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137 AS POSSÍVEIS INTERPRETAÇÕES DA JUSTIÇA GLOBAL: DESAFIOS E LIMITES DO COSMOPOLITISMO 1 FABIO ALVES GOMES DE OLIVEIRA 2 RESUMO Este trabalho tem a proposta de analisar as perspectivas que concorrem ao diagnóstico das relações que são estabelecidas no âmbito global. Neste sentido, tenta verificar até que ponto é possível eleger uma dessas perspectivas interpretativas da justiça global que promova uma avaliação que esteja de acordo com os nossos anseios mais fundamentais do que compreendemos por justiça. Desta forma, tentarei estabelecer um diálogo entre três perspectivas concorrentes: o Cosmopolitismo, o Realismo e os defensores dos Estados Nacionais. Ao final, pretendo ter sido capaz de demonstrar até onde o cosmopolitismo permanece sendo a teoria mais interessante para apostarmos. PALAVRAS- CHAVES: Justiça Global, Cosmopolitismo, Realismo, Estado Nacional. ABSTRACT This work aims to analyze the perspectives that contribute to the diagnosis of relations that are established at the global level. In this sense, it attempts to verify if it is possible to elect one of these interpretive perspectives of global justice that promotes an assessment that is consistent with our most fundamental idea of what we understand by justice. Thus, I present three perspectives: Cosmopolitanism, Realism and the defenders of Nation-States. 1 Este texto é uma reelaboração da comunicação originalmente apresentada durante o IV Encontro de discentes de Filosofia – PPGF / UGF, 2011. 2 Doutorando do Programa de Pós graduação em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Graduado em Administração e Filosofia; Mestre em Filosofia. Pesquisador do Núcleo de Inclusão Social/UFRJ e participante do Projeto ‘Universitários pela Paz, parceria realizada entre a UFRJ e o Centro de Informações da ONU. E-mail: [email protected].

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AS POSSÍVEIS INTERPRETAÇÕES DA

JUSTIÇA GLOBAL: DESAFIOS E LIMITES DO

COSMOPOLITISMO1

FABIO ALVES GOMES DE OLIVEIRA2

RESUMO

Este trabalho tem a proposta de analisar as perspectivas que concorrem ao diagnóstico das relações que são estabelecidas no âmbito global. Neste sentido, tenta verificar até que ponto é possível eleger uma dessas perspectivas interpretativas da justiça global que promova uma avaliação que esteja de acordo com os nossos anseios mais fundamentais do que compreendemos por justiça. Desta forma, tentarei estabelecer um diálogo entre três perspectivas concorrentes: o Cosmopolitismo, o Realismo e os defensores dos Estados Nacionais. Ao final, pretendo ter sido capaz de demonstrar até onde o cosmopolitismo permanece sendo a teoria mais interessante para apostarmos. PALAVRAS-CHAVES: Justiça Global, Cosmopolitismo, Realismo, Estado Nacional.

ABSTRACT

This work aims to analyze the perspectives that contribute to the diagnosis of relations that are established at the global level. In this sense, it attempts to verify if it is possible to elect one of these interpretive perspectives of global justice that promotes an assessment that is consistent with our most fundamental idea of what we understand by justice. Thus, I present three perspectives: Cosmopolitanism, Realism and the defenders of Nation-States.

1 Este texto é uma reelaboração da comunicação originalmente apresentada durante o IV Encontro de discentes de Filosofia – PPGF / UGF, 2011.

2 Doutorando do Programa de Pós graduação em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Graduado em Administração e Filosofia; Mestre em Filosofia. Pesquisador do Núcleo de Inclusão Social/UFRJ e participante do Projeto ‘Universitários pela Paz, parceria realizada entre a UFRJ e o Centro de Informações da ONU. E-mail: [email protected].

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In the end, I intend to demonstrate how cosmopolitanism remains the most interesting theory so far.

KEYWORDS: Global Justice, Cosmopolitanism, Realism, Nation-State.

APRESENTAÇÃO

Este trabalho nasce da verificação dos problemas de ordem política e moral que assolam a arena internacional quando o assunto é justiça. Será mesmo possível elaborar um conceito de justiça para a esfera internacional? Tendo essa questão como fio condutor da investigação que aqui se coloca, apresentarei três ideias centrais que concorrem ao cargo do que se compreenda por justiça global neste contexto.

Inauguro a discussão apresentando a teoria cosmopolita. Com o cosmopolitismo é possível inaugurar uma desconstrução do cenário internacional e, portanto, vislumbrar o que aqui chamamos de cenário global. Isto porque, com esta perspectiva é desmontada a ideia pré-concebida das relações que são estabelecidas neste contexto; indagamos o papel dos Estados como os únicos possíveis agentes, ou representantes legítimos do palco deliberativo para além das fronteiras nacionais e colocamos em cheque nossas identidades representativas. É com o cosmopolitismo que passamos a ficar diante de um novo arranjo global e, com ele, um paradigma moral se coloca e novas formas de se pensar as relações no contexto internacional são oferecidas.

Finalizando uma breve exposição do que caracteriza o projeto cosmopolita, passo então para os possíveis entraves desta perspectiva, a medida que trago ao debate o Realismo e os defensores dos Estados Nacionais. Essas duas correntes concorrentes do cosmopolitismo são o que chamarei aqui de críticas ao projeto cosmopolita. Obviamente, o realismo, bem como os defensores dos estados nacionais não esgotam o trabalho crítico que pode ser dirigido ao cosmopolitismo, mas, ao que interessa o enfoque dado neste trabalho, servirão como casos paradigmáticos para a evolução do projeto aqui proposto.

Passemos, portanto, para a caracterização e justificativa do estudo da justiça global sob o viés da moralidade. E porque eu faço isso? Bom, faço isto pois considero que, não somente a literatura

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filosófica, mas as disciplinas do direito, relações internacionais e ciências políticas, de maneira geral, que se debruçam sobre os estudos da justiça encaram a possibilidade da construção de um conceito de justiça, neste âmbito, bastante controverso. E a ideia de se estudar e propor um conceito de justiça capaz de lidar com problemas de ordem global coloca, por si só, o conceito de justiça diante de problemas bastante difíceis de serem ultrapassados: as barreiras morais de um mundo plural e complexo. O pressuposto deste trabalho, diante desse arranjo, é a ideia de que se faz necessário a construção de um conceito de justiça substantivo. Isto significa admitir que alguns desafios morais que se colocam no mundo tal como ele é compreendido hoje em dia, ultrapassam as barreiras territoriais e, com isso, devem ser percebidos e tratados a partir de uma outra ótica. Sendo assim, se comprometer com uma ideia de justiça global significa reconhecer um universo de relações para além das fronteiras nacionais e, portanto, da arena de um mundo globalizado. Vale a pena destacar que autores e estudiosos da justiça global possuem o cuidado de reconhecer a especificidade dos problemas globais e, não somente isso, de indagar a forma de como essas relações da arena internacional estão sendo tratadas. E neste trabalho, tenho o compromisso de focar o estudo em um dos pontos que competem à justiça global, qual seja, a discussão moral que pode ser estabelecida ao aspecto representativo deste contexto. Afinal, quais agentes e quem esses agentes devem representar neste âmbito?

Tendo apresentado, em linhas gerais, a ideia condutora da investigação e o enfoque específico deste trabalho, passo agora para a apresentação das três perspectivas que postulam o cargo de norteadores da justiça global: o Cosmopolitismo, o Realismo e os defensores dos Estados Nacionais.

I. O COSMOPOLITISMO

Inicio esta investigação pelo cosmopolitismo, pois acredito que seja mais fácil o desenrolar do debate a partir da apresentação do projeto que, por definição, já descontrói o cenário com o qual estamos acostumados a lidar. É preciso destacar que não esgotarei a definição do conceito do cosmopolitismo, suas diversas facetas, tampouco farei as distinções específicas que competem ao projeto cosmopolita, mas focarei nos princípios que considero elementares para a questão deste trabalho.

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Se toda a forma de cosmopolitismo, desde sua aspiração grega3, tem como ideia chave o fato de que toda pessoa deve ser o objeto principal de nossas preocupações morais, independentemente de sua nacionalidade e, portanto, independentemente das fronteiras nacionais que resguardam seus direitos enquanto cidadão de uma determinada Nação, a quem caberia implementar tais princípios tão básicos como os referidos pelos cosmopolitas?

Somos, diante desse arranjo, imediatamente convocados a pensar sobre o discurso dos direitos humanos. O discurso dos direitos humanos figura no cenário pós guerra, sobretudo a partir da criação das Organizações das Nações Unidas, uma das mais sólidas aquisições da moralidade nos últimos anos. Qualquer conformação política que de antemão os recuse, ainda que em teoria, tornar-se-á facilmente alvo das mais diversas reprimendas e dificilmente conquistará um espaço favorável no cenário político internacional e seus acordos que daí ocorrem. A crença na universalidade do princípio dos direitos humanos e no dever de preservá-los não desperta em nós nenhum tipo de estranhamento, ainda que este mesmo discurso possa ser acusado de privilegiar uma forma específica (ocidental) de ver o mundo, com relação ao seu conteúdo. O debate, neste ponto, é sobre que tipo de direitos serão alocados aos chamados direitos fundamentais e não a afirmação da existência de uma categoria de direitos inalienáveis, como é o caso dos direitos humanos.

Compreende-se na proposta cosmopolita uma tentativa de emancipar o indivíduo como a unidade mínima da moralidade. No resgate dessa perspectiva na atualidade, traduz-se essa proposta como uma corrente que busca defender que o palco deliberativo internacional deve ser reformado e, portanto, transformado em um palco global focado na emancipação dos indivíduos como atores políticos legítimos nas discussões nesta arena.

Esta postulação, num primeiro momento, pode não agredir nossa ideia tradicional de relações internacionais, tal qual compreendidas hoje em dia, pois a arena internacional é composta por indivíduos representativos de seus respectivos Estados Nacionais. No entanto, o que uma teoria cosmopolita quer dizer quando deseja emancipar o individuo enquanto agente politico do palco deliberativo 3 O termo cosmopolitismo tem origem na Grécia antiga e Diógenes, o Cínico (413

a.C. – 327 a.C.), é normalmente apontado como o primeiro autor que o utilizou; quando questionado acerca de qual seria a sua pátria, Diógenes respondeu ser ‘cidadão do mundo’.

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internacional é que devemos ter uma nova identidade representativa nas decisões internacionais. Ou seja, novas identidades devem possuir espaços nas decisões internacionais, não restrigindo, portanto, suas decisões ao cargo dos representantes dos Estados Nacionais.

Em World Poverty and Human Rights4, Thomas Pogge oferece uma ampla definição do cosmopolitismo, baseado em uma concepção liberal dos direitos humanos em defesa de três elementos básicos: o indivíduo, a universalidade e generalidade. Considerando que o indivíduo representa que a unidade de preocupação final são os indivíduos (e não membros de entidades de uma dimensão mais ampla), a universalidade atribuiria esse estatuto a todos e a generalidade estenderia a sua força de aplicação a todos os seres humanos5. A justificação normativa dessa concepção de direito humano universal assenta no pressuposto kantiano de que (i) cada indivíduo é um fim em si mesmo, que (ii) ele/ela tem o direito a certos direitos, independentemente da sua nacionalidade, opiniões políticas e crenças religiosas; e que (iii) cada ser humano é moralmente obrigado a não violar esses direitos de outros indivíduos.

Afirma-se freqüentemente que o consenus omnium gentium produzido a partir da declaração universal dos direitos humanos em 1948 e do amplo reconhecimento dos direitos humanos nos tratados internacionais fornecem uma forte justificação em defesa da existência de princípios universais que garantiriam o mínimo para um mundo mais justo. No entanto, apesar da Declaração Universal dos Direitos Humanos se referir aos direitos do ser humano como tal, ela se apresenta na forma do Estado, pois o Estado Nação é o agente (o representante legítimo) priorizado e reconhecido pelas leis internacionais. Isto significaria dizer que “os direitos cosmopolitas” poderiam ser considerados apenas como “direitos universais positivos” em um sentido fraco, uma vez que o agente representativo no âmbito global é o Estado e não o indivíduo. No entanto, esses direitos cosmopolitas seriam exeqüíveis em um sentido mais forte, pois são os direitos dos cidadãos de um determinado Estado. Contudo, isto não implica que uma abordagem sobre a perspectiva do agente indivíduo, ou seja, aquela que prioriza os indivíduos, deva ser considerada ilegítima. O argumento de que indivíduos, e não os Estados Nacionais devam ocupar o foco da justiça global exige, por isso, uma justificação 4 POGGE, Thomas. World Poverty and Human Rights: Cosmopolitan

Responsibilities and Reforms, Polity, 2º Edition, 2008.5 POGGE, Thomas, p. 169.

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mais forte do que a hipótese de um overlaping consensus de todos os povos do mundo sobre a definição de direitos que os indivíduos possuem como tal.

A polêmica de uma justificação para um núcleo de direitos universais reside na dificuldade de oferecer uma base universal consistente em contraposição a diversidade de contextos particulares, sejam eles os sistemas jurídicos dos Estados, bem como as normas de comunidades e outras formas de expressão e legitimação coletiva. Na verdade, este processo exigiria uma demonstração de que o desafio em defesa da perspectiva do indivíduo para além do resguardo nacional não infringe o pluralismo de valores, nem mesmo o multiculturalismo. Mas como defender um conceito de justiça global cosmopolita que não venha a ferir a soberania dos Estados – principal componente de resguardo político, cultural, religioso etc? Não poderia um conceito de justiça global cosmopolita se tornar perigoso nesse sentido? Antes de oferecer uma possível resposta a esta indagação, aproveito a crítica acima para apresentar as objeções por parte das duas correntes concorrentes: o realismo e os defensores dos estados nacionais.

II. O REALISMO

O realismo é uma corrente majoritariamente estudada dentro do campo das Relações Internacionais, existindo praticamente nenhuma literatura estritamente filosófica sobre o assunto. Ao mesmo tempo, o Realismo é a forma de analisar as relações internacionais que mais se aproxima da realidade vivenciada por nós. E por essa razão, acredito ser relevante a introdução do Realismo na discussão filosófica da justiça global, pois ele traz consigo uma forma de analisar a arena internacional bastante distinta do projeto filosófico apresentado anteriormente.

Os Realistas, de uma maneira geral, consideram que o direito prevalece somente enquanto não colide com os interesses daqueles Estados que dispõem de recursos para impor seus interesses aos demais. Na realidade, acreditam que o direito e a ordem internacional decorrem diretamente da correlação de forças entre aqueles que detêm maior poder.

As mudanças que ocorreram na estrutura do sistema internacional após a Segunda Guerra Mundial ofereceram o pontapé inicial que confirma a validade da tese realista. A formação dos dois blocos de

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poderes antagônicos e a rivalidade das duas superpotências (norte-americana e soviética), hegemônicas em seus respectivos blocos, ameaçando, a qualquer pretexto, iniciar uma guerra atômica, não davam margem a dúvidas de que as possibilidades de se alcançar a paz mundial, tal como o pensavam os chamados Idealistas, não passavam de uma grande ilusão.

Diante desse processo histórico, contexto este que originou a criação e também a estrutura das Organização das Nações Unidas tal qual ela ainda permanece até hoje, e, portanto, da própria caracterização do sistema internacional ainda ‘em vigor’, concede à perspectiva realista uma boa objeção aos cosmopolitas: o mundo é tão multifacetado, levando-se em conta o pluralismo de valores que compõem as diferentes culturas, que seria impossível um overlaping consensus na arena internacional, sobretudo se tentarmos introduzir outras formas de representatividade legitima nesse sistema. Sendo assim, os cosmopolitas não passariam de um grupo que não leva em consideração aspectos da realidade estratégica dos Estados. Para o realista, neste sentido, um cosmopolita ignora que os Estados são primordialmente motivados pelo desejo de poder e segurança. E por essa razão a perspectiva realista foca na ação estratégica dos Estados, no intuito de conservarem e ampliarem seu poder, tendo como elemento empírico de análise essencialmente a ação diplomática e bélica dos países.

II. 1. UMA POSSÍVEL RESPOSTA DOS COSMOPOLITISTAS AOS DEFENSORES DO REALISMO

Em primeiro lugar, o cosmopolitismo está preocupado com um ingrediente descartado pela perspectiva realista, qual seja, o elemento moral que deveria estar inserido nessas relações de poder. Se para um realista, o ceticismo moral é dado como fato consumado nas relações entre Estados, um cosmopolita chamará atenção para o fato de que isso não é facilmente aceito. Toda e qualquer relação estabelecida gera obrigações. O fato, por exemplo, de hoje em dia podermos realizar ações que afetam pessoas em diferentes partes do mundo, gera um compromisso de alguma ordem, que, ainda que superficial, não pode ser descartado simplesmente. As relações podem se dar através do poder, mas não necessariamente. Tanto uma identidade nacional, bem como uma identidade pessoal pode conter elementos que, de alguma forma, nos conectam a outros indivíduos ou grupos.

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Além disso, o que um realista ignora é o fato de que a ideia de ‘relações de poder’ trazida em seu discurso está intimamente ligada com a ideia de segurança e arcabouço bélico. Neste sentido, outra objeção pode ser feita. Poderíamos dizer que desde o fim da Guerra do Vietnã e o início das tensões comerciais entre os Estados Unidos e o Japão, novos acontecimentos marcaram a perda relativa do poder dos Estados Unidos e, simultaneamente, da importância crescente dos fatores econômicos nas relações internacionais. Nesse sentido, já não faz sentido pensar o sistema internacional exclusivamente sob o ângulo da segurança, tal qual um realista. A economia internacional evolui de tal forma que novos mecanismos estão sendo utilizados para manutenção das relações estabelecidas na arena internacional. A globalização trouxe com ela uma reformulação desse cenário e, com ele, a possibilidade de avaliarmos moralmente as relações que estão sendo estabelecidas neste contexto.

III. OS DEFENSORES DOS ESTADOS NACIONAIS

Como bem já diz o nome, os defensores dos Estados Nacionais são aqueles que acreditam que a representatividade da arena internacional deve ser feita através dos Estados Nacionais. Isto porque, um defensor dessa perspectiva acredita que os limites territoriais resguardam direitos específicos que devem ser defendidos em quaisquer circunstâncias. Além disso, o fato das identidades pessoais também serem compostas por ingredientes relacionados a uma comunidade cultural, social e política específica, e que o pertencimento a tais grupos é primordial para sua realização, faz com que o reconhecimento dessa identidade, intimamente ligada ao Estado do qual faz parte, seja um pressuposto a ser levado em consideração nas decisões internacionais.

A questão é que, dessa forma, a parcialidade fica colocada em cheque. Porque um Estado deve privilegiar os interesses de sua comunidade em detrimento do interesse de outras comunidades? Até onde a parcialidade nacional é ‘moralmente’ justificada? As obrigações especiais para com nossos conacionais podem, de fato, refletir sobre as decisões internacionais/globais? Aqui passaremos a avaliar as premissas filosóficas da perspectiva dos defensores dos Estados Nacionais.

De forma geral, o fato dos defensores dos Estados Nacionais se apoiarem na ideia de resguardar interesses específicos subjaz na ideia de que vínculos pessoais e comunitários geram obrigações específicas. Em diversas instâncias da nossa vida, possuímos e

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construímos relações das mais diferentes formas. Somos filhos, companheiros, amigos, pais, orientandos, professores etc. Dessas atribuições naturais ou construídas surgem obrigações. Somos parte de um grupo cultural, social e político que, no decorrer da nossa experiência de vida, ofereceu e ainda oferece inúmeros inputs que podem, em muitos casos, só fazer sentido ou serem percebidos por indivíduos que reconhecem, naquele input, uma demonstração cultural, social ou política específica e, portanto, importante. A ideia de que os Estados, portanto, são caracterizados por essa barreira de vínculos colocaria em dúvida a possibilidade de estendermos nosso universo de obrigações morais para todo e qualquer indivíduo de qualquer parte do planeta. Ou, no mínimo, gera uma hierarquia de obrigações, como fruto de nossas relações.

No entanto, a ideia de que o pertencimento a um Estado Nacional impede um projeto universalista, tal qual o pretendido pelo cosmopolita, não precisa necessariamente se dar desta forma. Para tal, apresento a possível resposta cosmopolita ao problema da parcialidade nacional.

III. 1. UMA POSSÍVEL RESPOSTA DOS COSMOPOLITISTAS AOS DEFENSORES DOS ESTADOS NACIONAIS

Poderíamos, a partir de uma categoria bastante vital dos seres humanos, qual seja, a necessidade de estabelecer vínculos específicos, dizer que esta é parte constitutiva dos seres humanos. O fato de que estamos vinculados com um processo social, político e cultural específico seria a mesma coisa que dizer que estamos vinculados a um tempo específico da humanidade. Da mesma forma que minhas demandas são geradas a partir do contexto em que eu vivo, o tempo histórico que me situo também compõe este universo do qual pertenço. Desta forma, ao reconhecer o valor do estabelecimento de tais relações, um projeto universalista, tal qual o projeto cosmopolita, poderia facilmente adequar tais “objeções” ao seu componente.

Mas como convergir a ideia de que nossas obrigações morais sejam limitadas ao pertencimento a uma Nação específica? Aqui, junto com os cosmopolitas, tendo a dizer que este argumento é falacioso. A ideia do compromisso moral com uma Nação se baseia, nada mais, nada menos, do que no compromisso pragmático que temos quando tentamos solucionar problemas éticos. Isto que dizer que, por um lado, temos um compromisso

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gerado a partir da proximidade com determinados problemas; problemas que saltam nossos olhos diariamente, por exemplo. Por outro, temos um compromisso que se baseia nos valores que compartilhamos. E no quesito ‘compartilhar valores’ já não temos que restringir este discurso aos nossos conacionais, mas para os seres humanos e, quem sabe, não humanos.

Para elucidar esta observação trago um rápido exemplo: Será mesmo que estamos dispostos a colocar a nacionalidade como fator chave das nossas considerações morais? Um brasileiro faminto, morador de rua é um objeto primordial de nossa consideração moral se comparado a um japonês também faminto, decorrente do recente incidente na costa nordeste do Japão? E se tivermos, além dessas, outras informações a respeito de ambos. Sabemos que o morador do Japão é um importante ativista em prol dos direitos humanos, do meio ambiente e dos animais. Também sabemos que o brasileiro faminto apoia ideias fascistas.

Oferecido tal exemplo, destaco apenas que, ao que me parece, nossas considerações morais não são limitadas pelo território nacional do qual fazemos parte, mas de um universo compartilhado de valores. E neste sentido, advogar por uma perspectiva que possa, de algum modo, pleitear que novos atores possam compor a arena internacional, poderá oferecer uma nova forma de se pensar as relações que estão sendo estabelecidas entre os Estados que atualmente compõem as cadeiras representativas de nossas demandas. Ao que parece, nos identificamos como valores que extrapolam nossa identidade nacional, ainda quando nossa própria ideia de identidade pessoal acompanha a identidade nacional que nos representa. Neste sentido, posso perfeitamente me identificar com a cultura e política da sociedade em que vivo, bem como posso me comprometer e defender valores que, de algum modo, extrapolam os limites territoriais que resguardam o sistema jurídico da sociedade que faço parte e do contexto específico em que estou inserido.

IV. DE ARENA INTERNACIONAL À UMA ARENA GLOBAL: UMA JUSTIFICATIVA COSMOPOLITA

Nesta parte do trabalho, pretendo expor algumas considerações que poderiam servir como uma justificativa para uma aposta no projeto cosmopolita. Para a conclusão deste propósito, resta enfatizar que o cosmopolitismo enquanto proposta que paira sob a ideia de uma moral universal não abarca o modelo defendido pelos agentes economicos da globalização – qual seja, um mundo multicultural e global, um mundo constituído sob o ideal de indivíduo não-territorializado, sem rosto, sem

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compromisso, sem uma marca de identificação. O fato é que o processo da nova dinâmica internacional segue este curso e, por essa razão, longe de oferecer alternativas possíveis para a promoção de interação entre as esferas sociais, econômicas e culturais de diversos grupos, promove a perda desses laços, e, portanto, uma dissolução das bases identificatórias dos mesmos. O resultado é uma forma efêmera da vida, onde o objetivo não é mais percebido como uma parte constitutiva da forma como queremos ser e como nós nos percebemos. Nossa escolha de fins não expressa o tipo de homem que queremos ser e da vida que pensamos valer a pena viver.

Os defensores de um cosmopolitismo aqui apresentado e, de algum modo, defendido, possuem o compromisso de combater esse modelo em vigor a partir de uma nova proposta que a objete como sendo a única forma possível para o estabelecimento das relações em um mundo globalizado. Um cosmopolitismo propõe que novas identidades com as quais nos identificamos tenham vozes no cenário global. E aqui, me distancio do termo ‘cenário internacional’, pois o mesmo já se compromete com uma ideia fixa de que as relações neste contexto só devem ser estabelecidas entre Estados. Este modelo, marcado pelas fronteiras que definem os Estados, está, de tal forma, impregnado em nossa forma de perceber o mundo que até mesmo ao imaginar o mapa mundi, por exemplo, é comum que já o imaginemos marcado por seus limites territoriais. De algum modo, essa caracterização política estabelece a forma de como temos que lidar com esse espaço. Por essa razão, com o intuito de dissolver esta percepção ancorada nos limites dos Estados Nacionais, proponho imaginarmos o contexto global desta forma:

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6 Mapa mundi.jpg. 2011. Largura: 450 pixels. Altura: 222 pixels. 28,4KB. Formato JPEG. Disponível em: < http://www.bertoliniarmazenagem.com.br/img/esp/mapa_mundi.gif>. Acesso em: 19 Jul. 2011.

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Por menos impactante que seja, diante deste novo arranjo, somos convocados a imaginar novas representações para os indivíduos e grupos que compõem este universo. Não obstante, deve-se dizer que não se trata de um rompimento com as nossas mais arraigadas identificações com os contextos em que vivemos, mas apenas uma forma de demonstrar a possibilidade e, talvez, a necessidade de refletirmos sobre as novas identidades que, para além dos limites geográficos que resguardam os territórios nacionais, estão sendo deixadas de fora.

Obviamente, as conseqüências das alternativas disponíveis devem ser consideradas. O que é relevante para manter a qualidade de nossas vidas pessoais e coletivas, talvez, é a convicção de que os núcleos de nossas escolhas são valores que compartilhamos e procuramos preservar. Este valores podem fazer parte de nosso convívio diário com pessoas próximas, instituições, grupos sociais, animais, o meio-ambiente, bem como fazer parte de ideias que nos comprometem com seres de qualquer parte do planeta. Valores que, por essa razão, dão sentido as nossas próprias vidas e a história que se desenrola em torno delas. É possível que esta nova forma de se pensar o mundo, ao invés de nos distanciar, nos aproxime cada vez mais daquilo que chamamos como sendo um mundo melhor para se viver.

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