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As Últimas Coisas do Mundo, por Lucas Esteves. ~ 1 ~ AS ÚLTIMAS COISAS DO MUNDO Lucas Esteves

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As Últimas Coisas do Mundo, por Lucas Esteves.

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AS ÚLTIMAS COISAS DO MUNDO

Lucas Esteves

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Ao último dia do ano de 2013.

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Prólogo

As Últimas Coisas do Mundo é uma história sobre os últimos acontecimentos da vida de um certo Jurandir. Um homem cheio de sentimentos que não se vencem e sonhos que não se desfazem. São as últimas coisas do seu mundo, pois cada pessoa é um mundo particular. Compartilhamos lugares e experiências comuns e essas coisas formam um mundo possível de se viver em conjunto, mas a perspectiva que assumimos é o que constrói o nosso mundo particular. Duas pessoas podem compartilhar do mesmo espetáculo, sem que possamos dizer que ambas tenham visto exatamente o mesmo espetáculo. Viram o mesmo evento apenas de certo modo, e são estes “de certos modos” que enchem os textos filosóficos, tornando-os tão contrastantes com aquela ideia de “oito ou oitenta” que em si mesma já representa uma oposição. Não há uma grande trama a ser desenvolvida. Jurandir é apenas um homem que vai morrer. Sabemos disso de antemão, mas espero que isso não faça o leitor se distanciar do personagem, como algumas

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pessoas se afastariam de um doente terminal, evitando o apego e, consequentemente, o sofrimento. Espero que seja o oposto, que o leitor aproveite cada momento com este personagem que, provavelmente, nunca mais irá figurar em história alguma, este personagem que, por certo, precisa de alguém para escutá-lo, precisa de alguém que saiba que a sua vida não foi em vão, ou ainda, precisa de alguém que saiba, para que a sua vida realmente não tenha sido em vão. São tantas coisas. Espero, realmente, que aproveitem a companhia dele da forma mais agradável possível e que, quando chegar o momento dele ir embora, o deixem ir livremente, e talvez, mas só talvez, tenham uma surpresa agradável.

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Capítulo 1 - O último aviso

- ...e não é a primeira vez que te falo isso. - E não é a primeira vez que te digo que não me importo. - Eu não aceito! - Talvez como profissional não, mas como amigo que é, você deveria aceitar. - Que amigo eu seria se eu aceitasse sem me importar? - Que amigo você é se importando? - Como assim? - Há várias coisas para se importar. Quando nos preocupamos muito com uma, podemos esquecer outras. Um amigo se preocupa mesmo com a felicidade do outro. - Está me dizendo que é infeliz? - Não, não. Já fui. Hoje sou feliz, mas não somente por que estou vivo, mas também por que estou velho, e os velhos, você sabe...morrem. - Ora, deixe de besteira, Jurandir. O instinto do ser humano é a sobrevivência, não é você quem vai mudar isso. - Quer dizer que você sabe mais de mim que eu mesmo?

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- Sobre o que temos em comum sim. Se bem que, pela sua atitude, parece que sei coisas das quais vocês se recusa a saber. - Como o quê? - Que você esta doente. - Ora, é óbvio que estou doente. Estou velho. - Velha é a sua mentalidade. Pessoas da sua idade vivem saudáveis, àquelas que se cuidam. - Pois saiba que eu cuido muito bem de mim. Nem tanto do meu corpo, é claro. Mas deixemos desse assunto. Você não quer que eu morra no seu escritório não é, Doutor? - Nem aqui, nem em lugar algum. Já disse. - Mas o que é aquilo que você falava? - Sobre? - Sobre o que temos em comum. O que é? - Ora, o instinto de sobrevivência, o desejo da felicidade, essas coisas... - E se essas duas coisas forem contraditórias? - Só na mente de um louco. - Então, talvez, meu lugar não seja no seu consultório, mas numa clínica psiquiátrica. - Seu velhaco. Não quero ter que sentir saudade destes momentos. E Falo isso como amigo, e não como médico, pois, profissionalmente, isso está sendo uma perda de tempo.

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- Bem o sei. Por falar nisso, tenho que ir. Como vão Cintia e as crianças? - Estão bem, apareça lá em casa para jantar, sabe que não precisa de convite. - Eu sei, até mais, Doutor. - Até mais, Jurandir. E, ah, domingo te ligo para desejar um feliz aniversário. - Me convide para tomar uma cerveja. - Vai pro inferno! E assim saiu Jurandir do consultório do seu médico, que também era grande amigo. Atravessou a rua e continuou caminhando, nem lentamente, nem com pressa, apenas caminhava como alguém que esqueceu como é ficar parado. De fato, caminhava como se caminhar não fosse grande coisa. Ao se dar conta que caminhar é algo que deve ser levado sério, corrigiu o caminho e tomou o rumo de casa.

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Capítulo 2 - O último sonho

Chegou em casa antes do anoitecer. Picou uma cebola, dois tomates e meio pimentão; temperou um pedaço de frango e foi tomar um banho quente. Saiu do banho, colocou um vinil para tocar, preparou a refeição e, antes de comer, lavou a louça cuidadosamente. Jantou e bebeu vinho tinto com de costume, voltando-se logo após novamente para a pia para cuidar de tudo metodicamente. Em seguida foi até a sacada do seu apartamento com um volume de poesias. Amava romances, mas amava mais a poesia do que o romance, motivado pela síntese daquela e pela sua maior potencialidade musical, isso por que, mais do que o romance e mais do que a poesia, amava a música. Acendeu um cachimbo que não amava, contudo sentia prazer em fumá-lo. Não gostava de cigarros. Já fumara, mas na sua memória ainda estava impregnada a imagem de fumantes sem estilo, fumantes que estragavam o hábito de fumar. Com o cachimbo não havia isso. “Quem ousa fumar cachimbo, o faz com elegância.” Mas

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obviamente não falava isso. Sempre prezou pela boa convivência. Quando o sol estava se pondo, pensou que em pouco tempo seria ele, apenas com uma pequena diferença de termos entre “morrer” e “se pôr”, mas essas diferenças de termos, pensava, não são relevantes para a vida prática, tampouco seriam para a morte. Com a despedida do sol, as luzes artificiais da cidade ganharam destaque, transformando a paisagem urbana, não em algo mais belo ou mais feio, mas alguma coisa totalmente diferente. Pessoas voltavam do trabalho para suas casas, outras saiam das suas casas para se divertir. Mesmo que de cima fossem todas iguais - formiguinhas a passos curtos -, ele sabia que de perto, nem o ser humano e nem mesmo as formigas, se pudéssemos realmente conhece-las, são de fato essas formiguinhas que conhecemos. Há muita diferença entre o que vemos de perto e o que vemos de longe, e ainda mais entre o que apenas vemos, o que vemos julgando conhecer e o que conhecemos de fato. Há muita diferença entre o povo que sai para o trabalho na segunda de manhã e o que sai para beber sexta à noite. Era tão agradável estar ali. Estava, ao mesmo tempo, onde tudo acontecia, mas

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protegido em sua cadeira de balanço com seu cachimbo, de tal modo que dava a sensação de que tudo que acontecia, não poderia acontecer com ele. Era um sentimento de estar protegido sem estar excluído. A temperatura baixou um pouco. Foi até a cozinha, pegou a garrafa de vinho que já tinha guardado, servindo-se de mais uma taça. Passou no quarto para pegar um cobertor fino e voltou para a sacada. Bebeu a taça até a última gota, leu o livro até a última linha e, antes de se dar conta de que tinha acabado já começava a adormecer. Antes das onze já sonhava do alto de seu 7º andar. Umas três horas depois acordou, olhou para o relógio e, como uma criança que é despertada ao dormir na sala em frente à televisão, se esgueirou preguiçosamente para o quarto, onde dormiu feito um menino e pela última vez.

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Capítulo 3 - A última visita

Acordou bem humorado, não somente por que o clima estava ótimo naquela manhã de sábado, com vento soprando na cidade como costuma soprar na praia; mas também por outras coisas, aquelas coisas que nos fazem acordar com um sincero sorriso no rosto e nos impulsiona a sair de casa, aquelas coisas que não acontecem sempre, aquelas coisas que aos poucos abandonam aqueles que desejam elas todos os dias, aqueles que acordam sorrindo necessariamente, como se a felicidade fosse algo óbvio e não discreto, aqueles que aos poucos vão se descobrindo com sorrisos tristes e amarelados. Mas isso nunca fora o caso de Jurandir. Poderíamos dizer que até o último minuto de sua vida fora sincero com os seus sentimentos, ou ao menos sincero na tentativa desta sinceridade, pois até mesmo a sinceridade é algo que requer prática e disciplina. Enfim, de qualquer forma, ele conhecia o doce gosto de saber que é possível ter momentos para além dos limites do bom humor e do mau humor, da felicidade e da tristeza, e talvez, até mesmo,

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como diria Nietsche, para além do bem e do mal. Somente as pessoas assim sabem aproveitar os momentos de felicidade, pois de que adianta um prato delicioso da nossa comida preferida quando não estamos com fome? Ou ainda uma cama quente e macia quando não estamos cansados? Nada. E, se as coisas que julgamos ser boas, não são boas em todos os momentos da vida, por que a felicidade seria? Mas isso não importa agora, pois naquele sábado ele estava particularmente feliz. Tão feliz que não sorria. Tão feliz que decidiu fazer uma visita surpresa. Entrou no seu sedan preto – ainda estranhava, ainda sentia saudade do carro antigo - e dirigiu cerca de trinta minutos, saindo da região central da cidade, pegando algumas ruelas até chegar a uma avenida que em seguida se incorporava a outra, para então pegar uma terceira e estacionar o carro em frente a um lugar com um portão de ferro grande e com um letreiro em cima - como aqueles que dão boas vindas às pequenas cidades do interior - onde quem soubesse ler, leria “O Jardim”. Trocou algumas palavras com o porteiro e adentrou lentamente aquele jardim que era de todo belo, cuidado, limpo e cheio de árvores e

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pequenos canteiros tão variados quanto o solo permitia. Notavam-se algumas pessoas ao redor de algumas árvores ou canteiros, sentadas ao chão, lendo, conversando entre si ou sozinhas, enquanto outras passeavam pelo jardim. Parou em frente ao que achava ser a árvore mais bonita do mundo, uma cerejeira típica da região. - Oi, querida. Nisso ficou um tempo parado em frente à árvore, inclinou os joelhos para se sentar no chão, mas ao pensar que levantar seria difícil decidiu ficar de pé “Deveria ter trazido uma cadeira”, sim, deveria.

- Sei que não esperava por mim hoje.

Na verdade ela esperava, pois estava ali parada, desde que fora plantada. As árvores sempre esperam. - Sinto sua falta. Mas não estou aqui para te dizer somente isso. Já disse muitas vezes, embora nunca seja demais. Vim para dizer que cumpri minha promessa, fui forte e fui feliz. Sinceramente, não pensava em cumpri-la quando você se foi...mas eu não poderia negar seu último desejo, não te amando como eu te amo. Minha salvadora! Muito tempo atrás,

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quando nos conhecemos, você salvou a minha vida...a minha não, a vida daquele rapaz que era tão diferente de mim. E hoje sinto que em pouco tempo você me salvará novamente, mas, desta vez, salvará a minha morte, pois o que seria de minha vida e de minha morte sem você? Jurandir sorriu e sentou-se ao verde solo, não se importando mais com seus joelhos fracos. - Nada verdade, nada importa muito agora. Pois estou no final de uma maratona em que a conclusão não é a linha de chegada, mas sim a queda. Quero cair, quero morrer, quero voltar a viver aí do seu lado, bem aqui – e nisso botou a mão ao chão, do lado da cerejeira – e talvez, também, em outro lugar bem mais bonito. Quem sabe seremos jovens outra vez, não seria ótimo? Mas você já deve saber destes segredos, não é mesmo? Sempre esteve um passo em minha frente, me mostrando o caminho e agora parece que eu sei o caminho, mas é difícil te ver. Onde estão seus olhos? Será que ainda olha pra trás? Será que continua me amando? Oh, tenho ciúmes dos anjos. Desculpe as lágrimas deste velho bobo. Lágrimas não adubam a terra, mas ele não sabe dessas coisas como você. É difícil

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imaginar que você seguiu em frente, mas seria muito doloroso que não fosse assim, não posso pedir que olhe pra trás, não posso pedir que espere por mim, mas deixe suas pegadas e algumas roseiras pelo caminho...te seguirei, te encontrarei.... -Pai! - Oh, Pedro, você...não sabia que viria hoje – falou Jurandir, esfregando os olhos. Pedro colocou as mãos nos bolsos, mas quando viu que Jurandir tentava se erguer, fez um gesto de desculpa e o ajudou. O constrangimento dos dois não era somente pela situação. A relação de pai e filho sempre fora muito confusa, principalmente depois da morte da mãe, que era a apaziguadora daqueles dois que eram tão diferentes um do outro quanto um diamante e uma pétala de rosa. Um era prático, objetivo; o outro sentimental demais, leve demais, frágil demais. E o que torna essa relação um pouco incomum é o fato de o primeiro ser o filho e o segundo seu pai. Sem a mãe, que era, incrivelmente, as duas coisas ao mesmo tempo, eles se feriram mutuamente e se afastaram durante um tempo. Mas, ao notar que a dor de viverem separados era maior do que a dor dos ferimentos, se reaproximaram.

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E, somente aí, quando aceitaram que continuariam a se feriar, é que aceitaram um ao outro com todas as suas diferenças. Ao mesmo tempo em que desistiram de mudar aquela pessoa tão amada, perceberam que tanto o diamante quanto a rosa são lindos, e a beleza, meus amigos...bem...ela é linda. E é tudo que tenho a dizer sobre eles. - Imaginei que você estivesse por aqui. Tentei ligar para seu celular, mas... Ambos riram. Jurandir não tinha celular. Antigamente brigariam por causa disso. Mas agora as coisas estavam mudando. Então o filho continuou a falar ao pai: - Desculpe, não queria incomodar, só estava pensando se você gostaria de passar o seu aniversário lá em casa? Todos estão muito empolgados com a ideia. Jurandir lembrou que tocaria a noite num bar da cidade, um lugar em que tocava já fazia dois anos, desde que se mudou de uma cidade vizinha pra lá, para ficar mais perto do filho e da esposa. Dariam uma festa, mas não podia negar o pedido do filho. Bastava voltar cedo e estaria ótimo no dia seguinte - Claro, isso seria ótimo. - Ficaremos felizes...ela está linda, não está? - Como sempre esteve.

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- Bem, vou indo, te esperamos amanhã. Você... - Ficarei mais um pouco... - Claro. Abraçaram-se e a árvore ficou muito feliz vendo o filho e o pai envolvidos em um laço de carinho, que embora eles não soubessem, ela tinha certeza de ser eterno, pois, como vocês sabem, ela sempre esteve um passo a frente.

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Capítulo 4 – O último medo

Após voltar para casa, Jurandir sentia seu

corpo cansado. De fato, estava velho e seu

companheiro mandava sinais constantes de

enfraquecimento. Mas, Jurandir que nunca foi

de todo corpo, adorava testar estes pseudo

limites do físico, como quando, após passar

muito tempo bebendo, o corpo lhe mandava

sinais de sono e ameaçava repelir qualquer

uma ultima dose. Jurandir sabia que ele

aguentaria muito além dos limites que ele

próprio fingia impor, e sabia haver uma

recompensa para os bravos guerreiros que

ultrapassam esses limites, desde que consigam

manter a consciência. A cerveja, por exemplo,

depois deste limite, volta a ficar boa, e chega a

ficar adocicada; o corpo ganha novo ânimo, e a

voz a rouquidão que torna ela mais rústica, e

ao mesmo tempo, mais nobre.

Contudo, deitou na cama para repousar.

Deitou de costas e com as mãos cruzadas,

como repousam os mortos, e esse pensamento

ou essa imagem ou as duas coisas fizeram com

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que despertasse seriamente para a questão que

até então, para ele mesmo, se aparecia como

simples demais. Sua vida estava chegando ao

fim. Que benção era poder envelhecer e estar

preparado para isto, porém, apesar de até

agora Jurandir ter se mostrado bastante

despreocupado em relação ao que o leitor

certamente já prevê que irá ocorrer ao final da

história, este mesmo leitor não deve supor que

isso não o atemorizava. Ele apenas tentava

manipular a própria consciência com doses

excessivamente altas de otimismo, o que é bem

comum para pessoas cuja experiência de vida

lhe ensina que viver sem isso é real demais, e

por isso dói demais.

Pois bem, o problema é que o otimismo,

inevitavelmente, se torna uma mentira, e as

mentiras por mais hábeis que sejam, se tornam

sempre menos eficazes quando voltadas para

si. Mentir para os outros é mais fácil, e embora

digam que toda mentira tem perna curta, essa

mesma afirmação pode ser uma mentira de

perna muito grande. Porém, quando tentamos

nos enganar, inevitavelmente a nossa

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consciência entrará em alguma forma de

contradição e achará algum ponto de escape

uma hora ou outra. No caso de Jurandir, este

ponto começou no capítulo anterior e chegou

ao ápice - como se fosse possível achar o ápice

de um ponto - no momento em que ele olhou

as suas mãos cruzadas sobre a barriga. Tinha

medo de morrer. Pensou em ligar para o seu

médico e perguntar tudo que nunca teve

curiosidade ou coragem de questionar: O quão

grave era seu estado? Era realmente grave?

Havia tratamento? Mas tratamento para o

quê? Não sabia. Sabia apenas que estava

velho. Velho e cansado.

Porém, como se Jurandir soubesse que este

momento era o ápice, como se pudesse saber o

que nós aqui de fora sabemos, se tranquilizou,

pois não poderia sentir mais medo do que o

medo que teve naquele instante. E assim, mais

calmou ponderou naturalmente - sem excesso

algum de otimismo nem pessimismo - a

questão: Estando preparado ou não, iria

morrer. Além do mais, ser engolido pela

vida dói mais do que ser tragado pela morte.

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Pensava ele. E eu complemento da seguinte

forma. Pois antes de te engolir, a vida te

mastiga, quebra teus ossos e bebe das forças

que outrora foram tuas. Já a morte, que pode

ela fazer senão matar? E a dor dos que ficam é

dor da vida e não de outra coisa, como a dor

dele desde que sua amada se fora. Levantou

da cama, havia ainda muito que fazer naquele

sábado.

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Capítulo 5 – A última esmola

Consertou um chuveiro queimado, pregou dois quadros que comprara alguns meses antes, escreveu uma carta, tentou consertar um rádio antigo, desistiu de consertar o rádio antigo e depois de ensaiar o repertório que tocaria a noite, limpou com paciência seu bandoneon. Assim, em apenas um parágrafo, foi-se embora a tarde de sábado. Talvez eu esteja sendo injusto para com estas coisas, mas a injustiça é uma habilidade que deve ser praticada para que seja aplicada justamente. Então, se não me atenho nestes detalhes, de modo algum significa que não são importantes, mas também não quer dizer que signifique outra coisa. Aprontou-se para sair. Em uma mochila colocou um caderno grosso, três livros e algumas canetas. Não fosse pela sua idade, pensaríamos que estava indo para a escola. Saiu com a mochila nas costas, o bandoneon nos braços e um sorriso simpático no rosto. Entrou no seu carro e andou apenas algumas quadras em direção ao bar em que ia tocar, chegando lá começou a fazer volta no

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quarteirão, até que encontrou o que procurava e estacionou. - Aí está você meu velho! – disse Jurandir ao sair do carro. Carregava somente a mochila. - Onde mais eu estaria? – falou o outro. Um morador de rua de uns 50 anos ou mais e com uma longa barba. - Não sei, viajando, quem sabe? Na verdade, fico imaginando o dia em que irei te procurar e você terá partido. - Ora, partido para onde? - Isso só você pode me dizer. - O “onde” dos mendigos é onde tiver um pedaço de pão, alguma coisa para beber e alguns cigarros. - Bem, um destes você já tem. – falou Jurandir, aludindo ao fato de que o mendigo mordiscava um pedaço de pão seco. - E o resto aposto que está aí dentro – falou o mendigo apontando para a mochila em tom de brincadeira. Jurandir sentou ao lado do mendigo e falou. - Não. Na verdade tenho algo melhor – e entregou a mochila ao mendigo. Este abriu e vendo os livros, sorriu. - Pode ficar com a mochila também. - Obrigado, Jurandir. Estes exemplares parecem muito bons, e eu estava precisando

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mesmo de um caderno novo, e canetas. Quantas canetas! Quantas páginas neste caderno! Caberia um romance aqui. Mas isso não está certo, amanhã é o seu aniversário e você que está me presenteando. E, você sabe, eu não tenho nada para lhe dar. - Não se preocupe com isso, meu velho. Quantas letras você não escreveu pra mim sem pedir nada em troca? - Mas você não sabe se eu escrevo por você ou por mim. - Não importa. Você também não sabe se eu te dou estes livros por você ou por mim. - Não. Não sei. - Bem, preciso ir. Vou tocar hoje no bar do Juca. - Vão te dar uma festa? - Mais ou menos isso. - Hum, ficarei longe. - É uma pena, mas depois do que você fez não te deixariam chegar perto, nem mesmo no meu aniversário. - Eu fiz o que tinha que fazer. - Não, você fez o que queria fazer. - Talvez seja a mesma coisa. - Talvez não. - Ora, Jurandir, você sabe o que eles fizeram com o Toninho Maluco!

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- O Toninho fez aquilo com ele mesmo. - E por que faria isso? - Talvez por que seja maluco? - Não a esse ponto. Enfim, aqueles idiotas tiveram o que mereciam. - De qualquer forma, eram uns idiotas, nisso concordamos. Ambos sorriram. Estavam sentados na escada de um sobrado antigo, abandonado, e nisso Jurandir se levantou. Com um gesto de continência seguiu até o carro, abriu a porta e, antes que pudesse entrar, o mendigo lhe chamou. - Hey, Jurandir! - Diga, meu velho louco! O mendigo deu o último pedaço de pão para uma pomba que o rodeava, colocou a mochila sobre o colo e se inclinando um pouco para frente como se fosse contar um segredo, gritou em alto e bom som. - O mundo é um lugar para se olhar nos olhos!!! Jurandir, ao invés de ficar espantado com aquele grito rouco, como os outros que passavam pelo local, pareceu se divertir, mas, com curiosidade, perguntou: - O que é isso?

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Já em um tom normal, o mendigo respondeu: - Apenas o meu presente para você. - O mundo é um lugar para se olhar nos olhos. Gostei. Obrigado. Falou isso e entrou no carro, pensando consigo mesmo. - Um bom lugar meu amigo, um bom lugar.

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Capítulo 6 – A última festa

Andou três quadras e estacionou o carro bem em frente ao bar, sentindo-se um pouco envergonhado por não ter ido a pé. Isso por que a preguiça do autor reflete a do personagem, pois se este caminhasse três quadras, aquele - no caso, eu - teria que reescrever a última cena. Mas, como vocês já devem saber, a preguiça é sempre uma inimiga traiçoeira, pois tivesse eu feito aquilo, não perderia tempo com estas explicações; além do que, com certeza não faria mal algum uma pequena caminhada ao nosso velho. Porém, contudo, entretanto, existem coisas que não cabem ao autor decidir. Ou melhor, até cabem, mas no momento de tomar essa decisão, nem sempre pensamos nisso como uma decisão, e a coisa passa batida. Somente mais tarde, olhando para trás, nós damos conta de que aquilo ao qual no momento não demos a devida atenção, era algo digno dela. Mas isso já está próximo demais da realidade, e a realidade é perigosa. Voltemos ao nosso velho Jurandir. Houve um tempo em que seu aniversário era comemorado com bolos e brincadeiras,

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mas depois disso e antes do agora, tantos anos se passaram, tanta coisa mudou, de tal modo que, como poderia ele, em já avançada idade, lembrar de bolos? E das brincadeiras de infância? Das suas pernas saudáveis que corriam depressa? Do seu pulmão ainda virgem que se enchia de ar? Lembrava. Jurandir era assim, tinha algo de especial, especial como aquele bolo que despertou a sua lembrança mais remota, aquele momento em que a vida realmente começou. A festa não era fechada ao público, mas este era pequeno e totalmente conhecido por Jurandir. Alguns dizem que um bar faz sua clientela pelo preço; outros, pela qualidade da comida e da bebida; ou ainda, pela qualidade do atendimento. Talvez ainda seja a música, a localização, o fato de passar ou não jogos de futebol aos domingos, ou tudo isso junto; ou talvez ainda, sejam somente as cadeiras. Há quem diga ainda que seja o inverso, o público é que transforma o ambiente. Estes dirão que onde se reunirem boas pessoas para beber, o ambiente será adorável. Talvez tudo isso seja verdade. Aproximou-se do dono do bar, um velho gordo de bochechas vermelhas e o abraçou, recebendo deste uma boina com seu nome

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bordado. Com seu presente na cabeça cumprimentou a todos, dedicando atenção ora aqui, ora lá, tendo que conversar sobre política com um sujeito idoso com ideias anarquistas; ler uma nova poesia de uma mulher de meia idade recém divorciada, e que desde então retornara a escrever poesias, coisa que não fazia desde antes do casamento; ver fotos das férias de um casal de amigos, inventar algumas desculpas, fazer algumas promessas, provar vinhos, cervejas e charutos; até que chegou o momento de subir no palco. Para isso bastava uns três passos e um degrau. Após tocar três ou quatro músicas, sentiu um mal estar e pediu um copo d’água. Juca, preocupado, aconselho-o a descansar um pouco, mas Jurandir, depois de secar o copo d’água, pediu mais um copo de vinho: - Que o show continue! O momento era bonito demais para ser interrompido. Todo show era bonito demais para ser interrompido. Talvez a vida fosse bonita demais para ser interrompida. Seguiu tocando a próxima música com alguma dificuldade, mas no intervalo dela, ao tomar um bom gole de sua taça de vinho tinto recém servida, recuperou suas forças, e na música seguinte já estava em sua melhor performance.

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Nisto, viu que um jovem parara na calçada para escutar sua música. O rapaz segurava um cigarro com uma mão e mantinha a outra mão no bolso. Este sim fumava com estilo. Isso o alegrou. Deu uma piscada para ele que foi retribuída, voltou a se concentrar na música e nas pessoas do bar, e quando a música acabou o jovem não estava mais lá. Relatar os pormenores da festa - embora interessante - não seria essencial para um bom entendimento da história e para saber o que hoje se passa na cabeça de quem esteve naquela festa. Pois todos estavam bêbados. Dizem que os bêbados perdem a memória. Eu digo que apenas lembram o essencial. E o essencial daquela noite, era que Jurandir estava magnífico naquela sua festa que - parecia ele já saber disso - seria a sua despedida.

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Capítulo 7 – O último capítulo

Já era quase seu aniversário e lembrou que neste dia almoçaria com seu filho, não sendo conveniente se atrasar, ao menos não agora que estavam se acertando. Então se desculpou e se despediu dos seus amigos antes do relógio terminar seu turno. Estava bêbado demais para dirigir, ofereceram-lhe carona, mas disse que precisava mesmo dar uma caminhada, além do mais eram apenas algumas quadras até o seu apartamento. E partiu orgulhoso, com seu bandoneon de pendurado. Orgulhoso pelos amigos que tinha, orgulhoso por não ter orgulho demais, pois aprendera que quem tem orgulho demais acaba afastando as pessoas, e a solidão, por mais tentadora que às vezes seja, não é boa para uma vida toda. E são estas as pessoas - as orgulhosas, mascaradas com falsa modéstia, quem acham que a sua maior qualidade é a humildade - são elas que dizem que amizade verdadeira é coisa rara, pois o orgulhoso quer ter amigos sem, primeiramente, ser amigo. Jurandir não tinha limites nem censuras para as amizades que mantinha. Era amigo do seu médico e do mendigo. Se eles também consideravam-se

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amigos de Jurandir, isso era coisa que não podia decidir; cabia a ele somente a sua parte. Tão doce era o ar da noite que se fechasse os olhos, conseguiria imaginar-se - sem grande esforço - rodeado por flores. E tão gostosa era a brisa que, quando fechou os olhos, além das flores, imaginou-se, e mais do que isso, sentiu como se realmente estivesse em frente ao mar. E nesta praia de flores, a maré era uma graciosa garçonete que levava para as sereias um banquete de gardênias, camélias, violetas, jasmins e também de margaridas. E o mar ficava perfumado, e o perfume tão doce chegava até os piratas mais terríveis do atlântico, e estes piratas já embriagados de rum, mas enternecidos pelo aroma do mar, se desarmavam e com madeiras e linhas viravam artesãos, e depois, com seus instrumentos que já não eram mais de ferir, tocavam e cantavam para as sereias no fundo do mar. Tudo isso era tão forte que ele, ao abrir os olhos, ficou aliviado por se ver novamente entre aqueles conhecidos bares. Pois, por mais bela que fosse aquela praia, lá não era o seu lugar. Fora ela - com suas flores, piratas e sereias - apenas um ato de criação de Jurandir, um ato possível por uma pequena brecha que o mundo lhe deu - com aquela brisa e aquele

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cheiro doce - mas que agora se fechara para que essa criação tivesse vida própria. E tendo vida própria, para aqueles piratas e aquelas sereias, Jurandir não existia; assim como, para nós, não existe nenhum Deus, mesmo que, de certo modo, ele possa existir. Mas isso Jurandir não sabia, e na verdade, nem eu, estou apenas inventando, ou, quem sabe, criando. Jurandir chegou em frente ao prédio e esperou uns minutos até que eu decidisse o que fazer com o parágrafo anterior, mas não estava impaciente, antes disso, se ria com a minha lentidão, pois na imaginação dele, e neste ponto também para o leitor, tudo já estava mais do que pronto. O que, para ele, foram alguns minutos, para mim, foram dias angustiantes sem inspiração. Bem, enfim eu me pus a escrever e Jurandir pode subir. Já no apartamento, sua vontade era ir direto ao quarto e dormir, mas sem saber por que, antes disso, largou o bandonenon no sofá e olhou em direção a porta de vidro que dava para a sacada, onde esquecera uma taça de vinho da noite anterior, ao lado da cadeira de balanço. Sem saber por que, decidiu que aquela taça de vinho não podia dormir ao relento; sem saber por que, caminhou em direção à porta; sem saber por que, abaixou para pegar a taça e por

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que estava velho e doente seu peito doeu, e talvez por que estivesse pronto, ou talvez por que fosse a hora, ou talvez por que estivesse exagerado demais, ou talvez por tudo isso junto e mais um pouco, caiu sentado na cadeira que continuou a balançar por alguns instantes, como se estivesse sendo embalada por alguma música escondida debaixo de todo aquele silêncio.

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Epílogo

Jurandir agora é um bebê na barriga de sua mãe. Daqui algum tempo irá nascer e chorar, sendo a única coisa que conseguirá fazer. Pois está triste, sabe que morreu. Mas depois, ao ir para o colo de sua mãe, se acalmará e entenderá que a natureza tem a sua sabedoria. Ainda restam alguns anos de vida para Jurandir, por certo alguns anos que já foram, mas que não podemos dizer que tenha realmente vivido, pois são estes anos dos quais que se dizem iniciais e que, até o capítulo anterior, Jurandir não tinha lembrança alguma. Agora ele vai engatinhar, aprender a caminhar e brincar e brincar e brincar, e sonhar e sonhar e sonhar, e quando chegar ao momento de sua lembrança mais remota, e provar daquele saboroso bolo, aí terá vivido toda sua vida, muito embora, neste ponto, de certa forma, ela esteja apenas começando tudo outra vez. Afinal de contas, é possível que uma história nunca se dê por inteiro, pois talvez e, só talvez, as últimas coisas do mundo foram, ou serão um dia, também as primeiras.