde oadministrador ao ltimo trabalhador braal. A produo multiplicou-se. Osprocessos agrrios mais modernos, inteligentemente aplicados, deram emresultado fartas colheitas, celeiros abarrotados, trabalhadores orgulhosos doprprio labor e confiantes em si mesmos e no futuro; mesas bem providas,rostos risonhos, lucros nos cofres, novos projetos para prometedor porvir,satisfao geral - os nomes de Pamela e Max Niemeyer abenoados entreamistosos votos de prosperidade perene. Em pouco tempo Santa Mariaalindou-se de mil aspectos garridos... e dir-se-ia que ate as searas maisdistantes e os riachos que lhe emprestavam frescor e animao; o gado e opassaredo irrequieto, como as flores rescendentes e os pomares con-vidativos elevavam cnticos de aes de graas ao Criador Supremo,conjugando vibraes harmoniosas com os homens num mesmo amplexode congratulaes fraternas... Escolas foram levantadas e Pamela, feliz de

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    poder ser til ao prximo, alfabetizava e instrua gratuitamente a crianas eadultos, fiel a uma mentalidade iluminada por superiores normas,compreensiva das necessidades urgentes da Ptria, e, por isso mesmo,servindo-a humilde, mas eficientemente, no setor que lhe era afeto. Eporque cultivasse a Msica, repartiu do encantamento que da divina arterecebia, com quem dele tambm desejasse saturar o prprio corao; e por-que assimilasse as sublimes fragrncias do Evangelho do Mestre Nazareno,distendeu o corao as lcidas inspiraes celestes e despetalouensinamentos redentores sobre as almas simples que a rodeavam, moral ementalmente reeducando-as para o progresso com o Divino Cordeiro. Oprprio Max, a quem, de inicio, assuntos filosfico-religiosos no tentavam,passou a interessar-se pelas mesmas empolgantes dissertaes queperiodicamente a ouvia fazer aos alunos, e, encantado e surpreso, deixava-se prender pela palavra inspirada da mulher amada, que lhe apontavaaquele traado luminoso por que tanto aspirava sua alma, e cuja ausnciado entendimento dele havia pretendido faz-lo um insatisfeito, predisposto aneurastenia e ao negativismo.

    E tudo sorria em Santa Maria, suscitando dlcidas vibraes dereconforto, depois de cerca de sessenta anos de desoladora quietao...

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    CAPTULO V

    Sombras do ontem sobre o hoje

    Certa noite fui surpreendido com um chamamento vibrante doEsprito de Pamela. Desprendera-se parcialmente do fardo carnal, como lheera facultado pelos dons medinicos que possua e cultivava, e para mimapelou angustiosamente, atravs de splica humilde e comovedora.

    Encontrava-me, ento, acompanhado do meu velho amigo Sequeirade Barbedo, ligado a mim, espiritualmente, por laos to slidos de amizadee gratido, que ainda hoje eu me interrogo como poder algum render-setanto a estima de outrem como aquele corao singular, que, mesmo emAlem-tmulo, validou at a venerao pequeninos servios quenaturalmente lhe prestei, simples filhos do Dever, que foram.

    Partimos ambos ao seu encontro por atendermos aos seus apelos,cuidadosos de verificar o de que se trataria. Reconhecendo o fantasma algoainda adensado do velho Comendador, porm, e, por isso mesmo, fcil deser percebido par algum pertencente ao plano terreno, Pamela atirou-se-lhe nos braos, soluante, seguindo-se amplexo efusivo indicando vibraesafins, sentimentos afetivos enternecedores, indestrutveis. Presenciei, ento,comovido, Barbedo beij-la repetidas vezes, enquanto interrogava,comovido ate a mais remota fibra do seu amoroso corao perispiritual:

    - No te aflijas tanto, por Deus, filha de minhalma!... Que razes plausveispara semelhante estado de desolao, imprprio de um adepto da tua F?!Porventura no h sido o Senhor generoso e magnnimo para com todos ns?

    - que "Bentinho" sofre, meu pai... e eu daria, se possvel, a minha prpriafelicidade, para v-lo recompensado das torturas que o feriram no passado...Penalizo-me at a aflio e a angstia... Nada poderei fazer, porm, alm do que jtentei ate agora... e, por isso mesmo, venho solicitar de vs outros caridosaassistncia para ele ...

    Atendemo-la, visto que revigorar o nimo desfalecente de uma criatura doSenhor, prestando-lhe assistncia consolativa no pungir das amarguras, era serviosubordinado aos princpios de fraternidade que esposvamos.

    - Sim... - tornou Barbedo. - Tenho para com ele, como sabes, dvida sagradaa reparar... No me furtarei, portanto, ao ensejo de auxili-lo em qualquer setor.

    Partimos, pois, atingindo em breve o velho edifcio agora imerso na solidonoturna. Sob as caricias do orvalho regenerador, mais rescendia o aroma forte daservas molhadas, o qual, conjugado com o suave perfume das rosas e dosjasmineiros que desabrochavam viosos, entre a folhagem do jardim, estabeleciaexcitantes conjuntos que das imediaes faziam sacrrio mgico de comunho deessncias...

    Desperto ainda, no obstante a adiantada hora da noite, Max Niemeyer

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    desorientava-se em raciocnios depressores, debatendo-se entre as nsias docorao e os fatos que reputava impedimento a consecuo da prpria felicidade - oorgulhoso temor de se manifestar Pamela como pretendente a sua mo.

    - Como agirei?... meditava, indeciso, revolvendo-se sobre um div. - Comome dirigirei a ela prpria sem parecer ridculo ou animado de subalternasintenes?... Quem me acreditar movido to somente pelo corao, destitudo,como realmente sinto que sou, de ambies em torno de suas posses? Amar-me-,porventura? Oh! Porque no simples professora, como sempre julguei? Asatenes que me dispensa no sero antes oriundas da cndida bondade do seucorao? No com idntica solicitude que se dirige aos colonos e serviais? Nofala as crianas porventura to afavelmente quanto a mim? E para o negro AntonioMiguel no sorri com a mesma expresso afetiva?

    Barbedo, comovido e algo tmido, aproximou-se dele sutilmente, enquantoPamela e eu nos dispnhamos a assistir o entendimento que se seguiria - elaansiosa e tremente, eu sorridente e confiante. O antigo Comendador, a quem eudeixara agir como bem lhe parecesse, visto no ser de minhas diretrizes interferir emassuntos to pessoais, aps, sobre a cabea loura do jovem suo, a destra espal-mada em gesto protetor, enquanto lhe sussurrava as sensibilidades auditivas estainterrogao, assim estabelecendo, sem mesmo o perceber, vigorosa corrente desugesto:

    - Porque lhe no diriges missiva confidencial, como outrora, de Zurique,participando-lhe de tuas pretenses, j que te falta coragem para um entendimentopessoal?

    Surpreso, Max ergueu-se. - Sentira vibrar nos arcanos de sua mente a vozimperiosa de alm-tmulo, a cujo poder no saberia resistir. Impressionado,exclamou em voz alta, insensivelmente respondendo ao bondoso amigo invisvel:

    - Sim, escreverei! Ser a soluo! No poderei prolongar por mais tempoesta incomoda situao! Oh! Porque no me ocorreu antes essa ideia?

    Pressuroso e agitado, qual se a sugesto exterior o acompanhasse ainda,impelindo-o a ao por entre vibraes irresistveis, procurou ele a secretaria,disposta entre o mobilirio do quarto de dormir, e, sem vacilar, traou estas singelasfrases, retratando nas expresses o carter dinmico que possua:

    Querida e nobre amiga:"Amo-a. Tenho-a impressa em minhalma com todo o

    vigor do meu ser. Proponho despos-la a fim de algo tentar abem da minha tranquilidade, pois que estou sofrendo por seuamor. Nada possuo alem da minha honra pessoal e doradicado sentimento que lhe consagro. Ofereo-lhos a par domeu nome, certo de que no a comprometero jamais. Seaceita, seja bondosa amanh, quando nos reunirmos na salado almoo. Se rejeita, ordene que me retire dos seus domnios,despedindo-me com uma carta, e ser obedecida.

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    (a) Max Niemeyer.

    Colocou-a, excitado, em um envelope, o qual cuidadosamente subscritou efechou. Saiu, em seguida, p ante p, desceu as escadarias at ao primeiro andaronde ficavam os aposentos de Pamela. E, qual colegial vivendo a sua primeiraaventura sentimental, introduziu a carta sob a porta, retornando ao quarto de dormire acomodando-se entre os lenis, para um necessrio repouso.

    No velho carrilho da Fazenda soavam as duas melanclicas pancadasanunciadoras de um novo dia...

    ...............................

    Quatro meses depois revolucionava-se a velha manso de Santa Maria paraa realizao das bodas de sua proprietria com o tcnico suo cuja laboriosainterveno tanto a engrandecera. A alegria era geral pelas cercanias e a prpriacidadezinha de X, engrinaldada de magnlias e coqueiros, rejubilou-se ante a notciado auspicioso acontecimento.

    Todavia, notava Pamela que, no obstante o encantamento de que pareciapossudo, frequentemente seu noivo deixava-se abater por crises dominantes deapreenso e incompreensvel melancolia. Delicada e discreta, no se atreveu jamaisa interpel-lo, uma vez lhe reconhecendo os modos reservados, preferindo observ-lo com persistncia. Foi assim que, intrigada, descobriu que, aos domingos,invariavelmente, abastecia-se ele de pequenas ddivas, teis ou suprfluas, evisitava a Penitenciaria de X para oferece-Ias gentilmente aos detentos, demorando-se ali em palestras amveis com os mesmos, aos quais intentava reanimar econfortar, porquanto, por esse tempo, j adquirira razoveis conhecimentos doidioma portugus. Ofertava-lhes, destarte, vesturios, agasalhos para os dias mi-dos, se os via necessitados; livros, jornais e revistas que lhes proporcionassemdistraes, cigarros e ate perfumes, pequenos suprfluos que para aquelesdesditosos teriam o valor de grandiosas manifestaes de apreo. No raro lhesfornecia at mesmo mdico e tratamento, se os via doentes, assim como a prpriadieta ou alimentao condigna pois que no ignoramos quanto so desprotegidos eesquecidos os presidirios por esse imenso torro brasileiro, por quem de direito.

    Em certa tarde de domingo, depois de realizado agradvel dueto de piano eflauta em honra as visitas do dia, pois tampem o moo europeu cultivava a Musicacom aprecivel dedicao, disse ele noiva querida, entre curioso e entristecido,enquanto contemplavam a despedida do Astro-Rei de cima dos terraos,embevecidos ante a paisagem serena e formosa que se estendia sob suas vistas:

    - Tu, que, como espiritista culta, investigadora dos arcanos psquicos, devesconhecer muitas sutilezas em torno da alma e do carter humanos, responde-me:

    - Porque me assoberba o corao incoercvel angstia sempre que mepermito visitar a Penitenciaria de X? Quando ainda na Europa igualmente mehabituara a visitar esses nossos irmos de humanidade, mas jamais senti porejar-me da fronte o suor da insuportvel impresso, dramtica e angustiosa, que me

  • 36

    assalta em X ...Falavam em Esperanto; o doce idioma que to gratas recordaes lhes

    sugeria e do qual usavam sempre que se fazia mister um entendimento mais intimo.Ela respondeu, porem, em tom evasivo, intentando desanuviar-lhe as apreenses:

    - s piedoso e sensvel, Max, e te comove o abandono a que vs relegadosnossos pobres irmos detentos...

    - Sim. .. E' verdade que eu quisera v-los mais suavemente tratados,internos de um Reformatrio e no de um crcere, amparados por assistncia maisfraterna, que talvez os recuperasse com grandes vantagens morais. Todavia...

    - Todavia...- Hoje, pela primeira vez, tive ensejo de visitar certa enxovia quase

    subterrnea, pois assenta-se a trs ps abaixo do nvel do solo. Reconheci-a comosendo a mesma a que, em sonhos persistentes, me vejo algemado, sob torturasmorais e fsicas desesperadoras. Sim, Pamela! Conheo aquele crcere desdemuitos anos! Visitando-o hoje senti que irromperam das profundezas da minhasubconscincia recordaes dolorosas que me feriram ate o mago do ser, falandode um pretrito terrvel que minhalma ali sofreu! Enquanto o carcereiro explicava oseu histrico, sim! eu me revi ali prisioneiro, debatendo-me entre desesperaesinelutveis, chegando a ouvir repercutirem pela estreita solido do trgico recintominhas alucinadas gritas de dor, de revolta e de demncia... Esclareceram-me queum antigo afim da famlia Barbedo, acusado de desumano homicdio, fora aliencarcerado, morrendo pouco depois entre protestos de inocncia e desesperaesincontrolveis... Que sabes tu, minha Pamela, desse drama que eu presumo atroz?Como se chamava o desgraado prisioneiro afim dos Barbedos?

    A jovem titubeou, contrafeita. Nenhum descendente de Barbedo seautorizava a comentar o deplorvel passado que enlutara, qui para sempre, astradies da famlia. Limitou-se a responder aereamente, enquanto o convidava acontemplar o poente rajado de nuvens rseas ou carmesins, consagrando aindauma vez a suntuosidade das tardes brasileiras:

    - "Esse de quem falaram no era um Sequeira de Barbedo... mas,certamente, um grande e nobre corao a quem a desgraa perseguiu... Alis, ocrime de que o acusaram jamais ficou devidamente esclarecido... Sua morte impediuo bom andamento das pesquisas, o que faz que ainda hoje pese chocanteinterrogao sobre o infausto acontecimento... No pense mais em tal, Max...

    Lembrava-se das terrveis revelaes contidas no dirio intimo doComendador e no prosseguiu, preferindo silenciar. Ele, porem, fitou os mosaicosdo piso do terrao, pensativo, desinteressado de qualquer outra contemplao a noser a que o arrastava para inusitado retrospecto a dentro das prprias singularesapreenses; e, findos alguns instantes, retornou em tom inslito, que a Pamelaafigurou saturado de expressiva emoo:

    - "Estou bem certo agora de que a Reencarnao, que outrora tantodesdenhei lei cuja veracidade irresistvel se impe ao nosso raciocnio como aobom-senso de cada um. Sinto as concluses dessa lei vibrarem, dominadoras,

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    dentro do meu ser psquico: - eu j vivi em uma outra vida, querida Pamela!Perlustrei outrora estas ruazinhas ensolaradas e melanclicas, orladas de palmeirasrumorejantes. Desfrutei o convvio feliz da gente simples que aqui viveu em outrasdcadas... e aspirei o enternecedor aroma destes jardins galantes que circundam oschals graciosos... Tudo isso me to familiar e grato ao corao que me perguntose no nasci aqui, criei-me na Sua e depois voltei, saudoso e comovido. Porvezes, lampejos de terror sacodem-me os nervos: avalanches de desgraas teriamcado sobre mim ... Foram reminiscncias que ressurgiram dos tmulos profundosda mente ao contacto desta paisagem que nunca esqueci. .. E hoje, minha Pamela,revi-me naquele crcere, desesperado e infeliz!... H dias, Antonio Miguel convidou-me a visitar o jazigo da famlia Barbedo, posto no Campo Santo de X, local quepiedosamente frequenta semanalmente, ornamentando-o de lindas flores. Aquiesci.Apraz-me meditar, evocando o Criador, diante da morada dos mortos. La se erguia,no suntuoso mausolu, o retrato da bela Esmeralda, sorridente, sugerindo milimpresses ansiosas e tristes. Confesso-te que ntimas lgrimas se filtraram do meucorao e sbito amargor avassalou-me a sensibilidade, como se a morte deEsmeralda me houvera despedaado o corao... Mas, depois, Miguel, afastando-se, foi prosternar-se junto de tumba humilde e annima, situada num recantoignorado da quadra de indigentes ... Vi o preto chorar, compungido, como queatormentado por irreparvel saudade... Necessariamente, interroguei-o sobre osdespojos que ali jaziam, pois que chocantes emoes tambm a mim excitavam,enquanto ele orava. Ento, a voz ainda entrecortada, os olhos rociados de pranto,ele respondeu em tom algo enigmtico para mim:

    - Aqui esta o Sr. Dr. Bentinho, o desgraado a quem todos acusaram, aquem supliciaram no crcere, mas a quem somente eu sabia que estava inocente!...Eu, porem, era pobre criana escrava, de dez anos de idade, e nada me foi possvelfazer seno chorar e orar por ele at os dias presentes! ...

    Oh! Pamela, minha querida! Bentinho aquele infeliz que morreu emdesesperao no crcere da cadeia publica que visito aos domingos... e eu fuiBentinho, sou Bentinho redivivo noutra forma corporal! Visitei o crcere onde outrorasucumbi de dor e amargura e o prprio tumulo que guarda minhas cinzas desdemuitos decnios...

    Um minuto seguiu-se. Instintivamente enlaaram-se em dlcido e comovidoamplexo. Dir-se-ia que os liames afetivos que espiritualmente vinculavam os seusdestinos, agora os faziam participar da realidade existente em torno de todas assingulares impresses, como reminiscncias inapagveis, que frequentemente ossurpreendia. Pamela, porem, objetou, convencida da sutil gravidade de taisemerses, percebendo que Max carecia de vigoroso corretivo s foras mentais queo arrastavam para suposies que, podendo ser lidimamente verazes, tambm maisno poderiam ser do que meros impulsos de uma imaginao ardorosa e expansiva:

    - "Aconselho-te, querido amigo - falou ela, ponderada, como conhecedora docomplexo assunto -, a no te preocupares com insistncia com o que pudesses terexp