As Duas Retóricas David Hume

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    CAPÍTULO VI

    AS DUAS RETóRICAS

    Se o discurso teórico é percorrido por um único fôlego, um

    movimento linear e transparente que o atravessa inteiramente, por

    seu lado o discurso retórico se apresenta inicialmente como um

    caos, que nem em seu trabalho de ruptura da ar ticulação do siste-

    ma manifesta um mínimo de regularidade.

    Território bárbaro, oposto ao domínio culto e civilizado da

    teoria como seu outro, nem mesmo o desenho de suas fronteiras

    parece capaz de oferecer a imagem de uma ordem: fendas desi-

    guais , separadas por distâncias desiguais. O desvio em relação a

    um contexto e a função persuasiva são os únicos traços que per-

    mitem ao olhar abarcá-lo num único gesto.

    No esforço em direção a uma unidade mais funda, o primeiro

    movimento l imita-se a revelar nova f issura no interior do espaço

    retórico. Não se trata da descoberta de uma categoria unificadora,

    mas, pelo contrário, de nova diversidade. De um lado, os enuncia-

    dos que manifestam sua retoricidade enquanto razões de teses

    teór icas, ou se l imitam a encobrir estas num véu de ambigüidade;

    de outro lado, aqueles que trabalham o texto de maneira a produ-

    zirem teses estranhas à teoria.

    Certas teses da teor ia surgem apoiadas em razões marcadas

    por uma clara insuficiência teórica. Razões que se apresentam

    com a aparência de enunciados teóricos , e ao mesmo tempo pade-

    cendo de uma inadequação fundamental face às exigências do sis-

    tema. Sua única função é contribuir para que o leitor considere

    mais verossímil ou mais provável determinada tese ou determinada

    argumentação. Const ituem instrumentos estranhos ao discurso

    teórico, enunciados que visam simplesmente persuadir, e não con-

    vencer. O que os situa inequivocamente, face à teoria, numa

    relação de exter ior idade, remetendo-nos para o domínio da retó-

    rica. Exemplo dos mais evidentes desta rendição do discurso

    à retórica é a razão apresentada em apoio da tese de que oco-

    nhecimento da uti lidade da sociedade, em suas origens, não tem

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     56 CAPo VI - AS DUAS RETÓRICAS

    como sujeito a pura reflexão: o primitivismo dos sujeitos concre-

    tos que são os personagens da hipótese humeana.

     

    Se o argumento procura persuadir, não é propriamente face

    ao reconhecimento da impossibilidade de convencer. Impõe-se li-

    mitar o âmbito da afirmação de Bento Prado: a retórica não é,

    aqui, uma retórica desesperada .

    2

    A tese em questão possui, na

    teoria, os instrumentos capazes de fundá-Ia, a possibilidade de

    vencer sem recurso retórica não se encontra fora do horizonte

    teórico do texto. A utilidade da sociedade é um

    fato,

    um fenôme-

    no, e todo conhecimento de fenômenos deriva do hábito, e não

    do puro exercício da razão .

    O

    conhecimento da utilidade da socie-

    dade não pode, portanto, derivar da reflexão, seja qual for o grau

    de c ivil ização do sujei to desse conhecimento. 3 O enunciado apre-

    sentado como razão daquela tese revela-se, assim, despido de vali-

    dade teórica. Na perspectiva da teoria, o caso

    particular

    do selva-

    gem é irrelevante, dado o valor de prova do enunciado

    geral

    (refe-

    rente a

    todo

    sujeito humano) que o abrange também, mas que dele

    transborda. A função do enunciado presente no texto real é

    denunciada pelo confronto com o discurso ideal , com o enun-

    ciado

    possível

    naquela articulação, e que, se sua presença substi-

    tuísse a da retórica, r estituir ia ao texto sua plena teo ricidade.

    O argumento é semelhante ao utilizado, no ensaio

    Do Con-

    trato Original,

    para desqualificar a tese

    whig

    da realidade de um

    contrato primitivo.

    4

    Mas este último enunciado tem sua teorici-

    dade comprovada por sua situação no interior do sistema. A

    hipótese de um pacto expresso e formal não é excluída por qual-

    quer princípio da natureza humana, mas precisamente pelo tipo

    de sujeito, bárbaro e inculto, do qual as teorias contratualistas

    esquecem tratar-se. A retórica, portanto, do primeiro caso, não se

    define pelo

    tipo

    de enunciado presente no texto, ou sequer pela

    particularidade

    desse enunciado. A retórica não é definida em

    geral, mas num

    contexto.

    f:

    a diferença entre dois contextos ar-

      Cf. acima, I, p. 44-45 . Outro exemplo seme lhan te: ibid., p. 45-46.

    2  Toute rhétorique, pourrait-on dire (dans Ia mesure ou elle se constitue

    à partir de Ia résistance de son auditoire et Ia certitude que l'assentiment ne

    peut pas être arraché) est déjà une rhétorique désespérée . PRADO Bento,

     L ecture de Rousseau , p. 63.

    8

    Cf. acima,

    I,

    p. 45.

    4  No compact o r agreement , it is ev iden t, was expressl y formed for gene ra l

    submission; an idea far beyond the comprehension of savages.  Of the

    Original Contract p. 225-26. Compare-se com o texto do Tratado:   ... it

    is impossib le, in thei r wil d uncul ti va ted s tat e, that by study and reflection

    alone, they should ever be able to attain this knowledge , THN,

    IH,

    ii,

    2, p. 486.

     57

    AS DUAS R ETÓRICAS

    gmnentativos (além da referência geral ao contexto mais amplo,

    que

    é

    a p,óp,ia teo,ia) que gera a ,etodcidade num caso, e pre-

    se'  a teodcidade no oul

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    CAPo VI - AS DUAS RETÓRICAS

    Pode aproximar-se destes exemplos e considerar-se como per-

    tencente a um primeiro tipo de retórica, que afeta a superfície do

    discurso sem todavia chegar a produzir teses que venham rivalizar

    com as teses teóricas, o caso do aparente privilégio da guerra,

    como instância a que se tem de recorrer para explicar a passagem

    da sociedade natural à sociedade pol ítica, ou o da intrincada astú-

    cia discursiva que permite a uma lei tura superficia l ver no

    Trata-

    do uma aceitação das teses contratualistas. 7

    Não se trata, aí, de razões que procuram impor as teses da

    teor ia usando como instrumento a pura persuasão, mas de efeitos

    retóricos, de ênfase, disposiüa ou conotação, que se sobrepõem

    ao 8iscurso'  próprio ou expositivo que se l imita a traduzir , sem

    retoques, a teoria. Não é fácil compreender a presença desta re-

    tórica no discurso, No primeiro dos exemplos aqui escolhidos , a

    maior ênfase dada ao papel da guerra - quando a metáfora dos

    acampamentos poderia mais rigorosamente ser substituída por esta

    outra:

     a acumulação da riqueza

    é a verdadeira mãe das cidades

    - presta-se, talvez, a uma multiplicidade de explicações. Ou a

    preferência retórica pela metáfora mais feliz (mais do que a que

    arrisquei, pois encerra o paralelismo acampamento-cidade), com

    a conseqüente acentuação da vivacidade do texto, ou a crença

    numa maior receptiv idade do público para o tema da guerra , con-

    siderado mais sugestivo. Neste caso, a incerteza da questão parece

    aconselhar ao intérprete, como solução mais prudente , o silêncio.

    Quanto ao labirin to discurs ivo que dificul ta uma lei tura ime-

    diata da posição humeana sobre a questão do contrato político,

    um elemento com interesse é seu completo desaparecimento no

    texto assumido que lhe corresponde, o do ensaio Do Contrato

    Original. Como vimos acima, nurr; contexto diferente, este ensaio

    recusa sem rodeios a possibilidade de um pacto explícito como

    fundamento dos primeiros governos. 8 Dessa noção, é retido ape-

    nas o que sabemos ser concorde COma teoria humeana: o consen-

    timento do corpo social é condição necessária da possibilidade das

    instituições políticas primitivas.

    9

     Quando lembramos quão apro-

    ximadamente iguais são os homens em força física, e mesmo em

    faculdades e poderes mentais, antes de cultivados pela educação,

    temos necessariamente que conceder que apenas seu próprio con-

    sentimento pOderia, inicialmente, associá-Ios e sujeitá-Ios a qual

    quer autoridade. O contrato só é aceite como o ato de con-

    7

    Cf

    acima, IV, p . 119-31.

    8 Cf

    acima, p. 156 e nota 4.

    9 Cf. acima, IV, p. 107-08, 112-13 e 116-17.

    AS DUAS RETÓRICAS

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    sentimento dos membros do grupo social primitivo, que tendo

    em vista a paz e a ordem abandonaram sua liberdade nativa e

    receberam leis de seu igual e companheiro , sob condições tão

    simples e evidentes que cer tamente ser ia considerado supérf luo

    exprimi-Ias - isto é, fazer uma promessa explícita e formal. O

    aspecto retór ico, no ensaio, se l imita a este enunciado: Se é isto,

    então, que se entende por contrato original, é impossível negar

    que todo governo assenta inicialmente num contrato . 10 Não

    se trata, seja para qualquer teórico contratualista, seja para o

    próprio Hume, de um verdadeiro pacto polí tico. O enunciado,

    embora irônico, tem ainda como única função embotar o gume

    afiado do assalto ao contrato .

    Sobre as razões desta considerável diferença entre a retór ica

    da obra mais tardia e a que invadia o texto juvenil do Tratado,

    sendo a primeira de molde a não deixar dúvidas sobre o antago-

    nismo do autor face às teorias do contrato, e a segunda uma teia

    suficientemente complexa para i ludir diversos comentadores (e

    provavelmente. boa parte do público contemporâneo), parece

    também impossível elaborar uma resposta rigorosa.

    É

    certa, ape-

    nas, em ambos os casos, a posição residual desses enunciados em

    relação à teor ia, como é certa também a diferença dessa função nos

    dois textos. A hipótese mais verossímil parece ser a de uma

    intenção del iberada de evi tar um ataque demasiado claro contra

    os par tidários do contrato , notadamente os le itores lockeanos .

    Sabemos que no tempo de Hume a teoria do Segundo Tratado

    era de longe a que maior aceitação encontrava entre o público,

    acei tação que ul trapassava de longe o círculo dos lei tores whigs

    (o par tido no poder, herdeiro, ainda, da gloriosa revolução de

    1688).

    II

    Para um autor tão intensamente preocupado, sobretudo

    na época da publicação do Tratado, com o sucesso de suas obras, 12

    e que mesmo mais tarde se refere ao público como uma amante

    que é necessário cortejar,

    13

    nada mais natural do que evitar um

     excesso de clareza muito provavelmente capaz de comprometer

    esse sucesso. Nada mais natural, também, que vários anos mais

    tarde, menos inseguro quanto a esse êxito,

    14

    essa preocupação se

    tivesse. atenuado, embora sem de todo desaparecer.

    10 O] lhe Original Contract,

    p

    224-25.

    II

    Cf.

    WILLIAMS,

    Basil, The Whig Supremacy, p. 8.

    12 Cf. MOSSNER, E. C., The Liie of David Hume, p. 116-17 e 139.

    13  The publi c i s the mos t capr ic ious mist ress we can court . The Letters of

    David

    Hume V.

    I,

    p.

    222.

    14

    MOSSNER, E.

    C

    op. cit., p. 219-20.

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     6

    CAPo VI - AS DUAS RETÓRICAS

    A presença da retórica no discurso não se limita, porém, a

    estes casos relativamente inocentes . Em outros casos, não se

    trata mais de razões perfeitamente explicitadas no texto permitin-

    do uma decifração mais ou menos imediata de sua função na

    teoria, em desnível com ela, ou de efeitos que dificultam uma

    leitura imediatamente inequívoca, mas de outros tipos de ruptura

    na teia do discurso. Por exemplo, o enunciado sobre a passagem

    da monarquia absoluta a outras formas de governo, em THN,  U

    ii, 8. Ou a forma de introdução do conceito de propriedade pri-

    vada, em THN, lIl i i, 2.

    No primeiro caso, a teoria lança uma tese relativa à origem

    histórica das instituições políticas. Dada a sociedade primitiva

    regida apenas por instituições jurídicas não pol íticas, e dadas

    certas características fundamentais do sujeito, algumas explícitas

    (a preferência pelo interesse próximo, função da imaginação) e

    outras implícitas (o princípio de prazer _ interesse _, função

    da paixão, a função do hábito e da experiência na aquisição do

    conhecimento - a natureza do entendimento), e dada também uma

    hipótese relativa à situação econômica do grupo social (um meio

    de escassez), a teoria estabeleceu uma tese quanto

    à

    origem do

    governo.

    Dado o sujeito, e dada a escassez, justifica-se a hipótese de

    conflito interno generalizado, apenas no caso de uma multiplica-

    ção dos objetos do desejo (bens materiais). Esta mUltiplicação pode

    ser o produto do comércio, ou do progresso técnico, ou da pilha-

    gem de guerra. Mas o conhecimento só pode vir do hábito e da

    experiência repetida. Esta razão, junta à provável anterioridade

    histórica da última dessas três causas, justifica a tese da origem

    militar dos governos primitivos. Só a experiência repetida das

    vantagens da repartição pacífica dos frutos da pilhagem, pelo chefe

    militar, pode oferecer as impressões a partir das quais surge no

    sujeito a idéia das vantagens da autoridade polí tica centralizada,

    e a conseqüente instituição do governo permanente.

    15

    Neste ponto, o texto apresenta dois enunciados, ligados como

    se fossem um só e como se ambos fossem, a igual título, conse-

    qüências possíveis da teoria. Podemos daqui tirar uma razão

    plausível, entre outras, por que todos os governos são inicialmente

    monárquicos, sem qualquer mistura ou variedade; e por que as

    repúblicas derivam apenas dos abusos da monarquia e do poder

    15 O esquema da argumentação repete aproximadamente o utilizado na

    análise da origem da sociedade. Cf. acima, I, p. 43-47.

    AS DUAS RETÓRICAS  6

    despótico . 1

    o

    A linguagem utilizada - o estilo das frases que

    veiculam os enunciados - indica desde Jogo que não se trata

    de uma afirmação categórica da teoria. Trata-se apenas de uma

    razão plausível (e não certa) e de uma razão entre outras, sem

    que seja dita sua importância em relação a essas outras; além disso,

    a frase é introduzida por um sentido fraco de poder ( we may ,

    em vez de we can ), numa formulação relativamente hesitante.

    De qualquer modo, trata-se de um enunciado possível, coerente

    com a teoria - é o que o texto claramente indica. Efetivamente,

    suposta a aceitação da argumentação anterior, e do reforço da ar-

    gumentação apresentado logo em seguida, 17 o primeiro enunciado

    é válido nos termos em que é proposto: se a primeira autoridade

    política foi instituída segundo o modelo da autoridade militar

    (que implica a concentração última do poder de decisão nas mãos

    de um só indivíduo), é plausível supor que os primeiros governos

    tenham sido o equivalente da monarquia absoluta. O primeiro

    enunciado ocupa, em relação à teoria, o lugar que o texto, e o

    próprio detalhe da linguagem neste utilizada, lhe aponta: não uma

     conseqüência necessária  da argumentação precedente, das teses

    estabelecidas pela teoria (seria coerente com esta apontar a pos-

    sível existência de out ras causas que determinassem uma conse-

    qüência diferente), mas uma hipótese plausível, uma tentativa de

    explicação, que apresenta um certo grau de verossimilhança para

    o leitor que tenha aceitado os argumentos precedentes.

    O segundo enunciado tem um estatuto muito diverso. ~

    apresentado como dotado da mesma validade que o primeiro, sem

    que na realidade a possua. Afirmar que a

    única

    causa do surgi-

    mento de governos diferentes da monarquia absoluta são os  abu-

    sos desta, isto é, o despotismo dos soberanos, é algo que não

    encontra apoio no argumento precedente, nem em qualquer tese

    da teoria - um enunciado residual, irredutível ao discurso teórico.

    Trata-se, na realidade, da irrupção no discurso da instância re-

    tórica.

    O elemento retórica

    é,

    primeiro, bem evidente num outro

    aspecto da linguagem utili zada. O primeiro enunciado evitava a

    expressão monarquia absoluta , substituindo esta definição direta

    por uma perífrase:  governos monárquicos, sem qualquer mistura

    ou variedade . 18 Perífrase do tipo chamado eufemístico , que

    16 THN, IlI, ii, 8, p. 540.

    17  

    id., p. 540-41.

    18  La Périphrase consiste à exprimer d'une maniêre détournée, étendue et

    ordinairement fastueuse, une pensée qui pourrait être rendue d'une maniêre

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     62 CAPo VI - AS DUAS RETÓRICAS

    tem entre suas finalidades enfraquecer o pensamento do mal ,

    como por exemplo quando se diz de um indivíduo que morreu

    que ele  não está mais entre nós .

     

    No caso, evitar a expressão

    direta tem como função, ao mesmo tempo, evitar as conotações

    negativas do  absolutismo , e evitar uma inteira clareza e  lumi-

    nosidade  na definição do objeto. Locke, por exemplo, ao conde-

    nar explicitamente a monarquia absoluta, utiliza a expressão di-

    reta.

    20

    Ao mesmo tempo, a frase do primeiro enunciado opunha

    claramente a monarquia absoluta, não só à forma republicana

    de governo, mas também

    à

    monarquia constitucional, que nos

    textos de Hume geralmente recebe a designação de  governo

    misto  ou  forma mista de governo .

    21

    No entanto, o segundo

    enunciado só refere explicitamente as repúblicas. A função desta

    omissão retórica é evitar uma afirmação (demasiado?) direta

    daquilo que uma leitura apenas um pouco atenta facilmente en-

    contra, isto é, que a monarquia constitucional _ o governo esta-

    belecido na Inglaterra do tempo, cujo princípio mesmo o partido

    conservador evitava pôr em questão, e não apenas repúblicas como

    a de Veneza - teve origem meramente nos erros dos monarcas

    absolutos que outrora governavam o país, no exercício despótico

    do poder. O que equivale a dizer que a monarquia constitucional

    poderia, sem qualquer desvantagem, ser substituída pela monarquia

    absoluta, forma mais natural  de governo, desde que os gover-

    nantes evitassem transformar_se em déspotas.

    O disfarce retórico não impede, todavia, que fique expressa

    no texto essa opinião política. E a forma da introdução dessa

    opinião é ela própria retórica, isto é, consiste num   design da lin

    guagem  tendente a fazer aceitar como conseqüência de uma

    argumentação coerente uma tese que na realidade não part icipa

    directe et en même temps plus s imple e t plus courte. FONTANIER,Pierre, Les

    Figures du Discours,

    p.

    361.

     

    Entre as perífrases do tipo eufemÍstico contam-se aquelas

     w hich are

    meant to weaken the thought 01 evil (the absit omen motif, as in the phrase

     passing away to signily death) . PREMINGER,Alex, (ed.) Princeton Ency-

    clopaedia 01 Poetry and Poetics, verbete periphrasis.

    20 ...

    absolute monarchy, which by some men is counted for the only

    government in the wortd, is indeed inconsistent with civil society, and so can

    be no form of government at ali . Second Treatise, VII, § 90, p. 369.

    21 Cf. p. ex. os ensaios  

    the Independency

     

    Parliament,

    p. 40, e-

     

    the Liberty

     

    the Press,

    p. 8 e 10. Também é usada a expressão mo-

    narquia limitada , como no primeiro dos ensaios agora r ef eridos, p. 44.

    Quanto à expressão  monarquia absoluta , em outros COntextos é usada por

    Hume, como no ensaio Wether the British Government Inclines more to

    Absolute Monarchy, or to a Republ ic , p. 44 e 45.

    AS DUAS RETÓRICAS

    dessa coerência. Nada na teoria permite sustentar que a monarquia

    absoluta seria a forma universal de governo, mesmo nos tempos

    modernos, se jamais os soberanos se houvessem tornado despóti-

    cos. Que o despotismo seja

    uma

    das causas do desaparecimento

    dessa forma de governo é opinião comum entre os historiadores.

    Que seja a única, é um enunciado cujo estatuto teórico só poderia

    ser afirmado se o texto apresentasse uma argumentação a ele con-

    ducente. Ora ocorre apenas que o segundo enunciado é apresen-

    tado junto com o primeiro, expediente retórico que tende a faci-

    litar sua aceitação, ao mesmo tempo que o primeiro. Entre ambos

    há uma fenda - constata-se a presença de uma ruptura no tecido

    do discurso político, ruptura que separa a estrutura teórica (atra-

    vés de um de seus setores) de uma entidade discursiva residual.

    A forma dessa ruptura é a intervenção, no discurso, de elementos

    onde se verifica, ao mesmo tempo que a ausência das características

    de validade que unificavam a argumentação teórica, a presença

    de uma função persuasiva, exercida por outros meios, estes pura-

    mente retóricos.

    Quanto ao segundo caso, vimos que a teoria polí tica de Hume

    não oferece uma justificação da instituição da propriedade priva-

    da. 22 No entanto, encontramos na superfície do texto os ele-

    mentos dessa justificação. De que maneira? Tudo se passa como

    se o autor, ao mesmo-tempo que não dispunha de uma teoria capaz

    de justificá-Ia, tivesse apesar de tudo insistido em persuadir seus

    leitores da necessidade dessa instituição. A incapacidade da teoria

    para tal fim só podia, dado isso, ter como resultado sua própria

    ruptura. Não uma ruptura total, mas apenas num ponto preciso

    - e estratégico.

    A teoria apresentou um conjunto de teses e razões relativas

    à

    origem da sociedade. Esta era um fato existente, cuja origem a

    teoria procurou explicar; um outro fato existente é, no seio da

    sociedade, uma instituição que a teoria também vai procurar ex-

    plicar, designada no texto pelo termo genérico de

    justiça.

    A necessidade de explicar essa instituição deriva do fato de

    ela não poder ser simplesmente deduzida da argumentação ante-

    rior: dada a sociedade, nos termos da teoria, o surgimento da

    justiça não é uma decorrência natural da existência da sociedade,

    nem da natureza do sujeito, nem das circunstâncias em que este

    último se encontra. Há apenas, quer do lado do sujeito, quer do

    lado dessas circunstâncias, elementos que tornam difícil a auto-

    nCf. acima, lI p. 52-55 e m p. 79-95.

     6

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     64 CAPo VI - AS DUAS RETÓRICAS

    preservação da instituição social. São estes motivos que a teoria

    pode autorizar-se a invocar como motivos da justiça.

    ~3

    Do lado do sujeito, a generosidade limitada  (egoísmo) é

    um obstáculo

    à

    sociabilidade: esse princípio passional é mais de

    molde a criar situações de conflito do que a favorecer a coopera-

    ção colet iva que instaura o estado de sociedade. 24 Do lado das

    circunstâncias exteriores, a natureza dos objetos do desejo, e sua

    escassez. São instáveis e sua quantidade não é suficiente para sa-

    tisfazer todos os desejos de todos os membros do grupo social.

    Esses objetos, os bens materiais, além de escassos são por sua

    própria natureza passíveis de ser arrebatados a quem, num dado

    momento, os está fruindo. São eles, portanto, dada sua natureza,

    sua quantidade, e a natureza do sujeito, a principal fonte de pos-

    síveis confl itos entre os membros do grupo, pondo em perigo a

    própria existência da sociedade. 25

    Assim, dada uma certa concepção do sujeito, e dada uma hi-

    pótese relativa ao ambiente que rodeia esse sujeito, a teoria tem

    condições de estabelecer que a sociedade só pode subsistir com a

    condição de serem  estabilizados  os bens materiais. Isto é: de

    estes serem colocados numa situação capaz de evitar certos con-

    flitos que tornam impossível uma convivência social permanente

    e pacífica. Mas a validade teórica se desvanece no momento em

    que o discurso político opera uma passagem (quase insensível)

    entre duas noções distintas, a de bens e a de posses.

    O que os termos da teoria, e a estrutura da argumentação,

    permitem formular é um enunciado que efetivamente é formulado,

    mas sob uma forma restrita, que vai ter importantes conseqüências

    quanto à aparência do argumento subseqüente. Dados certos fun-

    damentos teóricos, a tese da necessidade de estabilizar os bens

    segue-se naturalmente, sem ferir a validade e a coerência da teoria.

    Mas apenas em termos de bens, de uma maneira geral, e não re-

    duzindo esta noção ao âmbito mais limitado das

    posses,

    que

    constituem apenas um caso particular dos bens. Além do evidente

    absurdo de sustentar que só os bens que se encontram na posse de

    algum indivíduo em particular podem ser objetos de desejo, que só

    eles são capazes de pôr em movimento aquele mecanismo do su-

    23 Cf. acima, lI, p. 49-52.

    24 ...

    while each person loves himself better than any other single per-

    son, and in his love to others bears the zreatest affection to his relations

    and acquaintance. this must necessarily

    produce

    an opposition of passions,

    and a consequent opposition of actions; which cannot but be dangerous to

    the new-established union , THN, Il I, ii  2, p. 487.

    25 Cf. ibid., p. 487-88 e acima, II, p. 49 e 62-65.

     6 5

    AS DUAS RETÓRiCAS

    jeito que, a par tir dos princípios da paixão, condu, a uma ação

    visando, através da f ru ição do objeto, a >atisfação das tendências

    mais profundas do sujeito (princípio de prazer); além disso, a

    própria teoria, em outros setores, não estabelece qualquer confusão

    entre posses e bens. Num outro contexto, ao definir uma das regras

    da propriedade, a da ocupação,

    : u

    e a própria noção de posse, que

    em última análise a teoria vai apresentar como produto da ima-

    ginaçãO, a teoria afirma a dificuldade de definir esta noção valen-

    do-se do seguinte exemplo: o caçador que perseguiu uma lebre até

    o limite da exaustão considera injusto que outro se lhe adiante e

    se aposse do animal; mas alguém que se prepare para colher uma

    maçã não considera injusto que outro se lhe adiante e se aposse

    do fruto; a diferença deriva apenas do efeito diverso, sobre a ima-

    ginação, da idéia do trabalho que foi necessário para reduzir a

    lebre à imobilidade, idéia que se encontra ausente no caso da maçã,

    a qual está imóvel por sua própria natureza.: 7 O conflito, por-

    tanto, não provém dos objetos desejados devido ao fato de serem

    posses, mas do simples fato de serem desejados. Para a própria

    teoria, não são as posses enquanto tais, mas os bens materiais em

    geral, que podem tornar-se causas de um conflito capaz de pôr em

    perigo o estado de sociedade.

    Mas a colocação do problema da  instabilidade  dos objetos

    do desejo é feita em termos tais que desde logo apontam para sua

    identificação com as posses. A argumentação é construída sobre

    uma abertura  lockeana , que toma como ponto de partida as

     três espécies de bens que possuímos , o espírito, o carpa e as

    posses adquiridas através do trabalho e da boa sorte .

    28

    O ele-

    mento lockeano é a identificação da posse de si mesma (da própria

     pessoa ) com a posse dos bens naturais: todo homem tem uma

    'propriedade' em sua própr ia 'pessoa'''.

    29  b

    no interior deste

    quadro que fica caracterizada a instabilidade dos bens materiais,

    em termoS de instabi lidade de sua posse, em contraste com a es-

    tabilidade da posse, por cada um, de sua própria pessoa (a fruição

    do próprio espírito é inteiramente segura, e o carpa, embora sua

     exterioridade , sua materialidade, pudesse permitir que outroS

    no-Ia arrebatassem, não apresenta para os outroS qualquer vanta-

    gem). Só os bens materiais ao mesmo tempo  se encontram

    expostos à violência dos outros e podem ser transferidos sem

    26 Cf. acima, IlI p. 83-87.

    27

    THN, ibid. 3, p. 506, nota.

    28 lbid., 2, p. 487.

    29 Second Trealise, V, § 26, p. 328.

  • 8/18/2019 As Duas Retóricas David Hume

    7/12

     66 CAPo VI - AS DUAS RETÓRICAS

    sofrer qualquer perda ou alteração . Ao que vem acrescentar-se

    sua escassez. 30

    O texto apresenta em seguida um argumento em dois movi-

    mentos; o primeiro para mostrar que a solução desses inconve-

    nientes, derivados da natureza dos bens materiais, nunca poderia

    ter sido um produto espontâneo da natureza humana;

    31

    e o segun-

    do para concluir, a partir do primeiro, que essa solução, não sendo

     natural , só pode ser  artificial , no sentido de ser um produto

    da reflexão ( o julgamento e o entendimento ) e não uma con-

    seqüência espontânea e direta das afeções  (paixões), isto é, das

    camadas mais profundas e fundamentais, inconscientes , da na-

    tureza do sujeito. Os membros do grupo, que já aprenderam pela

    experiência as vantagens da cooperação social, aprendem da

    mesma maneira que o maior perigo para a união social vem da

    natureza dos bens materiais. A reflexão sobre esse fato, dado o

    interesse que todos têm na preservação da sociedade, e sendo o in-

    teresse o motivo fundamental das ações de todos, só pode ter como

    conseqüência que os membros do grupo procurem mudar a  na-

    tureza  (ou a situação) desses bens, tornando-os estáveis , isto

    é, abolindo sua  fácil transição de uma pessoa para outra , que

    é a causa do conflito. 32 Argumento válido, como vimos, enquanto

    referente aos bens materiais em geral, quer alguém os tenha em sua

    posse quer não.

    Ora, ao especif icar em que consiste a solução (a estabiliza-

    ção), o texto remete para o ponto de partida visto acima, discor-

    rendo sobre esse  remédio apenas dentro do quadro estreito dos

    bens pessoais, isto é, das posses. Para imediatamente definir como

    solução colocar os bens materiais no mesmo pé que as vantagens

    fixas e constantes do espírito e do corpo . O que se  justifica

    porque esses bens estão já definidos como posses, no mesmo plano

    que o das  posses constituídas pela própria pessoa humana. O

    que parece justificar a  conclusão lógica , imediatamente seguin-

    te :

     isto só pode ser feito de uma maneira: mediante uma conven-

    ção entre todos os membros da sociedade, que confira estabilidade

    à posse desses bens externos, garantindo a cada um o gozo pacífico

    do que possa adquirir pela sorte ou pelo trabalho . 33 Que deva

    tratar-se de uma convenção, não pode ser posto em dúvida. 34 Mas

    30 THN  ibid  p. 487-88.

    31 Ibid p  488-89.

    32 lbid. 

    p.

    489.

    33

    lbid.

    34 Cf, acima,

    lI,

    p. 56-59.

    AS DUAS RETÓRICAS  67

    a consagração da propriedade privada - e de uma de suas formas

    possíveis, a que assenta na apropriação pessoal - da última frase

    do enunciado, 35 se é preparada por dois passos anteriores do ar-

    gumento, nem por isso pode ser considerada independente de um

    ,certo elemento de ordem retórica, que foi precisamente a forma

    dada ao primeiro desses passos. Há uma certa coerência nas

    passagens que ligam os três enunciados: partindo dos bens en-

    quanto posses, e equiparados aos  bens  da pessoa, o discurso

    pode passar coerentemente a tratar a estabilização como uma equi-

    paração ao espírito e ao corpo, passando daí ao enunciado final ,

    que define a solução da  instabilidade social - a única solução

    possível - como a estabilização da posse privada dos bens, con-

    sagrada pela opinião coletiva do grupo social. Sem dúvida é pos-

    sível atribuir validade à art iculação entre estes enunciados. Mas

    vimos que ela não se verifica na articulação do primeiro desses

    enunciados com os termos da argumentação e com o conjunto da

    teoria. A natureza retórica dessa abertura estava na ausência desta

    articulação, e vemo-Ia agora na função por ela exercida no dis-

    curso: levar o leitor à aceitação de uma conclusão à qual não é

    possível, rigorosamente, dizer que a teoria  conduza . A teoria

    conduz a algo ligeiramente diferente, à necessidade de estabilizar

    os bens materiais em geral, quer por meio da instituição da pro-

    priedade privada, baseada na apropriação pessoal, quer por qual-

    quer outro meio. O que permite uma inilexão do discurso no sen-

    t ido dessa solução entre muitas é apenas o enunciado retórico (ou

    grupo de enunciados retóricos) que identifica, ilegitimamente, bens

    e posses.

    Essa identif icação é feita sem que para ela seja apresentada

    qualquer espécie de razão. A retórica não consiste, aqui, na pre-

    sença de qualquer t ipo de argumentação explíci ta; é retórica, pre-

    cisamente, a ausência de argumentação, a presença, no texto, de

    uma passagem dos bens às posses que é teoricamente injustificável,

    através do uso de uma linguagem que tende a escamotear a dife-

    rença entre as duas noções.

    Curiosamente, a ausência de argumentação é substituída,

    nesta passagem, por um uso muito especial, implícito, de uma figura

    de retórica: a sinédoque. A relação entre bens e posses é uma re-

    lação' entre todo e parte. As posses são, de entre os objetos de

    desejo, apenas uma parte, aqueles que se encontram em poder de

    algum indivíduo. E a noção de posse é, explicitamente, considera-

    85 E da definição da estabil idade dos

    bens

    como estabil idade da

    posse

    dos

    bens.

  • 8/18/2019 As Duas Retóricas David Hume

    8/12

      8 CAP, VJ - AS DUAS RETÓRICAS

    da pela teoria de Hume como uma noção cujos precisos limites

    é impossível traçar (que em última análise depende da imagina-

    ção,

    30

     Em muitos casos é impossível determinar onde acaba e

    começa a posse ,

    ;j 

    Não só a posse não se identifica com os bens,

    como em muitos casos, comurnems considerados de posse, a teoria

    lança dúvidas sobre esse estatuto, De qualquer modo,  onde acaba

    e começa a posse  começa e acaba o domínio dos bens materiais

    que

    não

    são posses, domínio que, dado o primit ivismo da situação

    descri ta pela teoria, só pode ser concebido como consideravelmente

    vasto, Dados estes dois

    elementos

    a evidência, no interior da

    teoria, da ausência de identidade entre bens e posses é particular-

    mente forte, As posses não são mais que uma parte (e além do

    mais uma pequena parte) do conjunto dos bens materiais, mesmo

    considerando apenas os que são abrangidos pelo círculo imediato

    da ação possível do hipotético grupo social. Ora a teoria eviden-

    temente exclui a sinédoque, e esta passagem de um enunciado

    teórico referente aos bens para um enunciado expresso em termos

    de posses só pode ser considerada um exemplo de discurso retórico.

    Essa ruptura do discurso teórico levanta novos problemas,

    Se a teoria se deixava ler na tranqüilidade de seu encadeamento e

    de sua si stematic idade, a mesma le itura não é mais possível perante

    a violência das irrupções retóricas, Trata-se de procurar compre-

    ender a significação dessas rupturas, e a própria natureza destas

    vem proibir a permanência no espaço de uma leitura imanenre.

    O olhar do leitor, que antes reconstituía o encadeamento coerente,

    o sistema dos enunciados validamente ordenados, limitando-se a

    seguir e a verificar as articulações desse sistema, é obrigado agora

    a voltar-se para Um espaço exterior ao discurso, Não quer isto

    dizer que a natureza da teoria vedasse, por si só, toda possibili-

    dade de uma interpretação exterior , Mesmo a posição goldsch-

    midteana não propõe essa impossibilidade, limitando-se a estabe-

    lecer a relevância regional de métodos diversos, Mas a necessidade

    do recurso a um domínio transcendente ao discurso não era uma

    exigência ditada

    pelo próprio discurso,

    E a partir do momento

    em que este apresenta a ruptura de sua validade, do fio condutor

    que ele mesmo oferecia, é ele mesmo, nesse seu desnível, que impõe

    à leitura um desnivelamento e uma mudança de direção,

    Nos exemplos do primeiro tipo de retórica, a significação des-

    ses fenômenos de ruptura parece esgotar-se num nível puramente

    psicológico

    da persuasão, no simples diagnóstico da função suges-

    36 Cf, acima, lU, p. 85-86,

    37 THN, IlI, ii, 3, p, 506,

    AS DUAS RETÓRICAS

     69

    tiva de um certo número de enunciados, O que corresponde à con-

    cepção restrita da retórica, proposta por BelavaJ, como  um con-

    junto de processos psicológicos próprios para persuadir ,

      s

    Esses

    enunciados não parecem ter outras implicações: argumenta r com

    base num exemplo mais particular e mais imediatamente evidente,

    como era o caso nos exemplos vistos em primeiro lugar, não parece

    significar mais do que a escolha de uma razão capaz de obter mais

    rapidamente a adesão à tese apresentada - embora a teoria dis-

    ponha de razões muito mais  adequadas , de seu próprio ponto

    de vista, e não do da persuasão imediata,

    Quando a retórica afeta a identidade das próprias teses, mesmo

    que não se verifique a presença de uma argumentação explícita,

    a signi ficação dos enunciados envolvidos não pode ser encont rada

    apenas ao nível da persuasão imediata, Há a mesma função per-

    suasiva do discurso, mas neste caso o que o leitor é levado a aceitar

    não

    é

    um enunciado anterior (uma tese teórica), mas o próprio

    enunciado que é o lugar da ruptura, ou outro enunciado ou enun-

    ciados posteriores. O fenômeno é de natureza diferente, e suas

    impl icações também o são.

    À

    pergunta sobre a significação de sua

    presença no discurso não é mais possível responder com a referên-

    cia a uma psicologia da persuasão, ou a qualquer outro aspecto

    da retórica.

    38

    BELAVAL,

    Yvon,  Libres Remarques sur L'Argumentation , p, 344,

  • 8/18/2019 As Duas Retóricas David Hume

    9/12

    CAPÍTULO VII

    PERSUASÃO E IDEOLOGIA

    Corpo estranho, no organismo saudável de um sistema

    coerente, articulado segundo regras uniformes, o enunciado retó-

    rica se apresenta como

    sintoma.

    Não quero insist ir na metáfora da

    retórica como doença do discurso - é suficiente estabelecer que

    certos enunciados só podem ser lidos como desvio em relação

    à

    norma dominante do discurso, que, portanto, colocam problemas

    de interpretação, não suscitados pela lei tura dos enunciados con-

    formes a essa norma. O enunciado retórico é o lugar de uma de-

    sarticulação, de uma desestruturação, da perda de certas caracte-

    rísticas de sistematicidade. Interrogar-se sobre a significação dessa

    perda é o mesmo que perguntar de que esse enunciado é sintoma.

    Quando, por exemplo, uma tese se justifica por certas razões teó-

    ricas, e um -texto procura sustentá-Ia em outras razões, mais suges-

    tivas e simples, casos particulares das primeiras, encontramos

    nessas últimas o sintoma de uma função persuasiva, claramente

    distinta da articulação teórica. Mas quando a retórica se torna

    produtora de teses torna-se necessária uma outra leitura, pois é

    manifestamente insuficiente a referência à instância persuasiva.

    Surge nova pergunta: de que, por sua vez, esses elementos retóricos

    são sintoma?

    Esses elementos apresentam-se como um resíduo, cuja signi-

    ficação não apenas é impossível encontrar ao nível da teoria, mas

    além disso se mostra incapaz de ser encontrada no espaço retórica

    que é o lugar de Sua emergência. Para dar conta da presença

    desses enunciados no discurso, o nível teórico é inadequado, e o

    nível retórico é insuficiente. Ao tentar compreender essa significa-

    ção, verifica-se a ausência do tipo de art iculação que nos permitia

    falar de uma argumentação teórica, e ao mesmo tempo a insu-

    ficiência da função persuasiva que caracteriza o discurso retórico.

    Justifica-se, assim, que a análise procure encontrar uma compre-

    ensão mais profunda e completa do surgimento desse tipo de enun-

    ciado. Uma tentativa possível consiste em interrogá-Ios quanto a

    sua significação ideológica. Toda uma constelação de eventos dis-

    cursivos, que até aqui se apresenta como caótica, sem ligação

    PERSUASÃO E IDEOLOGIA

     7

    coerente com o sistema, por surgir no seio deste apenas como

    ruptura, mostra-se incapaz de ser unificada mediante a simples re-

    ferência

    à

    instância retórica. Tal solução era possível apenas em

    alguns casos, como as razões cuja função era meramente a de uma

    persuasão colocada a serviço de uma tese teórica. Em alguma me-

    dida, a retórica era, aí, a continuação da teoria por outros meios_ colocada aqui entre parênteses a desarticulação parcial infligida

    ao sistema. Mas quanto aos casos que nenhuma instância aparente-

    mente unifica cabe tentar uma interpretação exterior ao discurso,

    verificando se esses enunciados podem ser pensados como sintoma

    da presença, no discurso, de uma determinada ideologia.

    O que esta tentat iva revela, em primeiro lugar, é a impossibi-

    l idade de identif icar exatamente esse nível do discurso com a ideo-

    logia de qualquer dos grupos que constituíam a sociedade britânica

    na primeira metade do século XVIII. Mas, em segundo lugar, pa-

    rece possível pensar esses enunciados simplesmente em função da

    significação de que cada um deles se reveste, considerado enquanto

    visando as insti tuições existentes à época de sua formulação. Isto

    é, uti lizando um método simples, como o proposto, por exemplo,

    por Gettel l, pensá-Ias como sintoma de um pensamento conserva-

    dor ou radical, conforme possam ser l idos como uma justificação

    ou como uma crítica dessas instituições. A significação ideológica

    de um enunciado, ou de todo um discurso, será encontrada sim-

    plesmente no fato de ela corresponder a uma certa tomada de

    posição em relação a essas insti tuições, ou seja, de ele coincidir ou

    não coincidir com os interesses dos grupos sociais detentores do

    poder, ou que têm vantagem na preservação do regime existente.

     

    Esta tentativa de leitura do discurso retórico como ideologia

    não corresponde a qualquer espécie de a priori. O ponto de par-

    tida não é aqui a convicção de que haja algum elemento, nas

    próprias condições de produção do discurso político, que deter-

    mine necessariamente uma separação entre teoria e ideologia -

    seja a natureza do espírito criador, seja a situação socialmente

    determinada do autor, uma e outra divididas entre um impulso

     desinteressado de descoberta científica e uma situação de classe

    1 GETTELL, Raymond G.,

    Political Science,

    p . 97-98. E sta concepção cons-

    titui, sem dúvida, uma simplificação extrema do problema das ideologias,

    mas necessária num trabalho que não tem como objeto específico esse

    problema em si mesmo. E mesmo estudos que lhe são dedicados adotam

    uma redução semelhante. ... ideologies relate to the arena of social con-

    flict, to the purposes of groups competing for scarce resources. This is a

    slightly arbitrary simplification of the problems, but one necessary to say

    anything at .all . HARRlS, Nigel, Belieis in Society, p. 43.

  • 8/18/2019 As Duas Retóricas David Hume

    10/12

     7

    CAPo VII - PERSUASÃO E IDEOLOGIA

    a que seria impossível escapar inteiramente. O ponto de partida

    é puramente empÍrico: o texto considerado como massa de eventos

    discursivos. E é o próprio discurso que oferece a evidência de

    uma diferenciação de níveis, em primeiro lugar . Assim como, em

    segundo lugar, é ele mesmo que exige, para ser compreendido mais

    completamente, o recurso a uma tentativa de interpretação exterior.

    A tentativa aqui escolhida terá como critério de sua validade a

    possibilidade (a verificar) de encontrar uma significação ideológica

    comum a esses resíduos discursivos, que Um outro tipo de análise

    apresentou como resultado.

    Sobre essa significação, é evidente que nada pode ser decidido

    antecipadamente.   preferível tentar partir dos próprios enuncia-

    dos, procurando, na medida do possível, afastar qualquer precon-

    cepção relativa a sua natureza. Um exemplo da improficuidade de

    uma abordagem armada de tais preconcepções é o de Watkins.

    Seu ponto de partida é uma definição prévia, da qual não é apre-

    sentada qualquer espécie de justificação, do pensamento político

    de Hume em geral como racionalista conservador _ para se

    esforçar então por explicar essa teoria pol ítica como uma su-

    cessão de tentativas para resolver os problemas levantados por

    essa suposta posição inicial. 2 Watkins, naturalmente, não conse-

    gue propor qualquer interpretação aceitável, a não ser, porventura,

    para aqueles de seus lei tores que já estejam antecipadamente per-

    suadidos,

    não

    só de que toda teoria política tem necessariamente

    um  ponto de partida ideológico , mas também de que o rótulo

    proposto corresponde à verdadeira natureza desse ponto de parti-

    da, no caso de Hume. Creio que, pelo contrário, para compreen-

    der a teoria pol ít ica de Hume é indispensável afastar ta is precon-

    cepções. Não é possível encontrar rapidamente a significação

    global de todo um discurso, extraída de um ou outro de seus

    enunciados, por mais fundamental que este pareça. Nem, tampou-

    co, a partir de quaisquer elementos que se possua, ou que se

    julgue possuir, acerca do autor desse discurso, ou de suas inten-

    ções , ou de sua situação . Não há como economizar a paciência

    de uma análise minuciosa , animada de uma antec.ipada resignação

    a renunciar a qualquer interpre tação ideológica , se seu objeto não

    oferecer os elementos capazes de fundá-Ia.

    Além disso, as refer idas preconcepções encerram implicita-

    mente uma outra, que é a da necessária unidade da significação

    ideológica de todo discurso político. Ora nada permite recusar,

    antecipadamente, que um tal discurso apresente uma dual idade,

    2 WATKINS,

    Frederick, Hume: Theory of Potitics, p. vii e ss.

    PERSUASÃO E IDEOLOGIA

     73

    ou mesmo uma pluralidade de significações.   possível um con-

    junto de textos pol íticos de um determinado autor, ou mesmo uma

    única de suas obras , não permitir uma resposta única à interroga-

    ção sobre sua significaçâo ideológica. Essa resposta única não é

    possível quanto à totalidade do discurso político humeano.

    Por um lado, a análise encontra , no nível retór ico onde se ve-

    rifica a produção de teses, uma significação ideológica uniforme:

    a justificação, sob diversos aspectos, da sociedade britânica da

    primeira metade do século XVIII. Ideologia conservadora, que em

    determinados enunciados aparece sob uma forma particularmente

    acentuada, sobretudo nos referentes à monarquia absoluta. Um

    trabalho de Bongie mostra a influência exercida pela obra de Hume

    (especialmente a História da Inglaterra) sobre o pensamento con-

    tra-revolucionário francês dos finais do século XVIII e dos inícios

    do século XIX, influência que durante algum tempo teria sido até

    superior

    à

    do paradigma reconhecido do conservadorismo: o Bur-

    ke das Reflexões sobre a Revolução Francesa.

    3

    As conclusões

    de Bongie, no nível de pesquisa em que se coloca, não parecem po-

    der ser postas em dúvida. Por outro lado, essa influência não parece

    der ivar essencialmente de uma distorsão dos escri tos humeanos

    pelos ideólogos contra-revolucionários: esses escritos efetivamente

    contêm elementos passíveis de ser ut il izados por essa ideologia.

    Este é um aspecto .del iberadamente deixado de lado por Bongie ,

    que se ocupa apenas da influência da obra de Hume, e não de seu

    estudo intrínseco. 4 Tal como em meu trabalho também não me

    .ocupo com as intenções de Hume, procurando apenas mostrar

    que essa ideologia, por vezes ultraconservadora, efetivamente está

    presente em seus textos.

    Por outro lado, não pode ser recusada legitimidade a uma

    leitura do discurso teór ico que nele procure uma significação em

    termos de justificação ou de crítica das instituições vigentes. A

    identif icação desse discurso como sistema articulado e coerente

    de modo algum pode servir de pretexto para concluir por seu total

    alheamento da realidade histórica que o viu nascer, para fundar

    sua absoluta autonomia ou  intemporalidade . Se é necessário

     l BaNGIE,

    Lau rence L., David Hume: Prophet of the Counter-Revolution,

    p. vii-viii.

    4  1 have attempted / ... / to disr egard the question of Hume's 'true' inten-

    tions or the real nature o f his political though t.  Ibid., p. viii. E a pro-

    pósito das interpretações de Hume pelos jesuítas: ... the quest ion aí

    wether Hume really implies ali this, ar wether the Jesuits made a correct

    or distorted inte rpre ta tion of his intentions, is somewhat irrelevant to my

    purpose. 

    Ibid 

    p. 20.

  • 8/18/2019 As Duas Retóricas David Hume

    11/12

     74

    CAPo VII - PERSUASÃO E IDEOLOGIA

    iniciar a análise

    colocando

    entre parênteses para inserção na histó-

    ria, é unicamente devido a imperativos de ordem metodológica.

    Uma vez reconstruído e identificado como sistema articulado, esse

    discurso pode ser interrogado quanto à significação que teria,

    se

    fosse

    (pois não está estabelecido que o seja) uma tomada de posi-

    ção perante

    aquelas

    instituições. Ora o discurso teórico humeano,

    a essa pergunta, oferece diferentes respostas. Num grande número

    de seus enunciados parece impossível a leitura de uma crítica ou

    de uma justificação das instituições - como acontece, creio, em

    praticamente todas as teor ias políticas. Não parece fácil encon-

    trar uma significação ideológica inequívoca num enunciado como,

    por exemplo, o que aponta a famíl ia como o

    núcleo

    primitivo onde

    se origina a sociabilidade, enunciado que se encontra nos textos

    de autores tão diferentes como Hume, Freud e

    Engels 

    nem que se

    possa seriamente sustentar que num

    deles

    possui uma signi-

    ficação conservadora, e noutro uma significação radical, a menos

    que

    tal

    af irmação se apoie numa argumentação irrecusável, o que

    não parece ser possível neste caso. Por outro

    lado 

    há também

    um grande número de enunciados teóricos onde se verifica um

    fato aparentemente paradoxal: Sua significação é a de uma crítica

    e, freqüentemente, de uma crítica especialmente corrosiva, das

    principais instituições da sociedade contemporânea do autor. Es-

    ses enunciados consti tuem dois dos setores mais importantes da

    teoria, e referem-se ao estatuto da propriedade privada e aos pró-

    prios fundamentos do poder político. A significação destes setores

    da teoria é, assim rigorosamente

    oposta

    àquela que predomina nos

    enunciados retóricos.

    A pluralidade de métodos desta análise do discurso político

    humeano se justifica, em suas duas mudanças sucessivas de direção,

    pelos

    novos campos de decifração impostos

    pelo

    discurso aqui

    tomado como objeto. Inicialmente, é o deslisar tranqüilo da arti-

    culação

    do sistema, de um corpo de argumentos dispostos como

    um processo de validação, 5 que governa a leitura. A sedução

    dessa tranqüi lidade faz da le itura uma hermenêutica: o leitor re-

    vive o discurso, percorrendo-o como um caminho de há muito

    conhecido, a despei to de sua radical novidade. 6

    Mas as rupturas do sistema vêm quebrar essa sedução, a her-

    menêutica deixa de ser um caminho possível, e torna-se necessário

    aceitar os riscos de uma leitura intranqÜila. Continua sendo pos-

    5 GUEROULT, Martial, Descartes selon L Ordre des Raisons, p. 11. Cf.

    MILLER, J. A., MILNER, J. C., Nature de L'Impensé , p. 3.

    6 GENETTE, Gérard, Figures, p. 158.

    PERSUASÃO E IDEOLOGIA

     75

    sível, no entanto, pensar o discurso

    do interior.

    A ruptura é pen-

    sada como ferida, mas ferida

    daquele

    corpo, e a instância retórica

    não vem intervir na reflexão a título de princípio de explicação :

    limita-se a dar um nome e um sentido a um evento discursivo.

    Sem dúvida seria possível utilizar, para falar da retórica, a lin-

    guagem da subjetividade - atribuí-Ia à intenção consciente do

    autor, ou a um impensado que se deixaria ler através do discurso

    pensado. Mas é preferível afastar essa linguagem, como faz por

    exemplo Althusser ao comentar Rousseau. Depois de apontar no

    Contrato Social

    um desnível entre os dois contratantes, o indivíduo

    que já exis te no momento do contrato e a comuri idade que só virá

    a existir depois, como seu produto, Althusser começa por afirmar

    que Rousseau, consciente desse desnível, o mascara através de um

    certo uso da linguagem, um certo processo (a que poderia ter cha-

    mado um processo retórico) considerado um recurso falseado.

    Mas, ao interrogar-se sobre as razões desse recurso, e seus possí-

    veis efeitos, Althusser afasta del iberadamente a linguagem' da

    subjetividade para passar a referir-se exclusivamente aos próprios

    elementos do discurso e ao jogo que entre eles se estabelece.

    7

    De

    maneira semelhante, os processos retóricos presentes nos textos

    humeanos são aqui tratados sem referência à subjet ividade do au-

    tor. O único elemento externo que está presente é a noção de

    um leitor que é objeto de uma função persuasiva do discurso -

    o que não implica uma lei tura mais  exterior  do que a da teoria,

    pois também esta implicava a noção de um leitor que reconst itui,

    e que julga, a cadeia de validades constituída pela art iculação teó-

    rica. Nesta segunda lei tura, temos ainda uma

    compreensão.

    Só num terceiro momento se toma necessár io o recurso a uma

    explicação,

    a uma instância inteiramente exterior ao discurso. Ne-

    cessidade que só se impõe quando o próprio discurso revela, final-

    mente, não ser o detentor de todas as chaves de sua decifração,

    quando se torna manifesta a impossibilidade de compreender sem,

    antes, explicar. Quando o próprio enunciado não se deixa ler, e

    sua significação e sua presença não se deixam compreender, sem

    que a reflexão salte para um espaço exterior, onde pareça possível

    encontrar uma chave para aquela decifração. Mas, por um lado,

    se esta terceira lei tura é uma  leitura ideológica , ela não é ditada

    pela convicção da inevitabilidade de encontrar, num texto políti-

    7 ALTHUSSER, Louis,  Sur le 'Contrat Social'  , p. 17-20.  P ourquoi ce

    recour s nécessai remen t faussé? Quel s ef fe ts Rousseau 'attend-il' de ce re-

    cours faussé? Ou plutôt, pour ne pas parler le langage de Ia subject ivité,

    quels effets commandent nécessairement ce recours? lbid., p. 20.

  • 8/18/2019 As Duas Retóricas David Hume

    12/12

     7

    CAPo VlI - PERSUASÃo E IDEOLOGIA

    co, esse tipo de significação, convicção que seria ela mesma ideo-

    lógica (num outro sentido do termo). Essa viagem por um domí-

    nio exterior ao discurso é simplesmente imposta pela convicção de

    se encontrarem esgotados os recursos internos do discurso _ é ele

    mesmo, portanto, que a exige. Por outro lado, constatar a presen-

    ça da ideologia não implica, do mesmo modo que nos dois primei-

    ros momentos da anál ise , um juízo relativo

    à

    subjetividade do

    autor, quer explicando os enunciados ideológicos como manifes-

    tação de suas intenções conscientes, quer explicando-os como

    manifes tações de um impensado que, nessa subjetividade, seria a

    manifestação inconsciente de uma instância por sua vez exterior a

    essa mesma subjetiv idade (a cultura do tempo ou a situação de

    classe do autor , etc). Afirma-se unicamente a presença da ideo-

    logia no discurso, sem decidir sobre as causas dessa presença.

    CAPÍTULO VIII

    A RETÓRICA DA DESIGUALDADE

    Somente no espaço do texto é possível colocar e enfrentar os

    problemas impostos pelo desnível do discurso. Sem que num gesto

    de impaciência se re je ite como absurdo, por exemplo, que o texto

    manifes te a presença de algo como dois autores , e que a diferença

    entre ambos se ver if ique também no nível da própria ideologia. A

    uma teor ia cujo sujei to de maneira alguma pode ser aproximado de

    uma ideologia conservadora, dada a persistente denúncia da irra-

    cional idade das inst itu ições vigentes e a afirmação de um inalie-

    nável direito de rebelião, que só poderiam

    teoricamente

    desembocar

    no reconhecimento da injustificabilidade última daquelas instituições

    e na legi timidade de princípio , a cada instante, de uma vontade po-

    pular voltada para a modificação da estrutura do poder, opõe-se

    uma retórica cujo sujeito só pode ser compreendido, pelo contrário,

    contra o pano de fundo dessa ideologia conservadora. Oposição

    inconciliável que o olhar do leitor não apenas encontra quando

    descreve um movimento amplo e global, que ident if ica em geral a

    significação de cada uma das duas formações discursivas, e sua re-

    cíproca irredutibilidade, mas que o mesmo olhar lê também em

    cada desar ticulação do discurso, em cada irrupção retórica, deci-

    frando em cada enunciado retórica uma função de destruição do

    alcance ideológico da teoria.

    O outro da teoria se revela, também, como seu inconci liável

    adversário. É assim que a uma teoria da justiça que se limita a

    mostrar a necessidade de uma convenção estabi lizadora dos bens

    materiais, eliminando o mais grave risco de conflito e oferecendo

    uma garant ia de preservação do corpo social , e a descrever a inst i-

    tuição da propriedade privada como um evento histór ico e cont in-

    gente, explicável como resultado da intervenção dos princípios mais

    ir racionais da natureza do suje ito, se vem contrapor uma retórica

    tendente a persuadir o leitor da racional idade intrínseca das insti -

    tuições vigentes (a propriedade privada, baseada na apropriação

    pessoal) e de sua necessidade . A persuasão exercida pelo dis-

    curso retórica tende a ocul tar do olhar do lei tor o verdadeiro sen-