As chaves do reino vol2 o horrivel terca feira garth nix

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GARTH NIX

As Chaves do Reino

O Horrível Terça-Feira

Editor e edição de texto: Editora Fundamento Capa e editoração eletrônica: Desdobra — Design do Brasil Produzido originalmente por Scholastic Press.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Nix, Garth As Chaves do Reino: O Horrível Terça-Feira / Garth Nix; [versão brasileira: Editora Fundamento] — São Paulo, SP: Editora Fundamento Educacional, 2008. Título original: The Keys of the Kingdom: Grim Tuesday 1. Literatura infanto-juvenil I. Título. 08-02157 CDD-028. 5 Índices para catálogo sistemático: 1. Literatura infanto-juvenil 028. 5 2. Literatura juvenil 028. 5 Fundação Biblioteca Nacional Impresso no Brasil

PrólogoPrólogoPrólogoPrólogo

A locomotiva vermelho-sangue e cheia de espetos do

lado de fora soltava vapor em rajadas furiosas, a serpentear pelas profundezas do Fosso. A fumaça preta que subia em meio ao vapor vinha carregada de partículas mortais de Nada, que saía das escavações localizadas muito abaixo.

Por mais de 10 mil anos, o Fosso vinha sendo cavado sob as fundações da Casa. Os mineiros do Horrível Terça-Feira procuravam depósitos exploráveis de Nada, material de que todas as coisas podiam ser feitas. Mas, se achassem em algum lugar uma quantidade excessiva ou atingissem o interminável abismo de Nada, seriam destruídos, bem como boa parte do ambiente, antes que o buraco fosse tapado e o Fosso desativado.

Havia ainda o constante perigo de um ataque dos Nadicas, as estranhas criaturas feitas de Nada. Às vezes, os Nadicas surgiam sob a forma de uma multidão de criaturas inferiores; outras vezes, de um monstro assustador que provocava terrível destruição até ser derrotado, voltar para o Nada ou escapar para os Reinos Secundários.

Apesar do perigo, o Fosso ficava cada vez mais fundo, e as minas e túneis, mais extensos. O trem era uma aquisição relativamente nova, coisa de uns 300 anos, pela contagem de tempo da Casa. A viagem do fundo do

Fosso às Regiões Afastadas levava apenas 4 dias, já que as constantes escavações tinham deixado pouco do que eram originariamente os domínios do Horrível Terça-Feira no território da Casa.

Os Habitantes raramente viajavam de trem. Em sua maioria, iam a pé, em uma viagem que durava pelo menos 4 meses, pela estrada vicinal que margeava a estrada de ferro. O trem servia apenas ao próprio Terça-Feira e a alguns colaboradores especiais. A locomotiva e os vagões tinham espetos pelo lado de fora, para evitar clandestinos, e os condutores portavam pistolas de vapor, com as quais atiravam em quem se atrevesse a tentar embarcar. Mesmo um quase imortal Habitante da Casa pensaria duas vezes antes de arriscar-se a um jato de vapor superaquecido; a recuperação seria demorada e extraordinariamente dolorosa.

Se voasse, O Horrível Terça-Feira chegaria muito mais rápido ao destino, mas ele nunca usava asas e tinha proibido a utilização por quem quer que fosse. As asas atraíam o Nada. Às vezes, provocavam a formação de Nadicas voadores. Em outras ocasiões, podiam causar tempestades de Nada que o próprio Terça-Feira tinha de dominar.

O trem apitava sete vezes antes da parada barulhenta na plataforma. O Horrível Terça-Feira tinha construído a Estação Superior, cópia de uma enorme estação localizada em um mundo dos Reinos Secundários. Aquele tinha sido um belo prédio de arcos pronunciados feitos de pedras claras, mas a fumaça do trem e das muitas fornalhas e fábricas tinha escurecido tudo. A poluição vinda do Nada também contribuíra para corroer paredes e arcos, crivando a pedra de furinhos, o que a deixava com

um aspecto semelhante ao da madeira atacada por cupins. A estação só continuava de pé porque o Horrível Terça-Feira constantemente fazia reparos com o poder de sua Chave.

O Horrível Terça-Feira detinha a Segunda Chave do Reino, aquela que deveria ter sido entregue ao Herdeiro Legítimo 10 mil anos atrás. Mas ele tinha preferido ficar com ela, desafiando assim o Testamento deixado pela Arquiteta, criadora da Casa e dos Reinos Secundários.

Terça-Feira raramente pensava no Testamento, dividido em sete fragmentos escondidos na vastidão do espaço e na profundidade do tempo. Ele mesmo tinha escondido um dos fragmentos, a Segunda Cláusula, e tinha certeza de ser impossível alguém achar.

Mas houve um fato novo: o Horrível Terça-Feira ficou sabendo que a primeira parte do Testamento tinha escapado e encontrado um Herdeiro Legítimo, que, por incrível que pareça, conseguiu derrotar o Sr. Segunda-Feira e assumir seus poderes.

Isso queria dizer que o Horrível Terça-Feira seria o próximo. Ao saltar do trem, ele olhava de cara amarrada para a carta que trazia aberta na mão enluvada. Os mensageiros vindos das Regiões Afastadas esperavam a resposta.

O Horrível Terça-Feira releu parte da carta. O herdeiro era um garoto chamado Artur Penhaligon, habitante de um mundo que era dos mais interessantes entre os Reinos Secundários — um lugar chamado Terra, berço de muitos artistas e inventores que o Terça-Feira imitava. Chamavam-se humanos e eram os mais talentosos resultados das antiqüíssimas idéias da Arquiteta; as únicas

criaturas, dentro ou fora da Casa, que rivalizavam com ela em matéria de criatividade.

O Horrível Terça-Feira tornou a fechar a cara e amassou a carta. Não gostava de ser lembrado de que apenas copiava. Depois de uma boa olhada no original, ele produzia cópias feitas de Nada. Era capaz também de combinar vários objetos de maneira interessante. Mas não conseguia fazer uma criação inteiramente sua.

— Lorde Terça-Feira... A saudação veio do mais alto dos dois mensageiros,

que eram Habitantes da Casa, mas diferentes daqueles das Regiões Afastadas. Tinham altura superior à dos servos do Horrível Terça-Feira que, cobertos de fuligem, correram na direção do trem, para descarregar os grandes barris com cintas de bronze que chegavam das profundezas carregados de Nada. O conteúdo dos barris seria transformado em bronze, aço e prata, matérias-primas que, por sua vez, entrariam na composição de bens produzidos, nas fábricas e oficinas de fundição de Terça-Feira. Uma parte do Nada seria usada diretamente por ele na confecção de artigos requintados a serem vendidos para outras áreas da Casa.

Os servos de Terça-Feira vestiam roupas esfarrapadas e aventais de couro mal remendados. Além disso, andavam curvados, como se estivessem exaustos. O contraste com os mensageiros não poderia ser mais gritante. Estes tinham uma postura altiva, com suas sobrecasacas brilhantes de tão pretas sobre camisas muito brancas e gravatas vermelho-escuras, um pouco mais claras do que os coletes de seda. Os chapéus, macios e lustrosos, refletiam e intensificavam a pálida luz dos

lampiões a gás que se enfileiravam na plataforma, o que tornava difícil a visão de seus rostos.

O Horrível Terça-Feira soltou um suspiro profundo. Gostou de se ver ainda mais alto do que os mensageiros, que tinham mais de 2 metros de altura. Seus servos eram atarracados e meio tortos pela exposição ao Nada, mas ele não. Terça-Feira, apesar de magro, tinha a aparência de quem era capaz de correr o dia todo ou atravessar um rio largo a nado. Ele desprezava roupas elegantes, preferindo calças simples e coletes de couro sem mangas, que deixassem à mostra os volumosos músculos dos braços. Quer estivesse a trabalho ou não, tinha as mãos escondidas em luvas de metal prateado flexível, com listras douradas.

— Já li a carta — disse entre dentes o Horrível Terça-Feira. — Não me importa quem manda na Casa Inferior ou em qualquer outra. As Regiões Afastadas são minhas e vão continuar assim.

— O Testamento... — Eu tomo conta da minha parte muito bem.

Melhor que o preguiçoso do Segunda-Feira — interrompeu o Horrível Terça-Feira. — Não estou preocupado com isso.

— Quem escreveu a carta não pensa assim. — Não? Terça-Feira franziu a testa e as sobrancelhas. — O que você sabe e eu não? — Sabemos de um meio para o senhor atacar a

Casa Inferior e o tal de... Artur Penhaligon... uma brecha no Acordo.

— Nosso Acordo? — resmungou Terça-Feira. — Espero que você não esteja sugerindo alguma coisa que

permita que Quarta-Feira ou Sexta-Feira invadam os meus domínios!

— Não, não. Trata-se de uma brecha que só o senhor pode explorar. O Acordo proíbe interferência dos Curadores em suas propriedades. Mas e se o senhor reclamasse legalmente a Casa Inferior e a Primeira Chave? Então, elas seriam propriedades suas.

O Horrível Terça-Feira entendeu o que o mensageiro pretendia. Se encontrasse um meio de dizer que Artur lhe devia alguma coisa, poderia tomar a Primeira Chave como pagamento. Só havia um problema, que ele explicou ao mensageiro: nada tinha a reivindicar.

— O antigo Sr. Segunda-Feira lhe devia o pagamento por mais de 12 dúzias de Comissionários, não é? — perguntou em resposta o mensageiro.

— Por isso e por muitas outras coisas, umas trabalhosas e outras simples — respondeu o Horrível Terça-Feira.

Seu rosto se contorceu de raiva quando acrescentou:

— Nada foi pago, seja em moeda da Casa ou em Habitantes para trabalhar no meu Fosso.

— O senhor sabe que, quando os débitos não são pagos, o credor pode reclamar os bens do devedor. Se o senhor já tiver pedido a penhora dos bens do antigo Sr. Segunda-Feira, e a Corte dos Dias tiver determinado que o Poder sobre a Chave lhe seja entregue...

A idéia do mensageiro estava clara para o Horrível Terça-Feira. Se ele tivesse acionado o Sr. Segunda-Feira antes que Artur assumisse, este teria herdado as dívidas do antigo Mestre.

— Mas eu não pedi a penhora — explicou Terça-Feira. — E a Corte não pode, em boa-fé...

O Habitante mais alto sorriu e tirou do bolso do colete um comprido rolo de pergaminho. Do lado de fora, o pergaminho cresceu até ficar do tamanho de um tapete pequeno, coberto de letras douradas. Na parte de baixo, havia vários selos de ouro, presos com cera de arco-íris que mudava de cor de segundo em segundo.

— Felizmente, a Corte conseguiu fazer uma sessão especial no que foi considerado o instante anterior à deposição do Sr. Segunda-Feira e tenho o prazer de informar que o senhor ganhou a causa, Horrível Terça-Feira. Assim, pode cobrar dos sucessores de Segunda-Feira a dívida. E lhe foi concedida permissão para fazer isso nos Reinos Secundários.

— Eles vão apelar — resmungou Terça-Feira enquanto apanhava o pergaminho.

— Já apelaram — explicou o mensageiro. Ao dizer isso, ele tirou de uma caixa prateada um

charuto, que acendeu com a chama azulada que saiu de seu dedo indicador. Depois de inspirar profundamente e soltar uma longa baforada de fumaça cor de prata, que se misturou ao vapor do ambiente, continuou:

— Ou melhor, o Procurador apelou. A entidade que era a Primeira Parte do Testamento e que agora se intitula Primeira Dama. Duvido que Artur Penhaligon faça idéia do que se passa.

— Não gosto dessas sutilezas legais — reclamou Terça-Feira.

Ele coçou o queixo com um objeto comprido de metal e continuou, como quem fala sozinho:

— O que aconteceu à Casa Inferior pode acontecer a mim e aos meus domínios. Além do mais, só vejo no documento os selos de três dos Dias Seguintes.

— Basta colocar o seu selo e serão quatro de sete. Maioria. A Casa Inferior será sua.

O Horrível Terça-Feira olhou para o mensageiro alto.

— A Primeira Chave seria naturalmente minha, caso eu conseguisse tomar... quer dizer, receber o que me é devido?

— Com certeza. Não somente a Chave, mas também o que quiser pegar nos Reinos Secundários.

A sombra de um sorriso passou pelo rosto do Horrível Terça-Feira. Ele podia herdar a Primeira Chave e tudo o mais que estivessem em poder de Artur.

— Sem interferências? Faça eu o que fizer nos Reinos Secundários? — perguntou.

— Pelo que sabemos no nosso... gabinete, o senhor tem permissão para ir a esse mundo, a Terra, e fazer o que for necessário para cobrar a dívida — explicou o mensageiro. — Seria melhor evitar apenas... digamos... destruição ou pilhagem exageradas. Acredito que assim o senhor esteja livre de qualquer perseguição.

Terça-Feira tornou a olhar para o pergaminho. Via-se que estava tentado pela proposta. Seus olhos adquiriram um brilho estranhamente amarelo, como se refletissem a visão do ouro. Finalmente, ele pressionou o polegar largo sobre o pergaminho. Depois de um lampejo de luz amarela, um quarto selo se materializou, tinindo ao se encontrar com os outros, enquanto seu arco-íris deixava um rastro de luz sobre o pergaminho.

Ao verem os dois mensageiros aplaudirem discretamente, os serviçais que descarregavam o trem interromperam o trabalho interessados. No entanto, logo receberam umas chicotadas dos Supervisores e voltaram aos seus afazeres. Depois de assinado, o pergaminho encolheu até ficar do tamanho de um selo de carta. O Horrível Terça-Feira, então, o enfiou facilmente no punho da luva esquerda.

— Existe outro assunto do qual devemos tratar — disse o primeiro mensageiro.

De um momento para outro, ele tinha se tornado mais agradável e comunicativo.

— Coisa simples — disse o segundo mensageiro com um sorriso. Ele estivera mudo até então, e o inesperado som de sua voz, apesar de doce e suave, provocou um sobressalto nos serviçais.

— Suponho que os seus mineradores estejam tapando uma escavação que atingiu o Nada...

— Estamos providenciando — cortou Terça-Feira. — Meu Fosso e as Regiões Afastadas não serão atingidos! Não sei quanto às outras partes da casa, mas aqui temos o Nada sob controle. Entendo de Nada como ninguém!

Os mensageiros se entreolharam. Uma expressão de desprezo passou tão rapidamente por seus rostos parcialmente ocultos pela aba do chapéu que o Horrível Terça-Feira não percebeu.

— A sua perícia com o Nada é bem conhecida, senhor — disse o primeiro mensageiro. — Queremos simplesmente que uma coisa seja mandada através da passagem lacrada para o Nada.

— Uma coisinha — disse o segundo mensageiro, pegando um pequeno quadrado de tecido.

Parecia um pano branco e limpo, mas uma observação mais cuidadosa com uma lente de aumento mostraria várias linhas escritas em letras de um prateado fosco, extremamente miúdas, da altura de uma linha de costurar.

— Isto vai se dissolver, vai ser destruído — informou Terça-Feira sem entender. — Para quê?

— Por um capricho daquele a quem servimos. — Uma idéia. Uma experiência. Uma precau... — Chega! — interrompeu Terça-Feira. — Que

pano é esse? — É um bolso — disse o primeiro mensageiro. —

Ou foi. Um bolso de camisa. — Arrancado de um uniforme. De uma camisa de

escola. — Bah! Mistérios e bobagens! — exclamou

Terça-Feira, enfiando no punho direito o pedaço de pano. — Vou fazer o que pedem, só para não ter de ouvir a falação de vocês. Voltem para o lugar de onde vieram!

Os dois mensageiros fizeram uma leve reverência e se viraram para ir embora. A multidão de servos se dispersou ao vê-los caminhar em direção às portas de elevadores dispostas em série na parte de trás da estação. Como sempre, os elevadores eram guardados por Supervisores, os mais confiáveis servos do Horrível Terça-Feira. Vestidos com peitorais de bronze fosco sobre casacos de couro preto bem grossos, tinham a face oculta por capacetes bicudos. Carregavam pistolas de vapor e espadas de lâmina larga — as cimitarras. Não havia quem não se assustasse ao vê-los. Mas os Supervisores abriram caminho e saudaram os mensageiros.

O Horrível Terça-Feira ficou observando os dois Habitantes entrarem no elevador. Logo que as portas se fecharam com estrondo, um facho de luz, visível em meio à névoa, através do telhado decadente da estação, cortou o ar até desaparecer no teto das Regiões Afastadas, quase mil metros acima.

— Vamos agora, Mestre? — perguntou um Habitante baixo, de ombros largos e barba comprida.

O avental daquele Habitante era bem melhor e mais limpo do que os usados pelos outros servos. Ele carregava uma pena e um caderno de notas com capa de couro. A seu lado, ia outro servo, que trazia na mão um vidro de tinta aberto. Os dois tinham rostos praticamente idênticos, com o nariz achatado e malfeito entre os olhos, um azul e outro verde. Havia mais cinco Habitantes com as mesmas características, embora apenas três deles estivessem à vista na estação.

Os sete eram chamados “os Grotescos do Horrível”, executivos de primeira linha de Terça-Feira. Eram o resultado da fusão dos antigos Aurora, Meio-Dia e Crepúsculo, que foi dividida em sete partes.

— Preciso voltar ao trabalho — disse Terça-Feira. — Ainda está vazando muito Nada pelo Baixo Sudoeste 13, e só eu posso tapar. Mas alguém deve procurar o tal Artur Penhaligon e fazê-lo assinar a entrega do Domínio e da Primeira Chave. Você não, Yan. Preciso de você comigo. Tan ainda está lá embaixo. Tem de ser você, Tethera.

O servo que carregava o vidro de tinta concordou com a cabeça.

— Leve Methera com você. Dois deve ser suficiente. Trabalhe dentro das mesmas regras que usamos

naquele mundo, no ano deles de 1929. Só me chame se for necessário; senão, vou descontar do pagamento de vocês. E mande um telegrama, que é mais barato.

Tethera tornou a concordar com a cabeça. — E, se virem alguma oportunidade de aumentar

minha coleção, aproveitem — acrescentou Terça-Feira com um sorrisinho.

— E o tal pedaço de pano, o bolso? — perguntou Yan. — O senhor vai fazer o que os mensageiros pediram? Isso me cheira a magia do andar de cima.

O Horrível Terça-Feira mordiscou as juntas dos dedos enluvados e, então, lentamente, fez que sim.

— Vou. Não custa nada. Alguma espécie de Criatura. Um Cocigrue ou Comedor de Espíritos.

— O que é proibido pela lei e pelos costumes — observou Yan.

— Bah! — bufou Terça-Feira. — Como se eu ligasse para leis antigas.

Além do mais, não é para mim. Estamos perdendo tempo aqui de conversa. Mais vapor!

As duas últimas palavras foram ditas na direção do trem. Os Supervisores gritaram em resposta e bateram nos servos com a parte achatada da cimitarra, para que se apressassem na descarga dos últimos barris de Nada. Outros servos se moviam cuidadosamente entre os espetos da locomotiva, desconectando tubulações de água, enquanto um grupo de Habitantes mais sujos e malformados esforçava-se para empurrar os últimos carrinhos de mão carregados de carvão ensacado que tinha vindo no vagão de carga do trem.

Seguido por Yan, o Horrível Terça-Feira se dirigiu para o primeiro vagão. Tethera prosseguiu na direção

oposta, tomando o caminho da entrada principal da estação. Aquela não era apenas a porta que dava para as oficinas e indústrias localizadas no que restava das Regiões Afastadas; para quem conhecesse as palavras mágicas, podia se transformar, por um curto período de tempo, na Porta da Frente da Casa, que levava a todos os Reinos Secundários.

Inclusive ao mundo de Artur Penhaligon.

Capítulo 1Capítulo 1Capítulo 1Capítulo 1

Artur correu para seu quarto, no andar de cima,

enquanto a campainha estridente do telefone antigo tocava cada vez mais alto. O fato de saber que o som não chegava aos ouvidos do restante da família não o consolava. Era inacreditável que Will, o Testamento, o estivesse chamando. Não fazia nem oito horas que havia derrotado o Sr. Segunda-Feira, assumindo o Domínio da Casa Inferior e os poderes da Primeira Chave, transferidos quase imediatamente para Will, que prometera ser um bom Procurador e deixá-lo em paz por 5 ou 6 anos, pelo menos — não por algumas horas!

Tinham se passado apenas 15 minutos desde que Artur soltara o Limpador Noturno, possibilitando a cura da Praga do Sono, que poderia matar milhares, se não milhões, de pessoas. Ele havia salvado o mundo e não tinha direito a um sono muito merecido?

Não, obviamente. Furioso, chegou ao quarto, pegou a caixa de veludo vermelho que tinha recebido de Will e arrancou a tampa. Dentro havia um telefone antigo, daqueles em que existe uma peça apenas para ouvir e um bocal para falar. Claro que o aparelho não estava conectado a coisa alguma, mas Artur sabia que isso não tinha importância. Colocou o fone no ouvido e esperou.

— Artur?

Ele reconheceu imediatamente a voz grave: a voz de sapo que Will manteve mesmo depois que se transformou em mulher. Ou em alguma coisa parecida com uma mulher.

— Claro que é Artur! O que você quer? — Talvez as notícias não sejam boas. Nestes seis

meses em que você esteve longe... — Seis meses! — exclamou Artur confuso e

aborrecido. — Não faz nem um dia que voltei! Passa pouco de meia-noite! Estamos nos primeiros minutos da madrugada de terça-feira!

— O verdadeiro tempo é o da Casa. Em outros lugares, o tempo dá voltas — falou Will em voz tão clara e audível que parecia estar dentro do quarto. — Como eu estava dizendo, trago más notícias. O Horrível Terça-Feira encontrou uma brecha no Acordo. Estão proibidas as interferências entre os Curadores. Com a ajuda de alguns dos Dias Seguintes, ele está reclamando a Casa Inferior e a Chave como pagamento pelos artigos que entregou ao Sr. Segunda-Feira durante os últimos mil anos.

— O quê? Que artigos? — Ah, Comissionados de metal, peças de

elevadores, bules de chá, impressoras, todo tipo de coisa — respondeu Will. — O normal é retardar-se a cobrança até se passarem uns 300 anos depois do Acordo feito de mil em mil anos, mas Terça-Feira está em seu direito. Ele pode cobrar antes, já que o Sr. Segunda-Feira sempre atrasava os pagamentos.

— E por que não pagam logo? — perguntou Artur. — Quero dizer com... com o que vocês costumam usar como dinheiro. Assim, ele não terá do que reclamar.

— Normalmente, o pagamento é feito em dinheiro da Casa, que tem sete moedas, cada qual com sete denominações. A moeda da Casa Inferior, por exemplo, é a rodela de ouro, que vale 360 moedas de prata. As moedas intermediárias são...

— Não quero saber dos tipos de moedas! — interrompeu Artur. — Por que não pagam o Horrível Terça-Feira com essas rodelas de ouro ou o que quer que seja?

— Não temos — respondeu Will. — Ou temos pouquíssimas. A contabilidade está uma bagunça, e parece que o Sr. Segunda-Feira nunca assinou as faturas que deveriam notificar as outras partes da Casa a respeito dos serviços prestados pela Casa Inferior. Então, nada foi pago.

Artur fechou os olhos por um momento. Ele não podia acreditar que estava tratando de um problema de contabilidade no epicentro do universo, na Casa de que a totalidade da criação dependia para continuar a existir.

— Nomeei você meu Procurador — disse Artur. — Trate do assunto. Quero ser deixado em paz, como foi combinado. Pelos próximos 6 anos!

— Eu estou tratando do assunto — respondeu Will com impaciência. — Apelamos, pedimos empréstimos e assim por diante. Mas só temos conseguido retardar a solução, e as chances de uma vitória legal são mínimas. Liguei para prevenir que Terça-Feira conseguiu permissão para cobrar o débito de você pessoalmente. E da sua família. Até do seu país. Talvez do seu mundo inteiro.

— O quê? Artur não conseguia acreditar. Por que não o

deixavam em paz?

— As opiniões estão divididas acerca de quem deve receber a cobrança, mas a quantia devida está bem definida. Com juros compostos acumulados em 722 anos, a soma não é pequena. Cerca de 13 milhões de rodelas de ouro, cada uma delas feita de ouro puro, o que corresponde a um peso de aproximadamente 363 mil quilos, ou seja: 363 toneladas.

— Quanto isso vale em dólares? — perguntou Artur com desânimo. Quase 400 toneladas de ouro!

— Esse é o seu dinheiro? Não sei... Mas o Horrível Terça-Feira jamais aceitaria moeda dos Reinos Secundários. Ele quer ouro ou, no máximo, obras de arte que possa copiar e vender na Casa. Você possui alguma grande obra de arte?

— Claro que não! — gritou Artur. Alguns momentos antes, ele estava muito bem.

Chegou a acreditar que nunca mais teria crises de asma. Mas já sentia aquele aperto, aquela dificuldade de respirar, embora de um lado apenas.

“Calma”, ele disse para si mesmo. “Preciso manter a calma.”

— O que posso fazer? — perguntou, falando lentamente e não muito alto. — Existe algum meio de deter o Horrível Terça-Feira?

— Tem um jeito... — começou Will. — Mas você precisa voltar à Casa. E depois de chegar aqui...

Um bip estridente cortou a voz de Will, que foi substituída por outra, acompanhada de um zumbido.

— Aqui é a telefonista. Por favor, ponha duas rodelas e seis meias-coroas, para continuar a ligação.

Artur ouviu a resposta de Will, embora muito longe.

— Não tenho duas rodelas! Ponha na conta! — O seu crédito foi cancelado por ordem da Corte

dos Dias. Por favor, ponha duas rodelas e seis meias-coroas. Dez... nove... oito... sete... seis...

— Artur! — gritou Will, ao longe. — Venha para a Casa!

— Dois... um... Ligação encerrada. Obrigada. Artur ainda segurou o fone por alguns segundos,

mas nada ouviu. Até os ruídos de fundo cessaram. O único som audível era o de sua respiração, provocado pelo esforço de fazer o ar entrar e sair dos pulmões. Ou melhor, do pulmão direito. O esquerdo parecia bem, o que não deixava de ser estranho, já que tinha sido perfurado durante a batalha de vida ou morte contra o Sr. Segunda-Feira.

Uma dívida de 363 toneladas de ouro. Preocupado, Artur pousou o fone. O que faria o

Horrível Terça-Feira, para cobrar a dívida? Mandaria os Buscadores ou outras criaturas do Nada? E, se isso acontecesse, trariam uma nova praga?

Ele estava tão cansado que não conseguia pensar em respostas; só em perguntas. Elas tomavam sua cabeça.

“Tenho de levantar e fazer alguma coisa”, pensou. “Preciso dar uma olhada no Atlas Completo da Casa ou começar a preparar um plano de ação. Já é terça-feira, portanto não há tempo a perder. O Horrível Terça-Feira só dispõe de um dia para fazer as coisas no meu mundo e não vai hesitar... não posso perder tempo... perder...”

Artur acordou de repente. O sol entrava pela janela. Por um momento, não entendeu o que tinha acontecido e onde estava. Então, o entorpecimento do sono foi

sumindo. Ele havia adormecido profundamente e já passava das 10 horas.

Da manhã de terça-feira. Artur pulou da cama. Depois do incêndio e da

epidemia do dia anterior, com certeza não haveria aula. Mas isso não o preocupava. O Horrível Terça-Feira tivera tempo de sobra para agir enquanto ele dormia. Era preciso descobrir o que estava acontecendo.

Ao chegar ao andar de baixo, o garoto não encontrou ninguém. Alguns tinham saído, outros ainda dormiam. Do estúdio, vinha o som longínquo de uma música: Bob, seu pai adotivo, tocava com a porta aberta. Artur verificou os recados presos na geladeira e descobriu que a mãe continuava no laboratório do hospital. O irmão Eric treinava basquete nos fundos da casa e não queria ser incomodado. Como não havia mensagem de sua irmã Michaeli, ele imaginou que ela ainda estivesse dormindo.

Artur ligou a televisão e sintonizou o canal de notícias. O assunto ainda era a seqüenciação da estrutura genética do vírus da Praga do Sono, conseguida da noite para o dia, com a “miraculosa” recuperação dos doentes, que acordaram do coma sem chegar ao estágio letal da doença. O incêndio na escola também mereceu uma boa cobertura. Por incrível que pareça, as chamas tinham destruído todos os livros da biblioteca, não poupando nem as estantes de metal, mas haviam causado pouquíssimos danos ao prédio. E mais: o fogo se apagara espontaneamente. Artur imaginou que isso tivesse acontecido no momento em que ele entrou na Casa.

A quarentena continuava em vigor, mas as pessoas podiam circular durante o dia se tivessem “tarefas urgentes”. A polícia e as autoridades federais de controle

biológico mantinham pontos de checagem, onde testavam os passantes. Artur ainda ouvia a trepidação monótona dos helicópteros, que formavam um cordão de isolamento em torno da cidade.

Não havia novidades — pelo menos nada que se pudesse identificar como obra do Horrível Terça-Feira. O garoto desligou a televisão e olhou para fora. Tudo parecia normal. Só havia duas pessoas à vista: dois homens que pregavam uma tabuleta anunciando a venda da casa em frente.

“Coisa estranha”, pensou Artur. “Fazer isso na manhã seguinte a uma emergência!”

Ele olhou mais uma vez. Estacionado diante da casa, havia um carro novinho, muito luxuoso, do tipo que corretores costumam usar. Os dois homens vestiam roupas escuras. Foi então que Artur sentiu uma ardência, e sua visão se atrapalhou, obrigando-o a fechar e esfregar os olhos. Quando voltou a olhar, porém, viu os homens mais baixos e gordos, um tanto disformes: os braços quase chegavam aos joelhos, e um deles tinha uma corcunda.

Artur continuou a olhar. A princípio, a imagem pareceu meio borrada, mas, quando ele fixou a vista, a ilusão se desfez e apareceram as verdadeiras roupas dos dois homens. Eles, na verdade, usavam casacos antiquados de punhos duros, calças esquisitas, tamancos de madeira e aventais de couro.

Artur sentiu um arrepio percorrer seu corpo. Aqueles não eram corretores de imóveis. Nem mesmo se tratava de seres humanos. Eram Habitantes da Casa ou talvez criaturas saídas do Nada.

Agentes do Horrível Terça-Feira. O que estava para acontecer já tinha começado.

Artur subiu correndo as escadas, três degraus de cada vez. Antes de chegar ao segundo andar, já respirava com dificuldade e sentia dor no lado do corpo. Mas não parou. No quarto, agarrou o Atlas Completo da Casa e subiu mais um pouco, até a varanda de cima.

Os dois... o que quer que fossem... tinham acabado de fincar a placa onde se lia “Vendido” e pegavam outra no carro. Artur só conseguiu ver o que dizia a placa quando os dois sujeitos saíram da frente e custou a entender o que leu:

EM DEMOLIÇÃO. BREVE NESTE LUGAR

O LEAFY GLADE SHOPPING. “Um centro comercial! Do outro lado da rua!” Artur descansou o Atlas sobre o joelho e, mais uma

vez, olhou os dois corretores. Então, colocou as mãos sobre o livro e desejou que abrisse. Antes, ele só conseguia isso com a ajuda da Chave, mas Will garantira que pelo menos algumas páginas estariam disponíveis.

“Quem são aquelas pessoas? Serão servos do Horrível Terça-Feira? O que ele comanda na Casa?” Os pensamentos formavam um turbilhão na cabeça de Artur, embora ele procurasse se concentrar nos dois “corretores de imóveis”.

O garoto sentiu o livro vibrar sob suas mãos e, de repente, abrir-se. Ele quase caiu para trás. Sempre se assustava, embora já esperasse ver o que aconteceu em seguida: o Atlas triplicou de tamanho.

A página que se abriu estava em branco. Mas Artur também já esperava isso. Primeiro, apareceu um pingo de

tinta, que se estendeu até formar um traço. Então, uma espécie de mão invisível rapidamente desenhou as figuras dos dois corretores de imóveis. Mas não com as enganosas roupas escuras. O Atlas os mostrava como apareceram quando Artur esfregou os olhos: com aventais compridos de couro, que iam do pescoço aos tornozelos. Além disso, na ilustração, eles carregavam grandes martelos e tinham barbas que se dividiam em duas.

Em seguida, a caneta invisível começou a escrever, como acontecera nas outras vezes, em caracteres estranhos. Mas logo mudou para o idioma de Artur, embora com um estilo antigo.

Imediatamente Após a divisão do testamento, o horrível

Terça-Feira adotou um modo de ação que resultou em sérios danos às Regiões afastadas da Casa, que correspondem a seus domínios. No Amplo espaço originalmente conhecido como Grande Caverna, havia uma fonte profunda que levava à superfície uma regular e controlada efervescência de Nada. O Horrível Aproveitou essa constante provisão de Nada para preparar matéria-prima a ser utilizada por artesãos menores e para produzir e moldar vários Artigos copiados de outros criados pela Arquiteta ou do trabalho de seres inferiores dos Reinos secundários. No entanto, quanto mais Terça-Feira produzia Artigos, mais queria produzir, para vender seus produtos aos outros Dias e a habitantes comuns da Casa.

Limitado pela quantidade de Nada que chegava à superfície, Terça-Feira decidiu furar um poço e explorar a fonte. De uma perfuração apenas, surgiram túneis, abismos e escavações, até fazer com que todas as Regiões Afastadas se transformassem em um enorme fosso, um buraco horroroso que chega a ameaçar as fundações da Casa.

Para trabalhar em seu fosso em constante expansão, o horrível Terça-Feira buscou habitantes de outras partes da Casa, tomando-os dos outros Dias como pagamento pelos Artigos vendidos. Tais habitantes são pouco mais que escravos, contratados sem esperança alguma de, um dia, serem libertados.

Com o crescimento do número de trabalhadores, o horrível Terça-Feira precisou de mais funcionários para a supervisão. Contrariando as leis da Casa e com a utilização de enormes quantidades de Nada, Terça-Feira fundiu seus auxiliares Aurora, Meio-Dia e Crepúsculo e dividiu o produto em sete indivíduos, que são, em ordem de precedência: Yau, Tan, Tethera, Methera, Pits, Sethera e Azer. Antigamente, os pastores utilizavam esses termos, correspondentes a um, dois, três, quatro, cinco, seis e sete, para contar ovelhas.

Coletivamente, são conhecidos como “os Grotescos de Terça-Feira”, pois todos os sete apresentam algum tipo de deformação. Isso acontece porque o horrível Terça-Feira só consegue produzir cópias malfeitas do grande trabalho da Arquiteta.

Tethera e Methera são os dois Grotescos da ilustração. Tethera é subserviente e diz palavras doces, mas é capaz de atos maldosos e vingativos. Methera fala pouco e é cruel; usa palavras ferinas e gosta de ver a aflição alheia.

Tal como todos os Grotescos, Tethera e Methera têm mais poder do que a maioria dos habitantes, mas em todos os Aspectos são inferiores à Aurora, ao Meio-Dia e ao Crepúsculo dos outros Dias. Cuidado com o bafo deles e com o veneno que esguicham pelos polegares.

Apesar do Aspecto assustador da cópia mal-acabada pelas mãos de Terça-Feira, os Grotescos são servis e leais a seu criador e o adoram como cães a seus donos. Trazem no coração uma mistura de ódio, medo e obsessão.

Artur olhou mais uma vez para os dois Grotescos. Tinham acabado de pregar o aviso EM DEMOLIÇÃO e tiravam do carro outra placa de VENDIDO. Uma ruga de preocupação se formou na testa do garoto, e a tensão retesou todos os seus músculos.

“Como puderam comprar a casa tão depressa? Estarão realmente pretendendo construir um centro comercial ou tentam me impressionar?”

Os dois servos do Horrível Terça-Feira atravessaram a rua em direção ao gramado que havia na frente da casa de Artur. O garoto mal acreditou no que via quando eles começaram a pregar lá outra placa de VENDIDO. O que fazer? Atirar alguma coisa na cabeça deles? Bobagem. Os Grotescos eram Habitantes superiores da Casa e quase certamente não poderiam ser afetados por qualquer arma utilizada por Artur.

Mas era preciso agir! Ele fechou o Atlas e apressadamente enfiou o livro

no bolso. Então, desceu as escadas o mais depressa que pôde.

Aqueles sujeitos não iam demolir a casa dele para construir um centro comercial!

Capítulo 2Capítulo 2Capítulo 2Capítulo 2

Enquanto descia as escadas, Artur percebeu que a

música no estúdio cessou e a porta da frente bateu. Provavelmente, Bob também tinha visto os Grotescos. Artur tentou avisar o pai, mas de sua garganta saiu apenas um sussurro muito fraco:

— Não, papai, não vá lá fora! O garoto pulou os cinco últimos degraus e quase

caiu. Depois de recuperar o equilíbrio, correu e abriu a porta, bem a tempo de ver o pai atravessar o gramado, caminhando em direção aos dois Grotescos. Artur nunca o vira tão zangado.

— Ei! O que pensam que estão fazendo?! — gritou Bob.

— Papai! Volte! — pediu Artur. Mas Bob não ouviu. Ou estava nervoso demais

para ouvir. Tethera e Methera se viraram para encarar Bob. Tinham a boca aberta, aberta demais para quem ia só falar.

— Hah! — sopraram os Grotescos. Densas nuvens cinzentas saíram das bocas abertas e

envolveram Bob completamente. Alguns segundos depois, quando as nuvens se dissiparam, o pai de Artur continuava no mesmo lugar, mas já não gritava. Ele coçou a cabeça e voltou para casa, passando pelo filho sem vê-lo, com os olhos fixos e sem expressão.

— O que vocês fizeram com ele? — gritou Artur. O garoto desejou estar ainda de posse da Primeira

Chave, que tinha a forma de espada. Ele daria uma boa espetada nos Grotescos, sem qualquer hesitação. Mas não tinha a Chave, e um cuidado instintivo o fez se manter perto da porta, para o caso de os dois sujeitos soprarem outra vez.

Tethera e Methera fizeram uma leve reverência, uma inclinação de alguns centímetros apenas.

— Saudações, Artur, Lorde Segunda-Feira, Mestre da Casa Inferior — disse Tethera.

Sua voz era surpreendentemente melodiosa e suave. — Não tema por seu pai — continuou. — Aquilo

foi simplesmente o Bafo Cinzento, o sopro do esquecimento. Vai passar logo. Não costumamos usar o Bafo Escuro, o sopro da morte... a não ser que seja necessário.

— A não ser que seja necessário — repetiu Methera com aparente delicadeza.

Ambos sorriam ao falar, mas Artur percebeu a ameaça.

— Voltem para a Casa — ele disse. O garoto tentava dar à voz um tom autoritário, mas

a dificuldade de respirar atrapalhava. As últimas palavras saíram em um sussurro:

— A Lei Original proíbe que venham aqui. Voltem! Um pouco do poder da Primeira Chave tinha

ficado em sua voz. Os dois Grotescos recuaram, e a calma de seus rostos foi substituída por um ar carrancudo.

— Voltem! — repetiu Artur, levantando as mãos. Os Grotescos recuaram mais um pouco e então

pararam, juntos. Claro que Artur não tinha autoridade ou

poder para forçá-los, embora os tivesse impressionado. Os dois pegaram no ar lenços brancos encardidos e enxugaram a testa, subitamente molhada de suor.

— Nós obedecemos somente ao Horrível Terça-Feira, que nos mandou aqui para reclamar o que pertence a ele — disse Tethera. — Mas as coisas não precisam ficar complicadas para você e para os seus, Artur. Assine este papel e vamos embora.

— Assine e vamos embora — repetiu Methera em sua voz meio rouca.

Tethera meteu a mão no casaco e tirou um envelope branco e brilhante que foi diretamente para as mãos de Artur, como se fosse levado por um serviçal invisível. O garoto o segurou com cuidado. Ao mesmo tempo, Methera pegou uma pena e um vidro de tinta, e os dois Grotescos deram um passo à frente.

Artur recuou, com o envelope bem seguro, dizendo:

— Preciso ler primeiro. Os grotescos avançaram mais um passo. — Não precisa se preocupar — disse Tethera,

tentando convencer o garoto. — Está tudo muito claro. É um simples documento entregando a Casa Inferior e a Primeira Chave. Se você assinar, o Horrível Terça-Feira não vai cobrar a dívida do seu povo. Você vai poder viver aqui, neste Reino Secundário, tão feliz quanto era antes.

— Tão feliz quanto era antes — repetiu Methera com um sorrisinho malicioso.

— Ainda assim. Preciso ler — insistiu Artur. Ele não saiu do lugar, embora os Grotescos se

aproximassem cada vez mais. Os dois tinham um cheiro característico, parecido com o da terra quente molhada

pelos primeiros pingos de chuva. Não era exatamente desagradável, mas forte e um tanto metálico.

— Melhor assinar — disse Tethera com a voz subitamente ameaçadora, apesar do sorriso.

— Assine — falou Methera entre dentes. — Não! — gritou Artur. E, dizendo isso, ele deu em Tethera um empurrão

com a mão direita, a que tinha ficado mais tempo em contato com a Chave. Quando a palma de Artur tocou o peito do Grotesco, este foi cercado por uma luz elétrica azulada. Tethera cambaleou e teve de se apoiar em Methera para recuperar o equilíbrio. Os dois Grotescos recuaram, chegando quase à rua. Muito eretos, tentavam adotar uma postura digna. Tethera meteu a mão no bolso da frente do avental e tirou um relógio oval grande, que bateu as horas quando ele abriu a tampa.

— Você tem até o meio-dia. Depois, vamos começar a agir para a reintegração de posse — gritou Tethera. — Mas não vamos interromper a preparação. Quanto mais demorar, pior para você!

Eles entraram no carro, bateram as portas e partiram sem que se ouvisse qualquer ruído de motor. Artur ainda viu quando, a uns 20 metros, o veículo sumiu de repente, com um efeito luminoso semelhante a um arco-íris formado em dia de sol e chuva.

O garoto olhou para o envelope branco que tinha nas mãos. O papel era bonito, mas meio grudento. Como poderia ceder a Chave e o Domínio sobre a Casa Inferior, tão difíceis de se conseguir? Mas também não queria que sua família sofresse...

Família! Artur correu para dentro. Queria ver como Bob estava. Tethera não tinha razão para mentir, mas o bafo dos Grotescos parecia extremamente venenoso.

Bob tinha voltado para o estúdio. Artur pôde ouvi-lo falando, o que era bom sinal. Como a porta acolchoada, à prova de som, estava parcialmente aberta, o garoto meteu a cabeça, espiou e viu Bob sentado a um dos pianos. Com uma das mãos, segurava o telefone e, com a outra, tamborilava agitada e repetidamente uma nota no teclado. Ele parecia bem, mas, ao ouvir a conversa, Artur logo concluiu que, embora o efeito do Bafo Cinzento dos Grotescos tivesse passado, eles haviam cumprido a ameaça e continuavam a “preparação”.

— Como é que, de repente, passados 20 anos, a banda deve 12 milhões de dólares à gravadora? — perguntava Bob ao telefone. — Para início de conversa, eles sempre nos roubaram. Vendemos mais de 30 milhões de discos! Por favor! Não é possível!

Artur recuou. Os Grotescos tinham dado a ele uma hora e meia antes de começarem a agir para a reintegração de posse — sabe-se lá de quê. Mas mesmo aqueles ataques iniciais eram ruins para a família. Eles seriam moradores de rua, forçados a viver de esmolas...

Era preciso deter os Grotescos. Se, pelo menos, ele tivesse mais tempo para pensar...

Mais tempo para pensar. Aquela era a resposta, segundo Artur. Se entrasse

na Casa, ele teria mais tempo. Poderia ficar uma semana lá e, ao voltar a seu mundo, descobrir que haviam se passado apenas alguns minutos. Poderia perguntar a Will e a Meio-Dia (ex-Crepúsculo) o que fazer. E Suzy...

Seus pensamentos foram interrompidos por Michaeli, que descia pesadamente as escadas, trazendo na mão a cópia impressa de um e-mail. A garota tinha uma expressão preocupada que, com certeza, não era apenas o resultado de uma noite maldormida.

— Problemas? — perguntou Artur com certa hesitação.

— Cancelaram meu curso — respondeu Michaeli com um tom de incredulidade na voz. — Recebi um e-mail dizendo que a faculdade vai ser fechada, e o prédio, vendido, para pagar dívidas da universidade. Um e-mail! Pensei que fosse brincadeira, mas liguei para um professor e para a secretaria, e confirmaram. Poderiam ao menos ter mandado uma carta! Papai!

Ela entrou correndo no estúdio. Artur olhou outra vez para o envelope que tinha na mão, em dúvida. Então, decidiu-se: rasgou-o e o abriu. O documento estava nas costas do papel, que ele desdobrou para examinar melhor as palavras escritas em tinta verde, cor de bílis.

Como já esperava, o contrato era bem parcial: nada a favor dele. Longo, igual a todos os documentos da Casa, determinava que Artur abriria mão da Primeira Chave e do Domínio sobre a Casa Inferior em favor do Horrível Terça-Feira, reconhecendo assim as dívidas contraídas pelo fornecimento dos artigos listados no Anexo A. Não havia referência à família de Artur nem a outros aspectos.

A princípio, Artur pensou que faltasse o Anexo A, mas, quando chegou à última linha do documento, viu surgir outra folha. Nela estava a lista dos artigos que o antigo Sr. Segunda-Feira ou seus subordinados compraram e não pagaram, inclusive:

1.296 Comissionados de Metal, Modelo Padrão

12 Sentinelas de Metal Sob Medida. Recebida parte do pagamento. Resta 1/8 do total mais juros.

10.368 Bules de Chá em Prata com capacidade para um litro

497.664 Penas de Segunda Qualidade 864 Rolamentos para Portas de Elevadores 3.456 Barras Inclinadas de Bronze para Elevadores 100.000 Propulsores para Elevador com Garrafas de

Segurança 200.000 Metros de fios Imaginários para

Metacomunicação Telefônica 1 Estátua do Sr. Segunda-Feira em Bronze Dourado

Especial 77 Estátuas do Sr. Segunda-Feira em Bronze Comum 1.000 Quilos de Peixes de Metal em Bronze à Prova de

fogo semi-animados 13 Suportes para Guarda-chuvas feitos de fósseis de Pé

de Apatosaurus A lista parecia interminável. Toda vez que Artur

chegava à última linha, surgia outra página. Ele finalmente levantou os olhos, dobrou a folha e a guardou no bolso da calça.

A leitura da carta não mudou coisa alguma; só serviu para fortalecer ainda mais sua determinação de não assinar o documento. Ele tinha de chegar a Casa o mais depressa possível.

Ia sair quando se lembrou do telefone na caixa de veludo vermelho. Era melhor estar com o aparelho para o caso de Will arranjar dinheiro e ligar para ele.

Desta vez, subiu as escadas mais devagar. Não acreditava que a asma voltasse a atacar — se fosse o caso,

já teria acontecido —, mas não conseguia respirar normalmente e tinha um chiado constante.

A caixa de veludo vermelho continuava no mesmo lugar, mas, quando Artur levantou a tampa, viu que estava vazia. O telefone tinha desaparecido. No fundo da caixa, encontrou apenas um cartãozinho que, ao ser tocado, começou a se encher de palavras escritas pelo mesmo tipo de mão invisível que colocara inscrições no Atlas.

Este telefone foi desconectado. Ligue para o número 23489-8729-13783 na Casa Superior para providenciar nova conexão.

— Como? — perguntou Artur. Ele não esperava uma resposta, mas a mensagem

novamente apareceu no cartão, que ele atirou dentro da caixa, descendo em seguida, mais uma vez, as escadas.

Enquanto descia, Artur voltou a pensar na pergunta. Uma só palavra que cobria uma porção de problemas.

Como? “Como vou entrar na Casa? Ela não existe mais no

meu mundo.” Ele suspirou e coçou a cabeça. Nesse instante,

Michaeli subiu correndo as escadas. — Você pensa que tem problemas? — perguntou

ela ao passar pelo irmão. — Parece que papai vai ter de voltar a excursionar, e eu vou precisar arranjar um emprego. A sua única preocupação é ir à escola.

Quando Artur gritou uma resposta, Michaeli já estava longe.

— É, sim, minha única preocupação!

Ele continuou a descer as escadas devagar, com a cabeça tomada pelos pensamentos. Na outra vez, a Casa se manifestara fisicamente, ocupando vários quarteirões, mas tinha desaparecido quando Artur retornou, depois de derrotar o Sr. Segunda-Feira. Será que a Casa tinha voltado com a chegada dos Grotescos?

Só havia um meio de descobrir. Depois de uma olhada rápida para verificar se havia alguém olhando — um ou dois Grotescos, em especial —, ele saiu pela porta dos fundos e pegou a bicicleta.

Se Artur não fosse obrigado a parar em algum posto de checagem da quarentena, levaria apenas 10 minutos para chegar ao local onde ficava a Casa. Se ela estivesse lá novamente, ele tentaria entrar, fosse pelo Postem de Segunda-Feira ou pela Porta da Frente — desde que achasse um dos dois.

E se a Casa não estivesse lá? Ele teria de pensar em outra solução. Cada minuto dava aos grotescos oportunidade de fazer alguma coisa financeiramente terrível para sua família, seus vizinhos ou...

Artur acelerou, pedalando furiosamente por um minuto, até que a dificuldade de respirar o fez reduzir a velocidade.

Atrás dele, a placa VENDIDO, no gramado que ficava na frente de sua casa, estremeceu e entrou mais um pouco na terra.

Capítulo 3Capítulo 3Capítulo 3Capítulo 3

A Casa não estava lá. Pelo menos, sua manifestação no

mundo de Artur não tinha acontecido. No lugar do amplo edifício de arquitetura heterogênea, havia apenas as residências de sempre, os gramados e s garagens com uma cesta de basquete acima da entrada.

Artur pedalou por vários quarteirões na esperança de achar algum sinal da Casa. Se encontrasse um dos estranhos anexos ou um trecho do muro de mármore branco que a rodeava, sabia que descobriria um meio de entrar. Mas nada encontrou. Nem um sinal de que, um dia, a Casa estivera ali.

Ele se sentia pouco à vontade, pedalando à procura de uma coisa que não existia. E as ruas desertas o incomodavam ainda mais. Embora a quarentena estivesse menos rígida no perímetro urbano, a maioria das pessoas preferia ficar em casa, de portas e janelas fechadas. Artur só viu passar um veículo: uma ambulância. Ele ainda olhou para verificar se era a mesma da qual havia escapado no dia anterior e ficou satisfeito de ver que o motorista não parou nem reduziu a velocidade.

Ao terminar a volta em torno do último quarteirão, Artur começou a entrar em pânico. O tempo passava. Já eram llhl5. Ele só tinha 45 minutos para entrar na Casa e não sabia como fazer isso.

A visão de um jardim com degraus cobertos de musgo despertou-lhe a lembrança da Escada Improvável — a escada que ia a todos os lugares e todas as épocas, através da Casa e dos Reinos Secundários. Mas a Escada era perigosa e havia a possibilidade de terminar em algum local não desejado. Não valia a pena tentar, a não ser em último caso. Além do mais, ele provavelmente nada conseguiria sem estar de posse da Chave.

Tinha de haver outro caminho. Talvez, se ele conseguisse localizar o quartel-general dos Grotescos, encontrasse um jeito de voltar para a Casa...

Com o canto do olho, Artur viu algo se mover. Ele virou a cabeça e imediatamente ficou alerta. Havia alguma coisa desagradável naquela movimentação. Alguma coisa que lhe provocou uma espécie de choque elétrico de cada lado do pescoço, subindo pelas orelhas.

Aconteceu outra vez. Alguma coisa se moveu rapidamente no jardim da casa que ficava do outro lado da rua: da caixa de correio para a árvore; da árvore para o carro estacionado na entrada da garagem.

Artur posicionou o pé no pedal, pronto para escapar, e observou. Durante um minuto, nada aconteceu. Tudo ficou quieto, a não ser pelo zumbido distante dos helicópteros que patrulhavam o perímetro urbano.

A coisa mudou de lugar novamente, e Artur viu quando ela saiu do esconderijo atrás do carro e correu para um hidrante. Tinha aspecto e tamanho semelhantes aos de um coelho, embora o corpo rosa-pálido parecesse gelatinoso, pois se sacudia e mudava de forma a cada movimento.

Artur ajeitou a bicicleta no chão e pegou o Atlas, pronto para sua habitual abertura explosiva. Ele não

gostou do jeito da coisa. Talvez, fosse uma espécie de Nadica. Felizmente, apesar de rápida, parecia tímida.

O garoto viu sair de trás do hidrante uma pata que foi mudando de forma: de pata para garra e daí para uma espécie de mão rudimentar. Ele concentrou seus pensamentos naquela visão, enquanto agarrava com força o Atlas de capa verde.

“O que é aquilo que se esconde atrás do hidrante?” O Atlas se abriu. Embora já esperasse, Artur

recuou, quase caindo sobre a bicicleta. Desta vez, a mão invisível escreveu depressa e no

idioma de Artur, espalhando tinta por toda a página.

MAGRELO! CORRA! Artur levantou os olhos. O Magrelo vinha saltando

em direção a ele. No entanto, em vez de pequenino e aparentemente inocente, era uma figura humana da espessura de uma folha de papel, com mais de 3 metros de altura, cujos braços não terminavam em mãos, mas possuíam centenas de tentáculos, finos como fitas, que avançavam na direção do menino. Os tentáculos eram tão longos que cortaram o ar, bem perto do rosto de Artur, embora o Magrelo ainda estivesse a mais ou menos 5 metros de distância.

Não havia tempo de pegar a bicicleta. Artur se livrou dos tentáculos e correu a toda velocidade, carregando sob o braço o Atlas ainda aberto. Nem quando o livro se fechou e encolheu ele tentou guardá-lo no bolso. Não podia parar por um segundo sequer ou seria agarrado pelos tentáculos. Talvez o Magrelo os

usasse para ferroar, paralisar ou prender a vítima, de modo que pudesse agir à vontade.

Correndo e pensando sem parar, Artur chegou ao fim da rua. Lá hesitou por um instante, sem saber que rumo tomar, mas o Atlas apontou para a direita, e ele instintivamente seguiu a indicação. Na outra esquina, o Atlas mudou outra vez de direção, o que tornou a fazer daí a um minuto, levando o garoto a um beco, sem reduzir a velocidade. Artur logo percebeu que não poderia manter o mesmo ritmo. A temporada passada na Casa tinha melhorado, mas não curado, seus pulmões. Sua respiração chiava muito, e o aperto do lado direito já chegava ao esquerdo. Ele não agüentava mais.

Quase no fim do beco, Artur olhou para trás e não viu o Magrelo. Então, foi reduzindo a velocidade e parou ofegante, respirando com dificuldade. Somente naquele momento percebeu que, levado pelo pânico, tinha tomado a direção oposta à de sua casa. Ele não sabia onde estava. Portanto, não sabia onde se esconder.

Foi quando, com o canto do olho, percebeu uma movimentação. Era o Magrelo, em sua forma fluida, a uns 30 metros de distância. Ele saltava de esconderijo em esconderijo, avançando furtivamente.

Artur não sabia se aquele era um tipo de Nadica. Talvez, fosse outra coisa, alguma espécie de criação do Horrível Terça-Feira que os Grotescos tivessem usado para atacá-lo. Ele precisava saber mais. No entanto, perseguido por aquela criatura, não podia parar e consultar o Atlas. Tinha de encontrar um esconderijo. Uma casa, talvez...

De repente, o Magrelo saiu de trás de uma pilha de pedras para serem usadas na pavimentação do beco. Um

tentáculo, mais longo do que os outros, tocou as costas da mão de Artur, quando este se preparava para fugir. Apesar de fino, mais fino do que um cordão de sapato, e de mal ter tocado a pele do garoto, o tentáculo provocou um estrago, fazendo jorrar sangue, mais sangue do que seria normal para um arranhão tão pequeno.

Artur se encaminhava para um jardim bem tratado, em busca de abrigo, quando ouviu, vinda de uma casa próxima, uma voz que chamava seu nome:

— Artur?! Ele conhecia aquela voz. Era de Folha, a garota que

o havia ajudado em sua crise de asma, cujos parentes estavam entre as primeiras pessoas atacadas pela Praga do Sono. Artur a tinha visto rapidamente no dia anterior, enquanto percorria a Escada Improvável. Não fazia a menor idéia de onde Folha morava, mas ali estava ela, na varanda, olhando para ele muito surpresa. Ou olhando para o Magrelo...

— Cuidado! — gritou ela. Artur mudou de direção, evitando por pouco um

golpe do Magrelo. Artur saltou sobre um muro baixo de tijolos e caiu diretamente sobre a belíssima horta dos pais de Folha. Em seguida, subiu aos pulos os degraus e, sem parar de correr, entrou na casa pela porta da frente, que a garota fechou com força. Um segundo mais tarde, ouviu-se um som que parecia chuva grossa batendo no telhado; era o impacto de centenas de tentáculos sobre a porta.

— A sua mão está sangrando! — exclamou Folha enquanto passava o ferrolho. — Vou fazer um curativo.

— Não dá tempo! — gritou Artur ofegante. Já saía menos sangue do pequeno corte.

Artur abriu o Atlas, sem se importar com o aumento de tamanho do livro, e murmurou fracamente:

— Preciso... ver como... lutar... O som de chuva grossa no telhado fez-se ouvir

novamente. Folha engoliu em seco e saltou para trás quando vários tentáculos levantaram o ferrolho por baixo da porta e deslizaram para dentro. Ela pegou o primeiro objeto que encontrou: um guarda-chuva, e o atirou, mas os tentáculos agarraram o guarda-chuva e o quebraram em mil pedaços. Mais e mais tentáculos passaram por baixo da porta e começaram a serrá-la, movendo-se para a frente e para trás.

— A coisa está abrindo um buraco! — gritou Folha.

A garota derrubou um pesado vaso de barro com uma planta dentro e o fez rolar até junto da porta. Os tentáculos examinaram e espalharam a terra por alguns segundos, mas logo voltaram a serrar. A porta tinha uma estrutura de aço, mas isso não era problema para os tentáculos.

Artur se concentrou no Atlas. “Qual é o ponto fraco de um Magrelo? Como pode

ser derrotado?” Um pingo de tinta apareceu na página, mas não se

transformou em borrão. As palavras vieram rapidamente e, mais uma vez, no idioma e no alfabeto usados por Artur. A caligrafia também não era a mesma.

Magrelos são um tipo de Nadica especialmente desagradável.

Como saem de rachaduras muito estreitas, têm pouca substância. Tipicamente desenvolvem uma presença física mais definida nos Reinos Secundários, pois consomem sangue e linfa dos habitantes

locais. Nas primeiras fases, os Magrelos podem assumir várias formas, todas elas terminadas em tentáculos muito finos, cheios de dentes afiadíssimos. Tais tentáculos são utilizados para cortar as vítimas, que costumam ficar inconscientes. O Magrelo então bebe o sangue que escorre...

— Artur! A porta... — Como posso derrotar um Magrelo? — Artur

perguntou furiosamente. Prata é uma verdadeira maldição para os Magrelos, bem

como rutênio, ródio, paládio, ósmio, irídio e platina. Os caçadores de Magrelos costumam soprar pó de prata...

— Prata! Você tem alguma coisa de prata? —

perguntou Artur, falando com dificuldade. Enquanto ele fechava o Atlas, Folha agarrou o

braço do menino e o puxou para a cozinha. Assim que entraram, ela bateu a porta e correu para tentar arrastar a geladeira e usá-la como escudo. Artur guardou o livro no bolso e pegou a geladeira por um dos cantos, para ajudar. Nesse momento, ouviu-se o som terrível de madeira sendo estilhaçada.

— Entrou! Logo os tentáculos destruíam a frágil porta da

cozinha e arranhavam a geladeira. — Prata! Prata destrói a coisa! — repetiu Artur. E dizendo isso, abriu a gaveta mais próxima, mas

só encontrou utensílios de madeira e pauzinhos chineses usados para comer.

— Um garfo de prata serve!

— Não temos nada de metal! — gritou Folha. — Meus pais não comem com metal.

Vários tentáculos arrancaram e jogaram no chão a porta da geladeira. Outros entraram pelo buraco na porta e empurraram a geladeira, provocando o som desagradável das rodinhas de metal a deslizar sobre o piso.

— Jóias! — exclamou Artur, olhando em volta. — Você deve ter brincos de prata!

— Não! — disse Folha, abanando a cabeça com força e fazendo balançar os brincos que usava, de madeira e cerâmica.

Outro som agudo alertou Artur, um segundo antes que a geladeira começasse a tombar. Ele saltou e correu atrás de Folha, que se dirigia para a porta dos fundos.

Os dois saíram e Artur fechou a porta atrás deles, mas não havia tranca. Além do mais, era uma porta tão leve que não resistiria a um soco, quanto mais a tentáculos do outro mundo.

— Venha! — gritou Folha. E, dizendo isso, desceu correndo os degraus de

concreto, enquanto dizia: — Eu sei... nós temos prata em casa! A porta dos fundos levava a uma garagem que,

obviamente, jamais servira para receber carros; era parte estufa e parte área de guardados, com sacos de fertilizante empilhados perto de caixas identificadas por data e conteúdo.

— Procure uma caixa com a etiqueta MEDALHAS ou SALTO EM ESQUI! — instruiu Folha.

Enquanto isso, ela se virou, pegou uma chave que estava no pratinho embaixo de uma planta pendurada e trancou a porta. Ainda estava tirando a chave da fechadura

quando vários tentáculos passaram por baixo da porta e bateram no braço dela. O corte foi fundo, e ela cambaleou, contendo um grito. Depois, escorregou em uma bandeja de sementes e caiu pesadamente sobre um saco de terra.

Artur deu um passo em direção a Folha, mas a garota o empurrou, enquanto apertava o ferimento, na tentativa de conter a hemorragia.

— Medalhas de prata — sussurrou ela. — Em uma caixa. Papai ganhou muitas... quer dizer, chegou em segundo... medalhas de prata no salto em esqui. Antes de conhecer mamãe e virar neo-hippie. Depressa!

Artur olhou para a porta. O Magrelo a cortava tão facilmente como fizera com a porta da frente. Ele tinha menos de um minuto para encontrar as medalhas. Ou talvez apenas segundos.

Rapidamente, verificou as caixas, com a cabeça confusa pela quantidade de etiquetas que informavam data e conteúdo. Brinquedos de 10 anos atrás, uma enciclopédia, as pinturas da tia Manga, recibos de impostos, salto...

Alguma coisa se quebrou atrás dele, e Artur ouviu a respiração entrecortada de Folha.

O garoto pegou a caixa com a etiqueta SALTO, derrubando três outras, que caíram sobre o pé dele, mas ignorou a dor. Ao rasgar o papelão, provocou uma verdadeira chuva de caixinhas de veludo. Agarrou uma, abriu, pegou a medalha e arremessou na direção do Magrelo, que entrava.

A medalha voou com precisão, atingindo a figura muito fina bem no momento em que abaixava a cabeça para passar pela porta. O Magrelo deu um passo atrás,

surpreso, mas não pareceu afetado pelo toque do objeto em seu peito.

— É de ouro! — gemeu Folha. Artur já se abaixava para pegar outra medalha.

Dessa vez, abriu a caixa e lançou o conteúdo com um movimento brusco. Alguma coisa de prata brilhou no ar em direção ao Magrelo, que avançava. A medalha atingiu o alvo, mas não escorregou para o chão. Ficou pregada no peito da criatura como um ovo estrelado. Até o barulho da fritura era o mesmo.

O Magrelo soltou um gemido patético e dobrou o corpo para a frente. Em um segundo, estava reduzido a seu tamanho de coelho: apenas uma bolha de carne rosada, com a medalha de prata grudada, ainda chiando. Artur e Folha viram quando uma fumaça preta saiu da bolha: fumaça que formou uma espiral, mas não subiu nem se dissipou. Então, o Magrelo desapareceu, fazendo com que a medalha de prata se soltasse e caísse com um ruído característico sobre o chão de concreto.

— Como está o seu braço? — perguntou Artur ansiosamente, observando a medalha.

O sangue escorria entre os dedos de Folha, que parecia muito pálida.

— Está bem. Na cozinha, embaixo da pia, tem uma caixa de primeiros socorros. Traga aqui. E traga também o telefone. O que era aquilo?

— Um Magrelo — gritou Artur enquanto corria para dentro da casa.

Ele pegou a caixa de primeiros socorros e o telefone, apavorado com a possibilidade de encontrar Folha caída no chão, morta. Estranhamente, o corte na mão dele tinha se fechado por completo. Mal se via,

apesar de ter saído tanto sangue. Artur nem pensou mais em seu ferimento ao passar pela porta destruída.

Folha tinha os olhos fechados, mas os abriu ao sentir a presença do garoto, ajoelhado ao lado dela.

— Um Magrelo? O que é isso? — Não sei bem — disse Artur. Ele abriu a caixa e, muito contente por ter

freqüentado um curso de primeiros socorros no ano anterior e saber bem o que fazer, preparou um curativo e uma bandagem.

— Mantenha a pressão até eu dizer... pronto... largue.

Rapidamente, Artur ajeitou o curativo sobre os cortes profundos e enfaixou firmemente o braço de Folha, do cotovelo ao pulso. Havia muito sangue que, felizmente, não era sangue arterial, como ele temia. Folha ficaria bem, mas precisava de uma ambulância e de ajuda profissional.

Ele pegou o telefone e digitou o número de emergência. No entanto, antes que pudesse falar, a garota tomou o aparelho dele. Então, trocou algumas palavras com o operador, fazendo que não com a cabeça quando Artur tentou pegar o telefone de volta.

— Você não pode falar — disse ela depois de desligar. — Eu invento uma história. Você tem de ir...

Folha fechou os olhos, contraindo a boca e a testa, em sinal de concentração.

— Vá à antiga Fábrica de Papel Yeats, no rio. Chegue à parte de baixo do prédio para poder entrar na Casa.

Parecia que Folha tinha decorado um roteiro escrito por alguém.

— O quê? Como? — perguntou Artur.

O Atlas o tinha levado até Folha, mas... — A garota de asas, a que estava ontem com você

— disse Folha muito devagar. Via-se que ela estava entrando em choque. Artur

pegou um casaco em uma das caixas caídas e a envolveu com ele. Folha, porém, continuou a falar:

— Naquele momento, parece que eu desmaiei e foi como se ela estivesse aqui do meu lado. Ela me disse exatamente o que lhe falei. E ia falar mais, mas você me acordou antes.

— A Fábrica de Papel Yeats? Chegar à parte de baixo?

— Isso mesmo — confirmou Folha. — Não é o primeiro sonho real que tenho. Não esqueça que minha avó era uma bruxa.

Artur olhou para o relógio. Eram 11h32. Ele tinha menos de meia hora, e a fábrica de papel ficava pelo menos a 1,5 quilômetro. E nem sabia onde tinha deixado a bicicleta. Jamais chegaria a Casa antes que os Grotescos pusessem seu plano em prática.

— Não vou chegar a tempo — disse para si mesmo.

— Pegue a bicicleta de Ed — sussurrou Folha, apontando para a bicicleta de corrida preta e vermelha, pendurada entre três imponentes mountain bikes verdes. — Ele ainda vai ficar uns dias no hospital.

Artur se levantou, mas estava em dúvida. Preferia esperar os paramédicos.

— Pode ir — disse ela, passando a mão na testa. — Eles vão chegar em poucos minutos. Tenho certeza.

Ele ainda hesitou, mas logo ouviu o som de sirenes cada vez mais perto.

Folha sorriu e falou: — Não se trata de sexto sentido. É que eu escuto

bem. — Obrigado — agradeceu Artur. Em seguida ele pegou a bicicleta e pedalou em

direção à saída da garagem. A princípio, ficou meio confuso à procura do porteiro eletrônico, mas logo percebeu que ele teria que abrir a porta.

— Ei, Artur — chamou Folha em uma voz que era pouco mais que um sussurro. — Prometa que vai me explicar isso tudo.

— Prometo — gritou Artur em resposta. “Se tiver oportunidade.”

Capítulo 4Capítulo 4Capítulo 4Capítulo 4

Artur pedalou furiosamente até não agüentar mais.

Então, soltou os pedais e descansou, aproveitando a velocidade adquirida pela bicicleta. Em seguida, voltou a pedalar furiosamente. Ele não tinha certeza se conseguira recuperar sua respiração normal. Mas toda vez que pensava ter chegado ao limite, vinha um pouco de alívio. Seus pulmões, o direito em especial, pareciam feitos de velcro; resistiam a seus esforços, para, de repente, se soltar.

Ele procurou não olhar para o relógio, mas não conseguiu evitar rápidas olhadelas no ponteiro dos minutos, que parecia se mover rapidamente em direção ao 12. Quando chegou à cerca que protegia a Fábrica de Papel Yeats, eram 11h50. Artur dispunha apenas de 10 minutos, não sabia como ultrapassar a cerca e muito menos como chegar à parte de baixo — o que quer que fosse isso.

Na cerca, não havia buracos à vista, e o portão estava fechado com cadeado e corrente. Então, Artur decidiu não perder tempo. Subiu no assento da bicicleta de Ed, encostada em uma estaca, e saltou sobre ela. Embora se arranhasse no arame farpado velho e enferrujado, ele conseguiu cair no lado de dentro. Ao chegar ao chão, apalpou o bolso da camisa para ter a

certeza de que não o rasgara, com o Atlas dentro. Não queria perder o bolso, como havia acontecido uma vez.

“Parte de baixo... parte de baixo”, ia resmungando Artur, enquanto percorria o concreto rachado do piso do estacionamento em direção à grande construção de tijolos com seis chaminés. Fazia mais de uma década que nenhum papel era fabricado ali. O prédio tinha sido desativado para um empreendimento que nunca se concretizara. “Provavelmente um shopping”, Artur pensou amargamente.

Tinha de haver um depósito subterrâneo ou coisa parecida. Mas como encontrar o caminho?

Respirando com dificuldade, Artur correu para a primeira porta que viu. Estava trancada. Ele deu vários chutes, mas de nada adiantou. Então, foi para a porta seguinte. Esta parecia ter sido aberta recentemente, e a corrente estava frouxa. Artur empurrou e abriu a porta apenas o suficiente para passar.

Ele não sabia o que encontraria lá dentro, mas não estava preparado para o amplo espaço que viu. Toda a maquinaria antiga e as pilhas de entulho formadas pela derrubada das paredes internas tinham sido afastadas para os cantos, deixando ao centro uma área do tamanho de um campo de futebol. A luz entrava em raios pelas enormes clarabóias e pelos muitos buracos no telhado fino.

No amplo espaço central, havia uma estranha máquina. Artur concluiu imediatamente que não se tratava de uma relíquia da fabricação de papel, mas de alguma coisa pertencente à Casa. Do tamanho de um ônibus, parecia um cruzamento entre máquina a vapor e aranha mecânica. Tinha mais de 12 metros de comprimento,

pernas articuladas que saíam de um corpo cilíndrico em forma de bulbo — uma caldeira — e uma chaminé bem fina em uma das extremidades.

As pernas eram feitas de um metal vermelho que brilhava fracamente, mesmo nos locais onde a luz não incidia, e a caldeira era de um preto fosco que absorvia, mas não refletia, a luz.

Perto da máquina, estavam várias garrafas enormes, feitas do mesmo metal preto, todas mais altas do que Artur e com um diâmetro de 90 a 120 centímetros.

Artur se escondeu atrás de uma pilha de entulho para observar melhor. Como não havia ninguém à vista, ele passou rapidamente para a pilha seguinte e para a próxima. Ao chegar mais perto da máquina, teve a surpresa de ver uma mesa de escritório de aspecto comum. Sobre a mesa, havia um grande monitor com tela de plasma e um computador. A lâmpada piloto verde piscava, embora o fio de eletricidade estivesse enrolado e caído no chão. Havia alguma coisa na tela: gráficos e figuras.

Justamente quando Artur ia avançar para ver melhor, um Grotesco surgiu, vindo do outro lado da caldeira. O garoto não tinha certeza se era algum dos que tinha visto antes. Fosse quem fosse, porém, não estava disfarçado com roupas modernas; o avental de couro trazia marcas de queimadura e havia várias ferramentas no bolso da frente.

Artur se abaixou ao lado de uns tijolos e ficou imóvel. Cantarolando baixinho, o Grotesco pegou do chão uma pinça enorme e seguiu na direção das garrafas escuras.

— Bolha dupla, tripla, quádrupla, lá vai o mercado de ações para o buraco...

Entre resmungos, o Grotesco usou a pinça para apanhar uma das grandes garrafas, que lentamente levou até a caldeira. Apoiando a garrafa no chão por um instante, ele abriu um pequeno depósito que ficava abaixo da chaminé. Então, tirou de dentro do avental luvas, um capuz bem apertado e óculos de proteção com lentes de quartzo escurecidas. Depois de se equipar com tudo isso, ele tornou a pegar a pinça e ajustou a garrafa perfeitamente à abertura na caldeira.

Em seguida, ele falou. Disse três palavras em um idioma desconhecido por Artur, mas que o fizeram estremecer, da sola dos pés até a espinha. Palavras que causaram a dissolução do selo de cera que fechava a garrafa, liberando seu conteúdo, que foi despejado na caldeira.

O conteúdo era Nada. Artur viu sair da garrafa uma substância ao mesmo tempo líquida e gasosa. A maior parte caiu dentro da caldeira, mas um pouco escapou, formando tentáculos que se retorceram na direção do Grotesco. Depois de se desviar habilmente, ele sacou uma brilhante espada de cristal que estalava à medida que dela saíam faíscas de eletricidade.

O Nada que havia escapado começou a formar círculos, tomando uma forma definida. De início, pareceu que ia surgir um animal semelhante a um tigre, com garras e a boca de dentes grandes. Então, a criatura assumiu a forma humana, com tentáculos em lugar de mãos.

Um Magrelo! O Grotesco embainhou a espada de cristal e tirou

um dos muitos anéis que usava no dedo médio. Com a

forma bem definida, o Magrelo deu um salto à frente. Nesse momento, o Grotesco atirou o anel, que atingiu a criatura bem no rosto. Mais uma vez, Artur ouviu um chiado e, no momento seguinte, o Magrelo havia sumido. O anel quicou no chão com o som metálico da prata.

O garoto aproveitou o momento em que o Grotesco se abaixou para pegar o anel de volta e correu para outra pilha de entulho. De repente, o Grotesco se virou, já com a espada de cristal desembainhada. Artur recuou instintivamente, mas o outro não partiu para o ataque. Em vez disso, sorriu, apontou para a máquina e disse:

— Então, o Mestre da Casa Inferior veio apreciar meu estranho invento. Imagino que queira uma demonstração. Que tal uma amostra do que vai acontecer às 12 horas?

O Grotesco se postou ao lado da máquina e começou a girar um grande volante de bronze. A cada volta, vinha da caldeira um som agudo, até que começou a sair fumaça pela chaminé. Uma fumaça estranha, densa e cinzenta, salpicada de pintas negras. Nesse momento, os braços da máquina se levantaram no ar e começaram a se agitar de um lado para outro.

Artur olhou em volta ansiosamente. Independente do que a máquina fizesse, não seria boa coisa. Ele tinha de encontrar um meio de entrar na Casa!

— Subida de 15% no petróleo! — gritou o Grotesco.

Em seguida, ele disse outra palavra que fez Artur se sentir mal. Em resposta, as pernas da aranha pararam por um momento e depois começaram a se mover em um ritmo constante, hipnótico. A cada movimento, rastros

luminosos saíam das extremidades, ofuscando os olhos de Artur. Rastros brilhantes que lembravam vagamente fórmulas e símbolos matemáticos, embora o garoto não reconhecesse nenhum.

Na tela de plasma, os gráficos desapareceram de repente, substituídos pelo logotipo de um noticiário. Em seguida, surgiu a imagem de uma apresentadora de telejornais, com a legenda SÚBITO ABALO NO MERCADO DE PETRÓLEO. O barulho provocado pelo funcionamento e pela movimentação dos braços da máquina impedia Artur de ouvir, mas ele podia imaginar o que ela dizia.

A estranha máquina do Grotesco, de algum modo, tinha elevado o preço do petróleo em 15%.

— Que ações o seu pai possui? — ironizou o Grotesco. E, tirando um papel do bolso do avental, continuou:

— Ah, já sei. Music Supa-Planet. Baixa de 15%. Mais uma vez, a criatura pronunciou uma palavra

que abalou Artur, provocando-lhe uma pontada nas articulações. As pernas da aranha começaram uma dança diferente, escrevendo cuidadosamente no ar, em padrões de luz, suas estranhas fórmulas.

Artur balançou a cabeça, tentando clarear as idéias e afastar os efeitos da luz e das palavras. Quando repetiu o movimento, viu alguma coisa: uma portinhola na base de uma das grandes chaminés, a porta de uma espécie de alçapão entreaberta.

“As chaminés passam abaixo da superfície. Tem de haver um caminho.”

Ele correu para a portinhola, com a voz do Grotesco a ecoar em seus ouvidos, acima dos sons produzidos pelo funcionamento do motor.

— Northern Aquafarms, baixa de 25%! Artur alcançou a entrada do alçapão. No momento

em que abriu a porta, o barulho do motor cessou subitamente. Ao se virar para trás, ele viu o olhar maligno que o Grotesco lhe dirigia.

— Vá aonde quiser, Mestre da Casa Inferior. A Máquina só parou por falta de combustível. Mas eu já vou dar um jeito nisso!

Artur estremeceu, mas não parou. Abaixou a cabeça e se meteu no alçapão. Acabava de entrar, quando o Grotesco gritou alguma coisa: uma palavra que fez doerem seus ossos e dentes e fechou a porta atrás dele, cortando toda a luz.

No breve momento antes do fechamento da porta, Artur conseguiu ver que a chaminé tinha, pelo menos, uns 10 metros de diâmetro, com degraus muito gastos em caracol. Em total escuridão, desceu às apalpadelas, com o cuidado de não jogar o peso do corpo antes de ter certeza de encontrar o degrau. Não foi a primeira vez que lamentou a falta da Primeira Chave, pela luz que irradiava e por outros motivos.

Finalmente, Artur chegou ao fundo, que encontrou inundado, com a água lhe chegando aos tornozelos. O rio passava perto. Provavelmente ele estava em uma área que ficava abaixo do nível da água. A idéia de que a força do rio poderia romper as paredes não ajudava em nada. Em especial, naquela escuridão absoluta.

Mas tinha de haver uma saída. Um caminho para a Casa. Ou não havia? Artur começou a pensar que talvez o

tivessem atraído para uma armadilha. Quem sabe, aquela fosse somente uma chaminé. E ele tinha entrado nela, como um perfeito idiota.

“Pode ser que o Grotesco faça entrar mais água. Será que o nível já está subindo?”

Artur tateou as paredes. Começava a entrar em pânico e ter os pés na água fria não era bom para sua respiração. O pulmão direito já se fechava, e o esquerdo fazia um esforço enorme para trabalhar pelos dois.

Foi então que sua mão tocou uma coisa arredondada, do tamanho de uma maçã, que se destacava da parede. Uma coisa lisa. De madeira, e não de tijolo.

Uma maçaneta. Artur deu um suspiro de alívio e girou a maçaneta.

A porta se abriu para dentro. Ele tropeçou na soleira e cambaleou. Seu estômago revirou com a queda. Diretamente para baixo!

Igual a quando entrou na Casa, Artur caiu lentamente como um saco plástico levado pela brisa do verão. No escuro.

Desta vez, porém, ele não dispunha da Chave para guiá-lo naquele espaço intermediário, que não pertencia a seu mundo nem à Casa. Ele podia cair para sempre sem chegar a lugar algum...

Artur rangeu os dentes e tentou pensar positivamente. Ele tivera a Primeira Chave. Era o Mestre da Casa Inferior, embora houvesse transferido seus poderes a um Procurador. Ele tinha certeza de que ainda restava mágica em suas mãos, devido ao contato com a Chave.

Tinha de restar algum poder.

Artur estendeu a mão direita e imaginou segurar a Chave. Uma Chave brilhante.

— Leve-me para a Porta da Frente! — gritou. As palavras saíram estranhamente sem expressão.

Não houve eco nem ressonância. Por alguns segundos, nada aconteceu. Então, Artur

viu um brilho muito pálido formar-se em volta das juntas de seus dedos. Estava tão escuro que ele custou a perceber de que se tratava. A luz lhe deu um certo conforto, e ele tentou concentrar-se nela, desejando que ficasse mais forte. Ao mesmo tempo, em voz baixa, continuou a repetir:

— Leve-me para a Porta da Frente. Leve-me para a Porta da Frente...

O pulso do garoto estalou quando sua mão foi puxada por uma força invisível. Ele sentiu a queda se transformar em uma descida mais suave.

— Leve-me para a Porta da Frente. Leve-me para a Porta da Frente. Leve-me...

Bem longe, uma luzinha chamou a atenção de Artur. Estava tão distante que não passava de uma bolha luminosa, mas o garoto tinha certeza de estar indo naquela direção. Sabia também que, à medida que se aproximasse, veria surgir um enorme retângulo de luz fortíssima.

Aquela tinha de ser a Porta da Frente da Casa.

Capítulo 5Capítulo 5Capítulo 5Capítulo 5

Para algum alívio de Artur, a luz cresceu e tomou o

aspecto exato da Porta da Frente. A diferença foi que, desta vez, como se aproximava lentamente, ele teve tempo de se preparar para o choque de cair do outro lado — no gramado da Colina da Porta Aberta no Pátio da Casa Inferior.

Uma vez lá, ele imaginava que fosse relativamente fácil chegar à Sala de Estar de Segunda-Feira. Ou teria mudado de nome para Sala de Estar de Artur, Sala de Estar do Testamento ou alguma coisa diferente? Em todo caso, ele encontraria Will e Suzy lá e, juntos, descobririam o que fazer a respeito do Horrível Terça-Feira e seus subordinados.

Artur ainda estava pensando quando se sentiu flutuar delicadamente em direção à Porta. Ao chegar lá, porém, foi empurrado para a frente por uma tremenda força. Absolutamente surpreso pela pancada nas costas, ele saiu aos trambolhões e entrou de cabeça no brilhante retângulo de luz.

Por um instante, Artur teve a impressão de estar sendo virado do avesso, de ser levado em várias direções ao mesmo tempo. Chegou de pé ao outro lado, mas perdeu o equilíbrio e caiu sobre as mãos e os joelhos. Uma dor irritante foi o sinal de que não havia caído na grama. Além do mais, estava completamente escuro, sem

ao menos a luz suave do distante teto do Pátio. Não havia os feixes de luz dos elevadores para iluminar o cenário. E, pior, a fumaça tomava todos os espaços — uma fumaça densa e enjoativa que fez os pulmões de Artur se contraírem e diminuírem de tamanho.

Antes que Artur se interasse da situação, ou ao menos tossisse, alguém o agarrou pelos ombros. Ele foi puxado para cima e para trás. Artur sufocou a tosse e instintivamente gritou. Mas o grito não chegou ao fim; foi interrompido quando uma espécie de líquido envolveu o garoto. Ele teve a impressão de estar se afogando na água, mas uma palmada firme nas costas o fez perceber que, fosse o que fosse aquele líquido, não se tratava de água e não entrava no nariz e na garganta. No momento seguinte, ele estava livre e voltava a sentir o ar. Tinha atravessado uma espécie de membrana ou barreira líquida.

O lugar onde Artur se encontrava parecia extremamente nebuloso, com as cores borradas, como se ele estivesse com o nariz apertado contra um vitral e visse tudo através dele.

— Pisque os olhos e relaxe — instruiu a pessoa que o segurava pelos ombros.

A voz masculina era grave e calma e parecia vagamente familiar. Artur só precisou de um segundo para descobrir de quem era. Do Tenente Guardião da Porta da Frente.

Artur piscou os olhos várias vezes e procurou relaxar. Aos poucos, as cores se firmaram e ficaram menos borradas, pelo menos quando ele olhava para a frente.

— Estamos dentro de alguma espécie de bola de vidro multicolorida? — perguntou Artur depois de um momento.

Eles certamente estavam dentro de alguma coisa esférica, com uma luz interna que girava e se dividia em muitas cores.

— Estamos em uma bolha temporária dentro da Porta — explicou o Tenente Guardião.

Dizendo isso, soltou os ombros de Artur, ficou na frente dele e fez uma saudação. Como na vez anterior, usava um paletó azul com uma dragona dourada.

— Uma bolha que reduz o efeito da Porta sobre as mentes mortais. Temos apenas um breve intervalo antes de seguirmos para as Regiões Afastadas...

— Regiões Afastadas? — interrompeu Artur assustado. — Mas eu queria ir para o Pátio da Casa Inferior!

— A Porta da Frente abre em várias partes da Casa, mas a porta pela qual você entrou, nos Reinos Secundários, leva apenas às Regiões Afastadas e à estação da estrada de ferro do Horrível Terça-Feira.

— Eu não posso ir para lá! — Você deve ir — declarou o Tenente Guardião. —

Você já esteve lá. Eu o peguei de volta, mas não posso mantê-lo dentro da Porta por muito tempo. Você deve ir. Esta é a Lei da Porta.

— Mas... — começou Artur, tentando organizar as idéias. — Tudo bem. Se eu tenho de ir para as Regiões Afastadas... Você pode mandar uma mensagem minha para Will ou Suzy na Casa Inferior?

— Aquela parte do Testamento... Will... agora se chama Primeira Dama — explicou o Tenente Guardião. — Lamento, mas não posso enviar mensagens não oficiais para quem quer que seja. Posso ficar de posse da

mensagem, mas transmiti-la, só se quem vai receber vier me perguntar.

Dizendo isso, ele desabotoou uma parte do paletó e pegou um relógio, que tocou uma melodia repetitiva ao ser aberto. Então, observou com atenção o mostrador e avisou:

— Em 2 minutos, devo mandar você de volta às Regiões Afastadas.

— Pode me arranjar um disfarce? — perguntou Artur desesperadamente.

O Tenente Guardião o havia ajudado antes. Tinha oferecido uma camisa e um capuz, de modo que ele não se destacasse na Casa Inferior. Nos domínios do Horrível Terça-Feira, o disfarce seria ainda mais necessário.

— Isso eu posso fazer. Já esperava que me pedisse. O Tenente Guardião estendeu a mão até atravessar

as paredes brilhantes da esfera. Na volta, trazia a ponta de um varal de estender roupas, que foi puxando. À medida que os pregadores se soltavam, peças caíam no colo de Artur: calça e paletó desbotados estilo pijama, um estranho manto com capuz feito de material rústico cor de barro e um avental de couro muitas vezes remendado.

— Vista a roupa de trabalho sobre a que está usando — instruiu o Tenente Guardião. — Você vai precisar de muitas camadas para se aquecer. Guarde o manto para mais tarde.

Artur vestiu a calça e o paletó e amarrou por cima o pesado avental de couro. Seguindo as instruções, guardou para outra ocasião o manto, difícil de dobrar, feito de um material que ele não conseguiu identificar.

— Barro estabilizado — explicou o Tenente Guardião ao ver Artur observar a peça grande demais para

ele. — É um material barato e protege contra a chuva de Nada, que cai no Fosso. Enquanto durar.

— Chuva de Nada? — perguntou Artur. Ele também não gostou da entonação usada pelo

Tenente Guardião ao falar do Fosso. Ainda se lembrava de como o Atlas se referia ao local: uma grande ferida nas fundações da Casa.

— O Fosso é tão extenso que se formam nuvens e cai uma chuva constante — disse o Tenente Guardião enquanto pegava do outro lado da barreira um par de tamancos de madeira acolchoados com palha. — A chuva concentra e despeja sobre o Fosso a poluição do Nada.

— Mas o que é o Fosso exatamente? — perguntou Artur.

Tudo o que o garoto sabia tinha aprendido no Atlas: o Fosso era uma espécie de escavação gigante e representava um perigo para a Casa.

— Infelizmente, muito em breve você vai ver por si. O difícil é ficar fora dele. Ao chegar lá, procure sair o mais depressa possível. Agora, calce os tamancos. Mas pode ficar com as suas meias. Elas não são estranhas o suficiente para chamar atenção.

Artur trocou os tênis confortáveis, anatômicos e projetados por computador pelos tamancos de madeira acolchoados com palha, que ficaram largos e mostraram-se extremamente desconfortáveis. Mal conseguia andar com eles; os calcanhares sempre ficavam de fora.

— Não consigo andar com isso — protestou. — Todos os Habitantes contratados usam — disse

o Tenente Guardião. — Você não pode arriscar ser denunciado por causa do calçado. Quanto à névoa que

enche o ambiente, contém minúsculas partículas de Nada. Se fazem mal aos Habitantes, provavelmente são capazes de matar um mortal. Com que mão você segurava a Chave na maior parte do tempo?

— Com a direita — respondeu Artur. — Então, ponha dois dedos da mão direita nas

narinas e o polegar na boca. Enquanto respira, diga estas palavras: Primeira Chave, faça-me este favor: que o ar que respiro seja limpo e seguro e me livre de todo o mal.

— O quê? O Tenente Guardião repetiu as instruções e

acrescentou: — Talvez seja preciso renovar as palavras mágicas,

porque elas também serão afetadas pela névoa, e os poderes da Chave estarão mais fracos. Não fique muito tempo nas Regiões Afastadas. E muito menos no Fosso.

— Não vou ficar, se conseguir — resmungou Artur. — Em todo caso, acho que sempre posso usar a Escada Improvável, se for preciso.

O Tenente Guardião fez que não com a cabeça. — Quer dizer que não posso usar a Escada? —

perguntou Artur. Ele sabia que a Escada representava um risco, mas era uma opção, pelo menos. Como um pára-quedas ou uma escada de incêndio. Uma pequena esperança de escapar de um desastre.

— Você jamais chegaria a um lugar favorável — explicou o Tenente Guardião. — Não sem a Chave ou um guia experiente.

— Ótimo — disse Artur com certo desânimo. Com cuidado, ele enfiou os dedos nas narinas e o

polegar na boca. Foi difícil, mas não impossível, dizer as palavras mágicas. Ao terminar, sentiu um formigamento

no nariz e na garganta e soltou um espirro fortíssimo, que chegou a jogá-lo para trás.

— Isso mesmo — falou o Tenente Guardião, consultando novamente o relógio. — Agora devemos devolver você ao seu destino. Fiz o que pude, Artur Penhaligon, e mais do que devia. Tenha coragem e assuma os riscos apropriados. Assim, vai conseguir.

— Mas... por favor... diga a alguém aonde eu fui... Antes que Artur pudesse concluir o que dizia, o

Tenente Guardião fez uma saudação, posicionou-se atrás dele e deu-lhe um empurrão. Desequilibrado, Artur atravessou a estranha barreira líquida e, mais uma vez, caiu de mãos e joelhos no frio chão de pedras. Com o tombo, o tamanco se soltou do pé esquerdo, e o capuz caiu no rosto.

Artur ainda estava atrapalhado com o capuz quando uma luz forte caiu sobre ele, obrigando-o a proteger os olhos do brilho de uma lanterna carregada por uma figura baixa e troncuda. Com a luz ofuscada pela névoa, por um segundo o garoto pensou estar diante de uma espécie de homem-porco. Em seguida, porém, percebeu que se tratava do visor móvel de um capacete. O sujeito usava também um peitoral de bronze sobre um casaco comprido de couro e trazia uma espada larga e curva enfiada na cintura. O mais estranho era um dispositivo que tinha nas costas, preso a uma armadura: uma espécie de máquina de vapor em miniatura que lançava fumaça na altura do pescoço e pequenos sopros na altura dos cotovelos.

O tal dispositivo talvez fosse o responsável pela névoa densa que cercava o sujeito: tão densa que Artur mal distinguia algumas luzes e a movimentação de uma ou

outra forma. Até os sons vinham abafados. Ele ouvia um ruído distante, como se houvesse em algum lugar uma multidão, além de um barulho metálico, parecido com o de máquinas em funcionamento.

— Mais um caído! — gritou o sujeito da lanterna para alguém oculto pela névoa.

Pela voz, parecia que ele não tinha dentes ou havia alguma coisa errada com sua língua. Ou talvez tivesse algo a ver com o capacete de porco.

— Levante-se! — ordenou a figura envolta em vapor. — A partir de agora, você está a serviço do Horrível Terça-Feira e deve ficar em pé na presença dos Supervisores.

— Estou? — perguntou Artur enquanto se levantava.

Sua voz trêmula não era um completo fingimento. E ele continuou:

— Eu bati a cabeça... Você é um Supervisor? O Supervisor praguejou em um idioma que Artur

não conhecia. A Chave lhe possibilitava falar todas as línguas da Casa, mas sem ela conseguia entender apenas a lingua domus, falada pelos Habitantes da Casa. Os dialetos próprios de cada território fugiam à sua compreensão.

— Mais artigos danificados! — continuou o Supervisor. — Os outros Dias estão sempre nos atrapalhando. Venha comigo! Obedeça às ordens ou vai receber um jato de vapor.

Para demonstrar que falava sério, o Supervisor pegou uma espingarda de calibre grosso, do tipo que piratas e ladrões de estrada usam nos filmes, mas conectada por um tubo à máquina de vapor em miniatura que levava às costas. Ele armou o cão da espingarda e

puxou o gatilho. A arma disparou, lançando no ar uma chuva de faíscas e uma rajada de vapor que passou zunindo perto de Artur. O garoto recuou e saltou para o lado, para satisfação do Supervisor.

— Arrá! Nunca tinha visto nada parecido, não é? Comporte-se e vai preservar um pouco de carne no seu corpo esquelético.

Artur foi obrigado a saltar de novo, ao levar um empurrão que o jogou no meio da névoa. Ele só teve um momento para olhar sobre o ombro, a fim de registrar o local onde estava para o caso de uma futura escapada. Viu uma porta imponente, com mais de 10 metros de altura, mas não parecia ser a Porta da Frente. Feita de madeira entalhada, ela mostrava cenas de um homem alto e magro, provavelmente o Horrível Terça-Feira, trabalhando em uma forja sobre a bancada, adorado por centenas de discípulos vestidos com aventais. Mas as cenas eram estáticas; não havia movimento. Além do mais, estavam cobertas de fuligem e manchadas como se alguém tivesse respingado ácido em toda a superfície. Não se pareciam em nada com as imagens coloridas, vibrantes e em constante movimento encontradas na Porta da Frente. Com certeza, aquela podia ser a Porta da Frente, já que Artur havia passado por ela, mas naquele momento não era. Sua utilização dependia de algum segredo.

Por ali, não seria fácil escapar. O Supervisor deu outro empurrão em Artur, desta

vez para a direita. O garoto viu que era conduzido para o fim de uma fila de Habitantes com expressão triste que se perdia na névoa. No momento em que Artur chegou, a fila avançou um pouco, dissipando a névoa e permitindo que ele visse de relance o local para onde se dirigia: uma

mesa comprida de mogno, a uns 15 metros de distância, onde cada Habitante recebia um avental de couro e um manto que parecia mais grosso que o de Artur.

— Entre na fila e pegue o seu material — disse o Supervisor com um último empurrão.

Nenhum dos Habitantes se voltou para olhar quando Artur entrou na fila. Simplesmente avançaram um pouco, arrastando os pés, sempre de olhos baixos.

O garoto quase disse que já tinha o material, mas resolveu ficar de boca fechada. O Supervisor podia não gostar de ver sua tolice revelada. Ou talvez houvesse outro material a ser recebido, além de aventais de couro e mantos.

Depois que o Supervisor desapareceu em meio à névoa, Artur hesitantemente tocou no ombro do Habitante que estava à sua frente. Era uma mulher vestida com aquela estranha combinação de roupas do século 19 que ele tinha visto na Casa Inferior. A mulher usava um vestido longo e rasgado como base de um traje extravagante que parecia incluir pelo menos uma dúzia de lenços enrolados nos braços e no tronco.

O toque de Artur no ombro da mulher não teve o efeito esperado. A Habitante encolheu, diminuindo uns 15 centímetros de altura, sem dobrar os joelhos. Ela se virou para trás assustada. Obviamente, esperava encontrar alguém muito mais assustador do que Artur.

— Perdão, senhor — ela murmurou, afastando o cabelo da testa. — Não foi culpa minha. O que quer que tenha acontecido.

— Ah, desculpe — disse Artur. — Acho que me confundiu com alguém. Não sou um Supervisor ou coisa parecida. Sou... ah... um de vocês.

— Um trabalhador contratado? Você? — perguntou a Habitante incrédula. — Então, como...?

Ela fez um gesto com a mão, dando um tapa no alto da cabeça. Estava muito mais baixa do que antes de Artur tocar em seu ombro.

— Não fiz por mal — apressou-se a dizer o garoto de forma quase ininteligível. — Não sei como aconteceu. Bati com a cabeça e esqueci tudo. Onde estamos?

— Nas Regiões Afastadas — sussurrou a Habitante. Ela ainda apalpava o alto da cabeça e parecia confusa.

— O seu contrato deve ter sido feito pelo Horrível Terça-Feira. Agora, você é um trabalhador contratado.

— Sssshhhh! — fez o Habitante que estava logo à frente na fila. — Falem baixo! O último que foi apanhado falando levou um jato de vapor... E sobrou para quem estava por perto. Eu não quero ser vaporizado.

— De onde você vem? — perguntou baixinho Artur à mulher.

— Da Casa Superior. Eu era Ornamentadora Principal de Terceira Classe. Não sei por que fui mandada para cá. Devo ter feito alguma coisa errada. Você é uma das crianças do Tocador de Gaita ou foi encolhido? Isso acontece aqui. Não pensei que fosse me acontecer tão cedo...

— Calados! — disseram dois Habitantes que estavam um pouco mais afastados. — Aí vem o Supervisor!

Um Supervisor surgiu da névoa. Ele parou para observar os Habitantes. Seus dedos grossos e calejados não paravam de tamborilar na arma de vapor. Artur percebeu uma onda de medo percorrer a fila. Todos

fizeram uma reverência muito discreta e imediatamente voltaram à total imobilidade.

O Supervisor observou a fila por alguns segundos e logo retornou. Artur enxergou vagamente duas ou três outras filas de Habitantes, todos à espera de material básico para o trabalho. Talvez ainda houvesse outras filas.

Depois que o Supervisor se foi, ninguém mais falou. Todos avançavam passo por passo, e Artur não voltou a tocar no ombro da mulher à sua frente. Teve medo de fazê-la encolher ainda mais. Ela também não olhou para trás.

Finalmente, Artur chegou ao primeiro lugar da fila. O Habitante que estava atrás da mesa ia entregar a ele uma pilha de roupas, mas parou. Era um homem baixo — parecia um nabo — e a parada repentina quase o fez cair. Na tentativa de manter o equilíbrio, ele largou as roupas e agarrou-se à mesa. Por pouco não derrubou a placa que dizia ENCARREGADO DE FORNECIMENTO em letras folheadas a ouro.

— Você já tem! — disse o encarregado. — Tenho o quê? — perguntou Artur. Ele julgou que fazer papel de bobo seria a melhor

defesa. — Avental de couro, um; capa de chuva com capuz

feita de barro estabilizado, uma; tamancos de madeira compensada, um par — respondeu o Habitante. — O que faço?

— Não sei — respondeu Artur. — Que tal me mandar seguir adiante?

Onde quer que fosse adiante. Por mais que prestasse atenção, Artur não conseguiu concluir para onde iam os Habitantes depois de receberem aventais e capas. Eles

saíam pelo lado esquerdo da mesa e desapareciam na névoa. Ele também não descobriu de onde vinham os aventais, as capas e os tamancos. Os objetos pareciam sair do tampo da mesa de mogno maciço.

— Não sei se isso é permitido — resmungou o encarregado do fornecimento.

— Você pode perguntar — sugeriu o Habitante que estava na fila logo atrás de Artur.

— Perguntar? — estranhou o encarregado. Ele olhou em volta nervosamente e continuou: — Aqui não se pergunta nada. Perguntar só dá

problema. — Que tal fingir que não me viu e me deixar ir

embora? — ofereceu Artur. — O próximo! — chamou o encarregado do

fornecimento, esticando o pescoço. Artur hesitou por um momento sem saber para

onde ir. O encarregado coçou o nariz e colocou na boca a mão em concha, de modo que pudesse sussurrar:

— Vire à esquerda e desça as escadas. O garoto seguiu na direção indicada, mas quase

caiu ao chegar à escada, pois só viu os degraus quando pisou no primeiro. Estavam quebrados, cobertos de fuligem e perigosamente escorregadios. Enquanto descia, ele procurou pensar em como escapar dali. Mas não teve nenhuma idéia brilhante. Só conseguia pensar nas palavras do Tenente Guardião: “Assuma os riscos apropriados.”

Mas quais eram os riscos apropriados? Artur ainda pensava nisso quando chegou ao

último degrau. O ambiente era parecido com o de cima: escuro e enfumaçado, a não ser por uma luz difusa, que poderia estar entre 9 e 13 metros à frente. Artur se pôs a

caminho, com os tamancos a estalar no chão de pedra. De vez em quando, abanava com os braços para dissipar um pouco a névoa densa de cheiro desagradável. Felizmente, as palavras mágicas ensinadas pelo Tenente Guardião estavam funcionando. Artur se sentiu satisfeito por haver seguido as instruções, embora se sentisse ridículo com os dedos enfiados no nariz.

A luz vinha das extremidades de outra mesa larga de mogno, também vazia, exceto por uma placa idêntica à do andar de cima, onde também se lia ENCARREGADO DE FORNECIMENTO em letras douradas. O tal encarregado de fornecimento era ainda mais baixo e atarracado que o outro; era tão baixinho que mal chegava à cintura de Artur e ficava praticamente invisível em seu posto atrás da mesa.

Ao ver o garoto, ele pareceu mergulhar os dedos no tampo da mesa, tirando de lá uma lanterna encardida pela fumaça com a alça mal emendada.

— Lanterna de tespentade, de lubrificação automática.

— Lanterna de tempestade, você quer dizer — corrigiu Artur.

— No meu livro, está lanterna de tespentade— insistiu o encarregado. — Corra e se junte ao seu grupo. Siga os trilhos aqui atrás. Mas, se ouvir um apito, afaste-se.

— Esta lanterna de tempestade... perdão... de tespentade... está quebrada — apontou Artur.

— Estão todas assim — suspirou o encarregado, indicando outras. — O padrão é esse. Suponho que nosso senhor e mestre tenha coisas melhores a fazer do que consertar lanternas. Não adianta reclamar. Reclamei uma vez, e veja o que aconteceu.

Artur olhou para o homem sem entender. — Diminuí de tamanho, viu? Era Fabricante de

Quarta Classe e tinha mais 30 centímetros de altura antes de ser tolo o bastante para reclamar do mau estado das lanternas de tespentade. Ainda bem que não fui mandado para o Fosso. Agora, é melhor você ir, antes que me cause mais problemas.

— Qual é o seu nome? — perguntou Artur. O garoto considerou que o encarregado poderia ser

um contato útil. Pelo menos, não se negara a falar do Horrível Terça-Feira e do Fosso.

— Nome! Encarregado de Fornecimento 1.252. E vá logo, antes que apareça um Supervisor! Dê a volta na mesa e siga os trilhos.

Artur obedeceu e começou a caminhar, segurando bem alto a lanterna. Mas, antes que desaparecesse na névoa, o encarregado de fornecimento pigarreou. Artur se virou para olhar.

— Matias. Esse era o meu nome — falou baixinho o homem. — Não sei quem é você, mas alguma coisa me fez ter vontade de dizer. Boa sorte no Fosso. Vai precisar.

Capítulo 6Capítulo 6Capítulo 6Capítulo 6

Os trilhos ficavam a uns 10 metros da mesa, mas Artur

só conseguiu vê-los quando tropeçou no primeiro. Iluminando-os com a lanterna, percebeu que eram feitos de um metal fosco parecido com bronze e ficavam bem afastados um do outro — 2, 5 metros, pelo menos — formando o que ele imaginou ser uma bitola mais larga do que todas em seu mundo. Os dormentes sob os trilhos eram de pedra, em vez de madeira ou concreto, e a brita que ficava entre os dormentes e embaixo deles era feita de um material estranho, com forma e cor de aparas de madeira, mas muito pesado e duro — talvez um tipo de pedra mais leve.

A brita se chamava balastro. Artur sabia disso porque o Sr. Jarrett, de 94 anos, tio de Bob — seu tio-avô, portanto —, tinha trabalhado a vida toda em estradas de ferro e gostava de que os sobrinhos-netos conhecessem a terminologia correta do setor, de trilhos a trens. Ele tinha até uma gravação dos vários tipos de máquinas, que fazia questão de tocar para todos ouvirem.

Mas o tio-avô Jarrett não estava ali para explicar aquela ferrovia, e Artur não sabia que direção tomar. Havia trilhos que corriam para a esquerda e para a direita, desaparecendo em meio à névoa densa em ambas as direções. Para ter uma idéia melhor de onde estava, atravessou os trilhos e caminhou em ângulo reto. Como a

visibilidade era praticamente nula, e o ambiente, estranhíssimo, ele pisava com cuidado, atento à possibilidade de encontrar uma escada ou uma descida abrupta.

Ao se agachar e erguer a lanterna, Artur viu que o piso de pedra acabava de repente, como se uma faca enorme o tivesse cortado. Rolos de fumaça subiam do precipício e escondiam sua profundidade. Também não dava para ver o outro lado.

Ele concluiu ter chegado à beira do Fosso. Então, recuou lentamente e só se sentiu seguro ao retornar para o outro lado da ferrovia.

Agora que sabia estar na beira do Fosso, Artur entendeu que os trilhos iam em uma direção. Era para lá que esperavam que ele fosse. Mas, caso fizesse isso, mergulharia cada vez mais fundo em direção à vida terrível dos trabalhadores contratados nos domínios do Horrível Terça-Feira. Por outro lado, se seguisse na direção oposta, provavelmente receberia um jato de vapor e... ao contrário dos Habitantes, não sobreviveria à experiência.

“Estou em apuros”, pensou. Somente naquele momento se convenceu de que

estava preso em uma parte muito desagradável da Casa. Não tinha a Chave, nem armas, nem a magia para ajudá-lo, a não ser por um pouco de poder que lhe restara nas mãos. Não podia sair nem se comunicar com os amigos. Apenas o Tenente Guardião conhecia seu paradeiro, mas estava impedido de informar a alguém, a menos que fosse perguntado.

Na tentativa de impedir que sua família sofresse perdas financeiras, Artur estava seriamente encrencado.

Ele se sentou no trilho, apoiou a cabeça nas mãos e massageou as têmporas. Sentia-se desanimado, tolo e completamente derrotado. Precisava descobrir um meio de escapar. Se descesse para o Fosso, não sobreviveria.

Sentado, Artur começou a balançar o corpo para trás e para a frente. De algum modo, o movimento o fazia se sentir melhor, como se favorecesse o surgimento de uma nova idéia. Mas o que surgiu foi uma dorzinha no peito. Não a dor interna causada pelo aperto no pulmão, mas era como se alguma coisa o espetasse por dentro do bolso.

O Atlas. De repente, cheio de esperança, ele pegou o livro

encapado de tecido verde e ajeitou no colo. Então, colocou ambas as mãos sobre a capa e pensou em uma pergunta.

“Como posso sair do Fosso?” O Atlas se abriu, embora sem a força habitual.

Além disso, em vez de ficar enorme, apenas dobrou de tamanho. E se manteve parcialmente fechado, de modo que Artur teve de se esforçar para ler. Parecia que o Atlas também não gostava do ar do Fosso.

Primeiro, bem devagar, apareceu uma letra. Então, a mão invisível escreveu rapidamente uma palavra e depois outra, em língua e caracteres estranhos. Mas, sob o olhar do garoto, tornaram-se legíveis.

Há várias maneiras de deixar o temível fosso do horrível

Terça-Feira. Existem as maneiras oficiais, que exigem passes e permissões, e incluem:

a. a pé, pela estrada vicinal; b. como passageiro do trem de Terça-Feira; e

c. como mensageiro de Terça-Feira, com reajuste da força propulsora para subida.

Há maneiras não oficiais, que são perigosas ou impraticáveis, e incluem:

a. voando, com os riscos inerentes, Alguns específicos do fosso; e

b. por destruição, seja pelas mãos de um Nadica ou por uma erupção de Nada.

— Não — disse Artur. — Quero dizer,

especificamente, como eu posso deixar o Fosso agora? Nada aconteceu. As páginas do Atlas continuaram

imóveis. Nenhuma mão invisível apareceu. Nenhuma tinta escreveu.

Devagar, Artur fechou o Atlas e guardou no bolso. Por um momento, tinha pensado que o livrinho fosse lhe mostrar uma saída, revelar um segredo acerca do Fosso. Em seu mundo, o Atlas o tinha ajudado. Ali, porém, não queria ou não podia fazer o mesmo.

“Talvez eu deva procurar um Supervisor e pedir para ver Terça-Feira”, ele pensou desanimado. “E assinar aquela droga de documento, entregando a ele a Chave e a Casa Inferior...”

— Com licença! Acho que você deve seguir comigo — disse uma voz gentil saída da névoa.

Artur olhou em volta e viu o Habitante que estava trás dele na fila.

— Eles fazem questão de que andemos em fila aqui. A propósito, meu nome é Japeth. Quer dizer, era.

— Eu sou Artur — apresentou-se o garoto, estendendo a mão. Japeth se preparou para apertar a mão de Artur, mas, antes que o fizesse, teve o pulso atingido

por centelhas azuis que saíram da palma da mão do garoto. O Habitante soltou um gemido e recuou, levando os dedos à boca.

— Você não é um trabalhador contratado! — exclamou.

Artur teve medo que o Habitante chamasse o Supervisor, que com certeza estava por perto, escondido pela névoa. Japeth talvez recebesse uma recompensa ou conseguisse a liberdade em troca de seu gesto. Era melhor não arriscar...

— Não se preocupe! — apressou-se Japeth a dizer, vendo Artur pegar uma pedra do leito da estrada de ferro. — Não sou espião, informante, traidor, tagarela, delator, mau-caráter, linguarudo. Não importa quem você é. Não vou dizer uma palavra, uma expressão, uma frase, uma declaração...

— Acho bom — advertiu Artur. O garoto tentou parecer autoritário, mas na

verdade sentiu alívio por poder largar a pedra. — Estou aqui... em missão de ajuda aos

trabalhadores contratados. Japeth também estava aliviado. Ele fez uma

reverência e cumprimentou Artur, tirando um chapéu imaginário. Suas maneiras gentis não combinavam com as calças de veludo muito rasgadas que usava sob o avental de couro. A camisa que um dia tinha sido branca estava amarelada e tinha os punhos amarrados com barbante por falta de botões. Tal como a maioria dos Habitantes, era um homem bonito, mas o rosto e o corpo pareciam meio distorcidos, como se tivessem sido achatados e alargados, como se aquele fosse um modelo malfeito em barro a partir de um belo molde.

— Para mim, seria uma honra ajudar — disse ele. — Quer dizer, dar assistência, apoiar, socorrer, cooperar, colaborar, dar uma mãozinha.

— Obrigado — agradeceu Artur. — Humm, você fala sempre assim?

— Você se refere ao meu emprego constante, habitual, de vários termos, várias palavras?

— Isso mesmo. — Só quando estou nervoso — respondeu Japeth.

— Eu sou... era Ajudante de Dicionário de Sinônimos de Segundo Grau. É uma ocupação que oferece o risco, o perigo, a ameaça de a pessoa se tornar prolixa, verbosa, cansativa, palavrosa... Eu luto contra, pode crer. Vamos em frente, antes que alguém venha nos procurar?

— Acho que é melhor — concordou Artur depois de um momento de hesitação.

Ele precisava de tempo para pensar, e aquele não era um bom lugar.

— Vá na frente — disse Japeth, com outra reverência e outro toque no chapéu imaginário.

— Não. Você primeiro — discordou Artur, fazendo também uma leve reverência.

Ele não queria o Habitante nos seus calcanhares. Não com tantas pedras à disposição de quem quisesse pegar. Japeth parecia sincero, mas Artur não queria correr o risco de levar uma pedrada na cabeça e ser entregue desacordado ao Supervisor.

Japeth inclinou a cabeça e caminhou sobre os trilhos com grandes passos, mas com cuidado. Seus tamancos estalavam contra os dormentes de pedra. Artur foi atrás. A cabeça do garoto trabalhava sem parar, e ele às vezes tropeçava nos próprios tamancos. Se ao menos

tivesse como enviar uma mensagem à Casa Inferior... Não lhe ocorria uma só idéia perfeita. Chegou a se animar por um segundo ao lembrar que, na Casa e nos Reinos Secundários, Meio-Dia de Segunda-Feira tinha conseguido fazer surgir um telefone aparentemente do nada. Mas, ainda que conseguisse fazer a mesma coisa, não adiantaria: o serviço telefônico da Casa Inferior tinha sido cortado ou só funcionava com pagamento adiantado, e ele não tinha dinheiro.

“E se eu arranjasse dinheiro?”, pensou. “Então, poderia chamar Will, Suzy ou Meio-Dia de Segunda-Feira...”

— Qual é a moeda usada no Fosso? — perguntou Artur.

Os dois continuavam a acompanhar os trilhos sem encontrar uma pessoa sequer.

— As Regiões Afastadas tinham belas moedas: nobres de ouro, reais de prata e azuis de cobre — explicou Japeth. — No entanto, o Horrível Terça-Feira monopolizou a fabricação de moedas e agora todos devem se arranjar com anotações em livros de contabilidade. Como acontece com os nossos contratos.

Dizendo isso, ele pegou um cartão retangular que trazia preso ao pescoço por um cordão.

— Você se importa se eu der uma olhada? — pediu Artur.

— Não posso arrancar, remover ou destacar isso da minha pessoa — explicou Japeth. — Mas faça o favor: observe, examine, investigue. Ou melhor, olhe.

O cartão parecia uma etiqueta bem-feita, com inscrições em tinta verde-clara. Era dividida em duas colunas: RECEITA e DESPESA. Na coluna da receita,

via-se uma única linha, onde se lia: “0 n, 0 r, 0 a”. A coluna da despesa indicava “4 n, 6 r, 18 a”. Enquanto Artur observava os números, a segunda coluna fez um movimento e mudou para “4 n, 7 r, 1 a”.

— Por isso ninguém se livra do contrato. Somente nos pagam quando chegamos ao fundo do Fosso e, mesmo assim, se encontrarmos porções aproveitáveis de Nada. Mas somos cobrados pelo ar viciado que respiramos, e o escasso equipamento que recebemos custa uma quantia absurda.

— Então não existe dinheiro, quer dizer, notas ou moedas, em todo o Fosso?

— Assim me disseram, informaram, explicaram — respondeu Japeth.

E, retomando a caminhada ao longo dos trilhos, ele sugeriu:

— Vamos prosseguir, continuar, ir em frente, avançar?

Artur fez que sim com a cabeça. Via-se que Japeth estava cada vez mais nervoso, e o nervosismo é contagioso. O garoto se apressou em seguir o Habitante. O som dos tamancos dos dois tinha um ritmo cada vez mais apressado. Eles estavam quase correndo.

Foi bom que tivessem andado depressa. Mais ou menos uns 100 metros adiante, um Supervisor surgiu em meio à névoa. Ele marchava decidido, com a pistola de vapor pronta para ser usada. Ao vê-los, resmungou qualquer coisa, fez um sinal para que passassem e seguiu atrás. Claro que investigava o motivo do atraso dos dois recém-chegados.

A névoa se dissipou um pouco à frente, e Artur pôde ver um grupo de habitantes que marchava sem a

companhia de um Supervisor. Outro grupo estava por perto, observado por um Supervisor que tinha levantado o visor do capacete e dava polimento aos dentes, com um pano e uma pasta branca. Ele era uns 20 centímetros mais baixo do que os homens de quem tomava conta, mas tinha os ombros bem mais largos. Seu rosto era bastante achatado, e dois dentes inferiores se destacavam como pequenas presas.

— Aí estão vocês! — gritou o Supervisor atrás de Artur. — Dupla de preguiçosos.

O Supervisor esfregou os dentes mais uma vez, guardou a lata de pasta embaixo do avental, soltou um suspiro surpreendentemente delicado e abaixou o visor. No mesmo momento, ocorreu uma mudança: ele se curvou, resmungou qualquer coisa e pegou a pistola. A máquina de vapor em suas costas, que antes emitia um zumbido fraco, passou a roncar fortemente e soltou um jato de fumaça preta, que passou por seus cotovelos e chegou à frente.

— Vamos! — gritou. — Entrem na fila. Artur e Japeth correram para o grupo de Habitantes

que, confusos, tentavam formar uma fila. O problema era que ninguém queria ficar perto do Supervisor. Então, o primeiro sempre trocava de lugar. Isso durou um minuto, mais ou menos, até que o Supervisor disparou um jato de vapor para o ar.

— Parem! — gritou. — Você, aqui! Você, lá! Entrem em fila!

Depois de organizada a fila, o Supervisor se aproximou de Artur e Japeth e perguntou rispidamente:

— Por que se atrasaram? — Eu caí de cabeça — disse Artur.

Aquela parecia uma boa desculpa para todas as ocasiões.

— Onde estamos? — Você está na Estrada Vicinal da Ferrovia do

Fosso do Todo-Poderoso Horrível Terça-Feira! E tem muita sorte!

— Por quê? — perguntou Japeth. — O que quer dizer? Com base em que...

— Cale a boca! Quem pergunta aqui sou eu! — interrompeu o Supervisor.

Japeth se calou. O Supervisor resmungou qualquer coisa e repetiu:

— Quem pergunta aqui sou eu! E a primeira pergunta é...

Sua voz falhou enquanto ele lutava para tirar do bolso interno do avental de couro um pedaço de papel amarrotado. E, quando tirou, custou a desdobrar o papelzinho e levá-lo à frente do visor.

A pergunta que afinal foi feita não era a que Artur esperava.

— Estão todos marcados? Artur fez que sim, imitando os outros, mas

manteve a cabeça abaixada, na tentativa de esconder o medo que com certeza aparecia em seu rosto.

— Alguma cura instantânea? — perguntou o Supervisor, obviamente seguindo um roteiro que lia no papel.

Todos balançaram a cabeça, dizendo que não. O Supervisor percorreu o grupo com os olhos e voltou a mirar o papel.

— Muito bem. Então, vamos ver as solas — disse.

“As solas dos tamancos?”, pensou Artur surpreso. “Para quê?” E ficou ainda mais surpreso ao ver todos tirarem o tamanco e a meia do pé direito, que mostraram ao Supervisor.

— Parem de pular num pé só, seus idiotas! — berrou o Supervisor.

— Quando se está a serviço do Horrível, não há tempo a perder! Deitem de costas e levantem o pé.

Artur, ainda confuso, fez o mesmo que os outros, seguindo a fila de trabalhadores deitados sobre o chão de pedra. Mas, enquanto tirava a meia, ele olhou para o pé direito de Japeth. E viu o que o Supervisor procurava.

A marca estava na sola do pé direito! A marca ia do calcanhar à planta do pé e constava de uma inscrição em letras verdes e brilhantes: CONTRATADO DO HORRÍVEL TERÇA-FEIRA.

Por um instante, Artur pareceu congelar. Então, fingiu que não conseguia tirar o tamanco. Assim, ganhava tempo para pensar. Atrás do Supervisor que portava a pistola de vapor, havia outro, perto dos trilhos, e certamente muitos outros ocultos na plataforma que ficava acima deles.

— Eu sabia! — gritou o Supervisor. — Sempre tem um!

Artur jogou a cabeça para trás. Por um terrível segundo, pensou que o Supervisor falasse com ele. Então, viu que a figura atarracada estava ao lado de um Habitante na outra extremidade da fila.

— Cura instantânea com certeza — disse o Supervisor. — Quando recebeu a marca?

— Ontem, quando cheguei — respondeu o Habitante abatido.

— Mas nem sempre tenho cura instantânea. Às vezes, leva dias.

— Dias! A marca deve durar 1 ano. Vou ter de prender um clipe na sua orelha ou no seu nariz. Levante-se.

— Oh, senhor, por favor. Prefiro outro tipo de marca.

— Estou pouco ligando para o que você prefere! — rugiu o Supervisor.

Em seguida, remexeu nos bolsos e acabou por encontrar um disco de metal brilhante, de mais de 5 centímetros de diâmetro.

— Onde você quer? — perguntou. — Ah, no nariz — respondeu baixinho o

Habitante. O Supervisor resmungou alguma coisa e encostou

o disco na orelha do homem. Fez-se um raio de luz e ouviu-se um chiado. No momento seguinte, o disco pendia da orelha do Habitante, como um brinco enorme.

— Eu disse no... Antes que o sujeito completasse o que dizia, foi

jogado ao chão por um soco do Supervisor. Sensatamente, o Habitante permaneceu no chão,

esforçando-se para manter a boca fechada. O Supervisor suspirou mais uma vez e esfregou as juntas dos dedos.

— Então, alguém mais tem cura instantânea? Artur pensou depressa e levantou a mão. O

Supervisor seguiu a fila até chegar perto dele. — Ah, é aquele que caiu de cabeça. Tem certeza de

que sabe do que estamos falando? Mostre a sola do pé.

Artur deitou de costas, tirou o tamanco e a meia e mostrou o pé descalço. Em meio a gemidos e palavras resmungadas entre dentes, o Supervisor se abaixou.

— Sumiu completamente! Muito bem. Levante-se para eu prender um clipe no seu nariz.

— Que bom! Eu sempre quis usar uma coisa redonda e grande pendurada no nariz ou na boca! — falou Artur enquanto se levantava.

Instintivamente, ele sabia ser melhor pedir isso do que um piercing na orelha.

— Guarde as suas opiniões para si — resmungou o Supervisor.

E, dizendo isso, pegou o disco. Ele riu ao ver Artur se encolher e encostou o clipe na orelha esquerda do garoto.

Artur sentiu uma pontada de dor que atravessou a orelha, chegou à cabeça e refletiu em um ponto entre os olhos. Foi uma dor tão intensa que ele cambaleou. E teria caído, se não fosse amparado por Japeth.

— Preguiçoso e sensível! — rosnou o Supervisor. — Sustente-se sobre os próprios pés!

— Ele é uma das crianças do Tocador de Gaita — rebateu Japeth. — Elas são diferentes. Já foram mortais.

— Aqui não tem ninguém diferente! — gritou o Supervisor.

Em seguida, ele desferiu um soco na direção de Japeth, que não se mexeu. No entanto, estranhamente, não foi atingido. Como se o Supervisor tivesse errado de propósito.

Apesar de ter a mente tomada pela dor latejante atrás das órbitas dos olhos, Artur conseguiu pensar por que o Supervisor falava tão alto. Era como se os

Habitantes só tivessem dois modos de comunicação: em tom alto ou ensurdecedor.

— Chega de falação ou vou encher todo mundo de vapor! — ameaçou o Supervisor, consultando seu pedaço de papel.

— Muito bem. A partir de agora, vocês formam o Grupo 205.117. Não esqueçam! Grupo 205...

Ele precisou consultar o papel novamente. — Grupo 205.117. Você à esquerda é o número 1.

Você é o 2, você é o 3, 4, 5, 6,7... — Ele conta direitinho, não é? — sussurrou Japeth,

que ainda amparava Artur. Mas a dor passou logo. O garoto tinha conseguido

se equilibrar, quando ouviu o Supervisor dizer: — Você é o número 13. Alguma coisa em relação ao número fez o

Supervisor parar e coçar a cabeça. Ele voltou a consultar o papel, mas não encontrou o que procurava. O que quer que fosse.

— Não devia haver o número 13 — disse para si mesmo depois de um longo silêncio. — São sempre 12 em cada grupo.

— Talvez tenham mandado uma criança do Tocador de Gaita como extra — opinou Japeth, estendendo a mão para amparar Artur mais uma vez. — Grátis. Uma bonificação, um prêmio, uma oferta...

— Cale a boca! — mandou o Supervisor. — Você, número 13, é uma das crianças do Tocador de Gaita?

— S... sou — gaguejou Artur. — Não é um mensageiro? Aqui embaixo, as

crianças do Tocador de Gaita sempre trazem mensagens.

— Não — confirmou Artur. — Não sou um mensageiro.

— Então, é um extra — concluiu satisfeito o Supervisor.

O fato de ter “decifrado o enigma” fez sua testa se desanuviar. Ele olhou novamente para o papel e, bem devagar, leu a instrução seguinte, parando de vez em quando ao tropeçar em uma palavra ou limpar uma mancha que atrapalhasse a compreensão.

— Grupo número tal. Vocês vão iniciar uma jornada até o fundo do Fosso! Vão tomar a estrada. Ao número 1 será entregue uma vela de tempo. Devem chegar à Primeira Estação da Via antes que a vela de tempo se apague. Senão, serão perseguidos e castigados. Na Primeira Estação da Via, receberão outra vela de tempo. Deverão chegar à Segunda Estação da Via antes que a vela se queime e assim sucessivamente até alcançarem a Estação Inferior, quando serão organizados em novos grupos, para trabalhar no Fosso. Louvado seja o Horrível Terça-Feira!

Terminada a comunicação, o Supervisor dobrou o papel e guardou em um bolso. Então, apalpou todos os outros, até que finalmente encontrou uma vela branca com marcações em vermelho, com o espaço da largura de um dedo entre uma e outra. Assim que o Habitante agora chamado Número 1 recebeu a vela, ela acendeu sozinha. Todos os outros Habitantes observavam a cena com expressão de susto e desgosto.

Artur também olhou para a vela. Aquela chama representava, para ele e todos os outros, a certeza de estarem a caminho dos desconhecidos horrores do Fosso.

— Em frente! — rugiu o Supervisor.

Mas, quando o Número 1 deu o primeiro passo, o Supervisor levantou o visor e murmurou alguma coisa. Artur demorou um segundo para entender que, tal como o Encarregado de Fornecimento, ele tinha desejado boa sorte.

Além da surpresa, aquelas palavras despertaram preocupação em Artur — preocupação pelo fato de talvez precisar realmente de sorte. Ele fez um comentário ao passar pelo Supervisor, mas este já havia abaixado o visor e prestava atenção à próxima fila de Habitantes cabisbaixos que saía da névoa.

O grupo de Artur seguia os trilhos em fila indiana. O Número 1 determinava o ritmo apressado. Artur ainda hesitou em seguir o grupo, mas concluiu que, tal como antes, não tinha escolha. Não podia voltar. Do outro lado dos trilhos, só havia a borda do Fosso.

Ele teria de acompanhar os outros e descer em direção à névoa escura.

Capítulo 7Capítulo 7Capítulo 7Capítulo 7

Por várias horas, o Número 1 não desacelerou nem

parou. Artur teve dificuldade para acompanhar o ritmo e várias vezes precisou correr. À sua esquerda, pela parede do Fosso, que ficava cada vez mais alta, e pela estrada vicinal, que se estreitava e se aproximava dos trilhos da ferrovia, ele começou a fazer idéia da vastidão do local onde estava. Via-se que a estrada e a ferrovia tinham sido escavadas na parede, em espiral. A névoa impedia a visão, mas a curva era tão suave que dava para concluir: o Fosso tinha quilômetros de diâmetro.

Artur não fazia idéia da profundidade. Japeth também não sabia e perguntou ao Número 1, mas este balançou a cabeça e não respondeu. Nenhum dos outros Habitantes falava. Eles simplesmente caminhavam de cabeça baixa, de olhos fixos nos próprios tamancos ou nos calcanhares do companheiro da frente. De vez em quando, um deles levantava os olhos e tentava ansiosamente descobrir quantas marcações restavam na vela de tempo.

Caminharam durante horas sem ver qualquer coisa de interesse; somente peças de trens quebradas, empilhadas ao lado dos trilhos. Via-se que os trens do Horrível Terça-Feira apresentavam muitos defeitos: eixos quebrados, bielas rachadas, pistões corroídos, rodas gastas

e outros. Artur imaginou que fossem afetadas pelo Nada, abundante no fundo do Fosso.

Ele gostaria de examinar melhor as peças, mas o grupo só fez a primeira parada quando o Número 6 tropeçou nos tamancos e caiu, derrubando o Número 5, que derrubou o Número 4. No entanto, a parada só durou o suficiente para os três Habitantes se levantarem e recolocarem os tamancos.

Uma hora mais tarde, Artur fez de propósito um tamanco sair do pé, para conseguir um descanso, mas, sendo o último da fila, só foi notado por Japeth. E os dois ainda tiveram de correr para alcançar o restante do grupo, que seguiu em frente.

A corrida consumiu boa parte da energia que Artur ainda tinha. Ele sabia que, na Casa, ninguém precisava de comida ou água, mas sentia fome, sede e desânimo. Para se animar, tentou se convencer de que o cansaço provocava aquelas sensações. Mas esse era o problema. Ele não estava apenas cansado; estava exausto, cada vez mais esgotado. E o grupo continuava a andar.

A idéia de desistir, entregando a Chave e o Domínio sobre a Casa Inferior, começou a brotar na cabeça de Artur. Ele simplesmente não conseguia pensar em outra coisa, a não ser em desistir.

Quando o grupo alcançou um lugar menos enevoado, Artur se sentiu um pouco melhor e conseguiu afastar os pensamentos derrotistas. Chegou até a apressar o passo para dar uma olhada na vela de tempo, ignorando os olhares fulminantes desferidos pelo Número 1. Mas a sensação de melhora só durou alguns minutos. Artur voltou à posição de último da fila, perturbado por ver que, das 12 divisões da vela, somente 2 haviam queimado. De

acordo com seu relógio — que, apesar de andar para trás, parecia marcar direitinho o tempo —, eles haviam andado por 6 horas. Se faltavam dez divisões da vela, isso significava mais 30 horas de caminhada.

Mesmo sem a névoa, o Fosso continuava um breu. A pouquíssima iluminação vinha das lanternas de tespentade e da vela de tempo. Para piorar, o grupo entrou em uma região coberta por nuvens frias e úmidas.

“Ainda faltam 30 horas. Não vou conseguir. Mas tenho de... tenho de...”

Artur estava cansado demais para pensar em como sair daquela enrascada. Somente a idéia de andar por mais 30 horas lhe deu forças. Ele prestou mais atenção ao ambiente em volta para o caso de surgir alguma oportunidade.

“Talvez, eu pudesse me esconder e escapar sem ser notado”, pensou. “Ou, quem sabe, atacar de surpresa um Supervisor, pegar as roupas dele e me disfarçar. Mas, até agora, não vi nenhum Supervisor aqui embaixo... Será que tem uma cabine telefônica? Se eu achasse algumas moedas perdidas por aí, poderia telefonar para Will, pedindo que viesse me salvar...”

O som de um tamanco que caiu no chão despertou Artur de seus pensamentos. Somente então notou que havia adormecido enquanto andava e que Japeth não estava na frente dele, mas a seu lado, conduzindo-o pelo cotovelo.

O tamanco caído era o de Artur. Ele se abaixou para ajeitá-lo de volta no pé; movia-se tão devagar que tinha a impressão de estar sonhando.

— Quanto tempo... dormi? — resmungou Artur.

Tudo parecia continuar do mesmo jeito. À frente dele, os Habitantes desapareciam em meio à névoa, liderados por uma figura indistinta que carregava uma luz trêmula. A direita, estavam os trilhos da estrada de ferro. E havia uma pilha de peças e rodas quebradas.

— Não sei — respondeu Japeth. — Não sei como você conseguiu caminhar dormindo. Eu vou passar semanas sem dormir.

— Estou cansado demais — disse Artur. — Não sou um Habitante.

— Não é um Habitante? — estranhou Japeth. — Mas mesmo as crianças do Tocador de Gaita se tornaram Habitantes, de algum...

— Eu, nem isso. Sou mortal. Só estive na Casa uma vez...

— Mas você tem poder! Senti isso quando apertamos as mãos. Você disse que estava em missão...

Artur balançou a cabeça para acordar. Estava tão cansado que tinha dificuldade de articular as palavras. Para sentir-se mais desperto, deu um tapa no rosto e sentiu uma espécie de descarga elétrica na palma da mão. Com isso, acordou. Um pouco, pelo menos.

— É difícil explicar — disse a Japeth. — O Horrível Terça-Feira é meu inimigo e quero ajudar todo mundo a escapar deste Fosso. Mas tenho de me livrar primeiro.

— Ninguém escapa do contrato — falou Japeth melancolicamente, pegando o cordão que trazia ao pescoço. — Trabalhadores contratados sempre são mandados de volta às Regiões Afastadas, ainda que alcancem outra parte da Casa. Não existe escapatória,

saída, libertação ou resgate. Estamos aqui para a eternidade. Para sempre. Conforme o estatuto.

— Tem de haver um jeito — insistiu Artur. Ele se sentia um pouco melhor, fosse pelo tapa ou

por ter dormido enquanto caminhava. Mas só um pouco. O cansaço terrível continuava em seus ossos e músculos, pronto para atacar.

— O contrato não pode ser anulado ou coisa parecida?

— Calados aí atrás! — ordenou o Número 1, que parecia se sentir o comandante, só por ser o encarregado de segurar a vela.

— Meta-se com a sua vida! — gritou Japeth. — Vamos falar quanto quisermos.

O Número 1 resmungou qualquer coisa, mas não voltou a reclamar. No entanto, acelerou o passo, o que fez com que os outros Habitantes o acompanhassem obedientemente. O ritmo obrigava Artur a dar uma corridinha a cada 20 passos, e não de meia em meia hora como acontecia antes. E logo começou a sentir o aperto no pulmão direito. A garganta também estava um pouco dolorida, e o nariz, inchado. As palavras mágicas ensinadas pelo Tenente Guardião deviam estar perdendo o efeito.

— Ainda que você pegasse a minha etiqueta de identificação, de nada adiantaria — disse Japeth, acompanhando com facilidade as passadas de Artur. — O Horrível Terça-Feira possui uma lista completa dos contratos de todos os Habitantes e sabe quanto cada um tem a receber e a pagar. As etiquetas de identificação simplesmente se regeneram quando danificadas ou destruídas. A única solução seria um dos outros Dias

resgatar os nossos contratos. E isso nunca vai acontecer. Os nossos Dias nos “transferiram” para Terça-Feira, embora seja mais certo dizer que fomos vendidos, comercializados ou negociados.

— Tem de haver um jeito — tornou a insistir Artur.

Pelo menos, ele não era contratado. Mas, na verdade, isso não tinha importância. De todo modo, estava indo na direção errada, sem chance de escapar. Além do mais, sentia-se completamente exausto, com um pulmão prejudicado, o outro cansado de respirar pelos dois e o nariz escorrendo. Mal conseguia colocar um pé depois do outro. Mais do que isso seria impossível.

— A propósito — disse Japeth. — Onde conseguiu esse nariz escorrendo? Valeria uma fortuna lá na Casa Intermediária.

— Já lhe disse que sou mortal — respondeu Artur fungando. — Peguei uma gripe.

— Ah! — fez Japeth. — Uma gripe! Pode passar para outro? Talvez consiga subornar um Supervisor...

Artur fez que não com a cabeça. Ele não tinha idéia de como passar uma gripe, a não ser espirrando sobre Japeth, o que estava a ponto de fazer. Não conseguia entender a razão de os Habitantes se interessarem tanto em pegar doenças mortais. Talvez, tivesse a ver com o fato de se restringirem à aparência; eles não ficavam doentes de verdade.

Meia hora mais tarde, a constante umidade das nuvens se transformou em chuva, e o grupo parou para que todos pudessem vestir as capas. Formou-se um chuvisco constante com ocasionais pingos mais grossos. Um deles caiu sobre a mão de Artur, escorreu e queimou

a pele, como uma fritura. Mas, tal como acontecera com o corte provocado pelo Magrelo, logo sarou, sem deixar marca.

“Chuva de Nada”, pensou Artur desanimado. “Era tudo o que eu precisava.”

Os pingos pesados continuaram a cair de vez em quando, mas a maioria caía sobre a capa ou o capuz, deixando marcas no barro estabilizado. Artur estava tão cansado que nem reparou. Só conseguia prosseguir porque Japeth praticamente o carregava.

Mesmo com a ajuda de Japeth, eles iam ficando cada vez mais para trás. A chama da vela carregada pelo Número 1 às vezes até sumia de vista, e o Número 11 era uma figura vaga em meio à chuva.

— Não posso mais — disse Artur com muita dificuldade quando afinal perderam completamente de vista o Número 11. — Vá você. Depois de descansar, eu alcanço o grupo. Posso me esconder do Supervisor atrás dessa tralha.

Japeth ajudou Artur a se acomodar em uma pilha de peças quebradas de trens. O garoto se encostou em umas rodas e apoiou a cabeça nos joelhos. Mecanicamente limpou o nariz na manga da camisa e pensou em dizer mais uma vez as palavras mágicas. Mas estava tão cansado...

Somente depois de algum tempo reparou em Japeth ainda de pé diante dele.

— Vá! — disse fracamente. — Eu encontro um meio de alcançar o grupo. Você não vai querer levar um jato de vapor, não é?

— Talvez um jato de vapor seja melhor do que descer ao fundo do Fosso — Japeth falou bem devagar.

— Só vejo desânimo e conformação entre os Habitantes. Mas você representa um fiapo de esperança. Você não é contratado. E possui um certo poder latente. Prefiro me arriscar lhe fazendo companhia. Descanse, eu vigio. Monto guarda. Protejo. Defendo. Tomo conta. Cuido. Observo. Zelo. Velo o seu sono. Mantenho vigilância. Patrulho. Faço a ronda...

Japeth continuou a falar, mas a cabeça de Artur estava longe. A voz do Habitante foi sumindo... Em menos de um segundo, o garoto estava adormecido.

Daí a algum tempo, Japeth ouviu um barulho peculiar: um chiado, acompanhado de um zumbido nos trilhos da estrada de ferro. Imediatamente, sacudiu Artur pelos ombros.

— Artur! Acorde! Vem alguma coisa aí! O garoto se sentou e começou a tossir, uma tosse

incontrolável, que vinha do fundo do peito e chegava à garganta, uma tosse constante, como se o corpo quisesse se livrar de alguma coisa tóxica.

Sem parar de tossir, Artur enfiou dois dedos no nariz e o polegar na boca. Então, entre um e outro acesso de tosse, conseguiu dizer as palavras ensinadas pelo Tenente Guardião. Mas a tosse e a coriza continuaram, e Artur foi tomado pelo medo. As palavras mágicas não tinham funcionado. Ele ia sufocar até a morte naquele Fosso assustador...

De repente, porém, a tosse cessou e o nariz parou de escorrer. Artur respirou profundamente, aproveitando o ar que enchia seus pulmões. Sentia-se bem, apesar de certa rigidez nas pernas. De acordo com seu relógio que andava para trás, ele tinha dormido durante três horas.

— Vamos nos esconder! Temos de nos disfarçar! Procurar abrigo! — avisou Japeth.

Artur esticou a cabeça, tentando ver melhor os trilhos, e um pingo grosso de chuva, carregado de Nada, atingiu seu rosto, quase respingando no olho. Ele praguejou e limpou a bochecha, sem ligar para a dor. Em seguida, olhou novamente, mas teve o cuidado de se proteger com o capuz.

O que viu foram duas luzes pouco nítidas vindo pelo trilho da estrada de ferro. As luzes não eram mais fortes do que a de sua lanterna de tespentade e ficavam a apenas uns 30 centímetros uma da outra. Eram próximas demais e brilhantes de menos para serem os faróis de um trem. O zumbido também era muito fraquinho, apenas uma leve vibração. Não combinava com o movimento provocado por uma locomotiva grande e vagões carregados.

Ainda assim, Artur e Japeth contornaram uma pilha de restos de metal e se agacharam atrás de um velho banco acolchoado cujo estofamento de crina tinha sido puxado para fora, e parecia uma planta estranhíssima. Colocaram as lanternas no buraco central de uma roda motriz, cobriram as duas com uma placa amortecedora de aço e ficaram lá, completamente imóveis na escuridão.

Artur prendeu a respiração, cada vez mais assustado entre o escuro e as luzes.

Capítulo 8Capítulo 8Capítulo 8Capítulo 8

Artur esticou a cabeça sobre o banco virado e observou

o veículo que se aproximava, encoberto pela névoa e envolto por um círculo de luz difusa. Difícil descobrir de que se tratava. Mas o garoto tinha uma certeza: não era um trem. Na verdade, o que se aproximava era uma roda com cerca de 1,80 metro de altura e 60 centímetros de largura, avançando pelo trilho interno. Ao observar melhor, porém, Artur viu que eram duas rodas: uma dentro da outra. As luzes estavam presas à roda interna, que não se mexia. E havia alguém... ou alguma coisa... dentro dela. A roda de fora girava em volta da roda de dentro.

O garoto não via sinal algum de máquina a vapor ou de qualquer coisa que fizesse o veículo andar. Talvez simplesmente descesse pela força da gravidade e não tivesse como voltar. Não parecia um meio de transporte do Horrível Terça-Feira, o que representava um alívio. Seria difícil que alguém um pouco mais alto ou mais gordo que Artur coubesse ali.

“Cuidado”, Artur pensou. “Terça-Feira pode não se parecer com a ilustração na porta da estação... Ele pode ser miúdo... Ou nem ter a forma humana...”

— O que é aquilo? — sussurrou Japeth. — Não sei — Artur sussurrou em resposta.

Ele olhou com atenção a roda que se aproximava. Seria impressão ou a coisa estava parando?

— Está parando! Detendo-se! Freando! Interrompendo o avanço!

— Ssshhh! Nada de pânico! — falou Artur entre dentes.

Ele se abaixou e pegou um tubo de cobre salpicado de Nada, talvez um cano condutor de vapor ou um duto de caldeira. Estava molhado e escorregadio, mas o peso do objeto deu certa segurança a Artur.

— E se quem está ali tiver uma pistola de vapor? — perguntou Japeth.

— Ssshhh! — fez Artur novamente. — Quem quer que seja talvez passe direto.

Mas a roda parou a menos de 10 metros deles. Com isso, os trilhos deixaram de vibrar, permitindo que Artur ouvisse claramente o som baixo e estranho que o veículo produzia. Bastou um momento para que ele percebesse se tratar do tique-taque de um relógio, o que lhe trouxe desagradáveis lembranças de criaturas do Depósito de Carvão...

A figura que ocupava a roda esticou uma perna e depois a outra. Os movimentos pareciam normais, em nada parecidos com os das criaturas do relógio, mas Artur apertou entre as mãos o tubo de metal. Mais uma vez, idéias derrotistas tomaram a mente dele. Talvez, ele devesse se render, pedir para ser levado à presença de Terça-Feira...

“Não!”, ele reagiu. “Não vou desistir. Não vou me render nem esperar sentado que me queimem com vapor ou me cortem em pedacinhos.”

O ocupante da roda saltou e se pôs de pé atrás da lanterna esquerda do veículo. A luz, espalhada e borrada pela chuva, impossibilitava avaliar qual era o tamanho da pessoa. Não dava nem para ver o que estaria fazendo. Mas, pelo menos, Artur não sentia jatos de vapor nem via o brilho de qualquer tipo de lâmina.

A figura levantou uma das mãos, deixando o garoto mais tenso ainda. Então, uma luz brilhou na ponta do dedo indicador do condutor do veículo, fazendo Artur dar um salto e avançar, segurando o tubo sobre a cabeça, pronto para o ataque.

— Arrá! — ele gritou. — Artur! — chamou uma voz. O garoto parou tão de repente que quase caiu. Ele

abaixou o tubo de cobre e esfregou os olhos. Em seguida, com as costas da mão esquerda, enxugou a chuva do rosto.

— Suzy? — perguntou. — Claro que sou eu, boboca! Quem esperava que

fosse? Artur balançou a cabeça, sorrindo ao reconhecer

Suzy Azul-Turquesa, diante dele, com uma lanterna na mão. Ela parecia a mesma, de olhos brilhantes, toda despenteada. O obrigatório avental das Regiões Distantes tinha sido simplesmente jogado sobre um monte de camisas, e uma ponta de seu colete cor de amora aparecia por baixo dele. Desta vez, em lugar do chapéu surrado, usava um chapeuzinho estranho, preso embaixo do queixo por uma fita preta de tecido brilhante. No cinto, havia uma fenda, onde se via um pergaminho enfiado.

Artur balançou a cabeça novamente, e seu sorriso ficou ainda mais largo. Suzy, além de boa amiga e aliada,

tinha um talento especial para aparecer quando ele realmente precisava de ajuda. E ela nunca perdia o ânimo. Nem mesmo ali, no Fosso do Horrível Terça-Feira.

— Não esperava alguém tão amistoso — disse Artur. — Mas fico muito feliz em ver você.

— Claro que sim — falou Suzy. — Eu também ficaria se estivesse em um buraco sombrio desses. Quem é o seu colega?

Artur olhou para trás e viu Japeth ainda atrás do banco virado sem saber se chegava perto ou não.

— É Japeth. Tudo bem, Japeth. Ela é minha amiga — explicou Artur. — Venha.

O garoto se voltou para Suzy e continuou: — Japeth estava no meu grupo de trabalho. Ele me

ajudou... salvou minha vida, eu acho. Mas o que você está fazendo aqui?

— Procurando você, é claro — respondeu Suzy. — Ai!

Um pingo pesado de chuva carregado de Nada tinha caído nas costas da mão da garota. Ela a limpou com uma careta, sem ligar para o vergão que ficou. Diferentemente de Artur e Japeth, ela não vestia uma capa de barro estabilizado.

— Vou ter de pegar meu guarda-chuva — resmungou ela. Depois de remexer nas camisas, ela encontrou e abriu um guarda-chuvinha de papel multicolorido, do tipo usado para enfeitar coquetéis. Em um primeiro momento, a cena pareceu ridícula, mas então, o que era um brinquedinho se expandiu, formando um grande guarda-chuva. Exatamente como havia acontecido com o Atlas. O Atlas!

Artur passou por um momento de pânico enquanto apalpava o bolso da camisa, por baixo do avental e da capa. Pensou que tivesse perdido o Atlas! Quando sua mão encontrou a capa de tecido áspero, ele soltou um suspiro de alívio.

— Ataque cardíaco? — perguntou Suzy curiosa. — Pensei que você fosse jovem demais.

— Não, estava apenas verificando se o Atlas está bem — respondeu Artur.

Ele olhou com mais atenção para Suzy e, por um momento, teve vontade de dar um abraço nela, de tão contente que estava em vê-la. Mas o momento passou. Em vez disso, ofereceu-lhe a mão, que ela apertou.

— Encantada, com certeza — disse Suzy toda formal. — Viu? Estive aprendendo boas maneiras.

Quando apertaram as mãos, o dedo indicador da garota brilhou repentinamente, com uma luz tão clara que quase cegou Artur. Suzi logo largou a mão do garoto e deu um puxão no dedo até fazer as juntas estalarem. Então, a luz se apagou.

— Era para não acender mais depois que eu o encontrasse — resmungou ela. — Primeira Dama... aquela que era a Primeira Parte do Testamento... preparou tudo para que a luz se acendesse ao chegar perto de você.

— Mas como soube que eu estava aqui? — perguntou Artur.

— Isto me avisou — respondeu Suzy. Dizendo isso, ela aproximou do nariz o dedo

indicador e levou um susto quando este acendeu mais uma vez.

— Maldita mágica! Aquele Will foi sapo por tempo demais, se quer saber.

— Mas como você soube? — repetiu Artur. — Bem, depois que o telefone foi cortado, achei

que deveria dar uma chegada no seu mundo, mas a Primeira Dama não deixou, por causa da Lei Original. Eu disse que uma lei é idiota quando você não pode fazer uma coisa que todo mundo faz. Aí, a Primeira Dama disse: “Se não tomar cuidado, mocinha, com ou sem problema, vai ficar recolhida em seu quarto pela próxima década.” E eu respondi: “O Mestre é Artur, que me nomeou Nove Horas de Segunda-Feira. Você é apenas Procuradora.” Então, ela me mandou para o quarto. Mas eu fugi pela chaminé, e o Espirrador me deixou usar os Sete Relógios para dar uma olhada no que estava acontecendo. Eu vi os Grotescos, vi o Magrelo e quis avisar você, mas a sua cabeça é dura demais, ou coisa parecida, para receber sonhos. Então, o Espirrador me ajudou a consultar o Atlas e guiei você até aquela garota, a Folha, que encontramos quando estávamos na Escada Improvável. Mandei um sonho para ela, dizendo onde ficava a porta que os Grotescos tinham aberto para o seu mundo e... onde eu estava mesmo?

Ela respirou fundo e continuou: — Ah, nós achamos que a Folha podia passar a

informação para você. Então, você poderia usar a porta para voltar para a Casa. Mas achei melhor ajudar. Então, fui ab Tenente Guardião e pedi que me deixasse entrar, mas ele não deixou. Aí, entrei escondida na Sala do Dia, olhei de novo pelos Sete Relógios e vi você passar pela Porta. Então, desci ao Pátio para nos encontrarmos. Como você não apareceu, bati na Porta e falei com o Tenente Guardião. Aí, perguntei para ele: “Artur passou pela Porta?” Ele disse: “Passou.” Esperei um pouco, mas

como ele não falou mais nada, eu perguntei: “Aonde ele foi?” Ele respondeu: “Para as Regiões Afastadas.” Eu perguntei: “Há quanto tempo?” Ele respondeu: “Há duas horas, pelo tempo da Casa.” Eu pedi: “Deixa eu passar também?” Ele disse: “Não.” Eu perguntei: “Por quê?” Ele respondeu: “Ainda que eu deixasse, só se pode usar aquela porta quando se vem dos Reinos Secundários. Você tem de passar pela Casa.” Então, eu voltei à Primeira Dama e, depois de uns gritos e discussões, ela disse: “O Horrível Terça-Feira merece ter alguém como você na porta dele.” Aí, ela me deu tudo o que eu precisava para ajudar você. Como esta coisa na ponta do dedo.

— Certo — disse Artur fracamente. Depois de ter passado um dia inteiro falando

pouquíssimo, era um sacrifício escutar Suzy, que estava visivelmente em seu modo ‘‘falação”.

— E como chegou às Regiões Distantes? Como conseguiu aquela... roda e tudo o mais?

— Terça-Feira usa as crianças do Tocador de Gaita como mensageiros — respondeu Suzy, mostrando a fenda no cós da roupa, onde estava o pergaminho. — Meio-Dia de Segunda-Feira, ex-Crepúsculo, me transferiu para a Casa Intermediária. Então, um amigo dele vendeu o meu contrato para Terça-Feira. Assim, pude me juntar aos mensageiros. Aí, troquei de lugar com Ned e desci para cá, porque o meu dedo brilhou quando cheguei perto da estrada de ferro.

Artur balançou a cabeça, sacudindo o novo brinco, que lhe fez cócegas no pescoço. Ele ainda se sentia doente e cansado e não conseguia absorver tanta informação. Então, de repente, se deu conta da importância do que Suzy acabara de dizer.

— Você foi contratada! — disse. — Isso significa que está presa aqui!

— Só temporariamente — respondeu Suzy, dando de ombros. — Assim que você encontrar a Segunda Parte do Testamento e tomar ela do Horrível Terça-Feira, pode me liberar do contrato.

— E pode me liberar também — acrescentou Japeth. — Senhor, Excelência. Eminência. Alteza. Majestade. Ou o que quer que seja.

— Ele é Segunda-Feira — explicou Suzy. — O Mestre da Casa Inferior.

Japeth calou o que pretendia dizer e imediatamente fez uma reverência exagerada, quase encostando a cabeça nos pés de Artur.

— Eu não sou Segunda-Feira! — falou o garoto. Via-se a aflição em seu rosto. Ele não era

Segunda-Feira. Não era um dos Dias. Era apenas um garoto apanhado por acontecimentos extraordinários que, logo que possível, voltaria à sua vidinha normal e tranqüila.

— Sou Artur Penhaligon. Entreguei o Domínio da Casa Inferior à... Primeira Dama ou seja qual for o nome dela. Levante-se, por favor!

Japeth se levantou um pouco, mas manteve aposição de reverência. Contudo, ao recuar alguns passos, tropeçou em um pedaço de trilho quebrado e caiu de costas. Artur correu para ajudá-lo a se levantar, o que deixou o Habitante ainda mais sem graça.

Logo que Japeth se aprumou, Artur se voltou na direção de Suzy.

— Como vou encontrar a Segunda Parte do Testamento e tomar ela de Terça-Feira? Não consigo nem me libertar deste Fosso! Ai! Ai!

Um pingo de chuva carregada de Nada tinha caído no lábio de Artur, que enxugou a boca freneticamente e saiu pulando de dor. Não se sabe se por força das palavras mágicas ensinadas pelo Tenente Guardião ou se por algum encantamento restante da Primeira Chave; o fato é que a queimadura causada pela chuva de Nada cicatrizou em questão de minutos. Mas ele ainda sentia a dor...

— É por isso que estou aqui. Para ajudar — disse Suzy. — Talvez você queira conhecer a outra opção. É um pouco nojenta...

— Qual é? — perguntou Artur ao ver a garota enfiar dois dedos na boca.

— Esta! — respondeu Suzy, arrancando um dente de trás, completinho, com raízes ensangüentadas e tudo.

Artur fez uma careta e deu um passo atrás ao ver a garota cuspir sangue sobre os trilhos da estrada de ferro.

— Tive de trazer escondido, como se fosse um dente de siso extra — ela explicou enquanto cuidadosamente colocava o dente no chão e o protegia com o guarda-chuva. — Aqui, tem tudo o que precisamos.

Artur observou a cena. “O que tem este molar tão feio a ver com a

situação?”, pensou. Mas, pelo que sabia sobre as coisas da Casa, preferiu manter a boca fechada.

Sob o olhar de Artur, a cor das raízes ensangüentadas foi subindo pelo dente, que deixou de ser branco, passando a ostentar um vermelho profundo e uniforme. Então, começou a emitir uma luz trêmula e

assumir um contorno indefinido. No momento seguinte, o garoto se viu diante de uma bonequinha de madeira gorducha, com cerca de 2,5 centímetros de altura e uns 5 centímetros de circunferência. Tinha uma cara sorridente, bochechas rosadas e um casaco pintado de vermelho brilhante. Mais ou menos na cintura, via-se uma linha preta para mostrar por onde deveria ser aberta. Parecia ser a menor de um conjunto de bonecas russas, daquelas que se abrem para mostrar outra que vem dentro.

— Tem certeza de que é assim mesmo? — perguntou.

— Abra — disse Suzy torcendo o nariz. Artur se abaixou para desatarraxar a boneca.

Quando abriu a parte de cima, quase sofreu uma torção entre os dedos polegar e indicador, tal a força da explosão.

A segunda boneca era cinco vezes maior do que a primeira. Ele suspirou ao ver Suzy erguer uma sobrancelha.

— Vamos! — disse ela. — Ainda faltam outras três, e o que precisamos está dentro da última. Cuidado para não deixar a cabeça muito perto.

— Eu cuido disso, senhor — ofereceu Japeth. — Não. Deixe que eu faço — respondeu Artur. —

E não me chame de senhor! — Como quiser, Sua Alteza Sereníssima. — E não me chame assim também! — protestou

Artur. Ele soltou a parte de cima da segunda boneca,

tendo o cuidado de chegar para trás, de modo que a explosão não lhe causasse nenhum dano permanente.

As outras bonecas se seguiram rapidamente e, em poucos minutos, ele abria a quinta e última. Esta era quase

da altura dele e umas três vezes mais gorda. Desta vez, não houve explosão.

Com muito cuidado, Artur espiou dentro da boneca, pronto para saltar caso houvesse algum efeito retardado ou o conteúdo fosse desagradável. Mas a boneca estava quase vazia. Nela havia apenas uma mochila de lona mais ou menos do tamanho da que ele levava para a escola.

— Tive de esconder dentro de um monte de bonecas para que os Farejadores de Terça-Feira não encontrassem — explicou Suzy.

Ela ajeitou o guarda-chuva em pé, bem no centro de uma roda de guia, virou a boneca de lado e se abaixou para pegar a mochila. Com a cabeça dentro da barriga da boneca, sua voz saiu abafada quando disse:

— Você provavelmente não se encontrou com eles porque veio de trás. Repugnantes, os Farejadores. Focinhos de cachorro sem o resto do animal. Somente um nariz, com pernas peludas e ásperas. Acho que o Horrível Terça-Feira usou um banquinho como modelo. Dá vontade de vomitar!

— Um subiu em mim quando cheguei — contou Japeth com um arrepio. — Um nariz sem corpo, com dois olhinhos e a boca enrugada, cheirando minha pele... Eu não sabia o que era aquilo nem o que estava fazendo.

— Eles farejam magia ou poderes proibidos — disse Suzy. — Como os que temos aqui.

Ela ajeitou a mochila embaixo do guarda-chuva e o abriu, fazendo surgir vários objetos: dois pedaços de papel branco e grosso, um bastão de cera vermelha para selo, quatro pequenos rolos de barbante, uma caixa de fósforos (com a figura de um pato fumando cachimbo e as palavras

PERIGO — FÓSFOROS — CINCO VEZES MAIS INFLAMÁVEIS — SUPERFÁCEIS DE ACENDER) e dois recipientes de vidro cheios do que pareciam patinhas de sapo feitas de lã.

— Dois pares de Asas de Subida e dois conjuntos de aderentes — explicou Suzy. — As asas nos levam para fora do Fosso até o teto das Regiões Afastadas. Com os dedos aderentes, podemos escalar o teto até a parte superior da Torre do Tesouro do Horrível Terça-Feira. Chegando lá, afastamos o galo que mede a velocidade do vento, você encontra a Segunda Parte do Testamento e coloca ordem neste lugar... Pelo menos foi o que a Primeira Dama imaginou, o que é uma garantia de problemas.

— O que são Asas de Subida? — perguntou Artur. — E por que temos de escalar o teto? O que é a tal Torre...

— Que barulho foi esse? — perguntou Japeth. — Perdoem por interromper.

Artur também tinha ouvido e tentou enxergar na escuridão, sem se esquecer de puxar o capuz para proteger os olhos. O som parecia um assobio muito alto, vindo de cima. Ele logo concluiu ser um ruído semelhante ao provocado pelo disparo de fogos de artifício, amplificado várias vezes, mas muito distante.

— Oh-oh — fez Suzy, pegando um papel na cintura e entregando para Artur. — É isto aqui. Eu deveria ter avisado a todos os grupos entre a Estação Superior e as duas primeiras Estações da Via...

Artur desdobrou o papel e leu:

PERIGO. A todos os supervisores, todos os grupos, todas as estações da via, todos os trabalhadores e toda a equipe. Uma explosão solar está marcada para boje, ao Meio-Dia em Ponto pelo Tempo da Casa. Serão afetadas as camadas de cima, da Estação Superior À Segunda Estação da Via. Assim, ao soar o foguete sinalizador de 30 segundos, que será claramente audível, todos os trabalhadores deverão interromper qualquer tipo de movimentação. Que protejam os olhos e não olhem para cima, até soar o sinal de fim e alarme. Caso a explosão solar revele a presença de Nadicas, deve-se fazer soar o alarme, conforme o Regulamento 27, parágrafo 4. Se não for possível, os trabalhadores devem gritar em uníssono, o mais alto que puderem durante 3 segundos a cada 9 segundos. Por ordem de Yan de Terça-Feira.

“O que será um foguete sinalizador de 30

segundos?”, pensou Artur. “Deve ser... 30 segundos!” — Olhem para baixo! — gritou Artur, pegando os

companheiros e empurrando a cabeça deles em direção ao chão de pedra.

Capítulo 9Capítulo 9Capítulo 9Capítulo 9

Mal Artur tocou o chão, entre Suzy e Japeth, houve um

súbito clarão, tão intenso que obrigou o garoto a se encolher e fechar os olhos, apesar da proteção do capuz.

Estranhamente, não houve onda de calor nem de choque; apenas o clarão inicial e uma luz brilhante, embora um pouco menos que no início.

Segundos depois, um assobio fraco, mas agudo, como o piar de um pássaro distante, ecoou em todo o Fosso. Artur presumiu que fosse o sinal de fim de alarme. Mantendo o olho direito fechado, ele arriscou uma espiada com o esquerdo.

O que o garoto viu o deixou ainda mais assustado: uma enorme bola brilhante, de tamanho equivalente a cem balões de ar quente, pairava no ar a uma distância aproximada de 12 a 15 quilômetros e a mais ou menos um quilômetro e meio de altura. Parecia um pequeno e agradável sol. As nuvens de chuva e a névoa tinham se afastado, e a luz cada vez mais suave iluminava a parte superior do Fosso em toda a sua amplidão, mostrando um buraco tão grande que fazia o outro lado parecer apenas um borrão a pelo menos 30 quilômetros de distância. E tão profundo que nem mesmo a luz da explosão solar conseguia chegar lá.

— Então isso é uma explosão solar — disse Suzy com um muxoxo. — Pensei que fosse coisa melhor.

Como uma grande exibição de fogos de artifício, sabe? Com um estrondo capaz de tirar a sujeira dos ouvidos.

— É maior do que imaginei... ou poderia ter imaginado — sussurrou Artur.

Ele havia visitado o Grand Canyon e pensava no Fosso como algo semelhante. Mas aquele lugar era muito, muito maior e muito, muito mais profundo que o Grand Canyon.

— Estou falando do Fosso — completou. — Não passa de um buraco no chão. Grande e

fedorento — opinou Suzy. — Acho melhor nos apressarmos em colocar estas asas. Vamos aproveitar a explosão solar. Pode levar meses até acontecer outra.

— O que é esse negócio de explosão solar? — perguntou Artur, apontando para a enorme bola brilhante.

É verdade que a bola já não brilhava tanto, as sombras começavam a subir e pequenas nuvens de chuva se formavam na parte de cima do Fosso.

— Quais são as conseqüências? — Não sei exatamente — respondeu Suzy. — Ned

me disse que serve para eliminar o Nada, suspender a chuva por um tempo, etc. O Horrível Terça-Feira faz isso com um intervalo de alguns meses em diferentes partes do Fosso. Como se fosse uma limpeza, eu suponho. Para nós, é bom. É melhor voar no claro. Se conseguirmos.

— Ah, bem que eu ouvi um Supervisor comentar com outro alguma coisa do tipo “precisamos de uma explosão solar logo para verificar a estrada” — falou Japeth com certa hesitação. — Quer dizer que vai haver uma inspeção na estrada de ferro para aproveitar a explosão solar. Portanto, podemos ser, ah, inspecionados...

Artur observou a ferrovia. Havia percorrido pelo menos 45 quilômetros de estrada vicinal, descendo suavemente pela parede do Fosso. A Estação Superior devia estar mais ou menos a um terço do caminho, em sentido anti-horário — cerca de 15 quilômetros — e no máximo 2 quilômetros acima. Apertando os olhos, olhou na direção em que imaginava ficar a Estação Superior. A luz já não era mais forte do que a iluminação de rua, mas havia cumprido seu papel e, embora as nuvens e a escuridão voltassem aos poucos, o ar continuava limpo.

Japeth e Suzy olharam na mesma direção. A princípio, nenhum deles viu coisa alguma. Depois, falaram todos ao mesmo tempo:

— Fumaça... — Trem... — O trem de Terça-Feira! Eles perceberam sinais que indicavam a

aproximação do trem, embora ainda distante demais para ser visto: o brilho do metal, algumas centelhas, uma coluna difusa de fumaça preta. Com certeza, o trem do Horrível Terça-Feira vinha descendo a estrada de ferro.

— Vai levar algumas horas para chegar aqui — tentou calcular Artur. — Ou uma hora, pelo menos. Não acha?

— Isso mesmo. Temos de colocar as Asas de Subida — disse Suzy. — E elas se chamam assim porque só sobem. Dá para inclinar o corpo para acertar a direção, mas só vão para cima. Uma mágica fraquinha, muito mais fraca do que as asas comuns. Fáceis de esconder.

— E quanto a Japeth? — perguntou Artur. — Lamento — respondeu Suzy com um levantar

de ombros. — Não posso fazer nada.

— Talvez, eu possa usar a sua roda, senhorita Suzy, para encontrar meu grupo — sugeriu Japeth. — Então, quando derrotar Terça-Feira, senhor, poderia fazer o favor de me livrar do contrato? E, quem sabe, achar uma ocupação para um ex-Tesauro?

— A situação está mais para se do que para quando — resmungou Artur. — E não posso voar deixando você. Você não me abandonou.

— E o senhor também não vai me abandonar, tenho certeza — disse Japeth com outra reverência. — Trata-se apenas de um atraso, um adiamento, um retardamento, um recesso, uma pausa. E estou certo de que será bem-sucedido em minha libertação, meu resgate, minha redenção, meu livramento, minha salvação...

— Falou e disse — interrompeu Suzy. — Prazer em conhecê-lo, Japeth. Não se preocupe. Artur é mais esperto do que parece. Vocês vão se encontrar logo. Enfrentar Terça-Feira vai ser moleza, comparado com Segunda-Feira.

— É mesmo? — perguntou Japeth. — Não, não seja bobo — respondeu Suzy. — Só

falei para animar você. Não devia ter perguntado. Agora, Artie, precisamos colocar as asas e os dedos aderentes. Vou ter de fazer uns furos no seu casaco e na sua camisa.

— Não me chame de Artie! E por que precisa furar a minha roupa?

— Porque as asas são presas aos ombros, com cera — explicou Suzy, apontando um bastão vermelho. — O barbante passa pela cera. Assim, quando quiser descer, é só puxar o cordão, quebrar o selo e descer. Facinho. Vamos.

Artur ainda hesitava. Sentia que, mais uma vez, era forçado a participar de uma situação sobre a qual não tinha controle. Mas havia outra escolha?

— O trem é visivelmente rápido, ligeiro, veloz — disse Japeth sem tirar os olhos da coluna de fumaça provocada pelo trem de Terça-Feira. — Se vou pegar a roda, é melhor sair, partir, ir embora ou me ausentar imediatamente.

— Tem razão — concordou Artur. O garoto respirou fundo, forçando o ar a entrar em

seus pulmões cansados, e esticou as costas. Tinha uma dívida com Japeth e também com Suzy e todos os outros. Precisava dar o melhor de si e mais um pouco. Desistir, nem pensar.

— Vou derrotar o Horrível Terça-Feira e voltar aqui para libertar você e todos os outros trabalhadores contratados. Ninguém deve ser escravo. Nem aqui, nem em lugar algum.

— Este se parece mais com o velho Artur — disse Suzy. — Pensei que o Fosso tivesse esgotado as suas forças, por assim dizer.

— Muito obrigado — resmungou Artur, estendendo a mão a Japeth. — Boa sorte. Vou fazer de tudo para libertar você.

Desta vez, o aperto de mão provocou menos faíscas. Mas Artur sentiu uma onda de energia entrar pela palma e subir pelo braço. O braço de Japeth também estremeceu como se ele tivesse sentido a mesma coisa. Então, Artur percebeu que a altura do trabalhador tinha aumentado em vários centímetros. Além disso, suas roupas rasgadas se recuperaram e até os cordões que

prendiam as mangas se transformaram em belas abotoaduras de madrepérola.

— Vou servi-lo também, Artur, quando puder — disse Japeth ao encerrar o aperto de mão. — Até mais, Mestre. Senhorita Suzy, desculpe incomodá-la, mas poderia explicar, ilustrar, esclarecer o funcionamento desta roda?

Ele correu para a roda e entrou. Suzy mostrou a alavanca que controlava a velocidade e a trava da caixa de marchas, que só podia ser aberta por Terça-Feira ou por um dos Grotescos, permitindo assim que a corda do relógio armazenada fizesse a roda subir pela estrada de ferro, em vez de descer.

Delicadamente, Japeth empurrou a alavanca um pouquinho para a frente, e a roda se moveu. O Habitante acenou ao passar por Artur e colocou a alavanca na posição máxima. A roda acelerou e logo se perdeu entre as sombras que se formavam.

A chuva também recomeçou, em pingos esparsos, por enquanto desprovidos de Nada. As nuvens partiam da parede do Fosso, aproximando-se do sol que desaparecia.

Artur permaneceu imóvel enquanto Suzy cortava a capa e a camisa dele com uma faquinha afiada: a faca que ela havia apanhado na antecâmara de Segunda-Feira. A imobilidade de Artur e a atividade da garota em suas costas trouxeram a ele a lembrança desagradável dos dias passados no hospital e das injeções aplicadas no braço.

Depois de fazer cortes nas roupas do garoto, Suzy pegou um dos pedaços de papel e rapidamente dobrou e rasgou, formando duas asas. Ao toque de suas mãos, o papel ia ficando macio, e penas surgiam na superfície.

— Pode se deitar — ela instruiu Artur.

Ele se deitou, mas esticou a cabeça para ver o que a garota fazia.

Suzy ajeitou as asas no chão e colocou uma pedra em cima para fazer peso. Então, desenrolou dois pedaços de barbante e deixou perto das asas. E, por último, pegou o bastão de cera vermelha e os fósforos.

— Vai incomodar um pouco — avisou enquanto riscava o fósforo no chão.

Depois de um chiado, surgiu uma chama de um metro de altura.

— Abaixe — mandou Suzy. A chama diminuiu. — Abaixe um pouco mais. Assim. Artur não viu o que ela fez em seguida. Mas sentiu.

Uma gota de cera quente caiu-lhe nas costas logo abaixo do ombro. Então, percebeu o papel sendo pressionado com bastante força e o barbante sendo passado por seu pescoço.

— Não se mexa — avisou ela. — Tenho de fazer logo a outra, senão ficam desequilibradas.

Artur mordeu o lábio, para abafar um gemido, assim que a cera caiu do outro lado. Parece que a dor é pior quando se espera por ela. Mas foi uma dor momentânea.

— Pronto! — exclamou Suzy satisfeita. — Levam uns 10 minutos para crescer. Vou preparar as minhas para você prender em mim.

— Mas eu não sei fazer! — protestou Artur. — É fácil — respondeu Suzy enquanto rasgava o

papel restante para formar as asas. — Basta aquecer a cera, pingar um pouco no meu ombro, apertar a asa com força, passar o barbante por cima, pingar mais um pouco

de cera e pressionar com o polegar. Minhas roupas já estão furadas por causa das outras asas.

— Tudo bem — disse Artur ainda meio em dúvida. Ele pegou as asas, prendeu com a mesma pedra e

colocou o barbante ao lado. Então, apanhou os fósforos. Fora da caixa, pareciam perfeitamente normais.

— Depressa — falou Suzy, que sentia, pelos buracos da roupa, as costas arranhadas. — A pedra está fria.

Artur riscou o fósforo no chão e chegou a se encolher, tal a altura da chama, que dançava sem parar, apesar de não haver vento; era ainda mais alta do que a provocada por Suzy. Ele chegou até a ver, na chama, uma carinha sorridente.

— Abaixe — mandou Artur. — Abaixe muito. Aos poucos, a chama abaixou. A carinha deixou de

ser sorridente e assumiu uma expressão triste. Quando a altura da chama chegou a uns 2 centímetros, no máximo, Artur pegou a cera e derreteu, deixando cair um bocado sobre as costas de Suzy. Nervoso, errou o alvo e acertou o casaco.

— Qual é o problema? — perguntou Suzy. — Não é nenhuma complicação!

Artur franziu a testa, aplicou mais um pouco de cera, colocou a asa e o barbante e pressionou tudo com o polegar. Ele pensou que fosse deixar sua impressão digital na cera, mas tal não aconteceu. Em vez disso, a cera brilhou com as cores do arco-íris, formando um selo perfeitamente redondo, onde se via o perfil de sua cabeça com uma coroa de louros. Em volta da imagem, havia palavras em letras estranhas, que, no entanto, logo se arrumaram, para formar a inscrição: DOMINUS ARTUR

MAGISTER DOMUS INFERIOR. Em seguida, as letras se transformaram novamente, formando a inscrição: LORDE ARTUR, MESTRE DA CASA INFERIOR.

— O que está esperando? — perguntou Suzy impaciente. — Que o Horrível Terça-Feira venha nos convidar para um chá?

— Desculpe — pediu Artur. Por um momento, ele ficou fascinado pelo próprio

selo. Rapidamente, colocou a segunda asa. Esta já havia crescido um pouco enquanto estava no chão ç, parecia muito mais feita de penas do que de papel. Penas limpinhas e brilhantes, em contraste total com as pedras cobertas de fuligem e a escuridão que tomava conta de tudo.

Artur sentiu as próprias asas começarem a bater, provocando uma lufada de ar que atingiu seus tornozelos. Mas ainda eram pequenas demais para levantá-lo do chão.

Suzy entregou a Artur um dos vidros, com o que pareciam ser patinhas de sapo feitas de lã, e guardou o outro no bolso do avental. Então, apressou-se a pôr as sobras na mochila, que pendurou no pescoço, tendo o cuidado de deixá-la na frente do corpo para não atrapalhar a batida das asas.

— São seis dedos aderentes em cada vidro. Coloque em você, um dedo sim, um dedo não, começando pelo polegar — ensinou, abrindo o vidro que tinha guardado. — Para eles grudarem, você tem de dizer as palavras mágicas: “Grude de dia, grude de noite, grude cada um por um minuto, à direita e à esquerda.” Somente uma das mãos vai grudar de cada vez, de modo que você possa se movimentar. Não esqueça qual está grudando e qual não está. Eu aviso quando for hora de tirar.

Artur repetiu mentalmente as palavras mágicas, para ter certeza de haver decorado todas, e ajeitou os seis dedinhos aderentes, dedo sim, dedo não, a começar pelo polegar. Pareciam mesmo patas de um bicho de brinquedo feitas de lã. A diferença era que, ao serem colocados, mexiam-se e guinchavam, como camundongos vivos, o que dificultava as coisas.

Ele estava tão concentrado na tarefa de arrumar os dedos que levou um susto quando Suzy de repente pegou a vareta de cobre que ele quase usara como arma e investiu contra alguma coisa que vinha em sua direção. A coisa tinha o tamanho de uma bola de beisebol, mas era preta e felpuda, quase como uma massa de piche.

Suzy acertou. A extremidade da vareta de cobre mergulhou na névoa metálica e o que quer que fosse acabou lançado contra a parede do Fosso, caindo em seguida.

— Um pedaço de Nada — explicou Suzy com expressão de desagrado. — Tentando encontrar outros pedaços para se juntar e formar um Nadica.

Ela olhou mais uma vez para o sol, já bem fraco. Nuvens praticamente maciças o rodeavam. Era como um crepúsculo que rapidamente se transformava em noite escura.

— Pensei que a explosão solar afastasse esse tipo de coisa por mais tempo. É melhor você arranjar outra vareta. De cobre é melhor do que de aço, embora nenhuma das duas seja muito eficiente contra o Nada em formação. Seria bom ter alguma coisa de prata ou de outro material especial, como as lâminas feitas de luar congelado ou incendiadas, com fogo arquitetural, como as

de Meio-Dia. Como estão as suas asas? Consegue alcançar os barbantes? Não puxe agora!

Artur esticou o pescoço para olhar. As asas lhe caíam dos ombros aos joelhos e eram magnificamente emplumadas e brilhantes. Batiam devagar, como que se aquecendo. O ar que movimentavam era puro, fresco e cheirava a laranja. Ele apalpou os barbantes, que lhe caíam sobre o peito, vindos dos dois lados do pescoço.

— Consigo pegar — confirmou o garoto. Ao olhar em volta, ele viu um pedaço de cano de

cobre, mais grosso e mais comprido que o outro de que Suzy tinha se apropriado. Quando tentou pegá-lo, foi levantado pelas asas e caiu a vários metros de distância.

— Ajeite-se — avisou Suzy. — As asas vão estar prontas em um minuto.

Artur se abaixou e, com esforço, alcançou o cano de cobre. Assim que fechou a mão em torno dele, sentiu uma batida fortíssima das asas, que o levantaram uns 3 metros acima da ferrovia.

Suzy ainda estava no chão com as asas em aquecimento.

— Você pode se inclinar para mudar de direção! — gritou ela. — Vá para o centro do Fosso! Assim, vai ser mais difícil acertá-lo, caso atirem do trem ou da estrada. Se chegar ao teto antes de mim, dê uma cambalhota antes de encostar. Isso confunde as asas, e elas ficam mais lentas. Use os dedos aderentes para se agarrar ao teto. Vai ser fácil!

As asas de Artur aumentaram a força e a velocidade, e ele começou a subir rapidamente. Ao olhar para baixo, porém, viu uma figura enorme, vagamente humana, tendo às costas asas parecidas com as de uma

libélula. E viu quando a criatura se agarrou à parede do Fosso e começou a aproximar-se de Suzy.

Distraída que estava a olhar para Artur, ela obviamente não viu nem ouviu o Nadica.

— Suzy — gritou Artur. — Cuidado! Um Nad...

CapítCapítCapítCapítulo 10ulo 10ulo 10ulo 10

No exato momento em que o Nadica deu o bote nas

costas de Suzy, o sol se apagou, mergulhando o Fosso em total escuridão, a não ser pelo patético círculo de luz da lanterna de tespentade que Artur segurava com mão trêmula.

Suzy não carregava lanterna. As duas que tinha estavam fixas na roda em que Japeth havia partido. Artur forçou os olhos em uma tentativa desesperada de ver o que acontecia, mas não adiantou. Não via nem ouvia coisa alguma, a não ser o som provocado pelo bater das asas e pelo deslocamento de ar.

— Suzy! Não houve resposta. As asas de Artur batiam sem

parar, cada vez mais depressa, levando-o para mais longe. — Suzy — ele tornou a chamar. A única resposta veio de cima: uma súbita pancada

de chuva. Mas as asas de Artur repeliram a água, rodeando-o de ar seco e levemente aquecido.

— Suzy! “Ela deve ter escapado.” Artur tentou pensar na última imagem que vira

antes de o sol se apagar. “As asas de Suzy estavam totalmente estendidas,

prontas para bater, não foi? Ela levantou vôo um instante antes de ser atacada pelo Nadica.”

“Certo?” Artur se lembrou do que Suzy lhe dissera sobre os

Nadicas. As palavras ainda lhe ecoavam nos ouvidos: Uma mordida ou um arranhão de um Nadica faz você

desmanchar e virar Nada. Por isso, todo mundo tem tanto medo deles. “Parece que foi ontem”, pensou.

E tinha sido ontem! Os dois haviam sobrevivido a Segunda-Feira, mas Terça-Feira era muito pior! E aquele momento era muito mais terrível do que o começo...

Alguma coisa bateu as asas em direção à luz da lanterna de Artur. Instintivamente, ele atacou a coisa com o tubo de cobre, fazendo-a voltar para a chuva e a escuridão. Somente então concluiu que se tratava de um pedaço de Nada voador.

Um pedaço. À procura de outro para formar um Nadica...

Artur começou a olhar freneticamente em todas as direções, esticando ao máximo o pescoço, na tentativa de ver.

“E se um pedaço de Nada me atingir na parte de trás da cabeça? Ou nas asas?”

Outro pedaço de Nada se chocou com o pé de Artur. Ele deu um chute, e seu pé sumiu na escuridão, como se tivesse sido guilhotinado. Por um momento em que seu coração pareceu parar, ele pensou ter ficado sem os dedos. Só sossegou quando viu que se mexiam.

Pela primeira vez, Artur experimentou mudar de direção. Conforme a explicação de Suzy, as asas só iam para cima, mas ele conseguiu alterar o ângulo da subida. Para evitar um possível ataque de Nadicas, ele se inclinou para a direita, para a esquerda, para a frente e para trás, até

que começou a girar e teve de se manter imóvel e ereto para voltar à posição normal.

Os pedaços de Nada, no entanto, continuavam a voar em volta dele. Só não vinham de trás, provavelmente afastados pelo bater das asas. Artur era obrigado, a curtos intervalos, a atacá-los com o pedaço de cano, que ficava menor a cada golpe, e tinha de cuidar para usar sempre a mesma extremidade.

De repente, um pedaço de Nada atingiu a lanterna de Artur, fazendo um buraco e apagando a chama ou o que quer que fosse responsável pela iluminação atrás do vidro. O garoto suspirou assustado, mas a escuridão durou apenas alguns segundos. Logo uma luz branca e suave se espalhou em torno dele, denunciando os pedaços de Nada que se aproximavam.

A luz vinha das asas. Por um momento, Artur se sentiu reconfortado, mas no mesmo instante foi tomado por uma idéia preocupante: ficar aceso como um anjo de árvore de Natal, em pleno Fosso, seria um convite a Nadicas, Supervisores ou a qualquer outra coisa.

Só que ele não sabia o que fazer, nem tinha tempo para pensar no assunto. Pedaços de Nada iam de encontro a ele, a maior parte vindo de baixo, obrigando-o a dobrar os joelhos e se inclinar para a frente, o que era bastante difícil. Toda vez que se inclinava demais ou levantava um joelho mais do que o outro, perdia o equilíbrio e começava a girar.

Depois de afugentar pelo menos uma dúzia de pedaços de Nada, Artur reparou que tinham ficado menos numerosos, mas muito maiores. Eles estavam se juntando... formando Nadicas.

Isso o preocupou muito, em especial quando não viu mais pedaços de Nada se atirarem em sua direção. Estaria ele fora de alcance ou teriam os pedaços se juntado para formar alguma coisa que o atacaria?

Nesse momento, algo tocou a perna de Artur. Com um grito, ele se encolheu, mas logo percebeu que se tratava apenas da lanterna, já sem utilidade. Então, abriu a mão e a deixou cair. O objeto refletiu a luz pela última vez e desapareceu na escuridão.

Um segundo depois, o garoto ouviu barulho de vidro se quebrando e um grito de dor e raiva, abafado em parte pela chuva e pelo bater de asas.

— Ai! — Suzy! — chamou Artur. Mas, no momento em que chamou, o alívio que

começava a sentir no peito se transformou em preocupação. Haveria algum tipo de Nadica que fosse capaz de imitar pessoas? E se algum conseguisse tomar a forma da criatura que tivesse dissolvido ou devorado? Ele se lembrava vagamente de ter ouvido alguém falar sobre o assunto. Ou talvez tivesse lido no Atlas...

— Suzy? — repetiu, olhando para baixo. — É você?

— Claro que sou eu! — foi a resposta brusca. Artur ainda não conseguia ver quem chegava, mas

o som estava mais próximo. — Quase acertou o meu olho, seu idiota! Já tem

lixo demais neste buraco. Precisava jogar mais? “Este é o tipo de coisa que Suzy diria”, Artur

pensou.

Mas e se um Nadica tivesse absorvido a mente e a memória e dela e assimilado o vocabulário e o modo de falar de sua amiga?

Ele gostaria de vê-la, mas ao mesmo tempo tinha medo de dar com uma figura humana distorcida, com asas de inseto a bater freneticamente na tentativa de alcançá-lo.

— O que aconteceu? — perguntou. Ele via qualquer coisa se aproximando, mas não

percebia o que era, e continuou: — O Nadica... — Errou — gritou Suzy. — Passou muito perto.

Arrancou o meu tamanco direito. É justo. Afinal dei um chute nos dentes dele.

Artur relaxou. Tinha de ser Suzy, salva por pouco. “Mas, se é Suzy, por que as asas dela não brilham tanto quanto as minhas?”

— Melhor diminuir o brilho das suas asas! — gritou Suzy, como se lesse os pensamentos dele. — A luz está fazendo o Nada se juntar. E os pedaços se juntam para fazer um Nadica.

— Como vou saber se você é mesmo Suzy? — Artur gritou em resposta com uma ponta de pânico na voz.

— De que você está falando? — foi a resposta exasperada. — Quem mais poderia ser? Abaixe a luz!

— Não escute o que ela diz! — gritou outra voz, parecida com a de Suzy, só que mais rouca. — Mantenha a luz forte. É a única coisa que protege dos Nadicas!

— Danação! — disse a primeira voz de Suzy. — A coisa que levou meu tamanco tirou um modelo de mim. Deve ter encontrado um pedaço de pele ou de unha.

— Não escute, Artur! — insistiu a outra voz de Suzy. — Eu sou a verdadeira Suzy! Mantenha a luz forte. Estou chegando!

Artur olhou para baixo, mas só encontrou escuridão. Se ao menos pudesse ver as duas, saberia quem era a verdadeira Suzy...

— Artur, mande as suas estúpidas asas diminuírem a luz e olhe para cima! Aquele Nadica vai cair direto na sua cara. Eles são cegos, mas sentem o cheiro do poder atrás da luz!

Artur apertou os olhos. A voz vinha da esquerda e era acompanhada de uma leve faísca de luz, como se fosse uma estrela distante em uma noite nebulosa.

— Mentira! A luz protege você! — gritou a segunda voz de Suzy, vinda da direita e mais próxima.

— Asas, por favor, diminuam a luz — pediu Artur baixinho, mantendo diante do rosto, como uma espada, o que restava do tubo de cobre.

Foi no momento exato. Como em um pesadelo, a coisa foi de encontro ao tubo, obrigando Artur a dar uma série de cambalhotas para trás, enquanto batia as asas com força, na tentativa de recuperar o equilíbrio. O tubo foi arrancado das mãos do garoto, penetrando como um arpão no peito do Nadica. A criatura mergulhou verticalmente, emitindo um som agudo.

Em meio às cambalhotas, Artur teve uma visão terrível: uma figura mais ou menos do mesmo tamanho e da mesma forma de Suzy, mas com o corpo coberto de escamas e pedaços de couro de crocodilo. Uma das asas, com quase 5 metros de altura, batia freneticamente, enquanto a outra caía inerte, pois o tubo de cobre tinha atingido o músculo do peito que a sustentava.

— Como descobriuuuuu... “A unha de Suzy”, Artur pensou. “E a faísca de

luz.” Novamente em equilíbrio, o garoto retomou o

ritmo constante da batida das asas. Elas mantiveram a iluminação equivalente a duas velas de aniversário, de modo que ele mal via as próprias mãos.

— Essa foi por pouco — disse Suzy. — Muito pouco — concordou Artur. — Eu sei

que é você, Suzy, mas poderia aumentar o brilho das suas asas só por um segundo, para eu ter certeza? Detestaria reduzir você a cinzas por engano com meu poder.

A última frase foi dita em tom mais alto para assustar algum Nadica que estivesse por perto.

— Ah, tudo bem — falou Suzy, acrescentando em voz mais baixa. — Qualquer coisa para não ser incisorada.

A luz mais forte, apenas uns 5 metros abaixo dos pés de Artur, revelou Suzy olhando para cima. Ela piscou um olho e juntou as palmas das mãos sobre a cabeça, fazendo do corpo uma flecha. Em resposta, suas asas bateram mais depressa. Então, a garota se inclinou para a esquerda e logo estava junto de Artur, a menos de 1 metro de distância.

— Incisorada? — perguntou ele. — Sei lá — disse Suzy, franzindo a testa. — Parece

mais assustador, não acha? Incinerar é o que fazem com papéis velhos no Despejo de Resíduos, lá na Casa Inferior. Aquilo não me assusta. Não aqui. Cadê o seu incinerador?

— Eu gostaria de estar em casa — falou Artur. — Eu também — concordou Suzy. — E gostaria

ainda mais de ter uma casa. Fique de olho para ver se vem outro Nadica. Há muitos pedaços de Nada voando por aí.

Eles parecem ser atraídos pelas asas. Antes, eu não entendia por que aqui ninguém usa asas.

— O quê? — fez Artur. — Você sabia que aqui ninguém usa asas?

— Claro — respondeu Suzy. — Mas sempre pensei que fosse por falta de imaginação dos trabalhadores. Olhe lá... o trem!

Artur forçou a vista na direção apontada pela garota e, por um momento, teve a impressão de ver ao longe alguma coisa que poderiam ser faíscas. Então, foi envolvido por uma nuvem densa e nem as asas conseguiram protegê-lo da umidade.

— Uma hora mais ou menos dentro da nuvem e depois a fumaça — explicou Suzy. — Pior que os charutos da Primeira Dama. E ela nem me dá um.

— O fumo vai matar você. De câncer na garganta, no pulmão ou na boca ou de doença cardíaca — disse Artur, um garoto asmático filho de médica. — Isso sem falar nos anos de respiração difícil, nos dentes amarelados, nas unhas escuras, nos pulmões cheios de alcatrão e na tosse. A pessoa tosse como um gato que quer expelir uma bola de pêlo. Só que o catarro é pior que bolas de pêlo.

— Bem, você pode estar certo quanto às unhas e os dentes amarelos, mas na Casa ninguém morre por fumar — falou Suzy. — A não ser que roube um dos charutos da Primeira Dama.

— Mas, na minha casa, o fumo mata — insistiu Artur. — E é lá que pretendo estar o mais breve possível. É lá que eu deveria estar... e estaria agora, se não fossem os Dias Seguintes, os pedaços do Testamento e tudo o mais.

— Podia ser pior — disse Suzy. — Como?

— Você podia ter Will, o Testamento, enfiado na garganta. Ele costumava entrar na minha. Eu me sentia como se estivesse engasgada com um bolinho de arroz. Era horrível.

— E lá vamos nós pegar mais um pedaço do Testamento. Se conseguirmos.

— Talvez este seja melhor. Nós vamos achar ele. Tem de estar na Torre do Tesouro do Horrível Terça-Feira, não é?

— Por quê? — perguntou Artur meio desanimado. — Porque faz sentido. Terça-Feira é conhecido por

guardar na torre as coisas mais valiosas que saqueia dos Reinos Secundários. Claro que o Testamento tem de estar lá. Em algum lugar.

— Não pode ser tão fácil assim. — Bom, temos de entrar lá — disse Suzy. —

Temos de passar pelo cata-vento e tudo o mais. Talvez seja um pouco difícil, mesmo com os dedos aderentes. E suponho que haja guardas.

— Certo — fez Artur. — E armadilhas. — Ótimo. — E existe uma pequeníssima chance de o

Terça-Feira também estar lá. No entanto, se o trem vai descendo o Fosso, ele deve estar dentro.

— Bom. — Provavelmente. Embora, algumas vezes, um dos

Grotescos assuma o trem. Cuidado!

Capítulo 11Capítulo 11Capítulo 11Capítulo 11

Artur se desviou desesperadamente para a direita, e

alguma coisa passou zunindo a seu lado. Mais uma vez, mal teve tempo de ver o que era. Percebeu apenas uma confusão de dentes, garras e asas batendo sem parar.

— O que foi aquilo? — Não sei — respondeu Suzy. — Quem sabe o

que os pedaços de Nada resolvem fazer quando se juntam? Pior para quem está lá embaixo.

— Por quê? — O Nadica provavelmente vai sobreviver à queda.

E vai ficar furioso. Cuidado! Artur só teve tempo de esticar as pernas, jogar-se

para trás e virar uma cambalhota, quando passou por ele uma criatura que parecia resultado do cruzamento entre uma jibóia e uma doninha, com os dentes quase alcançando a mão dele.

A coisa passou ainda mais perto de Suzy, mas recebeu dela um golpe com a vareta de cobre. Artur se surpreendeu ao ouvir o som de metal contra metal e ver que o cobre não se dissolveu.

— Epa! — exclamou Suzy. — Quis pegar minha mão!

— Era... aquilo era um Nadica? — perguntou Artur depois de recuperar o equilíbrio.

Ele continuava a olhar nervosamente em todas as direções, pronto para se desviar, virar uma cambalhota ou fazer o que fosse preciso para evitar qualquer coisa que caísse sobre ele ou passasse ao lado.

— Quem sabe? — respondeu Suzy. — A maioria dos Nadicas tem algum tipo de carne, mas aquilo era feito de metal. Até entortou minha vareta.

— Quanto falta para chegarmos ao teto? Suzy franziu a testa antes de responder.

— Difícil dizer. Ainda nem chegamos à parte de cima, onde o ar é mais pesado. Uma hora ou duas, talvez.

A garota ainda acabava a frase quando eles saíram da nuvem e entraram na camada de fumaça. Artur reconheceu o cheiro: uma combinação de odores repulsivos, penetrantes, ácidos e sufocantes com traços de ozônio, como se um aparelho elétrico estivesse queimando.

Felizmente, as palavras mágicas ensinadas pelo Tenente Guardião ainda funcionavam. Suzy, que depois de longo tempo na Casa se tornara quase uma Habitante, não era afetada pelo cheiro, mas, ainda assim, franziu o nariz.

A hora seguinte transcorreu sem novidades. Pedaços de Nada continuavam a aparecer, e um Nadica passou bem perto, chegando a assustar Artur.

As asas do garoto batiam em um ritmo constante, vencendo a escuridão enfumaçada. Era impossível dizer onde estavam em relação às bordas do Fosso ou ao teto das Regiões Afastadas.

Depois de algum tempo, Suzy puxou de dentro do avental um relógio de bolso, abriu e olhou o mostrador.

— Acho que estamos chegando — disse, fechando a tampa com um tapinha de quem já fez isso muitas vezes. — Procure deitar de costas. Isso vai fazer as suas asas baterem mais devagar para você não ir com força de encontro ao teto. Quando chegar lá, diga as palavras mágicas para ativar os dedos aderentes e se agarre. Depois, puxe o barbante para soltar as asas, e vamos, usando as mãos uma de cada vez, até a Torre do Tesouro.

— Em que direção? — perguntou Artur enquanto tentava se deitar de costas.

Infelizmente, ele acabou virando uma cambalhota, o que o deixou confuso e só diminuiu por um segundo a velocidade do bater de asas.

— Hummm — fez Suzy sem responder. Ela conseguiu deitar de costas. Para isso, dobrou as

pernas e levou os pés para junto do rosto, uma manobra que Artur jamais conseguiria imitar. Ele, no máximo, dobrou os joelhos, mantendo-os grudados ao peito, e fez força para trás, com muito menos vigor do que Suzy.

A tática funcionou razoavelmente bem. As asas do garoto diminuíram de velocidade, enquanto ele tentava descobrir a melhor maneira de continuar a subida.

— Como vamos saber para onde devemos ir? — tornou a perguntar Artur. — Quero dizer: a torre pode estar em qualquer lugar, em qualquer direção, não é? Sem a iluminação das asas. Na escuridão e na fumaça. Sem pontos de referência.

— Nós vamos descobrir — tranqüilizou Suzy. — E vamos ficar lá, pendurados no teto por três

dedinhos de lã, percorrendo quilômetros sem saber o que tem debaixo de nós?

— Não se preocupe, Artur. Dedos aderentes só param de aderir quando você manda.

O garoto respirou fundo, preparando-se para responder, mas antes que o fizesse viu o teto. O ar saiu de seus pulmões quando ele vivamente levantou braços e pernas, apoiando-se para suportar o impacto.

Ele esperava encontrar uma superfície de pedra, mas topou com uma grossa camada de fuligem, na qual penetrou uns 30 centímetros, ficando imundo. Eram tantas partículas que nem suas asas, que batiam com força para sustentá-lo, conseguiam se afastar.

Artur se arrastou pelo teto e finalmente encostou mãos e pernas na pedra que se escondia sob a fuligem. Para isso, precisou bater as asas com mais força ainda.

Suzy estava por perto, também coberta de fuligem. O impacto dos dois corpos tinha provocado uma verdadeira avalanche. Eram centenas ou talvez milhares de anos de sujeira acumulada que caía com um som semelhante ao de cubos de gelo sendo retirados da bandeja.

— Ai! — exclamou Suzy, desequilibrando-se e dando de cara no teto.

Depois de algum esforço, ela conseguiu se apoiar com joelhos e cotovelos, enquanto batia as asas furiosamente.

— As palavras mágicas! — gritou ela. — Preste atenção para grudar uma das mãos no teto antes de soltar as asas. E não esqueça que a mão aderente muda de minuto em minuto!

Artur cuspiu a fuligem que trazia na boca e esfregou os lábios no ombro: manobra dificílima, que só o

fez sujar ainda mais o rosto. A única parte de seu corpo que permanecia limpa era o par de asas.

— Isso não vai dar certo! — gritou ele. Quando iniciou aquela empreitada, estava tão

cansado e tão ansioso por uma oportunidade de deixar o Fosso que nem pensou no assunto. Mas ficar pendurado no teto por uma só mão, colocar a outra e esperar que grudasse... ele não conseguiria por muito tempo. E se calculasse mal o tempo ou ficasse tão exausto que não pudesse levantar o braço? Ou pior...

— Nossos braços vão ser arrancados do corpo! — Não vão, não — zombou Suzy. Ela franziu a

testa e continuou: — Na verdade, talvez os seus sejam. A Primeira Dama não pensou nisso.

Artur suspirou. Precisou de toda sua força para impedir que as asas, como uma mariposa enlouquecida, o jogassem contra o teto repetidas vezes. Cada choque o fazia escorregar um pouco na fuligem, quase esmagando joelhos e mãos e, com um pouco de falta de sorte, o rosto ou o peito.

“Deslizar na fuligem...” — E se tentarmos escorregar bem agarrados ao...

ufa... ao teto? — perguntou Artur. — A fuligem deixa a superfície escorregadia.

Ele fez uma demonstração, deslizando mãos e joelhos enquanto batia as asas para não cair. Conseguiu percorrer uma distância superior a 1 metro e não acabou mais machucado do que estaria se ficasse parado. Nem mais sujo; o que seria impossível, provavelmente, já que as únicas partes de seu corpo que continuavam limpas eram os dentes, o branco dos olhos e as asas.

— Funciona! — comemorou ele.

— Muito devagar — falou Suzy ainda em dúvida. — Acho que vou largar as asas e me apoiar nas mãos.

— Não! — gritou Artur. — Tente se mover com as asas, como eu fiz.

Suzy resmungou qualquer coisa, mas seguiu o conselho com as asas flexionadas para cima.

— É, acho que funciona — reconheceu. — Mas vamos chegar lá com os joelhos e cotovelos imundos e machucados.

— Vai curar logo — disse Artur, pensando no arranhão do Magrelo em seu mundo.

Uma onda de medo invadiu a mente do garoto quando se deu conta de que podia se ter transformado em um Habitante. Suas asas bateram mais depressa, e ele quase esmagou o nariz contra o teto. Com isso, voltou a atenção para a tarefa que tinha diante de si.

— Os seus machucados não demoram a sarar, não é?

— Não, mas doem enquanto isso — respondeu Suzy. — Vamos em frente, então.

— Em que direção? — perguntou Artur. — Para que lado fica a Torre do Tesouro?

— Fica na região noroeste das Regiões Afastadas. Isto é... droga de asas... tudo o que sei.

— E onde fica o nor... ai, isso dói... noroeste? — insistiu Artur. Na escuridão, em meio à fumaça e à fuligem, seria impossível buscar pontos de referência.

— É o contrário... ai... do... ai... sudoeste. Artur não respondeu logo. Esperou que suas asas

batessem e começassem a se dobrar. — Você não tem idéia, não é? — Eu tenho uma id...

A resposta de Suzy foi interrompida quando ela escorregou e foi jogada de cara no teto cheio de fuligem. Depois de se equilibrar novamente, cuspir e reclamar, ela continuou:

— Uma idéia. Pergunte ao Atlas. — Ah, sim! Muito fácil, não? Abrir um livro

quando preciso das duas mãos para... Um joelho de Artur resvalou, e ele bateu

violentamente contra o teto, provocando um deslocamento de ar.

— Talvez não seja preciso abrir! — gritou Suzy. — Ponha a mão sobre ele e pergunte...

Artur fez que sim cuidadosamente. Tinha a boca tão cheia de fuligem que não conseguia falar. Estava certo de que somente as palavras mágicas do Tenente Guardião seriam capazes de salvá-lo da sufocação.

Muito devagar, ele aproximou os cotovelos do peito, de modo que pudesse se agarrar ao teto, resistir ao impulso das asas e, com o dedo indicador, que não possuía uma patinha aderente, tocar o Atlas que trazia no bolso.

— Atlas... Artur ia falar, mas seus cotovelos escorregaram e

ele bateu com o lado direito do rosto no teto. Com certeza, tinha um olho roxo, mas ninguém notaria, com tanta sujeira por cima. Em um esforço para recuperar uma boa posição, ele juntou os cotovelos e esperou um intervalo na batida das asas.

— Atlas! Não abra! Mostre onde fica o noroeste. Ele sentiu o Atlas tremer. Com isso, perdeu a

concentração e mais uma vez bateu com o rosto no teto. Desta vez, quando se equilibrou e se apoiou novamente,

percebeu o nariz sangrando, talvez quebrado, e uma dor lancinante lhe subiu por entre os olhos.

— Deu certo? — perguntou Suzy. Artur não respondeu. Tinha a testa encostada no

teto, todos os músculos retesados para resistir à próxima batida de asas e toda a atenção voltada para a tentativa de resistir à dor do nariz quebrado. Ou, quem sabe, estivesse apenas ferido, já que começava a latejar menos. E em um segundo não sangrava mais. Talvez, por estar entupido de fuligem.

— Deu certo? — tornou a perguntar Suzy. Artur se ajeitou e olhou para o bolso.

— Não! — respondeu. — Ah, espere aí, acho que sim!

Quatro setas douradas tinham se materializado, formando em seu bolso uma pequena bússola que girava lentamente, como se fizesse parte da camisa. Ele observou, resmungou qualquer coisa e então apontou e começou a deslizar.

— Noroeste fica para lá! Vamos! Suzy foi atrás dele, os dois mantendo um ritmo

constante: deslizavam quando as asas paravam, paravam quando as asas batiam. Embora conseguissem deslizar apenas 1,5 metro de cada vez, no máximo, não encontraram grande dificuldade.

O mais importante, porém, era o fato de Artur finalmente se sentir mais otimista. Podia estar preso ao teto das Regiões Afastadas, mas avançava.

E havia escapado do Fosso!

Capítulo 12Capítulo 12Capítulo 12Capítulo 12

Fazia várias horas que eles se arrastavam pelo teto,

quando se viram fora da região enevoada, e Artur foi atingido por um vento forte, que agitou as penas de suas asas e atrapalhou o ritmo de seu avanço.

O vento também arrancou a camada externa da fuligem que cobria seu corpo, fazendo com que se sentisse mais leve e mais limpo, embora ainda tivesse muita sujeira impregnada na pele e nas roupas.

Mas não foi o desaparecimento da névoa nem o ar fresco que o fizeram ficar de boca aberta, quase quebrando o maxilar contra o teto, quando as asas bateram com força. Um pouco adiante, uma parte do teto com tamanho equivalente ao de um campo de futebol brilhava como se tivesse luzes embutidas, lançando um facho dourado como um sol no fim da tarde.

A luz incidia diretamente sobre a Torre do Tesouro do Horrível Terça-Feira. Tratava-se de uma simples torre redonda de pedra, sem qualquer janela à vista, de altura equivalente à de um prédio de 50 andares e talvez uns 60 metros de diâmetro. O telhado era muito íngreme e sobre ele havia um cata-vento em forma de galo. Como Suzy tinha dito.

O que a garota não havia mencionado era que a torre e o gramado em volta ficavam encerrados em uma pirâmide de vidro cintilante, que tinha seu ponto mais alto

sobre o cata-vento e uns 15 metros abaixo do teto iluminado.

— Isso é novo — disse Suzy. — Acho que o Horrível Terça-Feira não gostou de ver sua torre tão suja quanto o resto das Regiões Afastadas. A Primeira Dama com certeza não sabe disso.

— Talvez não saiba de muitas outras coisas — acrescentou Artur cauteloso.

Ele estava exausto e muito machucado. Não precisava de mais problemas. Além do mais, estava louco para tirar aquelas asas e ficar de pé como uma pessoa normal. No chão. Isso para não falar em lavar as mãos e o rosto. Ele sabia que um banho completo seria um sonho impossível.

— A área iluminada não parece emitir calor — disse Artur.

— Portanto, acho que podemos chegar perto. Mas ainda estamos longe. E qual será a melhor maneira de atravessar o vidro?

Suzy olhou para a torre e para a pirâmide. Ela era muito mais hábil do que Artur quando se tratava de deixar que as asas a impulsionassem; em vez de tentar não bater no teto, ela simplesmente amortecia o impacto.

— Acho que vamos ter de nos aproximar o máximo... asas nojentas... quanto mais cedo virarem papel, melhor... então, tiramos as asas, pulamos no vidro, nos agarramos com os dedos aderentes e vamos deslizando até encontrar uma entrada.

— Mas o mais perto que podemos chegar é uns 10 a 15 metros acima!

— Vamos conseguir. Lembra quando deu um salto quase tão grande quanto esse, daquela vez no Pátio?

— Eu tinha... arrgh... a porcaria da Chave! Suzy pensou por um momento, fazendo surgir em

sua testa rugas que jogaram a fuligem para baixo. — Que tal tirar uma asa e pular? — sugeriu ela. —

Você cai em espiral, mas... ainda vai estar preso pela outra. Assim não vai ser tão ruim.

Artur olhou mais uma vez para a pirâmide. “Um salto de quase 15 metros, uma queda em

espiral, talvez um forte impacto e então deslizar, alternando as mãos entre aderente e não aderente?”

— Eu nunca deveria ter participado daquela corrida pelo campo — resmungou ele.

— O quê? — Nada — respondeu Artur. Ele não conseguia pensar em outra possibilidade e

estava cansado de parecer uma mosca no teto, ainda mais sem controle das asas. Felizmente, na Casa era capaz de fazer coisas que seriam impossíveis em seu mundo. Tinha a esperança de que aquele salto fosse uma delas.

— Vamos chegar o mais perto possível — disse. — Depois, acho que vou ter de saltar.

Passada a parte do teto coberta de fuligem, o avanço ficou ainda mais difícil, e Artur arranjou outros machucados. A área iluminada acabou se revelando menos desagradável do que ele previa. A luz caía suavemente e não se sentia calor. Mantendo-se os olhos meio fechados, era perfeitamente suportável. Além de tudo, havia um lado bom: caía um pouco da fuligem.

Enfim, eles chegaram a uns 6 metros de distância e 15 de altura em relação ao topo da pirâmide. Como tinha de ficar de frente para o teto, para não ser pulverizado pelas asas, Artur só pôde dar uma olhada de um lado e

outro. Mas aquele parecia ser o ponto mais próximo a que conseguiriam ir. Não queria chegar perto demais do vidro, em especial com uma asa apenas.

— Pronto? — perguntou Suzy. — Lembra as palavras mágicas?

— Lembro — respondeu Artur. — Só me dê um segundinho.

Era uma boa distância. Em seu mundo, uma queda como aquela seria morte certa. E se o vidro quebrasse?

— E se o vidro quebrar? — O vidro não vai quebrar — disse uma voz que

não era a de Suzy. Artur quase distendeu os músculos do pescoço no

esforço de virar a cabeça para ver quem falava. E mais uma vez foi de encontro ao teto.

Suzy gritou alguma coisa que Artur não entendeu. Ele ainda estava surpreso com o impacto e ocupado em descobrir quem tinha falado.

Finalmente, conseguiu ver o que parecia uma bola de pêlo coberta de fuligem do tamanho de sua cabeça, escura em contraste com o teto imaculadamente brilhante. Mas os ventos eram fortes demais para a formação de uma bola de pêlo. Além disso, a coisa tinha dois olhos profundos e prateados, como uma versão aumentada dos confeitos usados em bolos de aniversário, que se desviaram do olhar de Artur.

Abaixo dos olhos prateados, havia uma boca onde se via também o brilho da prata, fosse pelos dentes ou o que houvesse lá dentro.

— Um Nadica! — exclamou Suzy. Ao dizer isso, ela tentou tirar da cintura a vareta de

cobre, mas teve de desistir em favor do equilíbrio.

— Não sou um Nadica! — protestou a coisa. — E posso ajudar vocês!

— Eu vou ajudar você — resmungou Suzy. Desta vez, a garota procurou alguma coisa no bolso

do avental: provavelmente a faca. Artur não sabia o que ela pretendia fazer, mas ficou

curioso quanto à bola de pêlo coberta de fuligem. — Suzy, espere! Ele aguardou até que suas asas parassem de bater e

se dirigiu à coisa: — Se não é um Nadica, quem é você? A bola de pêlo começou a falar atropeladamente,

como se tivesse pressa de convencer Artur do que dizia. Enquanto falava, ia se desenrolando. Aos poucos, deixou de ter o aspecto de uma bola e ficou mais parecida com uma lesma. Uma lesma peluda e coberta de fuligem.

— Mais de 9 mil anos atrás, eu era uma das sobrancelhas do Horrível Terça-Feira. Isso antes de ser arrancada de sua testa por uma explosão de Nada em meio à escuridão do primeiro buraco do Fosso. Durante séculos, fiquei lá perdida, perto do Nada. Aos poucos, as emanações atuaram sobre mim e me tornei uma criatura viva e pensante. Mas não sou um Habitante feito pela Arquiteta nem um Nadica fruto do Nada. Os verdadeiros Nadicas me desprezam, e os Habitantes têm medo de mim. Nenhum deles deixaria passar uma oportunidade de me matar.

Suzy e Artur se entreolharam e depois tornaram a observar a lesma peluda. Parecia realmente uma sobrancelha superdesenvolvida, com vida própria. Um longo crescente cabeludo, coberto de fuligem, que se

movimentava para os lados e soltava estalos diante dos olhares dos dois.

— Ainda estou ligado a Terça-Feira — declarou a coisa. — Conheço sua mente e seus segredos.

— Parece mesmo uma sobrancelha grande — disse Suzy ainda hesitante. — E coisas estranhas acontecem perto do Nada.

— O que está fazendo aqui em cima? — perguntou Artur.

Ele gostaria de poder consultar o Atlas sobre aquela... sobrancelha... mas era difícil demais na situação em que se encontrava.

— Faz tempo que tento entrar na Torre do Tesouro — explicou a coisa. — Preciso estar perto da riqueza. Quero sentir o peso do ouro, receber a luz refletida pelas pinturas, abraçar as estátuas. Depois que estiver lá dentro, não saio mais. É tudo o que quero: entrar na Torre do Tesouro.

— Se até agora não conseguiu, como pensa em nos ajudar? — perguntou Artur.

— Não tenho como entrar sozinho, mas posso ajudar vocês. Então, vocês me ajudam. Por exemplo: tenho um diamante para cortar o vidro.

— Pois mostre! — exigiu Suzy. A coisa ondulou para a frente e para trás,

produzindo estalos desagradáveis, e abriu uma bocarra como Artur jamais havia imaginado possível. Aos poucos, apareceu uma língua de aparência pegajosa, em cuja ponta enrolada estava, brilhando à luz que vinha do teto, um diamante do tamanho da unha do polegar de Artur.

— Onde conseguiu isso? — perguntou Suzy.

— Eu fiz — a coisa começou a dizer. E, encolhendo a língua, continuou:

— Fiz de Nada. Como já disse, sei muito do que Terça-Feira sabe. E também tenho alguns de seus talentos. Mas minha língua não é forte o suficiente para segurar o diamante e cortar o vidro. Preciso da ajuda de alguém que tenha mão.

— Qual é o seu nome? — perguntou Artur. E, diante da demora da resposta, insistiu:

— Como você se chama? — Acho que você pode me chamar de... Fuligem

— respondeu a coisa. — Isso mesmo. Fuligem. Faz tanto tempo que vivo na fuligem, respiro e como fuligem que o nome me cai bem.

— Come? — perguntou Suzy. — Você come fuligem?

— Falta do que fazer — explicou Fuligem. — Se eu me aproximar, recebo um jato de vapor dos Supervisores. Os Nadicas estão loucos para me devorar. Não consigo entrar na Torre do Tesouro. O que mais tenho para fazer a não ser andar pelas paredes e pelo teto deste reino, comendo fuligem e pensando?

— Se eu ajudar você a entrar na Torre do Tesouro — disse Artur —, você vai ter de jurar que nos ajuda no que for possível contra Terça-Feira.

— Está bem! Fuligem deu um pulo de alegria, quase chegando ao

teto. Artur preferia que tal coisa não tivesse acontecido. Assim, não teria visto sua barriga cheia de ventosas pequenas e feias como os tentáculos de um polvo. Era aquilo que estalava a cada movimento.

— A história pode ser verdadeira, mas ainda acho que Fuligem é um Nadica — sussurrou Suzy ao se aproximar de Artur. — Um Nadica inteligente e, por isso, muito perigoso. Mas nós precisamos daquele diamante.

— Estou cansado de ficar pendurado e ser empurrado de encontro ao... à droga deste teto — Artur sussurrou de volta. — Vamos aceitar por enquanto.

Embora hesitante, Suzy concordou. — Aceitamos a sua oferta — disse Artur a Fuligem. — Que bom! Que bom! — comemorou Fuligem.

— Vai ser um prazer trabalhar com vocês. Sejam quem forem.

— Eu sou Artur — apresentou-se o garoto. Ele queria evitar que Suzy o apresentasse como

Segunda-Feira ou Mestre da Casa Inferior. — E aquela é Suzy — completou. — E vieram roubar algumas bugigangas da Torre

do Tesouro? — perguntou Fuligem. Sua voz soou um tanto ansiosa. Via-se que tinha

concluído que Suzy e Artur eram ladrões. — Viemos reclamar objetos roubados! — falou

Suzy indignada. — Objetos que deveriam ter sido entregues ao

legítimo proprietário há dez mil... — Suzy! — interrompeu Artur. Ele não queria que Fuligem soubesse demais. Se a

coisa tinha uma estranha conexão com o Horrível Terça-Feira, o contrário também era possível.

— Reclamar... — resmungou Suzy. — Artur só quer o que já deveria...

— Suzy! Está pronta para dizer as palavras mágicas?

— Ah, dedinhos aderentes, não é? — perguntou Fuligem, observando com seus olhos prateados as mãos de Artur. — Belo trabalho. Não são obras do Terça-Feira, mas de um de seus melhores artesãos.

— Grude de dia, grude de noite, grude cada um por um minuto, à direita e à esquerda — Suzy recitou, olhando para as mãos enquanto se escorava nos cotovelos e antebraços. Em seguida, os dedinhos começaram a tremer, guinchar e emitir uma luzinha verde.

Suzy esperou as asas baterem, colocou as duas mãos no teto e puxou. Uma das mãos ficou grudada pelo polegar e por dois dedos. Imediatamente ela usou a outra para pegar e puxar os barbantes que pendiam do seu pescoço. Os selos de cera quebraram-se, e as asas explodiram em uma nuvem de confetes que foi levada pela brisa.

Pendurada no teto, Suzy olhou para Artur. Ela sorria, apesar dos olhos roxos e do ferimento no queixo, evidências dos constantes choques.

— Que alívio! Vou descer em cerca de 40 segundos. Portanto, pule agora, senhor Fuligem, e calcule a distância da pirâmide.

Enquanto dava as instruções, Suzy tirava da cintura a vareta de cobre.

Não foi preciso falar outra vez. Com apenas um impulso, acompanhado de muitos estalos semelhantes a estouros de chicletes de bola, Fuligem se lançou no espaço. Levado pelo vento, caiu na face leste da pirâmide, a menos de 10 metros da parte mais alta.

— Boa sorte, Artur — gritou Suzy. Ela rapidamente enfiou de volta o tubo de cobre na

cintura para ficar com a mão livre.

— Acho que você deve... Os dedinhos aderentes da mão direita da garota

deixaram repentinamente de guinchar e grudar, e ela caiu. Artur quase não teve coragem de olhar, mas Suzy

chegou à pirâmide de pé, depois rolou um pouquinho e interrompeu a descida, grudando a mão esquerda no vidro.

Por alguns segundos, ficou imóvel, mas logo acenou na direção de Artur, gritando alguma coisa que ele não conseguiu ouvir por causa do barulho do vento e do bater das asas.

O garoto tornou a olhar para cima, fez força para não ser empurrado em direção ao teto e respirou fundo. Então, cuidando para que as mãos não tocassem o teto, disse as palavras mágicas. Ao terminar, sentiu um formigamento, e os dedos aderentes da mão esquerda começaram a guinchar.

Artur usou a mão direita para puxar o barbante do lado direito. Ouviu o estalo da cera se quebrando e sentiu uma nuvem de confetes lhe passar pelas orelhas. Em um segundo, ele caía com a asa esquerda batendo furiosamente na tentativa de retardar a queda.

Artur pensou que fosse cair em espiral, mas não foi o que aconteceu. Em vez disso, virou uma série de cambalhotas.

Em um piscar de olhos, bateu na pirâmide. Com força. Com muita força.

Capítulo 13Capítulo 13Capítulo 13Capítulo 13

Artur deu um grito. Ele sentia uma dor insuportável na

perna esquerda e escorregava pelo vidro cada vez mais depressa. Além disso, com a asa restante se agitando acima da cabeça, não podia ver coisa alguma.

Afinal, conseguiu aplicar a mão espalmada sobre o vidro e parar. Ao puxar o segundo cordão, quase foi sufocado pela nuvem de confetes que se formou.

Voltou a cair quando os dedinhos perderam a aderência, mas logo trocou de mão e interrompeu a queda. Ouvia Suzy e Fuligem gritarem alguma coisa, mas não podia dar atenção a eles. Precisava descobrir o que havia de errado com sua perna. A dor seguia por dentro e chegava ao pé. Tinha de tomar coragem e olhar.

E assim fez. Tanto o jeans como a calça estilo pijama que tinha recebido do Tenente Guardião estavam rasgados; ele viu sangue e o que mais temia: alguma coisa que saía pela pele. Só podia ser osso.

Artur tinha quebrado um dos ossos da perna: a tíbia ou a fíbula. Ou, quem sabe, os dois, em uma fratura mais complexa. Nada bom.

De repente, ele começou a sentir um frio terrível e a tremer. Enquanto observava melhor o ferimento, tentou controlar o tremor. Não gostou nem um pouco de ver o estado da perna com aquele pedaço de osso do lado de fora.

Artur deu um suspiro profundo. Estava sentindo os pulmões se apertarem devido ao pânico que começava a tomar conta dele.

“Não vou ter uma crise de asma”, disse para si mesmo. “Não posso. Estou na Casa. Aqui as coisas são diferentes. Tudo se cura depressa. Mesmo um osso quebrado se cura com o tempo... mas eu não tenho tempo... não vou agüentar a dor por muito tempo... tenho de fazer alguma coisa...”

— Pelo poder da... Primeira Chave... o poder que resta em minhas mãos — sussurrou. — Cure-me. Repare o osso quebrado.

Os tremores na mão de Artur cessaram, embora continuassem pelo resto do corpo. Em seguida, ele começou a sentir calor. Diante de seus olhos, o osso tornou a entrar na pele, que se regenerou imediatamente.

A dor continuou pelo que lhe pareceram minutos. Mas podem ter sido segundos, pois cessou assim que sua mão direita perdeu a aderência, e ele teve de usar a esquerda.

A perna continuava estranha. No entanto, ele podia pelo menos olhar em volta para avaliar a situação. Logo Suzy estava ao seu lado, enquanto Fuligem observava de longe com seus olhos prateados faiscando em meio aos pêlos pretos.

— O que aconteceu? — perguntou Suzy. — Está muito machucado?

Artur fez que não com a cabeça. O tremor foi cessando, mas a voz custou a sair:

— Eu... quebrei a perna. Mas acho que dei um jeito...

Suzy levantou as sobrancelhas e fez uma careta ao ver.

— Nada mau. Você não poderia aproveitar e curar os meus machucados?

— Ah, nem eu mesmo sei o que fiz — disse Artur. Dizendo isso, levantou a perna e flexionou várias

vezes. Parecia estranha, tensa, e ele sentiu uma pontada de medo. O osso tinha voltado ao lugar, mas a perna parecia torta.

“Não está direito”, pensou. “Vou ficar manco. Nunca mais vou poder correr. Nem jogar beisebol. Nem futebol.”

— Oh-oh — fez Suzy, interrompendo os pensamentos de Artur. — Supervisores.

Ao olhar para baixo, o garoto começou a escorregar, e teve de trocar a mão de apoio, por isso esqueceu a perna por alguns momentos. Suzy apontava para um grupo de Supervisores que tinha acabado de sair da região enevoada e se encaminhava para a base da pirâmide.

— Não se preocupe que as pistolas de vapor não nos alcançam — avisou Suzy. — Mas eles podem ter outras armas. Melhor começarmos. A subida vai ser lenta com os dedos aderentes.

— Isso mesmo! — gritou Fuligem, ondulando em direção ao topo da pirâmide. — Temos de entrar e... e ver os tesouros!

Artur concordou e pulou o mais alto que pôde, com uma das mãos grudada. Em seguida, trocou de mão e assim fez repetidas vezes o mesmo processo.

Depois de 10 minutos, ainda não tinham chegado ao topo. Cerca de 300 metros abaixo e outras centenas de

metros a leste, na base da pirâmide, um grupo de Supervisores estava muito ocupado com a montagem de alguma coisa perigosamente parecida com uma arma. Tratava-se de uma espécie de máquina a vapor que tinham trazido das sombras e alimentavam furiosamente. Enquanto isso, outros Supervisores colocavam sobre um tripé um comprido cano de bronze que conectaram à máquina de vapor através de uma mangueira feita de um tipo de malha de metal prateado.

— Canhão de vapor — disse Fuligem, olhando para baixo, empoleirado na parte mais alta da pirâmide. — Depressa, antes que atirem em nós!

— Estamos nos apressando! — gritou Artur. Ele estava às voltas com a troca de mãos, mas não

conseguia deixar de olhar para baixo; não para os Supervisores, mas para sua perna. Pelo que via, ela se movimentava bem, mas, alguns centímetros abaixo do joelho, parecia mesmo meio estranha e não estava reta.

Suzy chegou ao topo antes de Artur. Fuligem imediatamente estendeu para ela o diamante que trazia na ponta da língua.

— Espere aí — disse Suzy. — Tenho de sincronizar com cuidado os meus dedos aderentes.

Ela pegou seu relógio de bolso, que deixou pendurado na frente do avental, e esperou que os dedos aderentes trocassem de mão. Em seguida, tirou da manga um lenço que, um dia, tinha sido branco e o usou para receber a pedra e lhe dar um bom polimento. Somente depois o diamante.

— Fique de olho no meu relógio — disse a Artur quando ele a alcançou. — Vou cortar o vidro até um pouquinho antes que a aderência dos dedos troque de

mão. Diga quando o ponteiro dos segundos chegar ao dois.

Artur olhou para o relógio, que balançava em sua corrente de prata dourada, dificultando a visão do mostrador. O ponteiro dos segundos avançava ao som do tique-taque, mas, quando chegou ao 12, Artur estava distraído com a troca de aderência de suas mãos.

— Atenção! — gritou ele de repente, grudando a mão no vidro para interromper uma possível queda.

Suzy jogou rapidamente o diamante na boca e trocou de mão. Em seguida, retomou o corte com a pedra. Na verdade, o diamante não chegava a cortar o vidro, mas riscava o suficiente para que o topo da pirâmide fosse deslocado com um bom soco, o que permitiria a entrada pelo cata-vento.

— Vão disparar o canhão! — gritou Fuligem ansioso. — Depressa! Depressa!

Artur olhou para baixo. O cano de bronze estava sendo erguido de modo que apontasse para o topo da pirâmide. Supervisores acionavam freneticamente rodas e engrenagens. Longas rajadas de vapor escapavam da extremidade do cano, e a máquina soltava um jato contínuo de fumaça preta.

— Só falta cortar um pouquinho — disse Suzy para Artur. — É melhor você dar um soco, e não eu. Talvez seja preciso o poder da Primeira Chave. Pegue a vareta no meu cinto.

Artur puxou a vareta de cobre. Suzy finalmente terminou de fazer o risco em volta da pirâmide, mais ou menos 1,20 metro abaixo do topo.

— Agora!

Artur golpeou com força. A vareta de cobre quicou, fazendo vibrar sua mão. Em seguida, ouviu-se um estalo, e as mãos do garoto ficaram quentes. Ele golpeou novamente e desta vez o estalo foi tão forte que não restou dúvida: a pirâmide se quebrou em toda a linha cortada.

Juntos, Artur e Suzy empurraram a parte de cima da pirâmide, que resistiu apenas por um momento. Logo 1 metro da porção superior se soltou e caiu do outro lado, deixando aberto um quadrado de bom tamanho: o bastante para permitir o acesso imediatamente acima do cata-vento.

A aderência das mãos de Artur mudou, e ele escorregou alguns metros antes de conseguir se apoiar de novo. Suzy testou a borda do vidro grosso.

— Não corta — observou ela. E dizendo isso saltou para dentro da pirâmide,

pisando com cuidado sobre as barras do cata-vento para ter a certeza de que suportariam seu peso.

Com a mão direita grudada no vidro, ela desceu. Em seguida, soltou e disse rapidamente:

— Dedos aderentes, muito obrigada, seu trabalho está completo até que eu peça outra vez.

— As palavras são essas, Artur — avisou. A voz da garota foi sumindo à medida que ela

continuava a descida. Ainda acenou para Artur através do vidro, dizendo:

— Venha! Antes que o garoto pudesse se mover, Fuligem

passou por ele num atropelo, meteu-se no buraco e desceu pelo cata-vento do lado oposto ao que Suzy havia

escolhido. De lá, alcançou o telhado da torre e desapareceu da vista de Artur.

Um segundo depois, o primeiro disparo de vapor de longo alcance passou zunindo ao lado da pirâmide, chegando a embaçar o vidro.

Artur tinha os pés dentro do buraco e foi ajudado por Suzy para posicioná-los sobre as barras do cata-vento. Ele se abaixou ao máximo, passando quase totalmente para dentro da pirâmide. Quase. Sua mão direita ficou do lado de fora, bem grudada pelos dedos aderentes.

O garoto abriu a boca para dizer as palavras mágicas, mas não passou das primeiras. O vapor zuniu acima da cabeça dele, e alguns respingos caíram dentro da pirâmide. Artur se encolheu ainda mais ao sentir o calor nas orelhas e na parte de trás do pescoço. Ele não sabia, mas aquelas eram as partes mais frias do jato.

A não ser pela mão direita, Artur imaginou ter sido atingido. Por um momento, não teve coragem de olhar, com medo de que só lhe tivessem sobrado os ossos. Então, descobriu a mão direita grudada no peito, e a esquerda presa ao cata-vento. Com certeza, a aderência tinha mudado de mão um instante antes do jato de vapor, e ele havia feito um movimento instintivo.

Com um profundo suspiro de alívio, recitou as palavras mágicas. Imediatamente, os dedos aderentes da mão esquerda deixaram de vibrar e se acalmaram.

— Isso está fechado — falou Suzy, examinando a base do cata-vento em forma de galo.

A engenhoca tinha mais ou menos 1,80 metro de altura e era feita de ferro fundido. Muito pesada, portanto. Artur tocou o bico do galo em busca de uma idéia para

levantar aquilo e entrar na torre, como havia sugerido a Primeira Dama, embora estivesse trancado.

— Deve haver um jeito de abrir — sugeriu Suzy. — Um fecho, uma alavanca... ah!

Ela pressionou um botão escondido. Houve um clique metálico, e Artur foi lançado ao ar com toda a força. Rolou pelas telhas e só parou ao chegar à calha, onde tentou se agarrar desesperadamente, já que não contava mais com os dedos aderentes.

E lá ficou, com as pernas penduradas. Bem que ele tentou um suspiro de alívio, mas não conseguiu inspirar.

Então, houve uma leve agitação nas telhas e surgiu no alto a carinha ansiosa de Suzy, que olhava para Artur e para o chão, centenas de metros abaixo.

— Desculpe — pediu ela. — Tinha mola... — Por favor, me ajude — sussurrou Artur. Aos poucos, seu fôlego se normalizava. Mais uma

vez, sentiu-se grato por estar na Casa. Se tudo aquilo acontecesse em seu mundo, ele certamente teria uma crise de asma.

Suzy olhava pela escotilha abaixo do cata-vento, então em ângulo reto em relação à torre. Artur, avançando lentamente, conseguiu chegar ao lado dela, satisfeito pelo fato de o telhado não ter uma inclinação muito pronunciada.

— É maior por dentro do que por fora — resmungou Suzy. — E aquele tal de Fuligem sumiu.

Artur espiou pela abertura. Apesar do comentário de Suzy, ele esperava encontrar um aposento redondo.

No entanto, o interior da torre nada tinha a ver com o lado de fora. Era retangular e muito espaçoso. Lembrou a Artur uma prisão do século 19 visitada por ele

certa vez em uma excursão da escola. Amplo e escuro, tinha um pátio interno aberto, com muitos níveis de celas embutidas na parede de tijolos e, à frente, uma espécie de varanda de ferro fundido que percorria todas elas.

A prisão visitada por Artur era dividida em 6 níveis, com cerca de cem celas de cada lado. A prisão do tesouro de Terça-Feira tinha pelo menos 50 níveis, e o pátio principal se estendia por 1,5 quilômetro no mínimo. Ficava difícil definir essa distância, porque a única iluminação vinha de lanternas de azeite, ou imitações de lanternas, penduradas em suportes, de quatro em quatro celas. Artur calculou que houvesse umas mil celas em cada nível, o que significava mais de 50 mil!

— Parece uma prisão — comentou ele. — Quero dizer, é parecidíssima com uma que visitei certa vez. Só que esta é muito, muito maior.

— É o que faz o Horrível Terça-Feira. Copia tudo — comentou Suzy. — É melhor começarmos logo a procurar o Testamento.

— Começar?! — exclamou Artur. Ele olhou para baixo, para a escada de ferro que

levava à varanda superior e para as celas que se estendiam à esquerda e à direita, uma série aparentemente infindável de portas com rebites de ferro fundido.

— Começar por onde? — Depende do que estão procurando — disse

Fuligem, saindo da escuridão e aparecendo na escada de cima. — Por acaso, ouvi vocês mencionarem o... Testamento?

— Você sabe onde está? — perguntou Artur ansiosamente, sem lembrar que não pretendia revelar a Fuligem suas reais intenções.

Fuligem recuou e se dobrou, mostrando de novo as feias ventosas que tinha por baixo. Artur se afastou, com a impressão de que a criatura tinha crescido uns 50%.

— O Testamento da Arquiteta? — insistiu Fuligem. — A parte confiada a Terça-Feira?

— Isso mesmo — confirmou Artur Fuligem apresentava outra mudança. Sua voz estava

mais grave, mais ameaçadora, como se ele já não fizesse tanta questão de agradar, como se Artur e Suzy já não fossem tão úteis agora que ele tinha entrado na Torre do Tesouro.

— Não sei exatamente onde está o Testamento — disse Fuligem. Em seguida, começou a descer a escada, sempre a olhar com seus olhos prateados para Suzy, que tinha na mão a vareta de cobre.

— Mas sei onde talvez esteja. Venham comigo — continuou. Fuligem deslizou e disparou escada abaixo na direção da varanda superior, sem se preocupar em ver se Suzy e Artur o seguiam. Não olhou para trás uma só vez.

— A coisa cresceu — sussurrou Suzy. — Como os Nadicas, que sugam a vida dos outros.

Artur fez que sim e mordeu o lábio. — Temos de ir atrás dele — disse finalmente o

garoto. — São muitas celas. Não dá para verificar todas. Ainda mais agora que Terça-Feira já deve saber que estamos aqui.

— E se Fuligem nos levar para uma armadilha? — Ainda assim, temos de arriscar. — É, acho que sim — concordou Suzy. — Mas

veja se encontra uma espada, uma machadinha ou algo assim. Se aquela coisa continuar a crescer, vamos precisar de uma arma melhor do que esta vareta de cobre.

Artur fez que sim e tomou a frente na descida da escada. Sua perna estava estranha e pareceu mais estranha ainda quando ele chegou à varanda e os pés ficaram no mesmo nível. Deu alguns passos, parou e apalpou os joelhos, franzindo a testa de preocupação.

— O que foi? — Minha perna... a que eu quebrei — disse com

certa hesitação. — Está mais curta... uns 2 centímetros menor que a outra.

Artur se inclinou para examinar a perna mais uma vez. Os tamancos há muito tinham sumido, perdidos no Fosso. Como andava de meias, não havia dúvida. A mágica tinha reparado o osso, mas alguma coisa estava errada. A perna parecia um pouco torta e, definitivamente, mais curta.

— É, está mais curta — concordou Suzy em tom casual. — Mas vamos, lá vai Fuligem descendo mais um nível.

— Você não entendeu! — gritou Artur. — Minha perna está mais curta!

As últimas palavras saíram em meio a um acesso de tosse. A respiração do garoto estava ficando difícil. Ele sentia os pulmões se apertando, mas não podia ser uma crise de asma. Talvez medo, um ataque de pânico ou coisa parecida. Já não bastava sofrer de asma e nada poder fazer a respeito? Ainda por cima, estava manco. E tudo ficaria pior se...

Artur se obrigou a parar. “Não vou pensar nisso agora. Preciso encontrar a

Segunda Parte do Testamento, derrotar Terça-Feira e voltar a tempo de salvar a casa e o dinheiro e impedir que

alguma coisa pior aconteça. Portanto, uma perna mais curta é melhor que uma perna quebrada, não é?”

— Venha! — repetiu Suzy. Ela passou à frente e foi seguida por Artur, que

mancava, tentando se acostumar à perna mais curta. Tiveram de correr para alcançar Fuligem, que

desceu as escadas de ferro, caminhou pela varanda uns 100 metros e passou para o nível inferior.

Artur estava de meias, mas ainda assim seus passos, somados aos de Suzy, soavam no piso de metal, ecoando pelo vasto espaço central.

— Se houver guardas aqui, vão saber exatamente onde estamos — preocupou-se Artur.

Sua voz também ecoou no espaço central, ainda mais sonora.

— Não há guardas — disse Fuligem, parando em frente à porta de uma cela, que parecia exatamente igual a todas as outras. — Somente Terça-Feira entra na Torre do Tesouro. Nem os Grotescos têm permissão para isso. Mas afinal estou aqui, onde sempre deveria ter estado: com estas riquezas adoráveis!

Artur e Suzy fizeram uma careta e recuaram ao ver a baba transparente que pingava da boca de Fuligem, molhando o piso de ferro fundido.

— O Testamento está dentro da cela? — perguntou Artur. Parecia um tanto óbvio o Horrível Terça-Feira deixar ali tal documento, embora ninguém, a não ser ele mesmo ou sua antiga sobrancelha, soubesse em qual das milhares de celas.

— Deve haver um caminho para o Testamento aí dentro — disse Fuligem, babando enquanto falava. —

Mas vou deixá-los aqui. Outros tesouros mais facilmente alcançáveis estão à minha espera.

E, dizendo isso, saltou sobre a grade, fugindo ao golpe que Suzy tentou lhe aplicar com a vareta. Ela e Artur correram e olharam para baixo. Lá estava a coisa, em um dos níveis inferiores, agarrada ao parapeito da varanda. E, com um forte estalo, deslizou para baixo do piso, desaparecendo da vista dos dois.

— Foi-se — disse Artur. — Pelo menos, é o que penso.

— Será que nos deixou na porta certa? — perguntou Suzy.

Ela olhou em volta e tentou abrir o pesado ferrolho, primeiro puxando com as duas mãos, depois forçando os pés contra o portal. Mas a tranca não se moveu.

— Emperrada ou trancada por mágica — disse. — Nem um cadeado para arrombar.

Artur examinou o ferrolho. Parecia soldado, com fios grossos de metal que o ligavam à alça. No entanto, ao tocar a tranca, ele sentiu um súbito calor subir pela mão. Pedaços de ferrugem caíram ao chão, ouviu-se um ruído, o ferrolho se abriu.

Suzy assobiou admirada. — Ótimo truque! Gostaria de fazer o mesmo na

despensa da Primeira Dama. Artur empurrou a porta e entrou.

Capítulo 14Capítulo 14Capítulo 14Capítulo 14

Ali estava outro cômodo maior por dentro do que por

fora. Em vez de uma pequena cela, Artur encontrou um espaço equivalente à sala de estar de sua casa — a casa que sua família perderia se ele não conseguisse impedir a ação dos Grotescos.

Fora o tamanho, aquele cômodo nada tinha em comum com a sala da casa de Artur. Para começar, parecia mais uma cabine de navio do que uma sala. Em vez de tijolos, as paredes eram revestidas de tábuas de madeira vedadas com o piche que pingava de numerosas goteiras. O teto e o chão também eram de madeira, e tudo rangia à medida que Artur avançava. A única iluminação vinha de uma lâmpada que pendia do teto presa por uma corrente, fazendo as sombras tremer e dançar.

Em um canto, via-se uma cama muito bem arrumada presa à parede. Em outro, estavam alguns barris e um baú. Mas a maior parte do cômodo era ocupada por uma mesa longa, muito bem polida, sobre a qual se encontravam centenas e centenas de garrafas, todas cuidadosamente deitadas e organizadas, algumas sobre bases de madeira ou marfim.

Todas as garrafas tinham um navio dentro, em inúmeros modelos, tanto de garrafas quanto de navios: vidros de todas as cores, grossos e finos, fechados com rolhas de cortiça, tampas com mola ou lacre de cera ou

chumbo; navios de um mastro, dois mastros, três mastros ou nenhum mastro e muitos remos; navios grandes, que precisariam de tripulações numerosas; e navios para um só tripulante.

Artur se aproximou. A lâmpada balançou, fazendo as sombras dançarem. O garoto percebeu, na ponta da mesa, um brilho avermelhado e parou ao ver que vinha do cachimbo de um homem que estava sentado lá. Um homem idoso, de costeletas e cabelos brancos, que parecia não fazer a barba há pelo menos uma semana.

O homem usava um pesado casaco azul, que tinha na manga galões escuros que deveriam ter sido dourados um dia. Em vez dos costumeiros tamancos vistos nas Regiões Afastadas, calçava botas de borracha altas, dobradas na altura dos joelhos.

Tinha olhos azuis brilhantes, muito penetrantes, que encontraram o olhar de Artur. Nesse momento, o homem ajeitou cuidadosamente o cachimbo, ainda aceso, sobre o suporte, pousou a pena de escrever que segurava, fechou o tinteiro, afastou o livro com capa cor de bronze em que escrevia e cravou em um espeto de metal um pedaço de papel parecido com um telegrama antigo. No espeto já havia centenas de papéis semelhantes.

Feito isso, ele se levantou, e trouxe para a luz seus 2 metros de altura.

— É o Tocador de Gaita! — exclamou Suzy, caindo de joelhos, fosse por desmaio, adoração ou uma queda fingida para distrair a atenção do homem.

Artur não sabia a razão da atitude de Suzy, mas ficou levemente aliviado, ao descobrir que não se confirmaram suas suspeitas de que aquele fosse o Horrível Terça-Feira.

O alívio, porém, só durou um segundo, pois logo o homem tirou das sombras um arpão de quase 3 metros que brilhava com intensidade desde a ponta incrivelmente fina até o aro na outra extremidade, onde podia ser amarrada uma corda.

— Não, moça, não sou o Tocador de Gaita — disse ele com voz grave e monótona. — Você deve estar se referindo ao meu irmão mais novo. Agora me digam os seus nomes, antes que eu faça como ordena Terça-Feira e mande os dois para a perdição.

— Perdição é uma parte da Casa? — perguntou Artur. O homem riu com gosto.

— Neste caso, perdição significa “destruição total” — explicou. — Mas sou um homem generoso e não guardo rancor em relação aos Habitantes. Meu amigo aqui pode cortar qualquer um em pedacinhos, e será o fim de tudo.

Enquanto falava, ele dava tapinhas no arpão que, de algum modo, pareceu brilhar mais.

— Agora me digam os seus nomes. Sou o vigia deste lugar. Cuido dos registros para Terça-Feira. E detesto remexer nos cadáveres para descobrir o nome e cortar da lista. Falem!

— Da lista? — perguntou Artur. — Quer dizer, do registro dos trabalhadores contratados?

— Positivo. E devo voltar a cuidar do meu serviço. Portanto, façam a gentileza de me dizer os seus nomes. Ou preciso espetar vocês com a ponta do meu companheiro?

— Eu não sou um trabalhador contratado — falou Artur, embora com a voz um tanto trêmula, ao ver o homem levantar o arpão como se fosse atacar. — Sou o

Mestre da Casa Inferior e vim para pegar a Segunda Parte do Testamento.

Os olhos do homem se apertaram, mas ele deixou o arpão de lado e caminhou na direção de Artur. Ao chegar, pegou o queixo do garoto e puxou para cima, fazendo a cabeça ir para trás. Assim, os olhos dos dois se encontraram. Ao mesmo tempo, aparou um golpe da vareta de cobre desferido por Suzy, agarrou a garota pela gola e a levantou sem sequer olhar.

— Mestre da Casa Inferior? — perguntou. — Sim... sou, sim! — gaguejou Artur. Agarrada pelo homem, Suzy tinha os lábios

azulados e começava a virar os olhos. — Deixe ela em paz! — gritou Artur. De início, ele não conseguiu mexer o braço, mas

logo sentiu a mão se aquecer mais uma vez e, com um puxão, trouxe Suzy de volta ao solo.

— Muito bem — disse o homem. — Então, aí está você, afinal. Ele estendeu a mão, que Artur hesitou, mas acabou apertando com vigor.

— Pode me chamar... vejamos... de Capitão Tom Shelvocke — apresentou-se. — Um marinheiro temporariamente recolhido pelo Horrível Terça-Feira, o senhor de escravos. E quem é a senhorita, Mestre?

— Pode me chamar de Artur — disse o garoto enquanto ajudava Suzy a se levantar.

A garota lançou a Tom um olhar furioso e massageou a garganta.

— Esta é Suzy Azul-Turquesa, Nove Horas de Segunda-Feira.

— Desculpe pelo aperto no pescoço — pediu Tom, oferecendo a mão. — Embora, por direito, você

devesse ser espetada várias vezes pelo meu amigo, segundo as ordens de Terça-Feira. Ele me disse para matar qualquer Habitante que entrasse aqui. Mas, se um dos outros Dias me mandou deixá-la em paz, achei melhor parar, pensar e talvez não fazer nada.

Meio a contragosto, Suzy apertou a mão de Tom, mas logo recuou para ficar fora de alcance.

— Quem é você? — perguntou Artur. — Quero dizer, é um Habitante... ou alguma outra coisa... alguém?

— Sou um tesouro — respondeu Tom. — Recolhido por Terça-Feira em um lugar chamado Terra. Já ouviu falar?

— Já — disse Artur. — Eu sou de lá. É onde vivo, mas tenho de ser o Mestre... embora... é uma longa história... por que você é um tesouro?

— Porque não sou mortal, nem Habitante, nem Nadica — explicou Tom. — Como o meu irmão, o Tocador de Gaita, que a senhorita Azul conhece, com certeza. Eu sou um dos filhos da Arquiteta e do Velho, por assim dizer. O Velho teve três filhos com mulheres mortais, e a Arquiteta nos criou na Casa, com todas as mudanças que isso acarreta. Quando ela acorrentou meu pai, nós escapamos para os Reinos Secundários. Eu fui para a Terra e organizei alguns cruzeiros marítimos para vários lugares. Só soube do desaparecimento da minha mãe quando o Horrível Terça-Feira me tirou do convés do meu navio e me trouxe para cá. Para isso, usou todo o poder da Segunda Chave. Mas nem assim teria conseguido, se eu tivesse o meu amigo à mão. Ou se, para falar a verdade, eu tivesse bebido um pouco menos de rum no jantar, o que normalmente fazia, entende?... Não fosse o maldito pássaro que acertei por acidente... Mas é

mais ou menos isso. Estou preso aqui pelo poder da Chave e não posso ir além dos cenários das minhas garrafas. Além disso, devo servir a Terça-Feira como secretário, sujando os dedos de tinta.

— Não vejo nada demais em dedos sujos de tinta — resmungou Suzy.

— Como? — perguntou Tom interessado. — De que é feito o seu “amigo”? — questionou

Suzy, mudando de assunto. Artur nunca tinha visto a garota se dirigir a alguém

tão respeitosamente. — Da luminosidade do rastro de narval, um

cetáceo de grande porte da família das baleias, sob a aurora boreal, no Mar Ártico — respondeu Tom. — Minha Mãe fez para mim como presente de aniversário, quando completei 1 século de idade e desejava viver no mar.

— Bom — disse Suzy. — E tem um Nadica lá fora que deveria encontrar o seu amigo.

— Um Nadica? Dentro da Torre? — Era a sobrancelha de Terça-Feira — explicou

Artur. — Pelo menos, é o que diz. Tom riu novamente, uma risada gostosa, e esfregou

as mãos. — Parece que o vidro de Terça-Feira só é à prova

de tempestades. Mas tenho certeza de que vocês estão à procura de alguma coisa em especial aqui na Torre do Tesouro. O que é, Artur? Posso ajudar?

Artur não havia parado de pensar na história contada por Tom. Alguns detalhes chamaram sua atenção.

— O que são aqueles “cenários” nas garrafas? — perguntou.

— Ah, as garrafas fui eu mesmo que ensinei Terça-Feira a fazer — contou Tom. — Quando você tem arte, habilidade e poder, além de uma garrafa especial, consegue copiar um pedaço dos Reinos Secundários e colocar na garrafa. E ele fica lá, firme, a menos que alguém abra a tampa. E, se você conhecer o segredo, pode visitar o lugar que está dentro da garrafa.

— Então, são cópias de navios e lugares verdadeiros?

Ao olhar com mais atenção, Artur viu que as embarcações se moviam, o mar batia, e o sol, às vezes mais de um, percorria o céu.

— Todas menos uma — respondeu Tom. — Existe uma que guarda um lugar verdadeiro. Uma em que o tempo flui, em vez de girar sempre pelas mesmas horas.

— O que você quer dizer com isso? — perguntou Artur. — O que há na garrafa?

Tom sorriu e disse: — Que bom que perguntou. Eu estava esperando

para lhe contar. Esta garrafa única contém um sol, vários mundos e um navio de sol, o mais belo já construído. Ele pode viajar ao centro incandescente do sol sem queimar a tripulação.

— Para que viajar até o centro daquele sol? — Para ver o que o Horrível Terça-Feira pode ter

guardado lá há 10 mil anos. — O Testamento? Tom sorriu e deu de ombros. — Pode nos levar até lá? — Eu poderia levar qualquer um dos Sete Dias, se

me ordenassem, a qualquer uma destas garrafas, já que Terça-Feira não fez recomendação alguma a respeito.

— Pois bem. Eu, Artur, Mestre da Casa Inferior, ordeno que nos leve ao centro do sol onde Terça-Feira esteve 10 mil anos atrás.

— Será um prazer fazer uma excursão ao sol com vocês dois — respondeu Tom. — Vamos precisar apenas de casacos brilhantes, capuzes para proteger do brilho das estrelas e Botas Imateriais.

O marinheiro foi até um baú que ficava atrás dos barris em busca de alguma coisa. Quando enfiou a mão, deu para ver que o baú era muito mais profundo por dentro do que por fora. De lá saíram vários capotes que brilhavam em cores diferentes, como madrepérola. Ele atirou os capotes na direção de Artur, que quase caiu sob o peso do que pareciam cem quilos de lã. Depois, pegou alguns pares de botas idênticas às que Tom usava, e que pareciam botas comuns de borracha, próprias para usar no mar. Finalmente, apontou para a mesa e disse:

— E vamos precisar do saleiro que está ali na ponta da mesa. Faça o favor, senhorita Azul. Provavelmente, o velho Terça-Feira deixou alguns Buscadores a bordo.

Artur organizou a pilha de capotes e viu que eram seis, um deles tinha exatamente o seu tamanho. Foi com alegria que se livrou do avental e vestiu o capote para experimentá-lo. Caiu como uma luva. Embora pesado, era macio e fresquinho. Ótimo.

— O capuz está embutido na gola — avisou Tom. Ele também vestiu um capote brilhante. Em

seguida, pegou o saleiro da mão de Suzy e guardou no bolso. Então, levantou a gola e desenrolou um capuz que Artur imaginou ser feito de brilho de estrelas delicadamente tecido, pois cintilava e era praticamente

invisível, a não ser pelo contorno, que aparecia quando em contato com as mãos de Tom.

— Puxe sobre a cabeça para proteger — instruiu. Tom puxou o capuz completamente, passando-o

sobre o rosto e prendendo-o no botão superior do casaco com uma simples pressão do polegar.

— Calcem as Botas Imateriais e estarão preparados para enfrentar qualquer problema de natureza estelar — aconselhou Tom. — Se esquentar muito, não se esqueçam de enfiar as mãos dentro das mangas. Não que isto seja preciso no Hélios, mas é melhor prevenir. Pode ser que tenhamos dificuldades ao chegar lá.

— Chegar aonde? O que tem no centro daquela estrela? Enquanto perguntava, Artur lutava para calçar as Botas Imateriais.

Quando os pés estavam acomodados, porém, elas começaram e vibrar e mudaram de forma, tornando-se semelhantes aos tênis comuns usados por ele. As de Suzy se transformaram em lustrosas botas de couro, que iam até a altura da canela.

— Um lugar feito por Terça-Feira — explicou Tom. — É tudo o que posso dizer. Talvez esteja um pouco quente, tanto no caminho quanto no desembarque. Estão prontos?

— Só quero dar uma olhada nos registros — disse Artur.

Ele se aproximou do livro, que tinha capa de bronze e uma grossura de uns 60 centímetros. As folhas eram de um papel fininho como casca de cebola. A página em que estava aberto continha riscos para dividir as seções e títulos cuidadosamente escritos; obviamente uma cópia dos formulários amarelos presos no espeto.

Os títulos eram: NÚMERO, OCUPAÇÃO, ANTIGO NOME, ORIGEM, DELITOS, PUNIÇÕES e os mesmos que Artur tinha visto no cartão de identificação de Japeth: RECEITA e DESPESA.

Os números sob as duas últimas colunas, muito bem-feitos, mudaram sob o olhar de Artur. Nas outras seções, a letra não era tão perfeita. Letra de Tom, com certeza.

— Uma das idéias do Horrível Terça-Feira — disse Tom gravemente. — O registro escreve tudo sozinho, mas ele gosta de me ver dar entrada nas chegadas. Mais de 2 mil escreventes já passaram pela função. Foram todos para o Fosso.

— Tenho de destruir o livro de registros — disse Artur — para que os trabalhadores contratados fiquem livres.

— Muitas vezes tentei rasgar ou arrancar o livro da mesa — falou Tom.

Ele estava curvado sobre as garrafas em uma procura cuidadosa daquela que brilhava com uma luz amarelo-clara.

— O Horrível Terça-Feira faz coisas fortes, em especial quando se trata de escravidão.

Artur tentou arrancar uma página, mas não conseguiu. Os dedos escorregavam. Então, tentou pegar o livro. Mas também não conseguiu. Parecia um pedaço maciço de metal aparafusado em um bloco de concreto.

— Prometi a Japeth e também aos outros trabalhadores que os libertaria — explicou.

Em seguida, pousou as duas mãos sobre as páginas abertas do livro de registros, respirou o mais fundo que pôde e falou:

— Eu, Artur, Lorde Segunda-Feira, Mestre da Casa Inferior, solicito o poder da Chave para destruir este livro de registros! Transforme as páginas em pó e... e quebre a capa em pedacinhos!

As mãos de Artur esquentaram até sair fumaça das palmas. Mas o livro não virou pó nem explodiu em pedacinhos. Quando o garoto deu um passo atrás para observar melhor, tudo continuava como antes.

— Feito com a Segunda Chave — falou Suzy. — Acho que vai precisar dela para destruir isto.

Artur não respondeu. Continuou a olhar para o livro, vendo aumentar a dívida de um pobre Habitante cujo antigo nome era Sargarol, mas agora correspondia a um número de 13 dígitos e trabalhava como Perfurador de Quinta Classe.

Enquanto ele olhava, um papel amarelo veio voando e parou perto do livro. Artur o recolheu, pensando que fosse o registro de um trabalhador recém-contratado.

Mas era um telegrama. Apenas quatro linhas de letras maiúsculas batidas em uma máquina de escrever muito antiga. Dizia assim: capitão ponto ladrões na torre ponto mate todos os intrusos ponto sem exceção ponto relate imediatamente qualquer incidente ponto terça-feira ponto final

Capítulo 15Capítulo 15Capítulo 15Capítulo 15

Artur olhou para Tom. O velho marinheiro estava

concentrado em arrumar as garrafas. Artur se aproveitou disso, pousou a mão sobre o papel e o puxou devagar para junto de si. Então, tossiu enquanto amarrotava o papel para disfarçar o barulho. Em seguida, guardou a bolinha de papel no bolso do capote.

— Como se entra aí? — perguntou Suzy ao ver a garrafa que Tom cuidadosamente colocou diante dela. — E este o navio de sol?

— O Hélios. Uma bela embarcação. Uma das melhores da minha frota. Embora viaje com os ventos solares do espaço, e não pelos mares que tanto amo, classifico este como o terceiro na ordem dos meus navios favoritos, depois do barco a vela Polly Parbuckle e do qüinqüerreme Ophiran, uma embarcação movida a remos e velas.

— Parece uma tartaruga de metal — comentou Suzy. E, olhando para Tom, emendou:

— Com todo o respeito, sua reverência. — Não se preocupe, jovem — respondeu Tom. —

Parece mesmo uma tartaruga de metal, e é um ótimo formato para viagens ao sol. Agora, por favor, ponha a sua mão esquerda sobre a garrafa e olhe fixamente para o meu Hélios, enquanto preparo as palavras que vão nos

fazer entrar nele. Atenção: olhe para o navio, e não para um dos planetas nem para o sol. Pronto, Artur?

Artur hesitou. Tendo passado pela experiência desagradável no Fosso, ele queria muito destruir o livro de registros e libertar os trabalhadores antes de entrar no navio de sol.

— E se você me ajudasse a pegar o livro? — perguntou com uma idéia que subitamente lhe surgira. — Você é filho do Velho. Eu tenho um pouco do poder da Primeira Chave. Quem sabe se, juntos, temos força suficiente para tirar o livro daí?

— Juntos? Pode ser... — disse Tom. — Mas e depois?

— Não podemos levar o livro no navio e deixar no sol que vamos visitar? — sugeriu Artur.

— Positivo. Podemos. Mas talvez o livro não seja destruído. Ele conta com a proteção que o Horrível Terça-Feira incluiu em sua criação.

— Ah... e ele continuaria operando. Não teríamos como voltar lá para tentar destruí-lo de outra maneira. Tom fez que sim.

— Se não for destruído, ele volta para cá. É a natureza desses artefatos.

— E se jogarmos o livro no Fosso e esperarmos que seja destruído pelo Nada? — sugeriu Artur, sentindo com a mão o Atlas dentro do bolso. — Posso perguntar ao Atlas.

— O Atlas? O Atlas Completo da Casa?. — perguntou Tom visivelmente surpreso. — Está com você?

— Está — respondeu Artur. — Por quê? — Ele desapareceu na mesma época do

desaparecimento da minha Mãe — explicou Tom. — É

um de seus mais importantes trabalhos, depois da Casa e dos Reinos Secundários.

Artur pegou o livrinho verde e olhou. Tinha sido útil algumas vezes, mas ele sempre pensara nele como uma base de dados levemente irritante e muito difícil de se usar. Embora o tivesse ajudado a escapar do Magrelo... e mostrado a direção da Torre do Tesouro...

— Eu diria que se trata de um livro um tanto surpreendente — falou sem muita convicção.

E emendou, para o caso de o livro ter sentimentos e se ofender:

— Quer dizer, muito surpreendente. E muito útil. Vou perguntar se o registro dos trabalhadores contratados pode ser destruído se for jogado no sol.

Artur pegou o Atlas e concentrou toda a sua força. O livro vibrou, mas não abriu nem aumentou de tamanho. Ele tentou outra vez, repetindo mentalmente a pergunta. O Atlas, porém, não respondeu.

— Não funciona — admitiu Artur. Em mais uma tentativa, ele se esforçou para abri-lo

como faria com um livro normal, mas se repetiu a situação do hospital: as páginas pareciam coladas.

— Para usar o Atlas, você precisa ser a Mãe ou estar de posse da Chave — disse Tom. — Eu mesmo já tentei muitas vezes.

— Mas eu já consegui abrir — insistiu Artur. — Depois que entreguei a Chave a Will, o Testamento... à Primeira Dama. Ela disse que o Atlas responderia algumas das minhas perguntas, mesmo sem a Chave.

— Isso é porque um pouco do poder da Chave ficou em você.

E Tom continuou, mantendo os olhos azuis penetrantes fixos em Artur:

— Ficou um pouco de poder. Mas só um pouco, um golinho no fundo do copo, que você deve ter usado sem critério. Porque até mesmo um organismo mortal retém o poder da Chave.

— Acho que... curei a minha perna... não muito bem — falou Artur, encolhendo-se ao olhar para a perna torta e mais curta. — Abri a sua porta e tentei remover o livro de registros. Antes disso, usei com um dos Grotescos... e para encontrar a Porta da Frente. Não sabia que o poder acabava.

Ele tinha sentimentos contraditórios acerca da perda do poder da Primeira Chave. Se estivesse em casa e tudo corresse normalmente, ficaria satisfeito. Mas ali na Casa, cercado de perigos por todos os lados, um pouco de magia seria reconfortante.

— Talvez seja melhor assim — falou Tom. Ele olhava para as garrafas e parecia falar com elas

ao mesmo tempo em que falava com as crianças. E continuou:

— O poder da Arquiteta, seja vindo dela ou da Chave, é perigoso para mortais.

— Você acha que o meu poder é suficiente para pegarmos juntos o livro de registros? — perguntou Artur.

Tom deu de ombros e começou a falar alguma coisa, mas suas palavras se perderam, abafadas por um golpe surdo que ecoou no espaço do cômodo, fazendo chão e paredes vibrarem com um zumbido melancólico, e as garrafas zunirem com um som agudo.

— A pirâmide — disse Tom. — Terça-Feira levantou a parte oeste para entrar. Ele vem direto para cá. Vamos tentar pegar o livro!

Artur não pestanejou. Agarrou um lado do livro com capa de bronze, enquanto Tom pegava pelo outro lado.

— Um, dois, três... levantar! — comandou Artur. O livro gemeu como se sentisse dor; em seguida,

guinchou como um gato cuja cauda tivesse levado uma pisadela e se separou da mesa com um som que parecia o dos pneus de um carro em uma freada súbita.

Era tão pesado que Artur quase deixou cair no chão a ponta que segurava, embora Tom tivesse assumido a maior parte do peso. Com muito esforço, os dois seguiram até a garrafa com o navio de sol.

— Artur, toque a garrafa com o nariz e olhe para o navio! — disse Tom.

Ele se inclinou para a frente e encostou também o nariz pontudo no vidro.

— Senhorita Azul, coloque a mão! Foi difícil, mas felizmente a garrafa era grande e

tinha lugar para todos. — A sua cabeça está na minha frente! — reclamou

Suzy. Artur, então, deslizou o nariz um pouco para trás,

de modo que a garota pudesse olhar o navio. — Olhem para o navio! — lembrou Tom. Em seguida, em altos brados, ele recitou o que

parecia ser um poema em um idioma cheio de rugidos e sons roucos, totalmente desconhecido para Artur.

O garoto estremeceu e seus olhos se desviaram do navio para um planeta com muitos anéis, semelhante a

Saturno, mas muito mais brilhante. Ele forçou o olhar de volta para o navio. Parecia mesmo uma tartaruga de metal, como Suzy havia falado. Uma tartaruga de metal folheada a ouro, com 25 metros de comprimento e 30 metros da ponta de uma nadadeira à outra. A embarcação emitia uma luz avermelhada, e o que seria a cabeça possuía dois olhos grandes, que eram obviamente vigias feitas de um material azulado semelhante ao de antigas balsas de pesca.

Artur olhou fixamente para as vigias, que pareciam se aproximar cada vez mais. A uma certa distância, ele conseguiu perceber figuras que se moviam por trás delas. Eram Tom, Suzy e, o mais estranho, ele mesmo!

Tom pronunciou uma ensurdecedora palavra final e, de repente, Artur se viu observando o planeta dos anéis através das vigias de vidro azul. Tom e Suzy permaneciam a seu lado, e o livro de registros estava no convés entre eles. Um convés feito de placas de metal dourado fixadas com pregos de prata.

— Bem-vindos a bordo do Hélios! — disse Tom Enquanto ele observava tudo com seus olhos azuis,

tirou o saleiro do bolso. Artur também olhou em volta. Estavam na ponte

de comando do Hélios, um espaço ovalado com cerca de 6 metros de diâmetro. Havia um leme preso na posição por uma corda branca e brilhante. Em volta do leme, viam-se muitos medidores estranhos e uma caixa de metal espelhado contendo mapas1 que mostravam os planetas e o sol em três dimensões, como peixes brilhantes em um aquário claro e profundo. À frente, estavam as duas grandes janelas de vidro azul, e atrás, uma escada e uma passagem que levavam à parte de baixo.

— Aqui — disse Tom, entregando o saleiro a Artur. — Vá lá embaixo e elimine algum Buscador ou coisa parecida que possa estar escondido. Enquanto isso, ponho o navio em marcha.

— E quanto ao livro de registros? E Terça-Feira? Ele pode nos tirar da garrafa?

— O livro pode ficar onde está, mas devemos prestar atenção a qualquer truque. Quanto ao Horrível Terça-Feira, vamos voltar um minutinho depois do embarque. O tempo aqui passa muito devagar.

Tom começou a soltar o leme. Artur observou o saleiro e olhou para Suzy.

— Vá na frente — disse ela. — Quero ver o resto do navio.

Artur desceu a escada, fazendo uma careta ao sentir outra vez a perna mais curta. Tal como o restante do Hélios, a escada e a passagem eram feitas de um metal dourado que emitia uma luz suave, de modo que não havia necessidade de lanternas. Ou, quem sabe, Artur pensou, o metal produzisse uma luz forte que era reduzida por seu equipamento de proteção. Ele sentia o capuz diante do rosto, mas não teve coragem de levantá-lo para ver o que acontecia.

Abaixo da ponte de comando, havia dois conveses. Artur e Suzy esquadrinharam cada cabine, cada depósito, cada espaço, mas não encontraram Buscadores. Acharam apenas uma garrafa de bronze, fechada com uma mola de chumbo e bem segura, pelo que o garoto pôde ver. Se havia Nada lá dentro, não tinha como vazar.

Eles viram muita coisa interessante, pois o Helios era extremamente bem equipado e abastecido — pronto para se aventurar em planetas no espaço ou mesmo no

sol. Eles não conheciam a utilidade de alguns objetos, mas pegaram outros, como os pequenos cutelos de lâmina larga que descobriram no depósito. Quando voltaram à ponte de comando, levavam presos à cintura os cutelos, que brilhavam como que iluminados por um luar claríssimo. Suzy levava também um brinco de ouro e diamante, muito mais resplandecente do que a etiqueta de identificação presa à orelha de Artur, e uma bandana em vermelho vivo, que amarrou na cabeça sobre o capuz.

O panorama que se via pelas vigias azuis tinha mudado bastante. As duas nadadeiras à frente do Hélios pareciam ainda mais compridas, como se tivessem velas triangulares acopladas a emitir uma luz avermelhada e irreal. Não havia sinal do planeta dos anéis. As estrelas, no entanto, se moviam a uma velocidade considerável, e o sol dava a impressão de ser muito maior, tomando a metade do campo de visão.

— Não encontramos um só Nadica — relatou Artur.

— Aqui no navio, me chame de “senhor” ou “Capitão” — disse Tom com gentileza.

— Sim, senhor. — E diga “positivo”, em vez de “sim” —

continuou Tom. — Antes do fim desta viagem, farei de vocês dois marinheiros.

— Está tudo correndo perfeitamente, ah... Capitão? — perguntou Artur, dando uma olhada no sol que parecia cada vez maior.

— Na verdade, sim. Estamos a caminho do centro ardente da estrela, e o Hélios avança leve como sempre.

— Tem certeza de que não vamos nos queimar? — perguntou Suzy. — Quero dizer, Capitão, senhor.

— Tenho. Isso se não ficarmos lá por muito tempo — respondeu Tom. — Mas uma visita rápida não deve representar problema para o Hélios ou para nós. Agora, tenho de concentrar minha atenção no navio, pois vamos enfrentar os ventos solares, e preciso ajustar as velas.

Por mais de uma hora, Artur e Suzy observaram as manobras que Tom fez com o leme. De vez em quando, ele puxava ou empurrava uma das alavancas instaladas na parede à frente ou dava um tapinha em um medidor oscilante. O sol cresceu tanto que passou a ocupar todo o espaço das vigias. Nada mais se via, a não ser a resplandecente luz branca.

Artur agradecia pelo metal brilhante do casco do navio de sol e pelo vidro azul das vigias. Ele sabia que, sem aqueles recursos, seu corpo teria sido reduzido a cinzas muitas milhas antes. Agradecia também pelo capuz, que o protegia da cegueira momentânea causada pelo brilho das estrelas.

Tom deu meia-volta no leme, antecipando-se a uma mudança de direção dos ventos solares, e apontou para uma argola no chão, perto de seu pé.

— Artur, está vendo aquela argola? — Sim... quer dizer... positivo, Capitão. — Quando eu disser “levante”, pegue a argola e

suspenda o máximo. Quando eu disser “solte”, largue. — Positivo. Positivo, senhor. Artur se ajoelhou e pegou a argola. Então, esperou

a ordem de Tom, que olhava atentamente através da vigia e movia o leme um quarto de volta a cada vez, sempre à direita.

— Levante!

Artur deu um puxão na argola e a tirou do chão, o que fez surgir chacoalhando atrás dela uma corrente muito brilhante, que parecia feita de cristais ou mesmo diamantes. Ele cambaleou por causa do peso, mas continuou a puxar. Vieram metros e metros de corrente, que se espalharam pelo convés.

— Cuidado para não se enrolar! — gritou Tom. Artur estava atento, mas era mais fácil falar do que

fazer. Havia corrente por toda parte, uns 100 metros, a tal ponto que, para evitar cair, ele teve de descer a escada, sem deixar de puxar a argola. Suzy se encolheu em um canto desconfiada.

— Agüente firme, Artur! Depois de dar a ordem, Tom se afastou do leme,

pegou a corrente e passou em volta do livro de registro, que estava no chão. Em seguida, de um salto, voltou para o leme, gritando:

— Solte! Artur soltou. A argola escapou de suas mãos, e a

corrente voltou para o lugar de onde tinha vindo. A laçada em torno do livro de registros se apertou. Por alguns segundos, porém, tudo parou. Então, enquanto Artur saltava para a passagem, o livro rangeu, mas foi arrastado, deixando no piso arranhões que eram a prova do esforço que tinha feito para resistir.

— Não vai passar! — gritou Artur, apontando para o elo do tamanho de um pires.

Mas, quando o livro de capa de bronze chegou ao buraco, passou, com um último grito estridente, que levou Artur a descer a escada aos trambolhões, tapando os ouvidos com as mãos.

No momento seguinte, o navio bateu em alguma coisa. Houve um baque surdo, e o casco pareceu envergar. O convés sacudiu de ponta a ponta.

Artur se aproximou rastejando, balançando a cabeça, na tentativa de fazer os ouvidos pararem de apitar.

— Tinha de ser surpresa — disse Tom para Suzy. — Se o livro soubesse que eu ia enrolá-lo na corrente da âncora, teria se defendido com mais garra. Espero não ter assustado vocês.

Suzy olhou para ele, tapou os ouvidos e balançou a cabeça.

— Ainda bem — declarou Tom, interpretando o gesto da garota como uma negativa. — Chegamos ao porto, por assim dizer. Se afastarmos um pouco a corrente, vamos ver...

A luz branca na vigia mudou. Artur arregalou os olhos ao ver árvores viçosas do lado de fora, copadas, com trepadeiras nos troncos e entremeadas de flores brancas e brilhantes.

— Parece uma selva! — gritou ele surpreso. — E é, de certo modo — explicou Tom. — Uma

ilha tropical preservada em uma bolha de Vidro Imaterial, aqui no coração do sol.

— Como se chega lá? — perguntou Suzy, falando muito alto por ainda não estar ouvindo direito.

— Atravessamos a Parede Imaterial e chegamos à praia — disse Tom. — Agora vamos andar pela água. Mas precisamos esperar um pouco para termos certeza de que a âncora se estabilizou. Não quero que o navio se afaste antes de estarmos a bordo.

— Que água é esta? — perguntou Artur.

— É um pedaço de mar com uma ilha — respondeu Tom. — O Vidro Imaterial que protege este lugar permite que o Hélios chegue aqui. Outra embarcação não conseguiria atravessar.

Dizendo isso, ele se abaixou e deu alguns puxões na corrente, que deslizou um pouco, mas logo parou. Depois de outros puxões, ele pareceu satisfeito.

— Está firme — declarou. — A menos que venha uma tempestade. Mas agora... vamos desembarcar!

Capítulo 16Capítulo 16Capítulo 16Capítulo 16

Quando Tom abriu a porta que dava para a terra, Artur

cerrou os olhos e enfiou as mãos nas mangas de seu capote brilhante. Mas, conforme o que o marujo tinha dito, viu somente águas limpas e azuis e uma praia de areia branquinha a poucos metros de distância, limitada por uma floresta. Ondas de cerca de meio metro passavam pelo casco do navio de sol e quebravam na orla.

Embora já tivesse olhado pela vigia, o panorama não era o que Artur imaginava. Ele esperava encontrar alguma indicação de haver chegado ao centro do sol: uma luz mais brilhante ou um anel de fogo a distância, por exemplo.

A luz do sol parecia normal, e o ar era quente e úmido. Artur esticou a cabeça pela escotilha aberta e viu o oceano que se estendia até o horizonte, interrompido a cerca de 1 quilômetro de distância pelo que pareciam recifes de coral.

A impressão era a de se estar diante da fotografia de um paraíso tropical intocado.

— De onde vêm as ondas? — perguntou Artur no momento em que pularam.

A água do mar estava morna, mas as ondas eram um pouco maiores do que pareciam quando vistas do navio. Além disso, a profundidade aumentava perto da

praia. Quando veio uma onda, Artur teve de pular para manter a cabeça fora da água e ouvir a resposta de Tom.

— Diferentemente do que acontece com as outras garrafas, nesta o lugar existe aqui e lá, por assim dizer — explicou Tom.

Ele pegou Artur e Suzy pela gola do casaco e levantou os dois, esperando a passagem de outra onda. Em seguida, continuou:

— Mas este é o único meio de chegar aqui. Se passássemos por esta paisagem lá na Terra, não veríamos nada ou, com um pouco de falta de sorte, iríamos a pique e morreríamos afogados. Agora já dá para vocês irem andando.

— Obrigado — resmungou Artur. O garoto se pôs de pé desajeitadamente, pois a

perna mais curta ficou presa na areia por alguns momentos, e seguiu atrás de Tom, que já alcançava a praia.

— Ei, estou seca! — exclamou Suzy ao pisar na areia. Um segundo antes, ela estava encharcada, pingando.

— Eu também! — falou Artur, apalpando o capote. Apenas um pouco de vapor subia das roupas, mas

todas secaram assim que o grupo chegou à praia. — Muito bom este casaco — disse Suzy. —

Tomara que eu possa ficar com ele. Este calçado também é ótimo, porque não deixa entrar areia. E vai ser útil quando eu quiser chutar um Nadica. Botas Imateriais são à prova de tudo o que se conhece, inclusive de Nada. Pelo menos até agora.

— Animada, você — observou Artur com certa reserva.

Mas se sentia bem melhor. O ar puro e o sol eram muito estimulantes, e ele tinha certeza* de que, com a ajuda de Tom, logo encontraria o Testamento. A Segunda Parte daria um jeito no Horrível Terça-Feira, e tudo se resolveria.

O momento de otimismo perdeu um pouco do brilho quando a perna do garoto falhou mais uma vez. Ele queria andar normalmente, mas não conseguia. Precisava aprender a pensar antes de pisar com o pé esquerdo.

Tom já havia entrado na floresta, seguindo uma corrente de água doce. As árvores e a vegetação rasteira eram mais escassas nas margens do riacho, quase formando um caminho.

— Muito verde e muito molhado para o meu gosto — opinou Suzy enquanto seus pés espalhavam água para todo lado.

Ela olhou para as árvores copadas, com trepadeiras a subir pelos troncos, estremeceu e disse:

— Pode haver alguma coisa escondida atrás das plantas. Da próxima vez, me arranje uma rua.

— E aquele lugar com dinossauros? — perguntou Artur. — Lá também havia árvores.

— Eram poucas e, além do mais, ficavam dentro da Casa... Aonde foi Tom?

Artur e Suzy pararam e olharam em volta. Um segundo antes, Tom estava só um pouco à frente deles e agora não o viam mais nem ouviam seus passos. Apenas o riacho borbulhava delicadamente, e o vento fazia um ruído suave ao roçar as folhas das árvores.

— Tom? — chamou Artur. — Capitão? Pensamentos desagradáveis começaram a tomar a

mente do garoto.

“Será que ele viu o telegrama de Terça-Feira? Será que planejou nos trazer aqui? Será que foi tudo uma armadilha? Ele vai nos deixar nesta ilha selvagem no meio do sol. Não temos como escapar...”

— Aqui! — gritou Tom. — Onde? — perguntou Artur. Ele ouvia a voz de Tom, mas não descobria de

onde vinha. Via apenas a floresta e Suzy a seu lado, examinando as árvores com olhinhos desconfiados.

— Aqui! — repetiu Tom. Desta vez, Artur viu a mão do marinheiro acenar

no meio das folhas. — Suba pelo outro lado! Suzy e Artur saíram do riacho, passaram por alguns

arbustos cheios de flores amarelas e estranhas vagens alongadas e chegaram a uma árvore alta e frondosa. No tronco, trepadeiras subiam em todas as direções, formando uma escada natural que os dois escalaram facilmente, equilibrando-se, até alcançar o ponto que recebia a luz do sol.

Tom esperava os dois empoleirado em um tronco grosso, perto de alguma coisa que só poderia ser definida como um ninho: uma plataforma circular de galhos e trepadeiras misturados ao acaso que formavam uma combinação de varanda e cama na árvore.

No meio daquilo, aparentemente adormecido, estava um ursinho. Seu pêlo era preto e brilhante, a não ser pelo focinho um pouco mais claro e pela mancha amarelada em forma de Lua crescente que trazia no peito. Artur viu que o bichinho tinha uma cauda, o que ele suspeitava não ser comum em ursos. Não muito grande, chegava à metade da altura do garoto e era bem roliço.

— Eis aí — disse Tom. — A Segunda Parte do Testamento. E, se bem me lembro das minhas viagens às Ilhas Spice, em forma de urso de sol.

Artur se aproximou. O urso não se mexia, mas o peito dele, que subia e descia, era um sinal de que estava dormindo. De perto dava pra ver que o que parecia pêlo eram na verdade milhares de letrinhas a girar.

— O que há de errado com ele? O urso de sol não acordou nem deu sinal algum de

que percebesse a presença de visitas. — Está dormindo? Ou hibernando? — perguntou

Artur. — Ursos de sol... — Tom começou a dizer. Mas ele foi interrompido pelo barulho de uma

explosão. O som vinha da praia. Artur, Tom e Suzy olharam e viram um enorme gêiser de vapor — bem onde o Hélios estava ancorado.

— Oh-oh! — fez Suzy, tocando o cabo do cutelo. — Será o Horrível Terça-Feira chegando?

— Não — respondeu Tom. — Tirando a Escada Improvável, somente o Hélios pode alcançar esta ilha, e Terça-Feira não ousaria subir a escada. Pode ser que tenhamos acordado um guarda ou um vigia. Eu cuido disso.

De repente, o arpão de Tom apareceu em sua mão esquerda, brilhando em uma estranha combinação de luz e sombra.

— E o Testamento? Sempre de olho nas unhas longas e afiadas do urso,

Artur o cutucou. Mas a única modificação foi o brilho dourado que banhou o dedo do garoto. O bicho não se mexeu.

— O que fazemos com ele? — perguntou. Tom tinha começado a descer, mas parou e olhou

para trás com a testa franzida de preocupação. Na praia, o jorro de vapor chegava a uns 30 metros de altura.

— Quais são os seus planos? — perguntou o marinheiro.

— Não sei — respondeu Artur com impaciência. — Pensei que ia ser igual à Primeira Parte. Você sabe, o próprio Testamento me disse o que fazer. Não ficou lá deitado.

— Então, traga-o com você. Não podemos ficar muito tempo aqui — concluiu Tom e foi embora imediatamente.

— Acha que agüentamos o peso dele? — perguntou Suzy a Artur. — Ele parece pesado. Mesmo que seja feito de palavras.

— Sei lá! — reclamou Artur, demonstrando sua irritação. — Por que ele não acorda e colabora?

Depois de se certificar de estar com os pés bem apoiados sobre o galho, Artur se curvou e tentou puxar o urso pelo braço. Nada conseguiu, porém. O bicho era extremamente pesado, mais pesado do que se fosse feito de carne e osso.

Suzy também tentou puxá-lo, mas mal conseguiu erguer um pouquinho as patas traseiras. O corpo rechonchudo continuou firmemente plantado no ninho de folhas. Mesmo unindo as forças, Artur e Suzy só puderam dobrar o urso em forma de “U”. E nem assim ele acordou.

— É pesado demais! — reconheceu Artur. — O Capitão podia carregar — disse Suzy. — O

vapor parou... oh, fumaça!

Ela apontou. O gêiser havia sumido, mas no lugar dele se via uma densa coluna de fumaça. Então, houve um estalo estranho, e uma vibração silenciosa percorreu Artur e Suzy, fazendo-os estremecer. Seguiu-se um grito muito agudo, que com certeza não vinha de nenhum ser humano, e outro de triunfo, este de Tom.

— Acho que foi o “amigo” do Capitão — sussurrou Suzy, tocando os dentes com a mão suja.

Artur também sentiu uma coisa estranha nos dentes, como se estivessem ásperos. Mas a sensação passou logo.

— Desde que ele ataque do lado certo... — falou Artur.

Em seguida, o garoto colocou as mãos em concha sobre a boca e gritou:

— Capitão! Capitão! Precisamos da sua ajuda para carregar o Testamento!

— Positivo, estou ouvindo! — foi a resposta. — Já vou! Minutos mais tarde, Tom surgiu em meio às folhas, sem o arpão.

— Vamos nos apressar. Aquilo era um Espírito de Sol. Outros estão tentando carregar o Hélios. Eles têm meios de passar pelo Vidro Imaterial.

— Pensei que tivesse dito que os únicos meios eram a Escada e o navio de sol — disse Suzy.

Enquanto a garota falava, Tom pegou o urso e o jogou sobre o ombro como se fosse um travesseiro.

— Achei que fosse assim, mocinha — resmungou. — Fico pensando... mas agora não é hora de pensar. Depressa, para o navio!

— O que é um Espírito de Sol? — perguntou Artur para Suzy. Enquanto conversavam, os dois desciam

pela árvore, chegando à sombra fresquinha debaixo dela. Tom já estava longe, embora carregasse o urso de sol.

— Não sei bem — respondeu Suzy. — Existe uma grande quantidade de espíritos diferentes, mas eu nunca aprendi sobre eles. Basicamente, são Nadicas que saíram da Casa e entraram nos Reinos Secundários.

— A senhorita Azul está certa, até certo ponto — interferiu Tom. Ele estava uns 10 a 20 metros adiante e fora do campo de visão dos garotos.

— Todos os espíritos foram Nadicas um dia — continuou. — Nos Reinos Secundários, eles assumem a natureza do lugar onde vivem. Espíritos de Sol são essencialmente entidades autônomas compostas por plasma estelar. Em geral, movem-se em bando em torno do sol.

— Ele escuta bem — sussurrou Suzy. — Em bando? — quis confirmar Artur. Ele não

gostou de ouvir aquela palavra. — O que acontece é que o Nadica escapa e se

divide em 700 Espíritos. Se vierem para cima de nós, não se deixem abraçar. Nem o capote brilhante, nem o capuz resistem por muito tempo aos beijos deles.

— Então, vamos para o navio, antes que apareça algum — sugeriu Artur.

Com seu andar desajeitado, ele apressou o passo, fazendo espirrar água em Suzy.

— Tarde demais — disse Tom ao ver outro gêiser entrar em erupção exatamente no momento em que os três deixavam a floresta e pisavam na areia.

O Espírito de Sol não estava visível, mas a coluna de vapor lentamente se aproximou da praia, fazendo a água chiar e ferver à sua passagem.

— O mar não apaga aquilo? — perguntou Artur. — Acaba apagando, sim, se houver um modo de

manter o gêiser dentro da água — explicou Tom. Ao dizer isso, levantou a mão esquerda, e o arpão

apareceu, vindo não se sabe de onde. Tom imediatamente entregou a arma a Artur, que, apesar de surpreso, aceitou.

— Meu amigo não troca de mãos por vontade própria, mas não vai se negar a ajudar o Mestre da Casa Inferior. Aponte para cima, para a parte superior do corpo do Espírito. E mantenha distância. Meu amigo funciona melhor de longe.

— Mas... mas o que você vai fazer? — Vou preparar o Hélios para a nossa partida,

antes que outros Espíritos o arrastem para o sol. Você vai precisar distrair este Espírito de Sol e acabar com ele. Senhorita Azul, o seu cutelo vai cortar muitas vezes antes que a lâmina derreta. Use bem a arma.

Ele correu para a água no mesmo instante em que lá surgiu uma nuvem de vapor da altura de um adulto. No momento seguinte, o vapor foi levado pelo vento, e Artur viu de relance uma criatura que explodiu em chamas. Apesar da proteção do capuz, ele sentiu o calor no rosto.

Sem sequer pensar, o garoto atirou o arpão, mirando a parte de cima do corpo da criatura. Outra vez se ouviu o estranho estalo, como papel de embrulho sendo amarrotado, mas ampliado cem vezes. O arpão viajou tão rapidamente que deixou um rastro luminoso atrás de si.

— Ai! — exclamaram ao mesmo tempo Suzy e Artur no momento em que o arpão atingiu o alvo.

Em seguida, ambos apertaram os lábios ao sentirem uma dor de dente que se irradiava pelos ossos da face e pela cavidade dos olhos.

Para o Espírito de Sol, porém, foi muito pior. A criatura gritou, e línguas de fogo saíram de suas mãos rumo ao céu, mas mudaram de direção, envolvendo o arpão e cravando-o em seu peito. Com a impressão de que o Espírito conseguiria se livrar da arma, Suzy tirou a mão da boca e pegou o cutelo. No entanto, não precisou usá-lo: as línguas de fogo diminuíram até se extinguirem completamente, enquanto a criatura era reduzida a cinzas e carvão.

O arpão desapareceu por alguns instantes, mas logo reapareceu na mão de Artur com um baque surdo.

Suzy olhou para arma, passou a língua pelos dentes ainda doloridos, balançou a cabeça e falou:

— Coisa horrível. Não quero estar por perto na próxima vez que você for usar isso.

— Espero que não haja próxima vez — respondeu Artur, correndo para o mar.

O garoto segurava o arpão bem longe do corpo como se tivesse medo de ser atacado por ele.

— Vamos subir a bordo antes que apareça outro Espírito de Sol e...

Artur não conseguiu concluir a frase. Foi atingido no rosto por uma onda. O capuz impediu que engolisse água, mas ele teve de parar até recuperar o equilíbrio.

Nesse momento, outro gêiser de vapor explodiu bem diante de Artur. Ele caiu por cima de Suzy, embaraçando as pernas nas dela, enquanto outro Espírito de Sol se levantava.

Momentaneamente cego pelo vapor e próximo demais para atacar, o garoto simplesmente levantou o arpão de Tom o mais alto e o mais longe que conseguiu. Suzy aproveitou para escapar engatinhando.

Artur sentiu a arma estremecer. Ao mesmo tempo, um calor intenso atingiu seu rosto. Ele se inclinou para a água, fincando o cabo do arpão na areia, e enfiou as mãos nas mangas.

No momento seguinte, teve de esquecer a arma, ao sentir uma dor aguda em todos os ossos do corpo e em especial nos dentes e na face. Desesperado, gritou e bateu no rosto, sem tirar as mãos de dentro das mangas. O calor intenso do Espírito de Sol não era nada se comparado à dor profunda e vibrante que sentia embaixo da pele, pulsando por um tempo que pareceu interminável.

Correndo para escapar da influência nefasta do arpão, Artur rumou para a areia. Ele não queria saber se tinha atingido o Espírito de Sol ou se este o perseguia para beijá-lo e fazê-lo queimar até a morte. Só queria escapar da terrível arma do Capitão...

Nesse momento, alguma coisa bateu em sua mão direita, fazendo-o gritar novamente. O arpão tinha voltado. Ele não conseguia escapar!

Isso queria dizer que a arma sabia que, em breve, seria usada outra vez.

Capítulo 17Capítulo 17Capítulo 17Capítulo 17

Embora tivesse recebido o arpão de volta, Artur sentiu a

dor desaparecer repentinamente, assim como havia aparecido. Restaram apenas um ligeiro desconforto nos dentes e uma lembrança terrível.

Ao perceber que estava deitado de bruços na areia molhada, o garoto se virou rapidamente. Não havia sinal do Espírito de Sol nem de gêiseres de vapor. Cautelosamente ele se sentou. Em seguida, pôs-se de pé e olhou em volta. A uns 2 metros dele, Suzy estava deitada na areia, imóvel, junto da água.

— Suzy! — chamou. A voz de Artur denunciava o pânico que sentia. E

se ela tivesse morrido por causa dos efeitos colaterais causados pelo uso do arpão?

Suzy levantou a cabeça, tocou o rosto com os dedos, como se quisesse ter certeza de estar tudo no lugar, e ainda trêmula ficou de pé.

— Está tudo bem? — perguntou Artur ansioso, aproximando-se. Ela recuou e estendeu as mãos em atitude defensiva.

— Fique longe de mim com esse furador, Artur. Eu vou atrás.

— Artur! Senhorita Azul! Precisamos dar o fora. Depressa!

O grito de Tom chamou os dois à ação. Artur se atirou às ondas, virando de lado para ultrapassá-las mais facilmente. Ainda assim, teve de ficar na ponta dos pés ao passar por uma onda mais alta. Suzy, apesar do que tinha acabado de dizer, mergulhou e logo o alcançou.

Quando se aproximavam da escotilha de bombordo e da escada de corda que levava a ela, a água em volta do casco dourado da embarcação começou a chiar e borbulhar. Tom meteu a cabeça na escotilha e gritou novamente:

— Mais depressa! Os Espíritos de Sol fizeram alguma coisa no Vidro Imaterial! A âncora foi arrastada e a vela de estibordo está inflando!

Artur redobrou o esforço, mas falhou na hora de alcançar a escada e afundou na água quente. Ao tocar a areia, sentiu que alguém colocava a mão embaixo de seu braço e puxava para cima. Era Suzy, bem atrás dele, ajudando-o a subir.

Ela praticamente o atirou na escada. Para se agarrar ao último degrau, o garoto largou o arpão. Mas ele não caiu. Desapareceu simplesmente.

— Espero que não volte — resmungou Artur, subindo com dificuldade.

Ao chegar ao primeiro degrau, ele se voltou para ajudar Suzy. A água fervia em volta da embarcação e se via um brilho vermelho a se espalhar pelo mar azul esverdeado.

Suzy subiu a bordo com facilidade. A ajuda de Artur não seria necessária.

— Fechem e prendam a escotilha! — gritou Tom lá de dentro. Artur e Suzy uniram as forças: ele puxava e ela empurrava. A escotilha era pesada, feita do mesmo metal

dourado do casco, com pelo menos 30 centímetros de espessura, e se movia lentamente por um trilho. Nesse momento, o garoto viu muitas gotas de vapor explodirem nas ondas, ficarem imóveis por alguns segundos e, em seguida, se dirigirem para a escotilha ainda aberta.

— Espíritos de Sol! — gritou ele. — Muitos! Artur desistiu de puxar e foi ajudar Suzy a

empurrar. — Empurre! — comandou. — Um, dois, três...

empurre! Uma língua de fogo pegajosa conseguiu entrar bem

no momento em que a escotilha se fechava. Cortada ao meio, a língua girou em volta dos pés de Artur e de Suzy, até que a garota a apagou com uma pisada, deixando apenas uma poeira preta.

Artur pegou uma barra de metal comprida, encaixou-a no lugar e assim travou a escotilha. Mal tinha acabado de fazer isso e se ouviu uma batida no casco, como se muitos martelos o atingissem ao mesmo tempo.

— Espero que não consigam entrar — disse Suzy. — Perdi meu cutelo no mar.

— Também perdi o meu — falou Artur, apalpando a cintura. Ele não lembrava quando tinha visto o cutelo pela última vez.

— Vamos pegar outros. Não quero usar aquele arpão novamente.

— Preciso de todos na ponte de comando! — gritou Tom.

Artur e Suzy correram para lá. Tom manejava o leme com uma das mãos e mexia nas alavancas com a outra. Por uma das vigias azuis, os garotos viam indistintamente a ilha, então escondida em vapor e

fumaça. A outra vigia mostrava uma luz muito brilhante e figuras mal definidas que com certeza eram Espíritos de Sol. O barulho de martelos batendo no metal era tão forte que ficava difícil ouvir ou se concentrar.

— Estão tentando nos arrastar não sei para onde — disse Tom.

— Mas temos o vento solar a nosso favor. Peguem aquelas alavancas e puxem para trás com toda a força.

Artur e Suzy correram na direção das alavancas, saltando sobre o Testamento adormecido ou inconsciente.

Artur não esperava que as alavancas fossem tão pesadas. Eles tiveram de se pendurar nelas, para conseguir puxar.

— Os Espíritos de Sol estão tentando destruir os nossos cabos, mas o Hélios é resistente — falou Tom, tentando superar o barulho.

— Terça-Feira pode ser um senhor de escravos avarento, mas sabe fazer uma boa embarcação.

— O Horrível Terça-Feira fez o Hélios? — estranhou Artur.

— Positivo — respondeu Tom com sua voz rouca e poderosa, que quase se perdia no meio da barulhada. — Copiado, é claro, de algum inventor dos Reinos Secundários. Para variar, desta vez ele não copiou da Terra. Provavelmente eeeeeeee ou iEC9°°f

— De onde? De quem? — perguntou Artur. Ele não entendeu um só dos nomes ditos por Tom

e achou que fossem nomes de outros mundos. Ou talvez de outras terras. Ou, quem sabe, fossem os nomes dos inventores.

Tom não respondeu. Estava concentrado em um medidor que se enchia rapidamente de tinta vermelha,

chegando a dois terços da capacidade. O marinheiro, então, girou e prendeu o leme, lutando contra uma pressão invisível. O medidor se encheu quase imediatamente e assim permaneceu.

— Um bom vento, e as velas se esticam — gritou Tom. — Estão tentando nos segurar, mas não vão conseguir. Positivo, lá vão eles!

Artur não viu nada pelas vigias, pelo menos nada compreensível, mas o martelar diminuiu, e as formas pouco definidas contra a luz não estavam mais espalhadas, mas amontoadas nos cantos inferiores das vigias. E lentamente desapareceram.

Depois de 5 minutos, o som de martelos sumiu por completo. Tom relaxou um pouco, embora sem fazer movimentos bruscos nem soltar o leme.

— Com este vento, não demora muito e estamos no ancoradouro — disse todo animado. — E depois é só chegar a Casa, em um abrir e fechar de olhos.

— E vamos chegar apenas um minuto ou dois depois de partirmos? — perguntou Artur.

Ele pensava no telegrama que tinha guardado no bolso e no que o Horrível Terça-Feira iria fazer. A pergunta crucial era: como Terça-Feira agiria em relação ao Testamento adormecido?

— Embarque e desembarque levam o tempo que usamos para dizer as palavras mágicas — explicou Tom.

Ele franziu a testa e continuou: — Tenho certeza de que você vai fazer alguma

coisa com este Testamento. Não estou especialmente disposto a seguir Terça-Feira, mas, se ele me tocar com o poder da Segunda Chave, devo obedecer sem perguntas

nem hesitação. Não gostaria que o meu amigo cortasse o seu futuro.

Artur e Suzy abanaram a cabeça em uma reação instantânea e combinada.

— Por que nada é fácil? — perguntou Artur. — Só quero que o Testamento acorde e diga para Terça-Feira me entregar a Chave.

Então, resolvo tudo, volto para o meu mundo e esqueço esta maldita Casa e tudo o que tem dentro dela.

— Podia ser pior — comentou Suzy filosoficamente. — Podíamos estar molhados.

Artur deixou escapar um risinho enquanto caminhava em direção ao urso de sol.

— E eu podia ter uma crise de asma. E os nossos dentes podiam cair por causa...

O garoto olhou para Tom e resolveu não comentar sobre o arpão. Talvez a arma tivesse sentimentos e se ofendesse. Ou talvez Tom ficasse magoado.

Artur parou de andar em volta do urso de sol e inspirou repetidas vezes bem profundamente. Fora da Casa, ele não conseguia encher os pulmões, sempre um pouco apertados. Mas não se tratava de asma. Seria no máximo um pequeno desconforto. Nada, em comparação com a perna torta e mais curta.

“Esqueça a perna”, disse para si mesmo. “Vá em frente.”

— Muito bem. Tenho de acordar o Testamento. Como se acorda um urso adormecido? Ou um urso em hibernação? Alguém sabe?

Suzy fez que não. Tom ajustou o leme e disse distraidamente:

— Só sei que ursos de sol não hibernam. — Não?

Tom abanou a cabeça, e Artur viu pelo canto do olho o urso dar uma piscadela muito rápida como se quisesse tomar pé da situação.

— Ele não está dormindo! — gritou Artur. E dizendo isso se agachou ao lado do urso, deu-lhe

um tapinha no focinho e falou: — Acorde, Segunda Parte do Testamento. Nada aconteceu. — Diga a ele quem é você — sugeriu Suzy. —

Quer dizer, Mestre e tudo o mais. — Sou Artur Penhaligon. Mestre da Casa Inferior.

Legítimo Herdeiro... das Chaves do Reino, da Casa Inferior, da Casa Intermediária, da Casa Superior... das Regiões Afastadas...

— Do Grande Labirinto, dos Jardins Incomparáveis e do Mar Fronteiriço — completou Suzy, ajudando a memória de Artur.

— Quem falou? Por um instante, Artur não percebeu quem tinha

falado, mas então viu o cantinho da boca do urso se mexer. Em uma voz aguda e fala arrastada, ele conseguia dizer alguma coisa com o mínimo de movimento nos lábios e no focinho.

— Quem disse foram os Parágrafos de Três a Sete do Testamento, que me escolheram — respondeu Artur zangado. — Eu não queria, mas tive de aceitar. E agora faça o favor de se levantar para me ajudar.

O Testamento abriu um olho só e mediu Artur de cima a baixo.

— Como vou saber se você está dizendo a verdade? Você pode dizer o que quiser. Se é mesmo o Mestre da Casa Inferior, cadê a Primeira Chave?

— Eu nomeei a Primeira Dama, quer dizer, a Primeira Parte do Testamento, minha Procuradora — explicou Artur, tentando imprimir autoridade à voz. — Ela está com a Chave. Preciso de você para fazer o Horrível Terça-Feira me entregar a Segunda Chave. Portanto, fique acordado e comece a pensar.

— Não é assim tão fácil — disse o Testamento com sua voz aguda irritante. — Preciso de um documento escrito afirmando que você é o Herdeiro Legítimo. Uma notificação oficial da Primeira Dama. Já que a Primeira Parte escolheu o herdeiro, tudo bem; mas o mínimo que ela pode fazer é mandar uma notificação adequada. Sem isso, nada feito. Não seria prudente. E não me aborreça se não tiver o documento.

Assim dizendo, o urso fechou os olhos. Artur esticou a mão e deu mais um tapinha no nariz dele, mas recuou rapidamente, ao ver uma garra saltar, arranhando o ar bem onde sua mão estava no instante anterior.

— Já disse para não me aborrecer — resmungou o Testamento. — Estou meditando.

— Mais irritante do que a Primeira Parte — comentou Suzy. — Embora eu ache melhor do que carregar um sapo na garganta.

— Vamos ter nós mesmos de tirar esse urso da Pirâmide e levar para a Casa Inferior — disse Artur. — De um jeito ou de outro. A Primeira Dama disse o que fazer quando pegássemos o Testamento?

— Nadinha — respondeu Suzy. — Talvez eu devesse ter perguntado, já que o plano anterior fracassou.

— Este também falhou — disse Artur, cocando a cabeça. — Já estamos viajando há uma hora, mais ou menos. Não é, Capitão?

— Já percorremos um terço, talvez a metade do caminho — explicou Tom. — Agora estamos a favor do vento solar.

— Então, vamos voltar alguns minutos depois da partida — raciocinou Artur enquanto percorria o convés mancando. — Acha que Terça-Feira leva uns 10 minutos para chegar à sua cela, Capitão?

— Depende. A Torre do Tesouro tem passagens secretas. Se ele subir as escadas em seu passo habitual, são uns 10 minutos ou mais.

— Passagens secretas? Na prisão... quer dizer, na Torre? Onde?

— Ah, falei demais — disse Tom com uma piscadela. — Recebi ordens expressas de não mencionar as passagens secretas. Como não devo dizer onde elas estão, eu poderia acenar com a cabeça ou piscar um olho quando alguém me fizer uma pergunta vaga ou coisa parecida.

— O Horrível Terça-Feira não faria uma passagem secreta na mesma cela onde estão as garrafas — falou Artur lentamente sem afastar os olhos de Tom. — Mas poderia fazer por perto... como na cela ao lado...

Tom piscou devagar. — Ainda que alguém fizesse uma passagem secreta

na cela ao lado, daria um jeito de disfarçar — continuou Artur. — Talvez atrás de alguma coisa pendurada na parede. Ou dentro de um alçapão no piso. Ou no teto. Ou disfarçado de uma coisa diferente...

Ao ouvir a última frase, Tom confirmou lentamente com a cabeça.

— Suzy, como você disfarçaria a entrada de uma passagem secreta? — perguntou Artur. — Como isso é feito normalmente?

— Pode ser qualquer coisa — suspirou Suzy. Ela olhou para Tom e continuou:

— Um copo de água é muito comum. Ou um bule de chá. Ou um candelabro. Às vezes um livro. Ou uma pintura. Eu me lembro de uma em que se entrava por uma moeda presa ao chão. Ah, podem ser flores. Um tijolo solto. Espelhos também são muito comuns. Poderia ser um banheiro, mas é meio desagradável e não muito adequado. Um baú ou uma gaveta. Uma caixa. Um guarda-roupa. Uma cigarreira. Um piano. Relógios...

Ela parou. Tom tinha piscado ao ouvir a palavra “relógios”.

“Então, um relógio em uma das celas vizinhas àquela das garrafas é a entrada de uma passagem secreta. Onde será que vai dar? Deve levar para dentro da pirâmide, já que Terça-Feira é tão paranóico com relação a manter visitas do lado de fora.”

— Ele teria deixado a porta aberta? — refletiu Suzy.

— O senhor falou que Terça-Feira levantou a parte oeste da pirâmide para entrar — disse Artur a Tom. — Pode me falar disso?

— Toda a face oeste da pirâmide tem dobradiças como se fosse uma porta — explicou Tom. — Não precisa ser secreta, porque ninguém tem força suficiente para levantá-la. Nem eu conseguiria. A não ser que tivesse ajuda.

— E o meu poder acabou — disse Artur.

— Talvez Terça-Feira tenha deixado ela aberta — sugeriu Suzy. — Ele estava com pressa.

Artur fez que não. — Deixar aberta a porta que leva a todos os

tesouros? Duvido. — Estava só sendo otimista — falou Suzy. —

Você deveria experimentar. Não custa nada. Nem dói. Pelo menos não dói em mim. Você talvez sinta uma dorzinha na boca do estômago.

Artur ignorou o comentário. Sua mente examinava as possibilidades, tentando descobrir que atitude tomar.

— Precisamos fazer Terça-Feira abrir a pirâmide para nós — disse.

— Ou talvez Fuligem. Ele agora deve estar maior e mais forte, depois de comer os tesouros...

— Ah, o Nadica — interrompeu Tom. — Acho que ele não vai poder ajudar vocês. Com certeza, Terça-Feira vai ordenar que eu o mate imediatamente. Não sei como ainda não recebi um telegrama dele. É seu meio de comunicação preferido, bem de acordo com quem é tão econômico com as palavras.

— Ah, sim — fez Artur. Ele escorregou a mão para dentro do bolso e sentiu

o telegrama. Tinha a esperança de que o papel estivesse encharcado, transformando a mensagem em um emaranhado ilegível de letras. Mas não. O papel estava perfeitamente seco, protegido pelo capote.

— Claro — continuou. — De todo modo, a perseguição a Fuligem vai distrair Terça-Feira. É melhor do que nada...

A voz de Artur foi sumindo à medida que uma idéia surgia em sua mente.

— Telegramas... — disse. — O quê? — perguntou Suzy. — Telegramas! — O que têm os telegramas? Artur agarrou Tom pela manga do casaco. — Se o senhor recebe telegramas, isso quer dizer

que pode mandar? — Positivo, desde que tenha como pagar.

Terça-Feira não vende nada fiado. — E você tem algumas moedas? Pode me

emprestar? — Tenho somente as que trago nas orelhas, para

pagar pela minha vida ao demônio do mar, em caso de afogamento — disse Tom, puxando os cabelos grisalhos para mostrar as moedas. — Sei que é superstição, mas fui criado assim... De todo modo, quando chegarmos, vou lhe emprestar uma. Preciso ficar com a outra para qualquer eventualidade.

— Uma só chega? — perguntou Artur. A moeda era grossa e pesada. A figura com coroa

de louros que se via parecia muito orgulhosa e satisfeita por estar em uma moeda tão valiosa.

— Chega para mandar um telegrama e receber a resposta?

— Positivo. Chega, sim. Para quem você vai mandar?

— Para a Primeira Dama. Então, ela pode responder confirmando que sou o Herdeiro. E eu mostro a este... ao urso de sol. Ele se entende com Terça-Feira. E tudo vai ficar bem.

Capítulo 18Capítulo 18Capítulo 18Capítulo 18

— Telegrama não serve — disse o urso de sol sem abrir

os olhos. — Quando eu digo notificação adequada, quero dizer adequada. Selada e lacrada.

— Você é um perfeito castigo, não? — comentou Suzy. Mas o Testamento não respondeu.

— Assim mesmo, vou mandar o telegrama — insistiu Artur.

Ele tentava transmitir convicção, mas a idéia não parecia mais tão brilhante. E continuou:

— Talvez a Primeira Dama nos ajude a escapar da Torre e da Pirâmide. Ou consiga mandar por outros meios uma notificação adequada... ou coisa parecida. Enquanto isso, vamos tentar escapar. E cuidar para que o Horrível Terça-Feira não nos encontre.

— Boa idéia — opinou Suzy. — Mas não podemos carregar o urso. Não sem a ajuda do Capitão.

— Pensei que só eu precisasse de uma dose de otimismo — falou Artur.

E, tocando as costas do urso com a ponta de sua Bota Imaterial, continuou:

— Ele pode andar. O que acha, Testamento? Você vem conosco para o caso de ficar provado que sou o Herdeiro Legítimo, como todo mundo diz.

— Não vou a lugar nenhum antes de avaliar adequadamente a situação — disse o urso de sol ainda de

olhos fechados. — Não seria prudente fazer qualquer movimento sem considerar todas as possibilidades ou teria de responder perante as autoridades competentes.

— Você não vai ficar a bordo do Hélios — anunciou Tom. Ele deixou o leme e se inclinou para olhar o urso.

— Segunda Parte do Testamento, você sabe quem sou eu?

— Não — fez o urso, apertando os olhos ainda com mais força. — Nem pretendo fazer 20 perguntas para descobrir a sua questionável identidade.

Tom levantou a mão. Com uma rajada de ar frio, o arpão estranhamente escuro e brilhante surgiu. Ele inclinou a arma até que a ponta tocasse o piso do convés a alguns centímetros do nariz do urso de sol.

Artur e Suzy recuaram e desceram alguns degraus da escada, quase caindo um por cima do outro por causa da pressa. O urso de sol abriu um olho, embora sem vontade.

— Sabe quem sou eu agora? — rugiu Tom. O urso de sol abriu o outro olho, com visível

esforço, levantou o focinho e cheirou o ar várias vezes. — O segundo filho do Velho! — gritou. — O filho adotivo da Arquiteta. — Sim, sim! — admitiu o urso. — É verdade! — E eu digo que Artur é o Mestre da Casa Inferior

e por isso foi escolhido Herdeiro Legítimo. O urso de sol revirou os olhos e deu um suspiro

aborrecido. — Um testemunho é muito bom, mas mantenho

minha posição. Não vou agir no interesse de alguém antes de receber a notificação correta da Primeira Dama.

Tom raspou o piso do convés com a ponta do arpão, na direção do focinho do urso. O som estridente ecoou no navio, fazendo Artur e Suzy descerem mais alguns degraus.

Mas o urso não recuou. Simplesmente jogou a cabeça para trás e disse:

— E não aceito ameaças! — Isso não é uma ameaça, seu traidor peludo! Mas,

se não for com Artur, vamos ver se o presente que recebi de minha mãe tira algumas palavras dela do seu estômago.

O urso de sol olhou para Artur com desagrado e franziu o nariz.

— Suponho que tenho mesmo de ir a algum lugar, já que o meu agradável refúgio foi destruído. Por isso, conforme as circunstâncias, talvez possa acompanhar este potencial herdeiro consagrado até receber novas informações, de um jeito ou de outro.

— Agradável refúgio! — exclamou Artur. — Aquilo era uma prisão... Você tinha mais é que sair de lá e cumprir o seu dever. Que se faça valer o Testamento!

— Acreditei que seria liberado no momento certo para cumprir minhas obrigações — insistiu o Testamento. — Nunca pensei que fosse ser arrancado do meu sossego por um sujeito... ahn... teimoso, com...

— Chega! — ordenou Tom. O arpão sumiu. O marinheiro fez o leme girar e

puxou várias alavancas para trás. A marca vermelha no medidor central baixou.

— Estamos quase no ponto de ancoragem. Reúnam-se em volta de mim. Vamos fazer a transferência para a Casa.

O Testamento franziu a testa, mas se levantou com visível esforço e, com seu andar gingado, se aproximou de Tom.

— Ratinho gordo! — sussurrou Suzy. — Muito diferente da Primeira Parte.

— Não sei como podem ser tão diferentes — sussurrou Artur em resposta. — Nem quero descobrir.

— Fiquem perto de mim! — insistiu Tom. Ele meteu a mão no bolso e tirou um garfo de

prata. Com uma careta, guardou o garfo de volta e pegou uma colher de prata bem grande, que esfregou cuidadosamente na manga do casaco. Depois, levantou-a, de modo que refletisse a luz azul que entrava pelas vigias.

— Concentrem-se nas suas imagens refletidas na colher — instruiu. — Não olhem para mais nada. Não se distraiam. Não olhem para fora. Todos estão atentos?

Artur e Suzy fizeram que sim. O Testamento suspirou e ficou de pé nas patas

traseiras, usando a cauda para garantir o equilíbrio. — Pode abaixar um pouquinho, por favor? Pronto,

estou olhando. Artur fixou a parte curva no fundo da colher. Seu

reflexo era sinuoso e vago, misturado com as imagens de Suzy e do urso. Artur tentou se concentrar, mas sua mente vagava, pensando em outras opções. Não abandonava a idéia de enviar um telegrama à Primeira Dama e de se manter a um passo... ou, de preferência, a muitos passos... do Horrível Terça-Feira.

Tom começou a dizer em altos brados as palavras mágicas (ou poema, ou canto, ou o que quer que fosse). Artur achou difícil manter a concentração em meio a

tantos gritos incompreensíveis, mas se forçou a olhar para a colher brilhante e para a imagem curva de seu rosto.

Depois do primeiro minuto, a concentração ficou mais fácil. Os outros rostos sumiram, e Artur se livrou da sensação de estar cercado. Sobrou apenas seu reflexo. Ele estava sozinho no universo diante da própria imagem e tudo o que havia...

Tom acabou de dizer as palavras mágicas e cobriu a colher com a mão calejada.

Artur olhou em volta. Estavam na cela de Tom, na Torre do Tesouro.

Ouviam-se gritos à distância. Não dava para entender o que diziam, mas alguém parecia zangado. Aos poucos, foi possível distinguir uma voz mais ríspida e outra mais calma. Artur reconheceu a mais calma como a voz de Fuligem.

O grito mais alto veio em seguida: — Capitão! Venha cá! Tom praguejou. — Devo obedecer — explicou. — Boa sorte,

Artur. Estou aqui! Dizendo isso, arrancou a moeda que tinha na orelha direita e jogou para Artur, enquanto caminhava com grandes passos em direção à porta. Quando deu o segundo passo, seu “amigo” se materializou em sua mão.

Artur pegou a moeda, lambuzada pelo sangue de Tom, e falou:

— Obrigado! Mas como faço para mandar um... Tarde demais. Tom tinha ido, fechando a porta

atrás de si. Suzy correu para a mesa, enquanto o Testamento

subia desajeitadamente na cadeira de Tom e retomava seu ar arrogante e desaprovador.

— Em algum lugar deve haver um formulário em branco para telegrama — explicou Suzy, remexendo os papéis. — Já vem com os quadradinhos. Aqui!

Ela tirou de dentro da blusa uma pena e um vidro de tinta, desatarraxou a tampa, lambeu a ponta da pena e a entregou para Artur.

O garoto tentou devolver o material à garota, pois estava acostumado a escrever com caneta esferográfica ou de ponta porosa.

— Você escreve — ele disse. Suzy não aceitou. — Ainda estou aprendendo caligrafia. A Primeira

Dama diz que minha letra é uma desgraça. Principalmente o “s” e o “h”.

Artur olhou para o formulário impresso. Na parte de cima, lia-se: NOBRE E VENERÁVEL SERVIÇO TELEGRÁFICO, TELEFÔNICO E DE MENSAGENS DA CASA. Logo abaixo, via-se PARA e uma linha com sete, quadrados. Abaixo dela, estava escrito MENSAGEM, tendo cinco linhas com sete quadrados cada. E por último, DE, também com uma linha de sete quadrados. No cantinho, havia um círculo vermelho do tamanho da moeda de ouro suja de sangue que Artur tinha na mão. Havia ainda, abaixo do círculo, um quadradinho com as palavras RESPOSTA PAGA.

Molhando a pena na tinta azul-turquesa, Artur escreveu com certo esforço: Primeira Dama. Para escrever o “ma” final, teve de molhar a pena outra vez, ignorando o olhar irônico de Suzy diante de sua falta de jeito.

Depois de pensar por alguns segundos, de molhar a pena várias vezes, de numerosos borrões e alguns arranhões, Artur concluiu o texto:

TESTAMENTO E A TORRE DO TESOURO ELE NÃO ME RECONHECE DIZ QUE PRECISA DE

DOCUMENTO OFICIAL ENVIE OU MANDE AJUDA

Na hora de completar DE, ele hesitou, mas

resolveu escrever simplesmente Artur. Em seguida, marcou RESPOSTA PAGA. Logo que ele fez isso, o círculo vermelho começou a brilhar com uma luz prateada e apareceu a anotação manuscrita 12R.

— Ponha a moeda — ensinou Suzy. Artur colocou a moeda de ouro dentro do círculo, e

o formulário desapareceu imediatamente. Em seu lugar, surgiram quatro moedas de prata de vários tamanhos e desenhos.

— Sorte que recebeu o troco — disse Suzy, guardando as moedas no bolso. — Às vezes, eles não mandam.

— É melhor procurarmos a passagem secreta na porta ao lado — disse Artur subitamente tomando consciência do silêncio que estava lá fora.

— Do lado esquerdo ou do lado direito? — perguntou Suzy.

— Esqueci de perguntar — gritou Artur a caminho da porta. — Venha! Você também, Testamento!

— Se vai me chamar de alguma coisa, chame de Excelentíssimo Artigo Testamentário — disse o urso de sol.

— Excelentíssimo Castigo Testamentário? — perguntou Suzy, inclinando a cadeira para o urso descer. — Muito bem, Castigo, pule.

— Não, não — protestou o urso. — Excelentíssimo... — Já sei. Castigo. Você na frente, Castigo.

— Eu disse... ah, é melhor não falar comigo — ofendeu-se o Testamento.

O urso seguiu gingando atrás de Artur, que já experimentava a porta da esquerda. Ele não encontrou dificuldade para abri-la, mas a cela estava escura e completamente vazia. A única iluminação vinha do reflexo das lanternas da varanda. Artur entrou, examinou o cômodo rapidamente e saiu.

— A outra! — disse. Ele tentou falar baixo, mas sua voz ecoou no amplo

espaço. O eco foi respondido por uma voz áspera e

poderosa que não era a de Tom. O som vinha de baixo, mas não muito. Talvez uns três ou quatro níveis abaixo de onde estavam.

— Capitão! Ouviu isso? — O quê? — perguntou Tom. Artur e Suzy rastejaram até a outra porta,

empurraram delicadamente a tranca e abriram. A cela tinha iluminação, e o garoto se sentiu mais esperançoso. Eles logo encontrariam a passagem secreta e estariam a salvo, pelo menos por algum tempo.

— Não era um Nadica! Ele não deve ter comido os outros intrusos! — continuou a voz.

— Vamos cuidar do Nadica, Lorde Terça-Feira — disse Tom. — Ele está cada vez mais forte. Mas temos de encontrá-lo, primeiro.

— Venha aqui, Nadica! — rosnou a voz. — Não tenho tempo a perder com canalhas!

Artur teve a certeza de que a voz era do Horrível Terça-Feira ao ouvi-lo resmungar alguma coisa e dizer claramente:

— Pelo poder da Segunda Chave, quero todos os intrusos diante de mim!

O garoto sentiu como se mãos invisíveis o puxassem com força, arrastando-o para a escada. Suzy também foi levada alguns degraus abaixo com uma expressão de surpresa no rosto. Somente o Testamento permaneceu impassível. Manteve-se à esquerda de Artur, apenas a observá-lo muito atrapalhado, tentando impedir que as Botas Imateriais deslizassem pelo piso de ferro trabalhado.

Com uma careta, Artur se atirou para a frente, mas caiu de cara no chão e continuou a escorregar para trás, como se captores invisíveis o puxassem. Ele tentou enfiar os dedos nos buracos do desenho do ferro, mas teve de desistir antes que se machucasse seriamente.

Na agitação provocada pela tentativa de se livrar, Artur tocou sem querer a cauda do Testamento. Para surpresa do garoto, a força que o puxava cessou imediatamente. Ele, então, segurou a cauda com força.

— Como ousa? — atacou o urso de sol, fazendo sua voz aguda ecoar em todo o vazio central.

Artur não respondeu. Simplesmente esticou o braço e agarrou a mão de Suzy, que era arrastada. Ela também parou e começou a rastejar de volta para o lugar onde estava.

— Largue a minha cauda! — esgoelou-se o Testamento.

E dizendo isso se voltou para Artur, tentando arranhá-lo, mas foi contido pelo garoto, que pulou para trás do urso.

— Não largo você enquanto não atravessarmos a passagem secreta naquela cela — ameaçou Artur.

Suzy saltou e agarrou também o urso pela cauda. — Isto é um comportamento detestável. Eu

protesto! — Quem vem lá? — gritou o Horrível Terça-Feira. Seu grito foi seguido por passos pesados sobre o

piso de ferro. — Depressa! — ordenou Artur ao Testamento. —

Você não quer encontrar Terça-Feira, quer? O urso disparou pela cela com rapidez nunca vista.

As duas crianças foram atrás, mal conseguindo acompanhá-lo. Corriam agachadas e chegaram a esbarrar no portal.

Artur usou o pé para fechar a porta atrás de si, fazendo a perna machucada doer. Examinou rapidamente o cômodo onde estava, ainda ouvindo os gritos do Horrível Terça-Feira. Lá havia apenas uma poltrona em frente a dois delicados relógios de parede: um cuco em ouro finamente trabalhado e outro muito simples e pequeno, em marfim com moldura de nogueira.

— Larguem, larguem, larguem! — gemeu o Testamento. — Eu insisto em que me larguem!

Artur olhou para Suzy, que largou a cauda do urso para ver o que acontecia. O garoto fez o mesmo, e os dois recuaram para ficar longe das garras do bicho e observar melhor os dois relógios.

— Se tiverem estragado meu pêlo, vou mandar a conta da lavanderia para vocês — avisou o Testamento, examinando a cauda.

Artur nem ligou. Estava ocupado em tocar a portinhola do relógio cuco, toda em ouro maciço, com a maçaneta de esmeralda. Ele empurrou e abriu a portinha, esperando que alguma coisa acontecesse. Realmente, a porta cresceu e se expandiu a ponto de tomar todo o relógio, deixando à mostra um corredor escuro cujos teto e paredes ondulavam, como se feitos de pano, e não de pedras.

— Venham! — chamou Artur. Ele manteve a porta aberta para Suzy e,

estranhamente, sentiu ter nas mãos apenas a portinhola do relógio.

— Venha, Castigo! — Quantas vezes vou ter de repetir que é para me

chamarem de... — começou o Testamento sem fazer movimento algum.

Antes que o urso terminasse de falar, porém, Artur levou a mão à boca e gemeu, sentindo a dor já bastante conhecida. Tom havia usado o arpão, fato confirmado por um grito de agonia de Fuligem e por uma exclamação do Horrível Terça-Feira. E tudo pareceu acontecer muito perto.

— Passe! — berrou Artur ao ver o Testamento se voltar mais uma vez para inspecionar a cauda.

Então, fez-se ouvir a voz de Terça-Feira, bem perto da porta:

— Capitão, acabe com o Nadica e deixe que eu cuide dos outros ladrões!

Capítulo 1Capítulo 1Capítulo 1Capítulo 19999

O grito do Horrível Terça-Feira finalmente fez o

Testamento se mexer. O urso de sol se meteu na passagem secreta, e Artur foi atrás. Em uma visão muito rápida, o garoto percebeu que a porta da cela se abria e a sombra de Terça-Feira se projetava sobre a poltrona. Mas logo o relógio cuco voltou à sua forma original, fechando a passagem.

Artur estremeceu. Não queria encontrar o Horrível Terça-Feira sem a ajuda do Testamento. Precisava aprender as palavras mágicas ou encantamentos necessários. Então, tomaria a Segunda Chave do Curador desonesto.

O Testamento já havia alcançado Suzy, e Artur correu atrás deles, cambaleando e se apoiando nas paredes. A passagem secreta tinha o piso ainda mais instável do que a outra que usara na Casa Inferior para chegar ao Sr. Segunda-Feira.

E era mais curta também. Quando Artur pensou que a escuridão à frente fosse uma curva, encontrou a saída. A surpresa o fez tropeçar em Suzy e no urso de sol e cair sobre uma palmeira que lhe chegava à cintura.

— Terça-Feira está na cela — gaguejou Artur. Ao se levantar, ele quebrou a maior parte da

folhagem da planta. Ainda via a saída da passagem secreta,

uma estranha mancha escura entre duas palmeiras de 6 metros.

— Como se fecha a passagem? — perguntou. — Sangue deve resolver — respondeu Suzy. Em seguida, pegou a faca e, antes que Artur

pudesse dizer alguma coisa, agarrou o dedo do garoto e o espetou com a ponta da lâmina.

— Sangue de um Dia. O seu. Desculpe. Deixe pingar um pouco. O garoto sacudiu o dedo na direção da porta de saída. Em vez de entrarem, as gotas de sangue se espalharam como se tivessem batido em um vidro. A passagem secreta deu um suspiro e se fechou, fazendo Artur dar um passo para trás. De repente, nada havia entre as duas palmeiras.

O garoto olhou em volta. O ar era puro e brilhante, e eles estavam rodeados por palmeiras viçosas e arbustos cuidadosamente aparados, onde se viam belas flores em rosa-claro. Por um momento, ele pensou estar fora das Regiões Afastadas. Então, viu a parede da Torre do Tesouro e o brilho da pirâmide de vidro.

— Melhor encontrarmos um esconderijo — sugeriu Artur. — O que é aquilo? — perguntou em seguida, apontando para a pirâmide.

Era difícil enxergar através do vidro, mas o garoto havia percebido ao longe labaredas vermelhas, que tinham de ser muito brilhantes para serem vistas em meio à fumaça. As labaredas explodiam perto do teto das Regiões Afastadas e caíam.

— Foguetes — explicou Suzy. — Opa, aquele foi dos bons!

— Por quê?... Quem iria soltar foguetes? — perguntou Artur, virando a cabeça para tentar identificar

um ruído distante. — Escuto campainhas também. Campainhas elétricas, como as dos elevadores. Muitas, todas tocando ao mesmo tempo. Parecidas com o alarme de incêndio da escola. Aqueles foguetes são sinais de perigo. As campainhas são alarmes — concluiu.

— Problema do Horrível Terça-Feira — falou Suzy dando de ombros.

E, dizendo isso, ela começou a examinar os arbustos para ver se encontrava um esconderijo.

— Deve ser Nada — disse Artur. — É do que todo mundo tem medo.

— Eu não tenho medo de Nada — interferiu o Testamento. — Nem de coisa alguma. Não me afasto do meu dever.

— Pois devia ter medo — aconselhou Artur. Ele estava cansado de tanta vaidade e conversa

fiada. — A Primeira Dama tem medo de Nada. Eu tenho medo de Nada. Quem tem juízo tem medo de Nada. E se ele explodir e destruir as fundações da Casa e tudo o mais... o universo inteiro?

— O trabalho da Arquiteta é perfeito demais para que isso aconteça — disse o Testamento teimosamente. — Não há por que sentir medo.

— Você esteve trancado por 10 mil anos — argumentou Artur. — O Horrível Terça-Feira escavou um fosso enorme aqui nos alicerces das Regiões Afastadas, bem perto do Nada. O Atlas diz que este é um grande perigo para a Casa. E aposto que ele sabe mais que você.

— O Atlas? — perguntou o Testamento, sentando-se e deixando de lado seu ar arrogante. — Você tem o Atlas Completo da Casa?

— Tenho.

Artur pegou o livrinho e o colocou bem diante do nariz do Testamento, como se fosse um distintivo de policial. E em seguida, guardando-o novamente no bolso, continuou:

— Porque, esteja eu satisfeito ou não, sou o herdeiro desta bagunça!

— Bem, talvez eu tenha sido um pouco rigoroso demais na aplicação dos princípios declarados na minha criação — disse o urso de sol em meio a uma tosse delicada. — Se eu pudesse examinar melhor...

— Artur! Dê uma olhada nisso! O garoto afastou os ramos dos arbustos. Suzy

estava de pé em cima de um banco de pedra comprido e olhava sobre uma cerca viva muito bem cuidada, na direção leste da pirâmide de vidro.

— Desça! — falou Artur nervoso. — Ele vai nos ver!

— Venha dar uma espiada! — insistiu Suzy. Artur olhou em volta e resolveu atender ao

chamado. Sabia por experiência própria que a garota não desceria enquanto ele não fosse ver o que ela queria que visse.

— Acho que o Horrível Terça-Feira arranjou um monte de novos problemas — disse Suzy, apontando para o espaço entre o ar limpo, varrido pelo vento, e a parede de fumaça da altura do teto.

Artur voltou o olhar na direção apontada por ela. Através do redemoinho de fumaça, ele viu uma enorme multidão. Centenas e centenas, talvez milhares, de Habitantes marchavam para o norte, dirigindo-se para a estação e para os elevadores. Enquanto caminhavam, eles

tiravam os aventais, jogavam para o alto e pisavam em cima.

Mais perto da pirâmide, dúzias de Supervisores corriam em todas as direções. Alguns se aproximaram da parede de vidro. Embora ouvisse apenas as campainhas de alarme e o ruído da multidão, Artur concluiu que provavelmente gritavam por Terça-Feira, pedindo ajuda.

— O registro dos trabalhadores contratados — disse ele — foi destruído pelo sol!

— Claro que foi — confirmou Suzy, observando o cartão de identificação que trazia preso ao pescoço.

As colunas que antes marcavam RECEITA e DESPESA mostravam o número zero. A garota pegou o cartão, deu uma mordida e aproveitou para rasgá-lo em pedacinhos.

— Eu posso fazer outro registro — disse uma voz áspera atrás deles. — Os outros Dias vão me vender mais trabalhadores. Tudo não passa de um ligeiro contratempo.

Artur se voltou para ver de onde vinha a voz. Embora estivesse de pé sobre um banco, era mais baixo do que o Horrível Terça-Feira: um homem carrancudo, sem sobrancelhas, de braços musculosos, que vestia um colete de couro, com marcas características de queimadura por Nada na altura do peito, e usava luvas presas com tiras douradas.

— Eu... eu sou o Herdeiro Legítimo — disse Artur com a boca repentinamente seca. — Reclamo a Segunda Chave e o Domínio sobre as Regiões Afastadas

Os olhos de Terça-Feira se apertaram. — Você é o garoto Penhaligon — disse. — Sim. Sou Artur Penhaligon. Entregue-me a

Segunda Chave e serei generoso.

— Não reconheço a sua reclamação — falou Terça-Feira com firmeza.

Em seguida, ele levantou a mão direita e fez um gesto como quem corta alguma coisa. Embora estivesse longe dele, Artur sentiu no peito um golpe fortíssimo, que o jogou sobre o banco e o fez cair na grama.

E lá ficou o garoto. Caído, atordoado e ofegante. “Preciso levantar. Preciso levantar e fugir.

Preciso...” Antes que se levantasse, porém, viu o Horrível

Terça-Feira se aproximar. Desta vez o grandalhão levantou a mão esquerda e fez dela uma garra.

Artur cobriu os olhos com o braço e gritou. “Tomara que seja rápido. Espero que papai e

mamãe estejam bem. Espero que fiquem com a casa e tudo o mais. Espero que Michaeli curse a universidade. Seria melhor que a praga não voltasse. Suzy deve correr agora. Ela pode conseguir. De todo modo, se o Nada escapar, todo mundo vai morrer. O Testamento deve fazer o que tem de fazer. Dei o máximo de mim. Tentei fazer a coisa certa, mas às vezes o mal vence...”

— Antes que eu arranque o seu coração e cubra de ouro, para colocar na minha desfalcada coleção de tesouros — disse Terça-Feira —, quero que me entregue o Atlas. Tire do bolso e ponha na minha mão.

Artur moveu o braço e abriu os olhos. Sua cabeça voltava a trabalhar furiosamente, mas os pensamentos eram mais concentrados.

— Não — respondeu. “O Atlas deve ser como a Chave. Terça-Feira não

pode tirar de mim, ainda que eu esteja morto. Tem de ser entregue espontaneamente.”

— Dê o Atlas para mim — ordenou friamente Terça-Feira. Talvez ele nem tivesse ouvido a resposta de Artur e simplesmente cortou o ar com sua garra, fazendo o garoto sentir o coração espetado por mil agulhas.

— Não dou. Em um misto de grito e choro, Artur elevou a voz

e disse: — Testamento! Eu o nomeio Portador do Atlas e

Herdeiro Legítimo para cumprir a sua... a sua tarefa. Faça... o que tiver de fazer...

As últimas palavras saíram em um sussurro. — Entregue o Atlas! — rosnou Terça-Feira. — Por

que será que me contrariam a toda hora? — Porque você é um nojento — falou Suzy. Em seguida, pulou da cerca viva onde estava

empoleirada, pegou uma pedra no chão e jogou na parte de trás da cabeça de Terça-Feira. Mas melhor faria se tivesse ficado calada. Em um movimento rapidíssimo, ele girou como um pião, agarrou a pedra e esfarelou com a mão. Suzy, apanhada pelo deslocamento de ar, voou e foi cair sobre o tronco de uma palmeira, que se quebrou.

— Agora, Penhaligon, o Atlas! — Não — sussurrou Artur. — E me dê a Chave. — Você vai ver o que é dor — ameaçou

Terça-Feira. — Vai sentir uma dor indescritível até me entregar o Atlas.

— Ahem! Terça-Feira se surpreendeu com a interrupção e

olhou em volta para ver quem era. Mas somente no segundo “ahem!” reparou no Testamento a seus pés. Seus olhos se apertaram e ele cerrou os punhos.

— O quê? — falou com raiva. — Você aqui? Vou dar um jeito nisso.

— Acho que não vai, não — contrariou o Testamento.

Pela primeira vez, Artur ficou feliz em ouvir aquela voz de tom impaciente e arrogante.

— Você me enganou uma vez. Duas, não. E tomei a precaução de solicitar ajuda.

Os galhos dos arbustos foram afastados, e Tom apareceu segurando o arpão. Ele cumprimentou Terça-Feira friamente e foi ajudar Artur a se levantar.

— Você vai se ver comigo, Capitão — falou Terça-Feira com rispidez, erguendo as mãos. — Pelo poder da Segunda Chave...

— ...que agora coloco oficialmente em disputa — anunciou o Testamento, revogo a sua condição de Curador até futuras investigações.

O Horrível Terça-Feira balançou a cabeça. — Você não pode. Eu não deixo. Não permito que

ninguém pegue as minhas coisas. O que é meu é meu para sempre!

— A sua velha sobrancelha cheia de fuligem provou que não é bem assim, quando comeu uma porção de coisas — disse Suzy, levantando-se com certa dificuldade.

O nariz da garota sangrava, mas, fora isso, ela parecia estar bem. Terça-Feira fez um movimento em direção a ela e levantou a mão, mas desistiu de qualquer ato de violência ao perceber um leve toque de Tom no arpão.

— Os seus desejos não têm importância, Lorde Terça-Feira — declarou o Testamento. — Já disse:

enquanto eu não estiver pronto para me pronunciar acerca do Herdeiro Legítimo, é certo que o senhor não pode deter o poder da Segunda Chave.

— Pois deveria poder — disse-Terça-Feira com fria satisfação, apontando a explosão de foguetes nas áreas enevoadas. — Aqueles são sinais de perigo, sinais das profundezas do meu Fosso. As campainhas confirmam. Logo se ouvirão os gritos dos ex-trabalhadores. O Nada está vazando. Só eu tenho como estancar o vazamento e para isso preciso do poder da Chave. Mas sei quando um esforço é inútil. Podem deixar os meus domínios. Não vou tentar impedi-los.

— O vazamento de Nada não é problema meu — continuou o Testamento. — Tenho de começar uma investigação sobre o Herdeiro Legítimo. Depois que examinar os documentos relevantes e ouvir testemunhas importantes, veremos quem tem o direito sobre a Segunda Chave. E quem quer que seja vai ter de cuidar do Nada. Não sejamos tão apressados. Como sempre digo, a prudência é uma virtude.

De certo modo, o discurso do Testamento se perdeu, pois estavam todos de olhos fixos nos foguetes sinalizadores e nos pedaços de Nada que começavam a cair sobre a pirâmide, apesar dos ventos de limpeza.

— Não há tempo para investigação — disse Tom. — Declare Artur Herdeiro. Ele deve ir lá embaixo combater o Nada. O tempo de Terça-Feira está encerrado.

O urso de sol suspirou e pareceu prestes a iniciar outro discurso, quando um pedaço de Nada bastante grande caiu sobre o vidro, uns 30 metros acima, escorreu e se juntou a outros, que se misturaram até formar um Nadica — um Nadica enorme, com uma espécie de

cabeça humana e o tronco sobre o que parecia um banquinho, tudo coberto por pêlo vermelho, duro e espigado. A coisa mexeu nervosamente as pernas traseiras e começou a fazer furos no vidro com os espetos que tinha nos cotovelos.

— Um aqui em cima, mil lá embaixo — disse Terça-Feira. — É Nada em estado bruto, a corroer as fundações da Casa. Confirme-me no poder, Excelentíssimo Testamento, e protegerei as fundações como sempre fiz.

— Você escavou por ganância e usou os Habitantes como escravos! — falou Artur indignado.

Ele respirou fundo, o mais fundo que conseguiu, olhou para o Testamento e continuou:

— Não quero ser o Herdeiro. Não quero a Segunda Chave. Nem quero cuidar do Nada. Mas sou obrigado a isso, porque estava no lugar errado, na hora errada. Quando a Primeira Dama me escolheu, tive de fazer a coisa certa. E devo me esforçar para continuar fazendo. Você não quer me reconhecer, mas acho que também deve fazer a coisa certa, de modo que eu possa pelo menos tentar resolver os problemas.

— Não quero cometer um erro — disse o Testamento com delicadeza. — Melhor deixar de tomar uma decisão do que decidir erradamente.

— Mas a Casa toda vai desabar se você não tomar uma decisão! — argumentou Artur. — Tudo o que a Arquiteta fez vai voltar ao Nada. Você tem de escolher a mim ou a ele. E Terça-Feira já agiu contra o Testamento da Arquiteta.

O Nadica que estava acima deles parou de fazer furos e passou a dar socos na superfície da pirâmide. O

vidro não se espatifou, mas começaram a aparecer rachaduras.

O Testamento ficou de pé sobre as patas traseiras. O sol que trazia desenhado no peito ficou ainda mais brilhante, e seu pêlo se tornou parecido com um amontoado de letras. Então, as palavras se espalharam, compondo um corpo maior, que mudou de forma e cresceu, embora continuasse um urso.

— Vou ficar forte — disse. O sol do peito e as palavras escureceram, voltando

a parecer pêlo de animal. Ele ficou quase tão alto quanto Terça-Feira, mas duas vezes mais corpulento. Mudou de um urso de sol para um urso pardo de aspecto ameaçador.

— Vou defender a minha decisão com unhas e dentes. Sou a Segunda Parte do Testamento da Arquiteta e digo que a Segunda Chave deve ser...

Neste momento, um grande quadrado de vidro explodiu, e o Nadica em forma de inseto saltou para dentro com um grito arrepiante.

Capítulo 20Capítulo 20Capítulo 20Capítulo 20

Grandes cacos de vidro caíram sob a luz do sol artificial

que brilhava no céu. Entre os cacos, o Nadica soltou seu estranho grito de inseto.

Por um instante, todos permaneceram imóveis, olhando. Então, Artur e Suzy correram para baixo do banco, um de cada lado. O Testamento agarrou e arrancou uma palmeira, que usou como guarda-chuva.

Terça-Feira ficou firme no lugar, levantou as mãos e gritou... mas nada aconteceu, o que o deixou de boca aberta, pela surpresa. Ele havia esquecido que o Testamento acabara de anular seu poder sobre a Segunda Chave.

Tom girou o arpão sobre a cabeça e gritou uma palavra na língua estranha e áspera que usava em sua magia. Artur e Suzy taparam os ouvidos com as mãos, mas não adiantou. Quando o arpão brilhou com sua luz gelada, eles sentiram uma dor muito forte nos maxilares. E, de repente, os cacos de vidro se transformaram em uma grande onda de água do mar geladíssima.

A onda se quebrou, varrendo Artur e Suzy de seu esconderijo embaixo do banco e arrastando-os por cerca de 10 metros. Os dois foram parar, enrolados, perto de um grupo de árvores.

Terça-Feira e Tom conseguiram resistir à onda e ficaram frente a frente com o Nadica. Este saltou sobre

Terça-Feira, agarrando-o pelo colete com suas patas de inseto enquanto levantava os cotovelos para espetar-lhe a cabeça.

Tom levantou o arpão, mas não pôde usá-lo, senão atingiria também Terça-Feira. No entanto, sua intervenção não seria necessária. Mesmo sem o poder da Segunda Chave, Terça-Feira era um Habitante muito forte. Ele agarrou o Nadica pelos braços e partiu a criatura ao meio, provocando um som parecido com a da casca de uma lagosta sendo quebrada. Em seguida, jogou os restos em um lago ornamental, fazendo surgir borbulhas na água, causadas pela mistura com o sangue rico em Nada.

Terça-Feira suspirou, abaixou-se e limpou as luvas na grama. Artur e Suzy se endireitaram, e o Testamento enfiou de volta na terra seu guarda-chuva feito de palmeira.

— Como eu ia dizendo — continuou o Testamento —, a Segunda Chave irá para o vencedor de uma competição adequada. Os competidores serão Artur Penhaligon e o Horrível Terça-Feira.

— O quê?! — exclamou Artur. Ele olhou para os pedaços de Nada em volta da

pirâmide e para a explosão distante de foguetes de alarme saídos do Fosso.

— Não temos tempo... — Estou pronto para qualquer competição —

declarou Terça-Feira, esfregando as luvas uma na outra. O som produzido foi semelhante ao estalar de

pratos e em nada contribuiu para reforçar a confiança de Artur.

— O que vai ser? Um combate mortal?

— Claro que não — disse o Testamento. — Será um concurso de criação, mantidos os poderes da Segunda Chave. Devido à urgência da situação do Nada, faremos uma competição rápida. Cada um ficará de posse da Chave por 3 minutos, quando deverá criar uma obra de arte. O criador do melhor trabalho vencerá o concurso, sendo declarado Curador ou Herdeiro Legítimo da Segunda Chave, e como tal deverá assumir o Poder sobre as Regiões Afastadas.

— Mas eu nunca usei a Segunda Chave! — protestou Artur.

— Que confusão! — falou Suzy. — Já participei de joguinhos mais honestos...

— Está decidido! — rugiu o Testamento. Artur abriu a boca, pensando em protestar, mas

desistiu. Era consideravelmente mais difícil enfrentar o Testamento em sua forma de urso pardo.

— Só falta apontar o juiz, que deve ser alguém em situação adequada, naturalmente...

O Testamento foi interrompido por uma nova queda de Nadicas. Três coisas que pareciam um cruzamento entre lagarto e macaco vieram escorregando pela pirâmide e caíram pelo buraco aberto.

O arpão de Tom saltou no ar e espetou os três ao mesmo tempo, transformando-os em inofensivas baforadas de vapor escuro. Artur e Suzy trincaram os dentes, mas o efeito não foi tão intenso, por causa da distância.

— Alguém em situação adequada — retomou o Testamento impaciente. — Um dos outros Dias serviria, não fosse pelo fato de...

— ...eles serem um bando de traidores — sussurrou Suzy.

— Depressa! — pediram Artur e Terça-Feira ao mesmo tempo. Os dois disseram isso com os olhos fixos um no outro, o que exigiu de Artur um certo esforço. Não era fácil sustentar o olhar furioso do Horrível Terça-Feira.

— Calados! — berrou o Testamento. — Para resolver a questão, o concurso será julgado pelo marinheiro. Quem quer ser o primeiro?

— Eu vou primeiro — declarou Terça-Feira. — Mas somente se for devolvido o meu direito aos poderes da Chave.

— Por 3 minutos — concedeu o Testamento. — Nem um segundo a mais. Capitão, esteja atento a alguma trapaça.

Artur nem se surpreendeu ao ver o urso pardo tirar um grande relógio do bolso de um colete inexistente. O Testamento mexeu nervosamente em um dos muitos botões do relógio, levantou uma pata peluda e acenou para Terça-Feira.

— Comece! Terça-Feira sorriu e ergueu as mãos. Artur e Suzy

se encolheram, mas Tom não pareceu perturbado. O Curador falou qualquer coisa em voz baixa.

Artur tentou ouvir, para o caso de ser algum segredo na utilização da Chave. Somente naquele momento ele concluiu que a Chave devia ser uma das luvas de metal prateado usadas por Terça-Feira. Ou talvez fossem as duas, como havia acontecido com a Primeira Chave, em que o ponteiro dos minutos e o das horas se juntaram para formar uma espada.

Um pedaço de Nada entrou pelo buraco na pirâmide, chamado por Terça-Feira, que o pegou e segurou bem em frente ao rosto. Sob seu olhar, o pedaço de Nada começou a brilhar. Terça-Feira passou as mãos em volta da bola brilhante, sempre murmurando alguma coisa.

Com gestos rápidos e precisos, fez a bola brilhar cada vez mais. Artur não conseguiu ouvir o que ele dizia. Mesmo com o capuz sobre o rosto, a intensidade do brilho impedia o garoto de ver o que se passava.

O relógio do Testamento soou, tocando três notas decrescentes.

— Tempo! — gritou o urso pardo. O Horrível Terça-Feira pegou o deslumbrante

objeto e colocou sobre o banco de praça. A luz aos poucos diminuiu, revelando uma árvore de 35 centímetros de altura, feita de metais preciosos. O tronco e os galhos eram de platina, salpicados de ouro, com mil folhas douradas e sulcos prateados. Quando a brisa entrava pelo buraco da pirâmide, os ramos se mexiam, emitindo um som semelhante ao de um xilofone tocado a distância.

Era o mais belo objeto já visto por Artur. Mas somente um fugaz sorriso de satisfação passou pelo rosto de Terça-Feira.

— Artur faz melhor que isso com um pé nas costas — falou Suzy. A garota tentou imprimir segurança às palavras, mas não conseguiu.

— Entregue a Segunda Chave a Artur — instruiu o Testamento. O Horrível Terça-Feira fechou a cara e, bem devagar, tirou as luvas de prata. Ainda ficou com elas nas mãos por alguns segundos, antes de relutantemente entregá-las para Artur.

No momento em que o garoto pegava as luvas, dois envelopes amarelos se materializaram acima de todos. Terça-Feira os pegou no ar. Ao ler o nome do destinatário do primeiro, atirou o envelope aos pés de Artur. O segundo ele abriu e leu rapidamente. Em seguida o mostrou para o Testamento e disse:

— Yan avisa que todo o alicerce leste do Fosso inferior está vazando Nada. Em uma hora, tudo terá desabado se eu não estiver lá para consertar. Acabe logo com esta competição ridícula e me entregue a Chave!

Artur colocou embaixo do braço as luvas surpreendentemente brilhantes e pegou o outro telegrama, endereçado ao Mestre da Casa Inferior. Ele abriu e leu: ARTUR MOSTRE O ATLAS AO TESTAMENTO AJUDA A CAMINHO AGÜENTE SEJA CORAJOSO PRIMEIRA DAMA

— A competição começou e deve terminar —

falou o Testamento. — Artur, comece imediatamente. O garoto deu o telegrama para Suzy e calçou as

luvas. Embora parecessem feitas de prata com ouro, elas não eram frias nem metálicas. Na verdade, eram macias, quentinhas e muito confortáveis e fizeram Artur assumir uma postura mais ereta e se sentir mais confiante.

“Aposto que a Segunda Chave funciona do mesmo modo que a Primeira e o Atlas”, ele pensou. “Só tenho de pensar no que quero e dizer em voz alta. Por isso Terça-Feira ficou resmungando...”

— Comece! — Quero um pedaço de Nada! — falou Artur.

Dizendo isso, ele levantou as mãos e olhou para o buraco no vidro da pirâmide.

— Um pedaço pequeno! — acrescentou ao ver vários pedaços grandes caindo em sua direção.

Os dois competidores se afastaram, e um pedaço de Nada do tamanho de uma bola de futebol passou pelo buraco. Artur levantou as mãos, dominando os pensamentos sobre o que aconteceria se ele se atrapalhasse, deixando o Nada cair diretamente sobre seu rosto desprotegido.

Mas ele não se atrapalhou. Assim que pegou com firmeza o pedaço de Nada, pôs mãos à obra. Já havia pensado no que faria, ironicamente inspirado no som produzido pela árvore de metal precioso de Terça-Feira.

Artur não tinha esperança de igualar o talento de seu adversário, fazendo uma escultura, pintando um quadro ou coisa parecida. Mas talvez sua idéia funcionasse. Tudo dependia dos critérios utilizados por Tom para julgar as obras.

— Meu xilofone — falou para si mesmo, imaginando. — Aquele que ganhei de papai e mamãe quando fiz 6 anos. Aquele que papai vive me pedindo emprestado. Com barras de madeira sobre uma estrutura de metal e duas baquetas.

Concentrado e se lembrando do xilofone, Artur tentou dar forma ao pedaço de Nada. Difícil dizer se estava dando certo. O material brilhava, embora muito menos intensamente do que antes, nas mãos de Terça-Feira. Ou talvez a intensidade do brilho fosse a mesma, já que todos em volta protegiam os olhos.

“Mas tenho pouco tempo”, pensou desesperadamente. “Como vou saber se ficou pronto?”

Os dedos de Artur se contraíram sem que ele comandasse.

“Teria sido um sinal da Chave?” Os dedos se contraíram outra vez. Tomando a

segunda contração como um sinal definitivo, Artur depositou delicadamente o trabalho pronto sobre o chão e se afastou. O brilho diminuiu, e todos viram o xilofone com duas baquetas.

— É isso? — perguntou Suzy. Em resposta, Artur se ajoelhou meio sem jeito e

pegou as baquetas. Depois de respirar fundo, o que tinha sido impossível na última vez em que usou o instrumento, começou a tocar uma melodia que levara 2 anos para compor, dos 8 aos quase 10 anos de idade. Era uma canção de agradecimento, composta em homenagem a Bob e Emily, para expressar sua gratidão por ter sido adotado. A melodia começava lenta e suave e terminava animada e feliz.

Não que fosse a canção mais linda do mundo, mas tinha sido composta por ele e expressava seus sentimentos ao saber que era filho adotivo. Artur queria transmitir sua gratidão por viver naquela família, onde era aceito, amado e recebia o mesmo tratamento dispensado aos irmãos.

A apresentação terminou exatamente no instante em que o Testamento gritou:

— Tempo! A última nota do xilofone se misturou ao terceiro

toque do relógio. Por um momento, fez-se silêncio. Então,

Terça-Feira soltou uma risada irônica e levantou a mão, esperando receber as luvas. Mas o Testamento se pôs entre ele e Artur.

— Vamos esperar o julgamento — disse cauteloso. — Capitão? Tom olhou para a árvore de ouro e platina feita por Terça-Feira e coçou o queixo.

— Belo trabalho — disse. — Não são muitos os indivíduos capazes de produzir uma obra-prima feita de Nada. Um verdadeiro trabalho de gênio.

Artur baixou a cabeça. Ele havia apostado no que ouvira sobre a natureza de Terça-Feira e no que Tom poderia considerar importante. Ainda que Terça-Feira os deixasse livres, como tinha prometido, e estancasse o vazamento de Nada, sua família perderia tudo. Talvez o mundo inteiro mergulhasse em uma depressão econômica. Tudo porque Artur não...

— Um verdadeiro trabalho de gênio — repetiu Tom. — Mas não se trata do seu gênio, Lorde Terça-Feira.

— Fui eu que fiz! — trovejou Terça-Feira. — Eu fiz de Nada!

— Mas é uma cópia — insistiu Tom. — Já conheço o trabalho, embora o senhor tenha substituído prata por platina. Estava na oficina de Del Moro em Roma, na Terra, quando eu era dono de um navio mercante genovês e comprava vasos de prata e candelabros. E tornei a ver, muito mais tarde, na coleção do ourives Froment-Meurice. Se não me engano, o original está agora na sua Torre do Tesouro.

Tom se voltou para Artur e continuou: — A canção de Artur, por outro lado, eu não

conhecia. E olhe que já ouvi muitas canções. Ela me fez pensar na felicidade da volta para casa depois de uma viagem muito longa. E me fez lembrar também da alegria de subir a bordo de uma embarcação novinha em folha; o

convés recém-lavado, a maré prestes a baixar ou subir... Declaro Artur vencedor da competição!

— Não! — gritou Terça-Feira. — Não! Ele se atirou para a frente e agarrou as mãos de

Artur com seus dedos magros e pálidos. Chegou a levantar o garoto do chão. Os braços de Artur quase foram arrancados dos ombros, e Terça-Feira o fez girar como uma hélice, mas não conseguiu tomar as luvas do garoto. O Horrível só parou quando foi contido por Tom e pelo Testamento, assim mesmo com muita dificuldade.

A luta finalmente se encerrou quando Artur levantou as mãos e disse:

— Parem! As luvas roçaram a pele do garoto, e ele sentiu uma

corrente elétrica riscar o ar rapidamente.. O Horrível Terça-Feira parou de lutar e ficou imóvel. Como uma estátua.

— Deve reclamar adequadamente a Segunda Chave, senhor — disse com humildade o Testamento. — Repita: “Eu, Artur, consagrado Herdeiro do Reino, reivindico esta Chave e o conseqüente Poder sobre as Regiões Afastadas. Reivindico por sangue e ossos, conforme Testamento e contra qualquer contestação.”

Artur obedeceu. Ao falar, sentiu uma pontada do lado esquerdo, o que o fez lembrar o momento em que reclamou a Chave de Segunda-Feira. Também sentiu as luvas se moverem levemente como se procurassem uma posição mais confortável.

— Muito bem, Artur! Foi como um passeio no parque! — disse Suzy.

Ela mal se mantinha em pé e tinha o nariz e o queixo empapados de sangue, o que, de certa forma, tirava

a força de sua declaração. Ainda assim, deu um tapa nas costas de Artur, que o fez perder o equilíbrio e lembrar a perna machucada.

— Você não vai ter muito tempo para comemorar a vitória — sussurrou Terça-Feira. — Quando o alicerce do leste ruir, o Nada vai explodir e destruir todos!

Capítulo 21Capítulo 21Capítulo 21Capítulo 21

Artur fechou os olhos por um momento, tentando

reunir as forças que lhe restavam. O Horrível Terça-Feira estava derrotado. Ele possuía a Segunda Chave. Mas não se sentia vitorioso, porque na verdade ainda não tinha vencido. Não podia descansar, ir para casa ou fazer o que quisesse. Precisava enfrentar outro problema enorme, para o qual não se sentia capaz nem totalmente preparado.

— Vou consertar o alicerce — disse. — Pode me dizer como se faz isso?

Terça-Feira cuspiu nos pés de Artur e falou entre dentes:

— Perdi a Chave, os meus domínios e todos os meus tesouros. Mas vou ter a satisfação de voltar ao vazio com eles, deixando meus inimigos em total confusão!

— Isso quer dizer não — ajudou Suzy. — Então, suponho que vou ter de descobrir. Artur olhou através da parede de vidro para o

Fosso coberto com uma mistura de neblina e fumaça. — Como posso descer lá rapidamente? —

perguntou. — Não pode — zombou Terça-Feira. — O

alicerce não agüenta nem uma hora, e mesmo o meu trem levaria dias para chegar.

— Mas você ia — argumentou Artur. — Você disse que consertaria o alicerce. Então, tem de haver um jeito.

— Não dá para ir voando — disse Suzy com os olhos voltados para o teto. — Não com aqueles pedaços de Nada por aí.

— Tom? Conhece um meio de chegar ao fundo do Fosso?

— Negativo. A não ser pela Escada Improvável — respondeu Tom. — Mas seria muito perigoso andar perto de tanto Nada. A Escada margeia o Nada em toda a sua extensão, mas nunca chega perto demais. Duvido que Terça-Feira se arriscasse a usar a Escada.

— Você pode usar a Chave para obrigar Terça-Feira a responder suas perguntas — sugeriu o Testamento. — Ele vai se machucar, mas não tem importância. O que vale é não permitir que o Nada tome tudo. Sugiro que aja com rapidez, senhor.

— Se você tivesse me ajudado antes, teríamos mais tempo — disse Artur com amargura.

De repente, alguma coisa em meio à neblina atraiu sua atenção. Uma centelha de luz. Depois outra. Não se tratava do brilho avermelhado dos foguetes de alarme, mas de feixes de luz que desciam do céu.

— Elevadores! — exclamou Suzy, seguindo o olhar do garoto.

— Deve ser a Primeira Dama — disse Artur. — Atrasada e inútil, como sempre.

Ele se voltou para Terça-Feira. O Habitante parecia mais baixo e menos ameaçador. Diminuído, em todos os aspectos.

Com certa relutância, Artur levantou as mãos, mas uma idéia o fez abaixá-las novamente.

— Elevadores! Deve haver um elevador para o fundo do Fosso! Onde fica?

O Horrível Terça-Feira não respondeu. — Não quero ter de fazer alguma coisa

desagradável com você — falou Artur. — Mas, se for preciso, usarei a Chave. Existe um elevador para o Fosso?

— Faça o que quiser. Não me importo — desafiou Terça-Feira. Artur balançou a cabeça, então, levantou a mão direita e apontou o dedo indicador para Terça-Feira.

— Pelo poder da Segunda Chave, ordeno que me responda com a verdade.

Mais uma vez, Artur sentiu um choque de eletricidade estática. Desta vez, porém, enxergou finíssimos anéis de luz que foram de seu dedo até a cabeça de Terça-Feira, enroscando-se no nariz e nas orelhas.

O Horrível fez uma careta e se sacudiu como um cachorro que acabasse de sair da água. Mas não falou.

— Existe um elevador para o fundo do Fosso? — Existe — falou Terça-Feira entre dentes. — Um

elevador de emergência. Pequeno. Só cabe um. — Onde fica? O Horrível Terça-Feira trincou os dentes ainda

com mais força, mas mesmo sem querer levantou o braço e esticou um dedo. Um botão de bronze apareceu no ar. Ele tentou não apertar, mas alguma coisa o obrigou a fazê-lo. Imediatamente soou uma campainha elétrica e, um segundo depois, brotou do chão um elevador estreito, do tamanho de uma cabine telefônica.

Apenas Terça-Feira sabia o que ia acontecer e estava preparado para embarcar. No entanto, como saltou

antes de a porta se abrir completamente, caiu para trás e foi agarrado por Tom e pelo Testamento. Terça-Feira não reagiu.

Artur olhou para o elevador que, além de pequeno, se mostrava em péssimas condições. O revestimento interno, de camurça, estava coberto de furinhos que pareciam queimaduras provocadas por ácido. As madeiras do teto estavam escurecidas e também queimadas.

— Vamos! — chamou Suzy, pulando para dentro. A garota ainda estava meio tonta por causa do

choque contra a palmeira, mas entrou assim mesmo, tomando mais da metade do espaço. Via-se que o elevador tinha sido feito para receber apenas o corpo magro do Horrível Terça-Feira.

— Não — disse Artur. — Acho que tenho de ir sozinho.

— Cabemos os dois — insistiu Suzy. — Eu prendo a respiração. Artur fez que não com a cabeça e puxou a garota pela manga. As luvas formigaram na mão dele, e Suzy se surpreendeu ao ver que não conseguia resistir. Então, o garoto entrou e fechou a porta.

— Espere, Artur! Você pode precisar... Sua voz se perdeu quando Artur apertou o botão

com a seta apontada para baixo. O elevador balançou bruscamente, desequilibrando o garoto e obrigando-o a se refugiar em um canto.

— Para baixo, de novo*. — perguntou uma voz. — O senhor sabe que este elevador só agüenta poucas viagens até lá.

— Direto para o fundo — instruiu Artur.

O elevador acelerou, e ele se sentiu levantar do chão como se estivesse em queda livre. Enquanto tentava se equilibrar, perguntou:

— O que quer dizer com de novo*. Quando este elevador foi usado pela última vez?

— Faz uma hora mais ou menos — respondeu a voz. — Foi uma surpresa. Foram mais de 20 anos de inatividade. Tudo bem conservado, seguro, encerado e lubrificado. Olhe para isso agora!

— Quem era o passageiro? — perguntou Artur. Quem teria ido ao fundo do Fosso uma hora antes?

— Não sei — disse a voz. — Mas trazia autorização. De cima.

— Para mim você não pediu documento algum. — O senhor possui a Segunda Chave, não é?

Segure-se, estamos chegando. O elevador reduziu a velocidade bruscamente.

Artur escorregou, com a impressão de que seu estômago queria sair pelas Botas Imateriais. Então, depois de uma série de sacudidelas assustadoras, o veículo parou e a porta se abriu.

— Fundo do Fosso. Obrigado! — falou a voz. Artur saltou para a escuridão. Imediatamente, a

porta se fechou e o elevador sumiu. Por um segundo de terror, o garoto teve a

impressão de estar preso no escuro total. Mas, depois que seus olhos se acostumaram, ele viu algumas lanternas a curta distância. Então, suas luvas começaram a brilhar com uma luz fria e esverdeada que, aos poucos, se espalhou por seus braços, pelo capote e pelas botas.

Uma das lanternas se aproximou, e Artur correu ao encontro dela. Quem a trazia era uma figura baixinha e atarracada: um dos Grotescos do Horrível Terça-Feira.

— Até que enfim, senhor! — disse o Grotesco asperamente. — Está vazando bastante Nada...

O Grotesco interrompeu o que dizia ao ver que o recém-chegado não era Terça-Feira. Uma expressão estranha cruzou seu rosto. Um misto de alívio e decepção. E uma ponta de raiva.

— Você não é o meu Mestre! — Agora sou o Mestre das Regiões Afastadas —

disse Artur de punhos cerrados. — Terça-Feira... isso explica os trabalhadores

contratados... pensei que tivesse a ver com Nada... — resmungou o Grotesco.

Ele parecia confuso. Balançava a cabeça sem parar. Então, olhou para Artur e disse lamentosamente:

— Sou Yan. Você vai nos fazer de novo como éramos antes? Três, em vez de sete?

— Acho que... vou tentar — respondeu Artur. — Mas antes, você tem de me levar até o alicerce que está para se romper.

Yan balançou a cabeça outra vez. — O alicerce? Não precisamos ir a lugar algum.

Estamos nele. Artur olhou em volta, mas, além do círculo de luz provocado por seu brilho estranho e pela lanterna de Yan, viu apenas a escuridão. No entanto, ouviu alguma coisa à direita: um chiado como o do vento noturno ao bater nas folhas quando estava em casa.

— Lance uma explosão solar a 300 metros de altura, senhor. É a primeira providência a tomar. Vai se lembrar de nos fazer em três novamente?

— Vou — disse Artur. — Não se preocupe... Ele juntou as mãos e se concentrou nas luvas.

“Explosão solar”, pensou. “Uma explosão solar para subir a 300 metros, como a outra que vi. Quente e gloriosa, um sol em miniatura para iluminar tudo aqui embaixo e mandar o Nada de volta para os buracos de onde saiu...”

Alguma coisa se soltou da mão de Artur e subiu a uma velocidade incrível. Parecia uma estrela que, em poucos segundos, atingiu o teto, a 300 metros de altura. Ele ainda olhava quando a estrela explodiu em luz. O capuz o salvou do pior, mas foi preciso cobrir os olhos com o braço.

E estava para afastar o braço e espiar, quando ouviu o grito de Yan. O Grotesco caiu, levando com ele a lanterna que se espatifou sobre o chão de pedra.

Artur instintivamente saltou para trás e viu: enquanto Yan tentava se proteger, um Habitante alto, impecavelmente vestido, deu um passo à frente e espetou o Grotesco bem no coração, com uma espada de lâmina prateada.

— Ele deveria ter ajudado a consertar o alicerce — disse o Habitante.

Tinha a fala suave e bem articulada, o rosto estava impassível, apesar do que acabara de fazer.

— E nós não podemos, não é? — Você o matou! O Habitante deu de ombros. — Talvez. Ele é um sétimo de um ser superior.

Pode se recuperar. Mas esta é uma discussão acadêmica, quando o Nada está prestes a cobrir toda a criação — disse, apontando com a espada.

Artur virou a cabeça para olhar, Só por um instantinho. Não queria perder de vista a lâmina prateada. Naquele momento, percebeu que estavam a apenas alguns metros da base de uma enorme parede que se estendia para a direita, para a esquerda e para cima. Era feita de largos tijolos vermelhos unidos com argamassa amarela, mas havia muitas rachaduras por onde vazava o Nada.

— Se eu fosse você, Artur, desistiria — disse o Habitante.

Sua voz era hipnótica, e Artur se pegou escutando atentamente e desejando que continuasse.

— A situação está fora do seu alcance. Muito mais fácil deixar por conta do destino. Deixe o alicerce desmoronar, o Nada invadir a Casa, os Reinos Secundários...

Nesse momento, o Habitante pulou na garganta de Artur. Para o garoto, foi um golpe inesperado, mas não para a Chave. As luvas agarraram, torceram e quebraram a lâmina. Então, Artur se viu cravando o que sobrou dela no colete de seda vermelha que o Habitante vestia.

— Ah, que posso dizer... — suspirou o Habitante enquanto recuava, olhando para o sangue dourado que gotejava e escorria pelo colete. — Uma estocada! Basta uma para encerrar a luta, conforme as regras.

Agora, é a vez dos outros. Em seguida, o Habitante apertou um botão que

apareceu no ar, e o elevador ficou visível, com a porta aberta. Ele entrou cambaleando. A porta se fechou, e um feixe de luz partiu em direção ao teto, tão distante que a vista não alcançava.

Artur ficou olhando totalmente confuso. Com certeza o Habitante não era um dos servos do Horrível

Terça-Feira. Nem era um Nadica. Ou seria? Por que ele queria que o Nada destruísse a Casa?

E, por falar nisso, onde andariam os Nadicas? Terça-Feira havia falado: “Um aqui em cima, mil lá embaixo.”

Artur se virou para observar o alicerce e encontrou os Nadicas. Estavam a muitos metros de altura, arrancando os tijolos com mãos, unhas, tentáculos e garras. Milhares deles se atropelavam na superfície do que o garoto descobriu se tratar de um dique.

Era um dique enorme, feito de tijolos especiais, sustentando o Nada.

Um dique vazando, mais fraco a cada segundo. Um dique a ser consertado por ele.

“Tijolos não são bons”, Artur pensou. “Os Nadicas conseguem arrancar os tijolos. Concreto armado. É disso que precisamos. Concreto armado mágico.”

Ele levantou as mãos enluvadas e se concentrou, murmurando:

— De tijolo para concreto armado. Concreto armado especial. Concreto Imaterial, como as minhas botas, mas mil vezes mais forte, mil vezes mais resistente.

Artur sentiu as luvas vibrarem pelo poder da Chave, mas, quando olhou para o dique, não viu mudança alguma. Os filetes de Nada se espalhavam cada vez mais, à medida que os Nadicas lascavam a argamassa e esfarelavam os tijolos.

Alguém atrás de Artur falou alguma coisa em voz baixa. Ele se virou, esperando outro ataque. Mas era apenas Yan, que se apoiava em um cotovelo.

— Toque os tijolos — sussurrou. — Toque os tijolos para transformá-los.

Artur concordou e correu em direção ao alicerce. Um tijolo passou zunindo por sua orelha, e outro atingiu sua perna machucada. Ele gritou e caiu com as mãos na cabeça.

— Chave, proteja-me! O brilho esverdeado do colete de Artur formou

uma esfera em torno dele. Os tijolos continuaram caindo, mas viravam pó ao encontrar a barreira verde. Tossindo e parcialmente cego, o garoto cambaleou e se apoiou com as duas mãos na parede.

No breve momento em que olhou para cima, viu Nadicas de todas as formas e tamanhos vindo em sua direção. Alguns voavam, outros saltavam, alguns andavam depressa, e outros, ainda, simplesmente corriam, como se a parede fosse horizontal, e não vertical. Mas por um período de 30 segundos, pelo cálculo de Artur, nenhum conseguiu atingi-lo.

Ele se encostou na parede, apoiando todo seu peso nas palmas das mãos e pensou nos diques que tinha visto, ao vivo ou em fotografias.

“O maior e mais forte dique. Concreto armado. Concreto Armado Imaterial. Dezenas de metros de espessura sobre a alvenaria. Impenetrável. Inatingível. Imune ao Nada. Liso demais para dedos, garras, unhas, tentáculos ou dentes. Um verdadeiro dique. Um alicerce forte! Construído com o poder da Segunda Chave!”

Artur sentiu o poder fluir das luvas para seu corpo. E daí novamente para as luvas. Ele era ao mesmo tempo reservatório e canal. O poder brotava dentro dele, crescia, transbordava e voltava para as mãos. Ele podia sentir o dique sendo construído, o Concreto Imaterial saindo de

suas mãos, expandindo-se como um pingo de tinta sobre uma folha de papel.

— Está funcionando! — gritou. Nesse momento, um Nadica de cabeça grande caiu

pesadamente perto dele e correu para atacá-lo, com os chifres pontudos na direção de suas costas desprotegidas.

Capítulo 22Capítulo 22Capítulo 22Capítulo 22

O Nadica não teve sorte melhor do que os tijolos, pois a

Chave reservava apenas uma parte de seu poder para atender ao comando de Artur, que chegou a sentir uma espécie de bafo na parte de trás do pescoço, mas nada que o desviasse de sua tarefa.

Outros Nadicas caíram e atacaram, mas todos tiveram o mesmo destino. Nenhum venceu o poder da Segunda Chave. Muitos perceberam isso e, em vez de atacar, fugiram, procurando um meio de chegar a outras partes da Casa ou aos Reinos Secundários. Alguns escalaram a nova parede, tentando desesperadamente arrancar mais um tijolo ou lascar mais um pedaço de argamassa. Muitos foram apanhados pelas vigas de ferro e emparedados nas colunas de Concreto Imaterial.

Apenas um Nadica não tentou atacar, arrancar tijolos ou fugir. Um Nadica estranho que, escondido atrás de uma caldeira furada, observava Artur.

O observador em nada lembrava os outros Nadicas. Visto pelo lado esquerdo, parecia um menino. Na verdade, parecia Artur em uniforme escolar. Mas, pelo lado direito, era um esqueleto que tinha à mostra os ossos de um vermelho amarelado. Visto de frente, era uma coisa horrenda com o rosto dividido: metade menino sério, metade crânio sorridente.

Quando ficou claro que o alicerce seria reconstruído e não havia perigo de acontecer outro vazamento de Nada, o Garoto sem Pele se deitou na caldeira e cruzou as mãos — uma com carne e osso, outra só com osso — sobre o peito. Ele não estava com pressa. O mensageiro que veio para assistir seu estranho nascimento apresentou várias oportunidades e possibilidades interessantes, dependendo do que acontecesse ao alicerce. O sucesso de Artur não havia sido considerado provável pelo mensageiro, mas mesmo assim ele tinha preparado o Garoto sem Pele, dizendo-lhe o que fazer.

Artur, sem suspeitar da presença do estranho observador, sentiu os dedos formigarem. Ao olhar para cima, viu a explosão solar diminuir, mas a parede de concreto feita por ele faiscava com a luz das estrelas, e ele pôde ver que o trabalho estava concluído. Não havia sinal de vazamento. Nem de Nadicas. Somente Yan, não mais apoiado em um cotovelo, mas jogado ao chão.

O Grotesco ainda respirava, mas esse era seu único sinal de vida. Quando Artur se aproximou, ele abriu um olho e falou baixinho:

— Não precisa nos fazer de novo. Quem imaginaria que Terça-Feira trabalhasse tão mal? Um golpe de espada para matar todos os sete... Nós não queríamos ser o que éramos, Artur. Lembre-se disso.

Seu olhar perdeu o brilho e sua cabeça caiu. Nesse momento, Artur viu o rosto do Grotesco, estremecer e mudar, mostrando os três belos Habitantes que tinham dado origem aos sete ajudantes de Terça-Feira. Logo depois, era novamente o rosto de Yan, frio e morto.

Artur desviou o olhar. Estava só, inteiramente só, nas profundezas do Fosso. A explosão solar não passava de uma centelha. As sombras cobriam a parede do dique.

Ele se sentia completamente exausto, cansado demais para fazer alguma coisa, nem que fosse apenas sacudir a poeira que lhe cobria as costas e os cabelos. Também tinha os braços doloridos de tanto carregar peso.

Artur cedeu ao cansaço. Primeiro, sentou-se no chão; depois, deitou-se de costas, olhando a escuridão.

Foi quando uma luz veio de cima. Uma campainha soou e uma porta de elevador se abriu.

— Subindo — avisou uma voz. — Pelo menos é o que espero. Ultima viagem para baixo. Quem tiver de subir, que suba.

Artur suspirou e se pôs de pé com dificuldade. Mancando, entrou no elevador.

— A viagem talvez seja um tanto difícil, senhor — falou a voz.

— O elevador está meio estragado. Isso para não falar do último passageiro, com sua subida de emergência.

— Subida de emergência? — perguntou Artur com um bocejo. — O que é isso?

— Bem, estritamente falando, este elevador só vai até o último andar das Regiões Afastadas. Mas o último passageiro foi direto para o Pátio da Casa Inferior. Claro que ele tinha a papelada de autorização, mas a viagem fez um estrago terrível no elevador.

— Quem era o passageiro? — Não sei. Alguém importante — disse a voz. —

E ele também desceu antes do senhor.

Artur procurou uma resposta adequada, mas resolveu ficar quieto em um canto, enquanto o elevador balançava, ganhando velocidade.

— Talvez a viagem seja um tanto demorada, senhor — continuou a voz. — Gostaria de um pouco de música? Posso tocar clarinete. Alguma coisa suave, entende? Nada muito estridente...

O elevador demorou a subir. Algumas horas pelo menos, embora Artur tivesse perdido a noção do tempo, pois adormeceu ao som da melodia levemente familiar e não muito bem executada em um volume bastante variável.

Ele acordou abruptamente assustado com o toque da campainha e com o impacto contra um objeto sólido acima do elevador. Decididamente aquela não foi uma parada controlada.

Artur saiu cambaleando do elevador e custou a acostumar a vista à luz do sol artificial. Foi então que descobriu: a pirâmide de vidro havia desaparecido, a Torre do Tesouro tinha sido parcialmente recuperada, e o jardim de palmeiras se transformara em um extenso gramado. Em volta da Torre, viam-se 40 tendas redondas grandes

— quase do tamanho da cobertura de um circo — dispostas em círculo. Fora delas, formavam-se longas filas de ex-trabalhadores contratados. Pelas mesas e pelos grupos de Habitantes que tomavam chá ou passeavam entre as filas, Artur concluiu que a finalidade das tendas era servir o chá da tarde.

Um comitê de recepção o esperava em volta do elevador, formando um semicírculo. A Primeira Dama vinha na frente, mas estavam lá também Meio-Dia de Segunda-Feira e pelo menos cem Visitantes da

Meia-Noite, Comissionados de Metal, Sargentos Comissionários armados e outros.

Suzy, sentada em um banco de praça, saboreava uma bomba de chocolate especialmente grande. Como de costume, vestia uma caótica coleção de roupas e usava seu chapéu amassado favorito. Artur reparou que ela tinha conservado as Botas Imateriais, e o rolinho que trazia ao lado era provavelmente o capote brilhante.

Suzy acenou. Artur acenou de volta. A Primeira Dama pensou que o cumprimento fosse

dirigido a ela e saudou Artur com a Primeira Chave, que se apresentava em forma de espada. Ela parecia ainda mais alta, muito imponente com uma espécie de uniforme azul vibrante com renda dourada. Além disso, usava um chapéu de pêlo ridiculamente alto, como aqueles dos guardas que ficam do lado de fora do Palácio de Buckingham, em Londres. Suas asas não estavam visíveis, mas havia um sinal delas: um brilho no ar, acima dos cabelos platinados presos em coque.

— Seja bem-vindo, Artur — saudou ela com voz profunda e penetrante, mas não tão grave quanto das outras vezes. — Muito bem. Muito bem mesmo.

— Estou cansado — explodiu Artur. — Quero ir para casa. Quero descansar. Não quero ser incomodado por pelo menos 6 anos, como me prometeu!

— É compreensível, Artur. No entanto... — começou a Primeira Dama.

Alguma coisa na voz dela fez o garoto olhar com mais atenção e interromper.

— Você juntou os dois! Quer dizer, as duas partes do Testamento!

— Isso mesmo — confirmou a Primeira Dama. — Somos uma só, como sempre foi a intenção da Arquiteta. Foram os Curadores desonestos que nos separaram.

— Por falar em separação, preciso que dê um jeito na minha perna — disse Artur. — Não posso voltar para casa assim.

— Quer uma toalha quente, senhor? — perguntou o Espirrador, aparecendo ao lado do garoto e fazendo Artur dar um salto. — Parece um pouco, ahem, desarrumado. Posso pegar o seu casaco? Deseja uma xícara de café? Ou um refrigerante à base de gengibre? Vou arrancar o seu brinco.

Artur nem sentiu a retirada do brinco. Pegou a toalha e passou no rosto, que pareceu insensível. Ah, tinha se esquecido de tirar o capuz. Em um movimento preciso, o Espirrador pegou o casaco. Quando o garoto finalmente encostou a toalha morna no rosto, a fuligem, a poeira e a lama desapareceram de todas as partes de seu corpo em um passe de mágica. A sensação foi de surpreendente frescor. Além do mais, serviu para acordá-lo um pouco. Ele olhou em volta e notou a falta do Horrível Terça-Feira e de Tom.

— Onde está Terça-Feira? E Tom? — O marinheiro novamente não quis assumir

compromisso com a Casa — explicou a Primeira Dama, torcendo o nariz. — Ele partiu, provavelmente para entrar de forma ilegal nos Reinos Secundários. Claro que expedi ordem de prisão contra ele, caso volte.

— Mas Tom me ajudou — protestou Artur. — Não pode prendê-lo. E Terça-Feira?

— O Habitante que era conhecido como o Horrível Terça-Feira está trabalhando — disse a Primeira Dama, apontando para a Torre do Tesouro.

Artur olhou e viu uma figura alta e magra, de macacão branco, às voltas com uma enorme lata de tinta e um rolo de mais de 6 metros de largura, que usava para pintar a parede.

— Há muitas tarefas à espera do nosso Assistente Inferior — continuou a Primeira Dama. — Primeiro, vamos recuperar o nível superior das Regiões Afastadas. Depois, vamos encher o Fosso, o que será feito pelos antigos Supervisores, e restabelecer a fonte. Isso sem falar nos tesouros originais que devem ser devolvidos a seus lugares de origem, na Casa ou nos Reinos Secundários. Há muito trabalho a ser feito, Artur. Trabalho que muito se beneficiará da presença do verdadeiro Mestre da Casa Inferior e das Regiões Afastadas. Portanto, tenho o prazer de devolver a Primeira Chave...

— Não! — gritou Artur. Dizendo isso, ele empurrou a bandeja de prata em

que o Espirrador lhe oferecera café e se afastou. — Não ouviu o que eu disse? Quero curar minha

perna e voltar para casa! E não quero ser incomodado novamente! Já não fiz o bastante?

— Controle-se — disse a Primeira Dama. — Não fica bem o Herdeiro Legítimo fazer uma cena diante de...

— Eu não estou fazendo cena — respondeu Artur da forma mais fria que conseguiu. — Estou apenas dizendo que quero curar minha perna e voltar para casa.

— Isto seria extremamente insensato — rebateu a Primeira Dama. — Para retornar, você deve abrir mão da Segunda Chave e, se fizer isso, ficará desprotegido. O

perigo será ainda maior do que antes. É certo que os outros Dias estão explorando brechas no Acordo e trabalhando ativamente contra você. Acredita-se que o Crepúsculo Superior de Sábado tenha estado aqui, por exemplo...

— Acho que o vi — disse Artur. — Ele matou Yan, e todos os Grotescos morreram. Com um só golpe. Mas eu o feri e ele fugiu. Por alguma razão, ele queria...

— Veja — interrompeu a Primeira Dama—, acredito mesmo que eles desprezem a Lei Original e ataquem você nos Reinos Secundários.

— Cabe a você investigar isso e impedir — insistiu Artur. — Preciso ir para casa. Quero minha vidinha de volta!

— Isso não é possível — suspirou a Primeira Dama. — No entanto, se quiser mesmo voltar, assim será. Mas deve indicar um Procurador para a Segunda Chave, como fez com a Primeira.

— Muito bem. Eu indico você — disse Artur, tirando as luvas que eram a Segunda Chave e entregando as duas para a Primeira Dama.

— Isto é a coisa mais em desacordo com as regras... — disse a Primeira Dama. — Mas suponho que... Repita: “Eu, Artur, Senhor das Regiões Afastadas, Mestre da Casa Inferior, Detentor da Primeira e Segunda Chaves do Reino...”

Artur falou rapidamente. Tinha a curiosa sensação de que, se fosse suficientemente rápido, tudo estaria bem, e ele não seria apanhado em nenhuma outra encrenca.

— “...passo à minha fiel serva a combinação das Partes Primeira e Segunda do Grande Testamento da Arquiteta, todos os meus poderes, domínios e direitos,

para agir em meu nome como Procuradora, até que eu os reclame de volta.” Pronto, acabou!

A Primeira Dama calçou cuidadosamente as luvas. Quando seus dedos entraram, elas irradiaram uma luz vermelha, e das palmas saíram pétalas de rosas.

— Belo gesto — disse a Primeira Dama em tom aprovador.

— E agora pode dar um jeito na minha perna? — perguntou Artur ansiosamente, mostrando a perna torta e mais curta.

A Primeira Dama se curvou para olhar mais de perto. Ela franziu a testa e estendeu a mão, fazendo aparecer um pincenê que ajeitou sobre o nariz antes de olhar novamente.

— Como foi isso? — Quebrei a perna ao cair na pirâmide — explicou

Artur. — Então, consertei com o poder da Primeira Chave que tinha restado nas minhas mãos.

— Ah! — fez a Primeira Dama. — Então, temos um problema.

— Problema? — sussurrou Artur. — Não pode consertar?

— Posso usar a Primeira Chave para reverter o que você fez. Mas então, sendo quebrada pela Chave, a sua perna não poderá ser consertada por mágica sem que você seja completamente transformado.

— Transformado? Eu? — Em Habitante. Você deixaria de ser mortal, o

que, acredito, não seja o seu desejo, só a Arquiteta sabe por quê!

Artur pensou na dor que sentiu ao bater na pirâmide. Pensou na vida. Sua vida comum. Era o que ele

queria, inclusive os momentos desagradáveis de que tanto se queixava. Queria até a escola nova.

— Se for preciso... — falou Artur devagar. — Mas ainda prefiro voltar. Apenas... se eu puder ir direto para casa, vai ser melhor. Não quero ficar caído na rua com uma perna quebrada.

— Isso se ajeita — disse a Primeira Dama. — Agora, não existe razão para deixarmos de usar a Porta da Frente. Na verdade, faço questão de usar e ao mesmo tempo avisar o Tenente Guardião que você deve ser deixado em paz.

De repente, uma idéia passou pela cabeça de Artur. — O Tenente Guardião... — disse. — Ele está

sujeito à Casa Inferior? Quer dizer... ele falou qualquer coisa a respeito de não haver Capitão Guardião há 10 anos. Seria porque Segunda-Feira deixou de assinar alguma coisa? Por que não... por que você não o promove?

— O Capitão Guardião e o Tenente Guardião são apontados por todos os Dias — explicou a Primeira Dama. — Como atualmente falta o Capitão Guardião, não pode haver substituição. O indicado tem de ser outro.

— Ah... — fez Artur. — É que eu devo um favor ao Tenente Guardião. Então, pensei... outros dois Habitantes também me ajudaram. Se for possível, arranje boas ocupações para eles. Japeth, um recém-contratado, era Tesauro.

— Um Tesauro é sempre útil — disse a Primeira Dama. Dizendo isso, ela sinalizou para Meio-Dia de Segunda-Feira, que fez uma reverência a Artur e cuidadosamente anotou alguma coisa em um caderno de capa branca.

— E um Encarregado de Fornecimento chamado Matias.

Artur deu uma olhada na direção do banco onde Suzy, desta vez, atacava um doce recheado de creme.

— E Suzy, é claro. Eu nada faria sem ela. Talvez ela pudesse receber férias ou algo assim...

— Suzy está sempre tirando férias — falou a Primeira Dama. — Quer mereça, quer não. Mas podemos negociar algum tipo de recompensa.

— E Tom — acrescentou Artur. — O Capitão. Por favor, não mande prender o Capitão.

— Sujeitinho difícil de prender — resmungou Meio-Dia. — Eu não gostaria de tentar. Não sei como Terça-Feira conseguiu.

A Primeira Dama lançou a Meio-Dia um olhar fulminante.

— Já que tocou no assunto, Artur, não vamos incomodar o marinheiro, a menos que ele nos incomode ou chame nossa atenção de forma que não possamos ignorar suas transgressões.

— É assim que acho que deve ser. Mas vamos adiante. Como se chega à Porta da Frente?

— Placa de Transferência — respondeu a Primeira Dama. — A Colina da Porta Aberta, na Casa Inferior. Onde eles foram? Espirrador!

Artur se surpreendeu ao ver o Espirrador sair de trás dele. “Como ele fez isso?”, pensou.

— Tenho duas Placas de Transferência, senhora — falou Espirrador, colocando sobre a grama dois pratos de porcelana comum em amarelo e branco. — O Padrão Combe. A senhorita Azul pegou um prato para comer bolo.

Suzy já se apressava, enfiando na boca o último pedaço de bolo e raspando os farelos. Em seguida, correu e depositou o prato junto dos outros dois.

— Aonde vamos? — perguntou ela ainda de boca cheia. A Primeira Dama fez uma careta e desviou o olhar.

— Colina da Porta Aberta — disse. — Artur vai para casa. Apenas suba no prato, Artur. Com calma. Como o Horrível Terça-Feira foi deposto, todas as linhas de comunicação (e de crédito, tenho a satisfação de dizer) foram reabertas entre todas as regiões da Casa. Meio-Dia, tome conta até eu voltar.

Em seguida, ela subiu no prato que tinha diante de si e desapareceu.

Artur ia subir no outro prato, quando Suzy foi a seu encontro e o agarrou pelo cotovelo.

— Opa! — fez ela. Ao mesmo tempo, porém, passou alguma coisa

para a mão dele e sussurrou em seu ouvido, enchendo-lhe o pescoço de farelos.

— O Capitão me mandou entregar isso para você. Não deixe a madame ver.

Então, endireitou-se e subiu em um dos pratos. Artur se sentiu tentado a abrir a mão e ver o que era, mas, ao se perceber observado por Meio-Dia, subiu no terceiro prato.

E, com mais um passo, estava no gramado que subia pela encosta da Colina da Porta Aberta.

O Tenente Guardião esperava na Porta da Frente: uma porta enorme de madeira escura entre postes de pedra branca, no alto da colina de onde se avistava o Pátio Inferior. Artur olhou para cima e viu os muitos feixes de luz que subiam e desciam entre o teto e a cidade. Ele sabia

que não era bom fixar o olhar na Porta ou correria o risco de enlouquecer.

— Saudações, Artur Penhaligon — disse o Tenente Guardião. Artur acenou, cumprimentando o Tenente e, ao abaixar a mão, aproveitou para guardar no bolso, junto do Atlas, o que Suzy lhe entregara. O que quer que fosse era pequeno e chato e coube bem.

— Pronto, Artur? — perguntou a Primeira Dama. — O Tenente Guardião vai levá-lo quando eu disser.

— Quase pronto — disse Artur. Ele tirou a calça e a camisa, mas manteve as Botas

Imateriais, que pareciam tênis comuns. Chegado o momento de ir embora, tinha vontade de ficar mais um pouco. E não era só porque sua perna seria quebrada. Ele se voltou para Suzy e estendeu a mão.

— Obrigado — falou meio sem graça. Artur queria dizer mais, porém não sabia como. — Até mais — despediu-se Suzy. — Na próxima

vez que você voltar, vamos arranjar asas melhores. Chega daquelas horrorosas que só sobem.

— Tem razão — concordou Artur. Ele olhou para a Primeira Dama, fez um gesto

rápido com a cabeça e fechou os olhos. Artur não viu o que ela fez. Sentiu apenas a perna

explodir de dor. Ele gritou e caiu. O Tenente Guardião pegou o garoto e passou com ele pela Porta.

Cada passo do Tenente Guardião representava uma agonia para Artur. Ele sentia uma dor terrível que, a cada movimento, subia pelo lado do corpo, chegando à cabeça.

— Agüente firme — disse o Tenente Guardião. — Falta pouco. Artur mal conseguia ouvir. Já nem sabia se

tinha os olhos fechados ou abertos. Só via explosões de cores brilhantes. E só pensava na perna.

— É muito corajoso, senhor — disse o Tenente Guardião. — Só mais um passo e...

Artur desmaiou. Quando voltou a si, estava no pé da escada que levava a seu quarto. Portas batiam. Ouviam-se gritos. Quem gritava era ele.

— Calma! — pediu Michaeli. Ele ouviu passos lentos na escada, depois passos

rápidos e um grito em tom diferente: — Papai! Eric! Artur fez força para parar de gritar. Foi

surpreendentemente fácil. Fácil demais, na verdade. Então, sua mente tomada pela dor entendeu: ele estava sem ar.

“Uma crise de asma! O estúpido Testamento reverteu tudo o que a Primeira Chave me fez! Agora, tenho uma perna quebrada e uma crise de asma!”

— Ajudem! — balbuciou Artur com o pouco ar que lhe restava. — Asma...

Foi demais. Enquanto Michaeli tornava a subir as escadas para pegar o inalador e Bob saía correndo do estúdio, Artur desmaiou outra vez.

Capítulo 23Capítulo 23Capítulo 23Capítulo 23

Artur acordou no hospital. Tinha uma agulha de soro no

braço e uma máscara de oxigênio no rosto. Sentia-se muito doente, com uma dorzinha constante na perna, que parecia meio estranha. Ele entendeu por que, ao ver que havia sido enrolada em uma espécie de plástico e arrumada cuidadosamente sobre as cobertas.

— Artur? Ele viu seus pais. Em uma poltrona, Bob ressonava

adormecido. A cabeça subia um pouquinho e abaixava a cada respiração. Emily deixava de lado sua pasta de papel eletrônico luminescente e se aproximava dele.

— Mamãe... — Você vai ficar completamente bom — disse

Emily. Ela ajeitou os cobertores e afagou os cabelos do filho.

— A crise de asma não foi das piores. Mas você quebrou a perna. Não sei como aconteceu. Jack, o cirurgião que o operou, disse que parecia um ferimento causado por um salto de pára-quedas malsucedido. Mas vai ficar tudo bem.

— Nossa casa... os corretores... — Não se preocupe — sussurrou a mãe de Artur.

— Foi tudo um engano. Naquela confusão causada pela Praga do Sono, alguém misturou os registros e pensou que

os impostos não estivessem pagos. Vamos resolver. E você, volte a dormir.

— Não estou com sono — disse Artur. — E a dor? Quer que chame a enfermeira? — Não, não... dá para agüentar — respondeu Artur

com sinceridade. Ele olhou em volta mais uma vez, observando a

normalidade das paredes brancas, os equipamentos de aço inoxidável, o painel com muitos botões, medidores e conexões.

Então, viu um relógio, mas não dava para enxergar o mostrador.

— Que horas são? — Passa pouco das 5 da manhã — respondeu

Emily. — Você dormiu desde o meio-dia de ontem. A cirurgia terminou às 19 horas. Portanto, foi bom você dormir até agora. É bom sinal.

Artur sabia que, com aquele jeito de “doutora”, Emily tentava disfarçar a preocupação. E sua mão tremia quando ela voltou a afagar os cabelos do filho.

— Cinco da manhã de quarta-feira — falou Artur. — Isso mesmo — confirmou Emily com um

sorriso. — Michaeli e Eric estiveram aqui, mas eu mandei os dois para casa. E sua amiga Folha também deu uma passada.

— Folha? — reagiu Artur. — Ela está bem? — Como soube que ela se feriu? Emily pareceu surpresa. — Ela chegou quase junto conosco. Nós a

encontramos na emergência. Um corte feio, mas reto. Difícil acreditar que alguém tivesse coragem de roubar

uma casa durante a quarentena de emergência. Mas eu devia saber...

— Folha ainda está aqui no hospital? — Está, sim. O irmão e os pais estão em

observação, e ela foi ficar com eles. Também está internada uma tia com um nome estranho.

— Manga — falou Artur. Ele ajeitou o travesseiro, esticou a mão por baixo e

imediatamente sentiu uma coisa que não deveria estar lá. O Atlas, um quadrado de papelão e um pequeno objeto redondo que Suzy tinha dado a ele a pedido de Tom.

— Vou ver se durmo um pouco — disse para a mãe com um bocejo. — Pode ir para casa.

— Eu poderia esperar o monstro adormecido acordar — falou Emily. — Mas tenho uns papéis para examinar. Você, descanse.

Artur observou a mãe voltar para a poltrona e pegar os papéis com jeito ágil. Seu rosto refletiu o verde-claro da capa da pasta. Artur aproveitou para tocar o que havia embaixo do travesseiro.

Mas deixou ficar no mesmo lugar. Ele sabia, mesmo sem olhar, que aqueles objetos o

afastariam da vida normal que tanto queria levar. Já eram 5 horas de quarta-feira, e Artur estava convencido de que os Dias Seguintes não o deixariam em paz. Aquela tinha sido uma esperança vã, à qual não mais se apegaria. Se havia sobrevivido ao Fosso e superado o Horrível Terça-Feira, seria capaz de enfrentar qualquer desafio. Talvez não tivesse sucesso, mas não seria por deixar de tentar.

Artur meteu a mão embaixo do travesseiro e pegou os três objetos. O Atlas foi o primeiro. Como parecia o

mesmo de sempre, ele o devolveu ao lugar de origem. Em seguida, veio um pequeno disco, que ele observou disfarçadamente, aproveitando a luz do botão usado para chamar a enfermagem. Era de osso, provavelmente de baleia. De um lado, havia estrelinhas entalhadas; do outro havia um navio viking de velas enfunadas e remos à mostra entre várias proteções. O disco tinha um furinho para que pudesse ser pendurado em uma tira de couro. Artur olhou, olhou e deixou de lado.

O terceiro objeto era, confirmando a primeira impressão de Artur, um quadrado de papelão. Branco com bordas douradas, escrito em caligrafia elegante que ocupava várias linhas.

Dizia assim:

SENHORA QUARTA-FEIRA Curadora da Arquiteta e Duquesa do Mar Fronteiriço

Tem o grande prazer de convidar Artur Penhaligon

para um Almoço Particular de 17 pratos.

Digitalização/Revisão: YunaYunaYunaYuna

E no primeiro dia, havia mistério. No segundo dia, houve a escuridão.