As histórias em quadrinhos no limiar de novos tempos: em busca de sua legitimação como produto...

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abstract Focuses on the trajectory of comics towards its artis- tic and cultural legitimating. Discusses the difficulties for the acceptance of the comics in well established cultural institutions and detaches the work of artists who used the comics language in their works. Brings to context the search for artistic autonomy in under- ground and mainstream comics. Presents the graphic novels as the new format for the worldwide dissemi- nation of the comics language, making it possible to reach other levels of public and new environments for commerce. Identifies innovative trends in the co- mics publication field , with emphasis in the use of comics in journalism and in biographical narratives, identifying the main authors in the field. Keywords: Comix, Auhorship, Art.

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Artigo sobre histórias em quadrinhos para VISUALIDADES. REVISTA DO PROGRAMA DE MESTRADO EM CULTURA VISUAL - FAV I UFG.

Transcript of As histórias em quadrinhos no limiar de novos tempos: em busca de sua legitimação como produto...

  • a b s t r a c t

    Focuses on the trajectory of comics towards its artis-tic and cultural legitimating. Discusses the difficulties for the acceptance of the comics in well established cultural institutions and detaches the work of artists who used the comics language in their works. Brings to context the search for artistic autonomy in under-ground and mainstream comics. Presents the graphic novels as the new format for the worldwide dissemi-nation of the comics language, making it possible to reach other levels of public and new environments for commerce. Identifies innovative trends in the co-mics publication field , with emphasis in the use of comics in journalism and in biographical narratives, identifying the main authors in the field.Keywords: Comix, Auhorship, Art.

  • As histrias em quadrinhos no limiar de novos tempos: em busca de sua legitimao como produto artstico e intelectualmente valorizado

    Waldomiro Vergueiro

    Enfoca a trajetria das histrias em quadrinhos para sua legitimao artstica e cultural. Discute as dificulda-des para aceitao dos quadrinhos em equipamentos culturais j estabelecidos e destaca o trabalho de artis-tas que utilizaram recursos da linguagem quadrinstica em suas obras. Contextualiza a busca pela autonomia artstica em obras produzidas no circuito underground e do quadrinho mainstream. Apresenta as graphic no-vels como novo formato para disseminao da lingua-gem dos quadrinhos em nvel mundial, possibilitando atingir outras camadas de pblicos e novos espaos de comercializao. Identifica tendncias inovadoras na publicao de histrias em quadrinhos, com destaque para o jornalismo em quadrinhos e a utilizao de qua-drinhos para narrativas biogrficas, identificando os principais autores e obras na rea.Palavras-chave: Histrias em Quadrinhos; Autoria; Arte.

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    Waldomiro Vergueiro

    As histrias em quadrinhos padeceram durante dcadas a indiferena das camadas intelectuais da sociedade, apesar de representarem a continuidade de uma longa tradio de mani-festaes iconogrficas, cuja gnese pode ser encontrada nas pinturas das cavernas do homem pr-histrico e que se desen-volveram durante sculos em diversas formas de manifestaes artsticas, como as colunas de Trajano, a Tapearia de Bayeux, o Livro dos Mortos, etc. Embora constituindo uma linguagem prpria hbrida da linguagem escrita e da imagem desenhada -, os quadrinhos tiveram sua aceitao pelas elites pensantes dificultada por diversos fatores, mas principalmente por sua ca-racterstica de linguagem direcionada para as massas. No en-tanto, os ltimos anos parecem ter trazido novos e promisso-res ventos para as histrias em quadrinhos no que diz respeito sua insero no mundo das manifestaes artsticas social-mente reconhecidas. Este artigo busca discutir essa trajetria e traar algumas diretrizes que garantam a permanncia dessa forma de manifestao do pensamento humano no campo das Artes.

    A luta pela legitimao

    Recentemente, uma conceituada pesquisadora brasileira da rea de histrias em quadrinhos, pleiteou a um importante museu de Arte da cidade de So Paulo a instalao de uma grande exposio sobre o tema . Embora no se recusando a abrigar a exposio, os responsveis pelo equipamento cultu-ral condicionaram sua concordncia justificativa, por parte da professora, de que as histrias em quadrinhos poderiam ser en-tendidas como Arte. Logicamente, considerando a evoluo da linguagem grfica seqencial e seu atual estgio de aceitao no mundo artstico contemporneo, a professora se recusou a elaborar tal justificativa ao museu paulistano, entendendo que a esta altura tal esclarecimento deveria ser dispensvel para uma instituio com to larga trajetria na preservao e divul-gao de bens culturais; alm disso, pesou tambm na deciso

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    As histrias em quadrinhos no limiar de novos tempos: em busca de sua legitimao como produto artstico e intelectualmente valorizado

    o fato desta mesma instituio museolgica ter abrigado, na segunda metade do sculo passado, uma das primeiras exposi-es de quadrinhos do mundo, demonstrando na ocasio uma postura de vanguarda em relao postura ento dominante no meio intelectual brasileiro e mundial.

    De fato, com relao a esse fato, alm de salienta-lo e soli-darizar-se com a professora pela resposta infeliz por ela obtida, pode-se cogitar que os atuais responsveis por essa importante instituio artstica e cultural da cidade de So Paulo, alm de desconhecerem a prpria histria do rgo que dirigem, fazem ainda parte de uma minoria de intelectuais que persiste vendo a arte como uma essncia metafsica reconhecida pelos seus mritos tcnicos, mas, principalmente, pelo seu status filosfi-co (MARTINS, 2006, p. 67), da mesma forma em que ignoram ou fingem ignorar os avanos ocorridos na rea artstica, espe-cialmente no que se refere s histrias em quadrinhos, a partir da dcada de 1960, quando uma grande variedade de movi-mentos arte pop, arte conceitual, performance, instalaes, arte ambiental, etc. intensificaram abertamente a resistncia

    s polaridades do sistema das belas artes buscando manter e at mesmo aprofun-dar a relao entre arte e vida (MARTINS, 2006, p. 68).

    Esses movimentos estiveram mesmo no centro da insero das histrias em quadri-nhos no mundo das artes, pois, na realida-de, elas adentraram o ambiente museolgi-co por meio da arte pop, especialmente na obra de artistas como Andy Warhol (1928-1987) e Roy Liechtenstein (1923-1997), que apreenderam elementos da linguagem gr-fica seqencial e os re-significaram em seus trabalhos artsticos, produzindo intenso im-pacto visual (Fig. 1).

    No entanto, ainda que esses autores tenham representado, no ambiente norte-americano, o comeo de um movimento de reconhecimento dos quadrinhos como manifestao artstica, eles no se constituram, absolutamente, em precursores desse

    Figura 1 Roy Lichtenstein, Estados Unidos, 1963. Drowning Girl. Pertencente ao acervo do Museu de Arte Moderna, de New York

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    tipo de valorizao da linguagem grfica seqencial. Na realida-de, o mrito nessa rea cabe a diversos intelectuais europeus, mais geis em reconhecer o forte impacto social dos produtos quadrinsticos e sobre ele realizando estudos e exposies. Nes-se sentido, tambm no se pode desmerecer a ao visionria de alguns admiradores do gnero no Brasil, que, j em 1951, ainda que sem obter o mesmo impacto no contexto intelectual brasileiro, realizaram a primeira exposio de histrias em qua-drinhos em ambiente formalmente constitudo como artefato cultural (MOYA, 2001).

    Por outro lado, preciso reconhecer que a classificao de extratos ou pginas de histrias em quadrinhos como objetos museolgicos muito pouco em termos de descrio ou cate-gorizao das possibilidades artsticas dos quadrinhos. Beben-do nas guas das mais variadas artes, como a ilustrao, o te-atro, a literatura, a caricatura e o cinema (BARBIERI, 1998), as histrias em quadrinhos constituem um gnero complexo, em que elementos narrativos de vrias manifestaes artsticas ou linguagens so explorados.

    Esta caracterstica hbrida da linguagem quadrinstica, bem como o fascnio que ela tradicionalmente exerceu sobre gran-des massas de leitores, principalmente os mais jovens, est tal-vez no centro de sua rejeio pelas elites intelectuais. Embora compreendidas pelo universo da arte na era da reproduo me-cnica, conforme visto por Benjamin (2006 [1969]), elas eram difceis de classificar e contextualizar. No entanto, talvez em maior medida que a indstria cinematogrfica, objeto de aten-o do autor alemo, os quadrinhos levavam o aspecto de dis-trao a seu extremo, dificultando sua compreenso por parte dos crticos de Arte. Da, a incompreenso, o estranhamento.

    Isto tambm dificultou a insero das histrias em quadri-nhos no ambiente acadmico, em que eles foram virtualmente ignorados durante boa parte do sculo, independentemente de seu impacto social. Como explicam Lombard e colegas (1999, p. 17),

    [...] apesar de seu potencial para a pesquisa, as tiras de quadri-nhos, as revistas de histrias em quadrinhos, e os cartuns [...] permaneceram virtualmente no-estudados por dcadas. Quando

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    a arte dos quadrinhos, na forma de revistas, finalmente achou o seu caminho para os labs da universidade Americana nos anos 1940, na maioria das vezes ela era tratada como um pria, um perigo para a juventude, para a moral, para o prprio tecido da sociedade Americana.

    A ateno dispensada aos quadrinhos pelos intelectuais ocorreu em paralelo com a emergncia de movimentos de pro-duo de quadrinhos que buscavam sua independncia das obras disponibilizadas pela indstria massificada generica-mente denominada como quadrinhos mainstream -, colocando--se como auto-suficientes e superiores ao que era ento dispo-nibilizado pelas grandes editoras de quadrinhos. Nesse senti-do, eles se aliavam, embora muitas vezes no explicitamente, crtica indstria cultural feita pelos idelogos da Escola de Frankfurt, que viam os produtos dessa indstria como essen-cialmente os mesmos. Como defenderam Max Horkheimer e Theodor W. Adorno (2006 [1944], p. 43-44) em seu famoso texto sobre a indstria cultural,

    [...] O padro unificado de valor consiste no nvel conspcuo de produo, a quantidade de investimento evidenciada. As diferen-as oramentrias de valor na indstria cultural no tm nada a ver com diferenas reais, com o significado do produto em si. Os meios tcnicos, tambm, esto sendo engolfados por uma unifor-midade insacivel. A televiso busca a sntese do rdio e do filme, atrasada somente enquanto as partes interessadas no podem concordar. Tal sntese, com suas possibilidades ilimitadas, prome-te intensificar a pobreza da esttica material to radicalmente que a identidade de todos os produtos da indstria cultural, ainda su-tilmente disfarada hoje, ir triunfar abertamente amanh numa irnica realizao do sonho de Wagner da obra de arte total.

    Surgido na costa do Pacfico nos Estados Unidos, o mo-vimento dos quadrinhos underground, tambm conhecidos como comix, bebeu mais especificamente na fonte dos movi-mentos hippies e da revolta estudantil, representando uma to-mada de deciso pelo fortalecimento e autonomia da produo

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    quadrinstica e sua utilizao como meio privilegiado para ma-nifestao artstica e social. Fazendo jus ao seu tempo, seus au-tores, em geral oriundos e atuantes no ambiente universitrio, recusavam-se a fazer parte da mquina editorial massificada e massificante, bem como a seguir as normas estabelecidas pelas grandes editoras do pas. Extremamente rgidas e reguladas, essas normas eram conseqncia indesejada da ainda recente perseguio aos quadrinhos, ocorrida h apenas uma dcada e tinham sua expresso concreta no chamado Comics Code, pelo qual cada publicao em quadrinhos era analisada e recebia um selo de aprovao, atestando sua insipincia em relao aos valores socialmente aprovados (NYBERG, 1998).

    Os artistas do movimento underground propunham uma criao quadrinstica totalmente desvinculada de editoras ou normas editoriais, com obras voltadas para a expresso de sentimentos, para o desafio s tradies e para a liberao de costumes, sem preocupaes imediatas com o consumo ou motivaes mercantilistas. frente dessa verdadeira bandeira libertria estiveram nomes posteriormente consagrados no uni-verso dos quadrinhos, verdadeiros cones em sua proposio como forma de manifestao artstica capaz de suplantar as limitaes da produo industrializada: Robert Crumb, Gilbert Shelton, Rick Griffin, S. Clay Wilson, Spain Rodriguez, entre ou-tros (SKINN, 2004).

    Embora limitado espacial e temporalmente, pois o movi-mento dos quadrinhos underground teve seu apogeu basica-mente entre final da dcada de 1960 e meados de 1970, a influncia tanto de obras como de autores ampliou-se bem alm das fronteiras do estado da Califrnia e atingiu os pases europeus e latino-americanos, podendo-se afirmar que ajuda-ram na formulao de um estilo de produo de quadrinhos. Na Europa, eles foram fontes de inspirao para revistas de vanguarda. Nas Amricas, por sua vez, assumiram forte vis poltico-partidrio, sendo o estilo preferencial utilizado por ar-tistas latino-americanos para o enfrentamento de governos to-talitrios que se espalharam pelo continente nas dcadas de 1960 e 1970. No Brasil, a influncia do quadrinho underground pode ser encontrada na obra do mineiro Henfil e nas colabora-

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    es dos vrios participantes do semanrio O Pasquim, do Rio de Janeiro, em que as audaciosas alfinetadas nos representan-tes ou nos (mal)feitos da ditadura militar eram retratados por traos econmicos e esteticamente desafiadores, numa compo-sio que se afastava de cnones mais tradicionais e adentrava pelo universo da caricatura e da stira (Fig. 2). Esse espectro de atuao das histrias em quadrinhos mas no exclusivamente delas, uma vez que a revista O Pasquim tambm abria espao para a charge, o cartum, a crnica , tambm realizava a crti-ca de costumes, principalmente classe mdia acomodada, to necessria sociedade da poca.

    Com o reconhecimento do potencial artstico dos quadri-nhos por parte dos intelectuais europeus e com a ecloso do movimento de quadrinhos underground estavam assentadas as bases para uma outra etapa na legitimao cultural das hist-rias em quadrinhos no mundo inteiro. Pode-se dizer que estava se agilizando o ritmo em que elas deixavam de ser vistas como uma linguagem exclusivamente direcionada para o pblico de menor idade e passavam a ser encaradas como manifestaes voltadas a pblicos diversos, com diferentes nveis de qualidade e representao do mundo.

    Figura 2 Grana, de Henfil, publicado em O Pasquim

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    Marasmo e renovao durante a Era de Prata dos quadrinhos

    De fato, pode-se tambm afirmar que o processo de reco-nhecimento das histrias em quadrinhos parece ter avanado por etapas. De um primeiro momento, com as pginas domi-nicais e tiras dirias, quando foram vistos como forma de assi-milao das camadas populares, quase que majoritariamente composta por imigrantes europeus ou asiticos, civilizao norte-americana, os quadrinhos passaram depois, com as revis-tas de quadrinhos ou comic-books, a ser direcionados priorita-riamente ao pblico infanto-juvenil, sofrendo as agruras e per-seguies de pais e educadores, num movimento de rejeio que se espalhou por praticamente os quatro cantos do mundo.

    A verdadeira ressaca cultural que seguiu o perodo mais acirrado de perseguio ao meio anos imediatamente pos-teriores Segunda Guerra Mundial, poca da chamada caa s bruxas e apogeu da Guerra Fria entre Estados Unidos e Unio Sovitica, com a proposio do j mencionado Comics Code , pode ser vista como um momento, ainda que forado, de pre-parao para a transposio dos limites da linguagem, quele tempo ainda aparentemente intransponveis. Desta forma, mesmice de uma produo padronizada, massificada e padroni-zadora seguiu-se um momento de ajuste, em que proposies diferenciadas de produo e composio esttica eram expres-sas em diversas partes do mundo.

    Mesmo no mbito da produo industrializada de quadri-nhos era possvel vislumbrar indicadores dessa busca por novos parmetros criativos. Em meio a centenas de ttulos e histrias que apenas repetiam um modelo de quadrinhos andinos, agin-do de forma quase subterrnea no ambiente dessa produo industrializada - ou mesmo sob o olhar complacente de seus editores , alguns autores dos quadrinhos comerciais norte--americanos aqueles publicados nas revistas de super-heris, principalmente pelas duas grandes editoras da rea, a Marvel e a DC Comics , incluam em suas histrias elementos narrativos ou grficos que as faziam avanar alm de produes contem-porneas, transformando-se em marcos para outros autores do

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    gnero. O trabalho de Jim Steranko frente do personagem Nick Fury, por exemplo, apresentava diferenas gritantes em relao aos da mdia dos criadores da poca, com designs em que abundavam as fotocolagens e fotomontagens inspiradas em movimentos artsticos como a arte psicodlica e a Op Art. Outro autor que se destacou na produo industrializada de quadrinhos foi Steve Ditko, mundialmente conhecido como um dos criadores do personagem Homem-Aranha, cujos primeiros 38 nmeros foram por ele desenhados. Verdadeiro mestre da composio, linguagem corporal e ritmo da narrativa (WOLK, 2007, p. 156), ele se revelou especialmente inspirado no tra-balho que realizou para a revista Strange Tales, protagonizada pelo mestre das artes msticas conhecido como Doutor Estra-nho (Fig. 3). Nessas histrias, contrariamente ao que fazia nas aventuras do Homem-Aranha, em que colocava o heri lutando contra as leis da fsica,

    [...] os personagens em torno do Doutor Estranho eram libertos dessas leis e do mundo em geral, flutuando livremente em outro espao dimensional cheio com elementos encurvados, de design em garrancho. No existem quase ngulos retos nas histrias do Doutor Estranho de Ditko alm das bordas dos quadrinhos. Vezes e vezes, entretanto, h imagens de portais estranhamente mol-dados pelos quais planos de existncia mais estranhos podem ser vistos, e a implicao que os retngulos da pgina impressa atuam como a mesma forma de portal para os leitores (WOLK, 2007, p. 159-160).

    Figura 3 Doctor Strange, de Steve Ditko, um marco do quadrinho industrializado norte-americano

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    O trabalho desses dois autores na Marvel Comics, junta-mente com o de artistas como Neal Adams na DC Comics, si-nalizavam para alguma coisa inovadora em termos de lingua-gem das histrias em quadrinhos, que ainda no podia ser suficientemente vislumbrada devido s dificuldades impostas pela mo pesada da censura institucional, desempenhada pelo Comics Code Authority. Essa inovao iria surgir ao final da dcada de 1970 e viria pelas mos de um veterano na rea, o nova-iorquino Will Eisner (1917-2005). Chamava-se graphic novel.

    O surgimento das graphic novels

    Existe uma grande dose de lenda em torno das narrativas que se referem criao das graphic novels no ambiente qua-drinstico norte-americano. J faz parte do folclore da rea a narrativa de Will Eisner sobre a publicao de sua primei-ra contribuio nessa rea, tantas vezes ele se encarregou de cont-la e re-cont-la em entrevistas, palestras e eventos de quadrinhos. Esse episdio narrado da seguinte forma por Bob Andelman (2005, p. 290):

    Eisner telefonou para Oscar Dystel, ento presidente da Bantam Books, e jogou o conceito. Dystel no somente conhecia Eisner mas se dizia que era um f de seu trabalho em The Spirit. Dystel lembrou-se dele, mas era um homem ocupado, como editores normalmente so, e estava impaciente. Ele queria saber o que era que Eisner tinha, exatamente. Eisner olhou para o seu bone-co, e um instinto lhe disse, No diga a Dystel que uma revista em quadrinhos ou ele bater o telefone na sua cara.Assim Eisner pensou por um momento, e disse: uma graphic novel.Oh, Dystel disse, isto parece interessante; eu nunca tinha ou-vido falar disso antes.Por convite de Dystel, Eisner levou o boneco a seu escritrio. Dys-tel olhou o boneco, olhou para Eisner em descrena, e ento olhou de volta para o boneco. Ento Dystel balanou sua cabea.Chame isso do que voc quiser, ele disse tristemente, mas isto ainda uma revista em quadrinhos! Ns no vendemos revistas em quadrinhos na Bantam. Eu estou surpreso com voc, Will. V

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    em busca de um pequeno editor.Na realidade, Eisner no havia criado nada novo, por mais

    que afirmasse que a idia lhe viera repentinamente. Ele no havia absolutamente inventado a expresso graphic novel, pois no se tratava da primeira vez que ela era utilizada em relao especificamente a um produto quadrinstico. Antes de Eisner, o termo j havia sido utilizado pelo crtico de quadrinhos norte--americano Richard Kyle, em 1964, e tambm por Henry Steele na revista Fantasy illustrated, em 1966. Da mesma forma, o trabalho que Eisner ento oferecia ao editor Um contrato com Deus -, tampouco poderia ser considerado de fato a pri-meira graphic novel a ser publicada no ambiente de quadrinhos norte-americano, com diversas obras podendo ser apontadas como suas antecessoras (destacando-se, neste aspecto, Jungle book, the Harvey Kurtzman, e Beyond time and again, de Geor-ge Metzger, para apenas citar dois exemplos).

    Por outro lado, a prpria idia compreendida pela expresso graphic novel pode ser facilmente contextualizada em outros pases, com destaque para os lbuns encadernados de histrias em quadrinhos, j naquela poca correntemente publicados no ambiente europeu, em geral trazendo histrias completas de personagens consagrados, anteriormente publicadas na forma de captulos em revistas como Tintin, Spirou ou Pilote. Foi a partir desses lbuns que o crtico Richard Kyle, j mencionado, cunhou inicialmente o termo graphic story, que rapidamente substituiria por graphic novel, visando inspirar os autores norte--americanos a adotarem o mesmo nvel de sofisticao das pu-blicaes europias (GRAVETT, 2005, p. 8).

    No entanto, polmicas parte, preciso reconhecer que Will Eisner, com seu prestgio como criador da rea e inteli-gente atuao mercadolgica, foi de capital importncia para a popularizao do termo e ampliao do mercado para esse tipo de publicao. Aps algumas rejeies, ele finalmente con-seguiu publicar Um contrato com Deus pela Baronet Books, em 1978 (Fig. 4). Tratava-se de uma coletnea de quatro histrias sobre pessoas que Eisner havia conhecido durante sua infncia e adolescncia no Bronx; na obra, o autor fugia do formato ori-ginal dos quadrinhos, evitando contar a trama quadro a quadro

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    e s vezes utilizando a pgina inteira para uma nica ilustrao.

    A obra no atingiu um sucesso imediato, mas aos pou-cos sua qualidade foi se impondo e a reao a ela se solidi-ficando de forma calorosa e encorajadora, a partir de sua difuso entre o pblico adulto. Isso lhe garantiu sucessivas reimpresses. De uma certa forma, a aceitao do trabalho representava o apoio dos leitores s idias de Will Eisner e sua proposta de modificar os esteretipos que existiam em relao s publicaes de histrias em quadrinhos.

    Por mais que a expresso graphic novel represente um termo com diferentes acepes, possvel dizer que ela veio a influir positivamente no ambiente dos quadrinhos no mundo inteiro, predispondo leitores e crticos no s a uma nova forma de publicao de histrias em quadrinhos, mas, tambm, a uma nova formulao artstica para o gnero. Tratava-se de uma nova maneira de viabilizar e disseminar os quadrinhos, um novo pacote, no dizer de Charles Ha-

    Figura 4 Um contrato com Deus, de Will Eisner, considerada por muitos como a primeira

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    tfield (2005), que viria a somar aos j existentes. Segundo esse autor,

    A histria a arte dos quadrinhos se formou nas histrias de certos pacotes ou formatos. Nos Estados Unidos, o mais do-minante desses pacotes foi a pgina de jornal e a revista em quadrinhos. O primeiro consiste de uma miscelnea de traos e gneros, a maioria contida pelas rgidas barreiras da tira diria ou da dominical; ele aparece no interior da mais ampla miscelnea dos jornais, e quadrinhos produzidos para ele so vistos no mximo como tipos secundrios. A chamada revista em quadrinhos, por outro lado, uma revista pequena e auto-contida ou panfleto (mais ou menos de tamanho meio tablide). Nos primeiros dias da indstria, esta revista incor-porava uma miscelnea de gneros, tanto narrativos como no-narrativos; mais recentemente, no entanto, ele veio a se concentrar em um nico personagem ou grupo de persona-gens e, mais freqentemente, em uma nica histria (tipica-mente entre dezoito ou vinte e quatro pginas de extenso). Desde o final dos anos 1980, uma terceira forma de empaco-tamento de quadrinhos ganhou espao na cultura impressa Americana: a graphic novel, o que no jargo da indstria significa qualquer narrativa quadrinstica em tamanho de li-vro ou um compndio de tais narrativas (excetuando volumes de reimpresso de tiras de jornal, que compem um gnero longevo, ainda que criticamente invisvel em si mesmo). Cada um desses trs pacotes, a pgina de quadrinhos, a revista em quadrinhos, e a graphic novel, tem seus prprios horizontes em termos de contedo, audincia e aporte cultural.

    A nova denominao ajudou a abrir as portas de ou-tros espaos de comercializao e exposio para as pro-dues quadrinsticas, elevando-as a um novo patamar no espectro das criaes artsticas no ltimo quarto do sculo 20 e incio do sculo 21. Mais que isso: como formato de produo, as graphic novels tornaram possvel quebrar a barreira entre os quadrinhos industrializados e os alternati-vos, criando condies para um mercado diferenciado, em que a qualidade artstica, o aprofundamento psicolgico, a ousadia do design e a complexidade temtica passaram a ter seu valor melhor equacionado. Pode-se dizer que, a

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    partir delas, as histrias em quadrinhos se firmaram como a 9 Arte ou como Arte Seqencial.

    Os caminhos da Arte Seqencial

    A partir da dcada de 1980, as histrias em quadrinhos passaram a ser referenciadas como a 9a Arte. Nisso, comple-tavam um conjunto formado por artes mais tradicionais (as seis primeiras: msica, dana, pintura, escultura, literatura e teatro), acrescidas de duas outras de criao mais recente, o cinema e a fotografia (embora no fique muito claro porque o cinema, posterior fotografia, mereceu a 7a colocao...). Quase que paralelamente, as histrias em quadrinhos passa-ram a ser tambm mencionadas como Arte Seqencial, uma denominao pouco satisfatria, uma vez que, a rigor, poderia se referir no apenas s histrias em quadrinhos, mas tambm a outras artes com as mesmas caractersticas, como o cinema e a animao (razo pela qual, este autor prefere utilizar a expresso arte grfica seqencial para fazer referncia s his-trias em quadrinhos...). Isto, no entanto, talvez no tenha tanta importncia, mas sim a proposio das histrias em qua-drinhos como arte, objetivo que a expresso parece atender satisfatoriamente. De qualquer forma, j no incio da dcada de 1980 intensificou-se o uso desse termo por pesquisadores e artistas. Mais uma vez, foram liderados por Will Eisner, que o utilizou em um curso sobre quadrinhos que ministrou na Scho-ol of Visual Arts da cidade de Nova Iorque e posteriormen-te como ttulo de seu primeiro livro terico na rea (EISNER, 2001 [1985]). Tal como ele, outros artistas trataram de divul-gar essa denominao em eventos e publicaes da rea.

    Tratou-se de mais um passo na busca da legitimao cultural da linguagem. Nesse sentido, Thierry Groensteen, analisando a realidade dos quadrinhos a partir da situao eu-ropia, tambm identifica dois momentos na histria recen-te, bem semelhantes ao que se passou no ambiente norte--americano: em primeiro lugar, a reconquista do leitor adulto, ocorrida a partir de 1972, com o lanamento da publicao

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    LEcho de Savanes, considerada por ele como a primeira revis-ta somente para adultos; em segundo lugar, o crescimento da publicao de lbuns na Frana, ocorrida quase que em paralelo com o desaparecimento das revistas tradicionais de quadrinhos do pas, Tintin, Pif, Pilote, Charlie, Metal Hurlant. Nesse sentido, Didier Pasamonik (2008, p. 15) complementa o pensamento de Groensteen, afirmando que

    [...] Do incio dos anos 90 e em um crescendo nos anos seguintes, no houve um grande editor de literatura que no tenha buscado publicar histrias em quadrinhos: Albin Michel, Gallimard, Gras-set, Le Seuil, Flammarion, Hachette, Denol, Fayard, Le Diable Vauvert, Buchet-Chastel, La Martinire[...]

    Ao mesmo tempo, do outro lado do mundo, grupos de artistas que poderiam ser considerados como sucessores do movimento under-ground norte-americano passaram a ter maior destaque no universo dos quadri-nhos norte-americanos. Colaborou forte-mente para isso a proeminncia obtida por Art Spiegelman e sua obra Maus. Com pretenses nitidamente biogrficas, Maus trazia a histria dos pais do autor, que haviam sido prisioneiros em um cam-po de concentrao alemo durante a Segunda Grande Guerra. Utilizando uma narrativa em primeira pessoa, na qual ele prprio contracena com seu pai e o faz recordar os momentos terrveis da per-seguio aos judeus durante o conflito mundial, com todas as conseqncias psicolgicas e pessoais que o perodo de confinamento havia trazido, Spiegelman

    utiliza um recurso caracterstico das fbulas e das histrias em quadrinhos infantis: retrata os personagens como animais, indi-vidualizando as diversas naes por tipologias zoolgicas os judeus como rato, os alemes como gatos, os ingleses como ces, os poloneses como porcos, etc. (Fig. 5)

    Figura 5 Maus, de Art Spiegelman, sucesso junto crtica norte-americana

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    Tendo sido inicialmente publicado em captulos na revista Raw, fanzine sofisticado de histrias em quadrinhos de van-guarda, editada por Spiegelman e Franoise Mouly de 1980 a 1991, Maus, aps sua publicao em formato graphic novel, recebeu em 1992 um prmio Pulitzer especial. Desta forma, com ele, escancarava-se para o mercado norte-americano e para o mundo em geral o potencial do novo formato de disse-minao de quadrinhos, que no mais precisava ficar vinculado a narrativas nos gneros tradicionais super-heris, policiais, aventuras, etc. mas podia ser explorado para incurses no campo da histria, da memria social e do jornalismo. Criavam--se ou, melhor dizendo, solidificavam-se assim novas expec-tativas em relao ao meio. Na realidade, pode-se dizer que com ele se quebrava tambm um preconceito, o de que hist-rias em quadrinhos no se prestam retratao episdios his-tricos especialmente problemticos, como o Holocausto dos judeus na 2a. Guerra Mundial. Como menciona Rocco Versaci (2007 , p. 82)

    Um meio que parece mesmo menos equipado para comuni-car esta particular histria seria o da revista em quadrinhos. De fato, em termos de concepes populares, seria difcil encontrar dois assuntos mais discrepantes que o Holocausto e as revistas em quadrinhos, pois a ltima comumente encarada como uma diverso imatura enquanto o primeiro, por contraste, se tornou congelado na maioria das mentes como uma metfora para o mal absoluto, to amplos so seus horrores. Ambas as percepes so infortunadas, pois nem o Holocausto nem as revistas em quadri-nhos so bem servidas por essas generalizaes. Apesar da apa-rente incongruncia entre quadrinhos e o Holocausto, entretanto, Art Spiegelman ousadamente une os dois em suas graphic novels Maus I (1986) e Maus II (1991).

    O reconhecimento obtido por Spiegelman chamou a aten-o do pblico em geral, que de repente se viu defronte a uma realidade j familiar aos admiradores do gnero, a muitos ar-tistas atuantes na indstria de quadrinhos e queles que se haviam aventurado na produo de quadrinhos underground. Face a essa nova realidade, pode-se dizer que o cabedal so-cial das histrias em quadrinhos foi objeto de forte valoriza-

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    o, passando elas a terem um novo tipo de recepo. A este movimento veio se somar a entrada no mercado ocidental das produes de quadrinhos japonesas os mangs , que pro-punham uma esttica diferenciada em relao aos quadrinhos mainstream, com obras que se colocavam, em princpio, como buscando horizontes mais am-biciosos que a produo tradi-cional ocidental. E esta invaso nipnica se fez inicialmente por obras que se destacavam em termos de qualidade Gen Ps Descalos, de Keiji Nakazawa, que transitava pelo mesmo es-pao memorialstico de Maus (Fig. 6). Nele, em uma narrativa emocionante, o autor relembra sua trgica experincia de vida, quando, ainda menino, esteve presente na cidade de Hiroshi-ma durante o lanamento da primeira bomba atmica pelos Estados Unidos, perdendo parte de sua famlia durante o conflito e sofrendo danos psicolgicos ir-reparveis.

    Face invaso japonesa e boa acolhida da obra de Spie-gelman, os grandes editores comerciais intensificaram a produ-o no apenas de graphic novels, mas tambm de mini-sries em sua linha normal de produo. Assim, um movimento que havia comeado em 1986 com o objetivo de revitalizar um dos cones da editora DC, o personagem Batman com Batman: O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller e Klaus Janson (Fig. 7) , passou a ter um ritmo muito mais rpido de lanamentos, muitas vezes representando obras especialmente criadas para o novo formato, outras vezes coletando histrias ou arcos de histrias aparecidos nas edies normais, ou seja, em revistas de linha. Nesse esprito ocorreu o aparecimento de obras que depois se revelariam de capital importncia na revitalizao

    Figura 6 Gen Ps Descalos, de Keiji Nakazawa, uma comovente histria sobre as agruras da guerra e o sofrimento causado pela bomba de

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    do gnero dos quadrinhos de super-heris, como Watchmen (1986), de Alan Moore e Dave Gibbons; Demolidor: A queda de Murdoch (1986), de Frank Miller e David Mazzuchelli; Batman: Ano Um (1987), de Frank Miller e David Mazzuchelli; Batman: a piada mortal (1988), de Alan Moore e Brian Bolland; Batman: Asilo Arkham (1989), de Grant Morrison e Dave McKean; Mar-vels (1991), de Kurt Bu-siek e Alex Ross; Astro City (1995), de Kurt Bu-siek e Brent Anderson; e O Reino do Amanh (1996), de Mark Waid e Alex Ross, entre outros (KANNENBERG, 2008).

    Alm das histrias protagonizadas por super-heris, outras obras surgiram no mercado mainstream buscando a excelncia

    Figura 7 Batman: O Cavaleiro das Trevas, obra significativa de um novo momento dos quadrinhos de super-heris

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    artstica e atingir um pblico mais adulto, muitas delas sendo extremamente bem sucedidas em ambos objetivos. Entre elas, deve-se destacar a contribuio de Neil Gaiman e Dave McKean em Violent Cases (1987), publicada originalmente na Inglater-ra, dois anos antes de Gaiman dar incio obra pela qual ficou mais conhecido, Sandman (1989-1996), que realizou com di-versos desenhistas. Outro trabalho semelhante que esse escri-tor realizou no gnero fantasia foi Os Livros da Magia (1990), tambm com diversos autores e com a mesma qualidade est-tica e literria de Sandman, mas sem atingir o mesmo sucesso.

    Outro autor que tambm enveredou pelo universo das graphic novels foi o ingls Alan Moore, com diversas obras de grande su-cesso lanadas pela editora que fundou, a American Best Comics, posteriormente transformadas em graphic novels. Dirigidas ao p-blico mais adulto, todas essas obras brincam com elementos fan-tasiosos e revisitam os diversos gneros dos quadrinhos, como o de super-heris (Top Ten, Supremo), fantasia (Prometea), drama (A small killing, Lost girls), humor (D. R. and Quinch), aventura (A Liga Extraordinria) e fico cientfica (V de Vingana, A balada de Halo Jones, Skizz).

    No entanto, mais do que salientar esses e outros incrveis au-tores e suas obras maravilhosas, talvez seja mais produtivo encara--los, em seu conjunto, como um testemunho vivo do avano qua-litativo da arte seqencial mesmo no mercado mainstream. Alm disso, importante tambm destacar que o crescimento da oferta de graphic novels permitiu a utilizao da linguagem dos quadri-nhos para a explorao de diversos gneros que haviam sido trata-dos apenas marginalmente por ela. E isso ocorreu de tal maneira que uma nova classificao temtica foi gerada na rea, com tra-balhos que jogaram por terra todas as idias pr-concebidas sobre as limitaes da linguagem quadrinstica para ir alm de propostas ficcionais.

    Nessa linha, um dos pontos altos da rea na ltima dcada foi o surgimento do gnero atualmente conhecido como jornalismo em quadrinhos, voltado para a documentao de acontecimentos e fatos reais. O destaque nessa rea o jornalista e artista de qua-drinhos Joe Sacco, cujas obras se transformaram em modelos para todos aqueles que intentam enveredar pelas mesmas veredas cria-

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    tivas. Palestina: uma nao ocupada (Fig. 8), sua primeira obra nessa linha, publicada originalmente em 1993, um relato de sua via-gem aos territrios ocupados da Palestina, retratando com muita sensibilidade a rotina dos moradores e dando voz a um povo que convive cotidianamente com a privao em um pas militarmente ocupado. Seus desenhos, em estilo underground, evidenciam um autor comprometido com aquilo que est retratando, nitidamente tomando o partido daqueles que entrevista, participando de de-monstraes, assistindo a funerais e at mesmo dividindo suas pro-vises e acomodaes com membros da comunidade palestina.

    Sacco publicou vrias obras com o mesmo objetivo de Pa-lestina, assentando as bases em que outros autores tambm trabalharam ou continuam a trabalhar. Desta forma, alinhadas com o chamado Novo Jornalismo, essas obras quadrinsticas se impuseram por uma narrativa pessoal e relatos de eventos da vida real. A importncia desse trabalho no pode ser subesti-mada. Segundo Rocco Versaci (2007, p. 111), esses

    [...] quadrinistas jornalistas aproveitaram ao mximo a linguagem grfica do meio para reanimar a mais distintiva caracterstica do Novo Jornalismo: o aprofundamento da perspectiva do indivduo como um organizador da conscincia. Alm disso, os quadrinistas jornalistas atingem camadas de significado inacessveis ao jornalismo

    Figura 8 Palestina, de Joe Sacco, a ponta de lana de um novo gnero quadrinhstico, o jornalismo em quadrinhos

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    em prosa sozinho devido linguagem grfica dos quadrinhos que agrega palavras e imagens. E ainda mais, como os Novos Jornalis-tas, os quadrinistas jornalistas abraam uma destacada atitude anti--oficial, anticorporao. Entretanto, diferentemente da absoro do Novo Jornalismo pela indstria e a resultante diluio de sua men-sagem radical, os quadrinistas jornalistas retm, paradoxalmente, um poderoso status marginal que dificultar que esses trabalhos sejam totalmente co-optados. Quando algum fala sobre a literatura do jornalismo, trabalhos de quadrinistas jornalistas devem ser includos, pois eles proporcionam histrias e levantam importantes questes de representao e verdade de maneiras que no esto disponveis ao jornalismo estritamente em prosa, Novo ou de outro modo.Alm do jornalismo em quadrinhos, outro gnero que ad-

    quire fora nesse novo momento de legimitao das histrias em quadrinhos a narrativa pessoal, enfocando relatos de vida e memrias. um gnero que tem suas razes no quadrinhos under-ground, principalmente com o trabalho de Robert Crumb, e que posteriormente, com seus sucesso-res no mbito do hoje denomina-do quadrinho alternativo, atingiu nveis de qualidade antes pouco vislumbrados, mesmo pelos admi-radores do gnero. Ele j aparece claramente nas j mencionadas

    Figura 9 e 10 Black Hole e Na Priso, obras que do continuidade ao gnero biografia em quadrinhos, com grande profundidade artstica

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    obras de Art Spiegelman e Keiji Nakazawa, mas se aprofunda de forma significativa nos trabalhos de autores como o norte--americano Charles Burns e o japons Kazuichi Hanawa.

    O primeiro retrata em Black Hole (Fig. 9), uma extensa graphic novel elaborada em imagens luxuriantes, ousadas e bastante perturbadoras, que levou dez anos para ser concluda, a poca da sua juventude, na dcada de 1970, e a convivncia diria com drogas e sexo, colocando a nu momentos de fragilidade e indeciso frente a um mundo que parecia no lhe oferecer as respostas que buscava. O segundo expe em Na Priso (Fig. 10) a poca em que seu autor esteve confinado em uma priso japonesa, devido a uma acusao de porte ilegal de armas, des-crevendo o dia-a-dia de seu confinamento.

    Outros gneros mais tradicionais dos quadrinhos tambm tiveram grande desenvolvimento nos ltimos anos. Sem querer esgotar o assunto, possvel destacar Sincity, de Frank Miller, Cidade de Vidro, de Paul Auster e David Mazzucchelli, Estrada para a Perdi o, de Max Alan Collins e Richard Piers Rayner, nos quadrinhos policiais; Moonshadow, de J. M. DeMatteis e Jon J. Muth, no gnero fantasia; Birdland e Crnicas de Palomar, de Gilbert Hernandez, Ghost World, de Daniel Clowes, Strangers

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    in Paradise, de Terry Moore, Jimmy Corrigan, the smartest kid in the world, de Chris Ware, em histrias do cotidiano; Hellboy, de Mike Mignola, nas histrias de terror; Os Invisveis, de Grant Morrison, Akira, de Kathuhiro Otomo, Hard Boiled, de Frank Miller e Geoff Darrow, Give me Liberty, de Frank Miller e Dave Gibbons, The Originals, de Dave Gibbons, na fico cientfica; Pussey!, de Daniel Clowes, Buddy does Seattle, de Peter Bagge, Quimby the Mouse, de Chris Ware, no humor (KANNENBERG, 2008).

    Em todos os ttulos acima mencionados e em muitos ou-tros que no foram includos por absoluta falta de espao , pode-se observar a preocupao com a elaborao de histrias que fujam do comum e tenham a marca do seu autor. Algumas apresentam uma viso acerba e crua da sociedade, em dese-nhos aparentemente grotescos e mesmo horripilantes. Outras buscam proporcionar deleite esttico em nveis similares aos proporcionados pelas outras artes, inspirando-se abertamente em grandes obras da representao pictrica universal.

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    Concluso

    Em sua obra Reading comics: how graphic novels work and what they mean, Douglas Wolk (2007, pag. 10) argumen-ta, em relao evoluo das histrias em quadrinhos, que se existe tal coisa como uma idade de ouro dos quadrinhos, ela est acontecendo exatamente agora. Analisando a pro-duo atual e o nvel de qualidade de imagens e roteiros en-contrados em muitas produes quadrinsticas, no se pode deixar de concordar com esse autor. Estamos, sim, vivendo uma grande poca para os quadrinhos.

    Por outro lado, no se pode deixar de reconhecer que a produo industrializada continua massiva e massificante: to-lhida em limites mais amplos do que os de vinte ou trinta anos atrs, certo, mas, ainda assim, com evidentes limitaes. A oferta de quadrinhos como um todo, considerada a produo industrial, continua disponibilizando, em propores bastante exageradas cerca de 80 ou 90 por cento, dependendo do ponto de vista -, daquilo que poderia ser denominado como lixo, ou seja, quadrinhos padronizados e presos a um modelo industrializado de produo, voltados para a reproduo das mesmas histrias a serem consumidas pelas mesmas massas de leitores invisveis e no-identificados. Apenas uma pequena parcela da produo continua a ser composta por obras que realmente colaboram para o avano da linguagem dos qua-drinhos e sua evoluo artstica, enquanto todo o restante da produo busca perpetuar o interesse da sociedade em geral por esse meio de comunicao de massa. Mas nisso as his-trias em quadrinhos no se diferenciam de todas as outras artes, pois fato semelhante pode ser encontrado no cinema, no teatro, na literatura, etc. Ambas as tipologias de produo o lixo, por um lado, e a arte, por outro , cumprem muito bem o seu papel.

    A boa notcia que as obras que fazem avanar a lingua-gem quadrinstica j no se situam mais somente no mbito do quadrinho alternativo. Cada vez mais, possvel encontrar no contexto de quadrinhos mainstream obras que, embora tratando de temticas aparentemente padronizadas, re-elabo-

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    ram a linguagem e influem significativamente em seu aprimo-ramento. E isso ocorre com freqncia cada vez maior.

    Existem motivos para otimismo em relao legitimao das histrias em quadrinhos na sociedade. Embora algumas portas de instituies culturais ainda permaneam estupida-mente fechadas para acesso e valorizao das produes qua-drinsticas, outras j se abrem e algumas at mesmo se escan-caram para elas. Bibliotecas, que antes sequer cogitavam em armazenar quadrinhos, j as oferecem abertamente. Livrarias criam sees especiais para comercializao de graphic novels, lbuns e mini-sries. Escolas so tomadas por professores e alu-nos vidos pela utilizao de histrias em quadrinhos em sala de aula. So novos tempos.

    Exerccios de futurologia so sempre arriscados. Assim, se-ria provavelmente arriscado fazer qualquer tipo de prognstico em relao ao futuro da arte grfica seqencial. Existe um ca-minho a ser percorrido, talvez ainda com algumas dificuldades. Autores e leitores, no entanto, parecem cada vez menos teme-rosos em relao a ele e o vem como uma grande promessa. E talvez realmente o seja.

    Notas1. Informao oral, prestada informalmente em junho de 2008. Os nomes foram omitidos, por deciso deste autor, visando evitar constrangimentos aos envolvidos.

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    doutor e livre-docente em Cincias da Comunicao e Professor Titular do Departamento de Biblioteconomia e Documentao da Escola de Co-municaes e Artes da Universidade de So Paulo (ECA-USP). Docente do Programa de Ps-Graduao em Cincias da Comunicao da ECA-USP, onde tambm coordena o Observatrio de Histrias em Quadrinhos. Pu-blicou os seguintes livros: Como usar as histrias em quadrinhos na sala de aula, O Tico-Tico: Centenrio da primeira revista de histrias em qua-drinhos no Brasil e Historieta Latinoamericana. v. 3: Brasil (na Argentina).

    Endereo: Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo, Av. Prof. Lcio Martins Rodrigues, 443, Butant, So Paulo, Rua Jorge Tibiri, 266, Vila Mariana, So Paulo, SP, 04126-000, Tel. 3091-4076, ramais 27 e 34; e-mail: [email protected]

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