Antônio Xerxenesky - COME ON DIE YOUNG
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Alguns discos no necessitam de palavra alguma para defini-los. Imagine
ento algum se atrever a no s defini-los, mas tambm criar um enredosobre a magia que os discos possuem. Essa a proposta da MOJO Books,
que acredita que bons discos, boa msica, podem render mais do que
aqueles doces acordes que penetram na mente; podem se transformar
num trabalho literrio que brinque com todos os segredos escondidos nas
escalas e nas letras.
Mojo working. Escritores oriundos dos mais diferentes lugares, com influn-
cias e estilos nicos, aceitaram esta rdua tarefa: escolher um disco e
vert-lo para a mais pura literatura contempornea.
Danilo Corci
organizador
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COME ON DIE YOUNGmogwai
recontado or
ANTNIO XERXENESKY
VOLUME 0
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ANTNIOXERXENESKY
COME ON DIE YOUNGmogwai
edioDanilo Corci e Ricardo Giassetti
direo de arte e caaDelfin
revisoCamila Kintzel
Julo de 007
VOLUME 0
MOJO BOOKS a diviso literria da revista Speculum
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Para Caque (1995-2006)Todos os ces morrem jovens demais.
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pARTE
NEGAO
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Brisa suave e curta na rua. nica numa noite sem vento e su-
arenta. De um lado da rua havia uma pequena banca de revistas.
Os jornais marcavam 16 de junho de 2021. Do outro lado havia
um imenso complexo iluminado. Era conhecido pelos habitantesde Porto Alegre como o Hospital.
No Hospital havia vrias salas de espera. Em uma delas, Davi.
Ele se sentia mais calmo agora, sem unha alguma pra roer. Recos-
tado na cadeira, tudo que assimilava eram as vozes entrando esaindo dos alto-falantes. Assimilava os sons de forma incompleta,
incapaz de discernir que informaes carregavam.
O mesmo se passou quando o mdico de avental verde foi at
ele. Seus lbios moveram-se. Sua voz foi ouvida. Mas Davi no
entendeu. At que o doutor o sacudiu, repetindo, voc entendeu,homem?. Ele assentiu, mesmo que fosse mentira.
O seu ilho nasceu morto. Sua esposa vai icar de repouso
por alguns dias.
Morto? perguntou. Meu ilho? Os olhos de Davi
piscavam.
UM
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Davi no se lembra de sair da sala. Nem de pegar o eleva-
dor.
Na rua veio a sensao de que uma bola de vermes estavaentalada em sua garganta. Vomitou com tanta fora na calada
que sua boca icou ardendo. Um homem de sobretudo, parado
sombra da banca de revista, o chamou. Ele disse que tinha uma
oferta irrecusvel. Mas Davi recusou. O Hospital respirava fundo
atrs dele. O rudo do Hospital desapareceu quando Davi fechoua porta de seu carro.
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No existia alvio melhor que o de dirigir sozinho na noite.
Em seu carro, a temperatura fugia do calor esttico da rua. O ar-
condicionado cumpria sua mais nobre funo; punha o crebro
de Davi num estado de refrigerao que impedia pensar sobrequalquer coisa recente. Andar na rua seria insuportvel. Porto
Alegre era como um tero doente, capaz de conferir calor, mas
no conforto. Nunca conforto. O ar frio em seu carro lhe dava a
alegria de ter sado do tero para um local fresco e agradvel, asensao de sobreviver, em oposio ...
Mas ele no podia pensar nisso. Entrara no automvel pra
no pensar nisso, pra escapar das metforas que a temperatura
alta trazia. Lembrou-se do encontro que tivera com o homem em
frente ao Hospital. O homem, cujo rosto mal enxergava, abrirao sobretudo pra mostrar uma vasta gama de caixinhas com
o desenho ampliado de um microchip e o logotipo da Nanotech.
Quer algo? ele perguntou.
No, valeu.
Dia ruim?
DOIS
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No faz idia.
Eu tenho o perfeito pra ti. Uma proposta que no d pra
recusar.Davi j ia se virando de costas, o dedo mdio erguido, o sinal
internacional de vai se foder.
Saca s esse implante. Depois de eniar na cabea, quando
atinge... voc no sente mais nada.
E se eu quiser sentir algo? Por isso que ele especial, guri. Voc no sente nada. E
nem deseja sentir nada.
Davi levantou o dedo mdio outra vez.
* * *
Observar Porto Alegre atravs de um vidro blindado. Ele
estava separado daquela cidade que lhe causava repulsa. Um
lugar devastado pela inrcia; a cidade e seus habitantes eramespecialistas em resistir a avanos.
E ainda assim... continuava morando l. Lcia vivia l. Mas
esse no era o motivo. Possivelmente Davi desenvolvera uma afei-
o ao mau humor que a cidade nele provocava. Talvez. Talvez.
Para onde conduzia? Ir direto pra casa parecia a pior idia.
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Sozinho no apartamento seria devorado vivo pelos pensamen-
tos e recordaes de um futuro que nunca existir. Que lugares
permaneciam abertos s onze e meia? Shoppings centers e super-mercados. O ptio de bares e danceterias abriria logo a seguir.
Seu nimo no estava pra nenhum desses locais. No. Talvez o
melhor fosse gastar um pouco de tempo nas ruas mesmo. Es-
tavam desertas. Ningum gosta de icar sozinho. Os habitantes
preferiam a aglomerao e o ar-condicionado central dos grandesestabelecimentos. Davi agora acreditava que seu carro era o local
perfeito. O movimento sempre exerceu um poder inebriante. As
luzes danavam e, se fechasse os olhos por um ou dois segundos,
elas deixavam rastros rosados em sua retina. Os prdios e partede suas janelas iluminadas pareciam formar cdigos. Os postes
enileirados faziam com que cada objeto lanasse mais de uma
sombra, cada uma para um lado. O silncio do rdio apagado,
sem as msicas melanclicas que geralmente tocam a esta hora,
e que desenterram memrias antigas.Davi, nesse momento, era completo. Seu carro no andava,
deslizava. Mas algo abaixo de tudo isso, ainda incompreensvel
e discreto naquele instante, era sentido. Um prenncio da fragi-
lidade de seu microscpico esconderijo.
O velocmetro dizia oitenta e cinco. Davi se sentia embalado
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num bero. A Avenida Independncia nunca parecera to bela.
No havia chovido, mas o piso reletia com exatido as luzes ver-
melhas das sinaleiras fechadas que Davi insistia em desobedecer.Seu desrespeito com a norma vinha de uma frase de amarga
ironia que lutuava em sua mente, Vamos l, morra jovem. No
imaginava onde lera tal frase, mas ela encontrou um cantinho
macio para dormir na mente de Davi.
Seu ilho morreu jovem, muito jovem. J a frase exibia si-nais de vida, pequenos espasmos, enquanto o carro voava nas
descidas.
Vamos l.
Morra jovem.Por que no?
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Um grande cruzamento surgiu sua frente. Foi obrigado
a parar. Num pequeno boteco ao lado, a reprise de um jogo de
futebol era transmitida na televiso, que ocupava metade de
uma parede. Era raro encontrar um estabelecimento pequenoaberto. Quase como se os donos dos bares fossem um grupo de
subversivos que se recusavam a fazer parte de um grupo maior.
Intrigado, estacionou.
Os freqentadores do lugar estavam absortos pelo jogo, em-bora fosse uma reprise. No desgrudavam os olhos da televiso
por nada, exceto quando seus copos de cerveja esvaziavam. Sem
virar a cabea, sinalizavam o pedido de mais uma garrafa para
o barman. Sequer era possvel dizer que estavam vivos, no resto
do tempo.Davi reconheceu pela imagem que o jogo era antigo. Ao escu-
tar o nome dos jogadores, percebeu que era da Copa do Mundo
de 94. Logo que sentou, os torcedores zumbis gritaram gol! e
levantaram-se para celebrar. Era o segundo contra a Holanda.
Bebeto, Romrio e um outro jogador ensaiaram uma comemo-
TRS
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rao onde ingiam balanar um beb, em homenagem ao ilho
do atacante que acabara de nascer.
O baque quase derrubou Davi da cadeira. No meio da alegriados zumbis, resmungou, j de p, em um pequeno grito abafado,
Porra, em 1994 os ilhos nasciam sem problemas. Hoje em dia,
que as chances de tudo dar certo so de... e parou, pois no
apenas sua voz afogara-se no barulho da tev, como tampouco
tinha platia.Retornou ao carro.
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Davi, decidido, fez uma curva esquerda. Afastaria-se das
ruas mais conhecidas, que passava no cotidiano. E assim pene-
trou no Tnel da Conceio em alta velocidade, e abriu o vidro pra
deixar entrar o vento criado pelo seu prprio carro. s vsperasdo inverno, Porto Alegre permanecia no mesmo calor, mas isso
no o incomodava. O som do ar entrando era ampliicado pelo
formato do tnel e as luzes o transformavam numa grande clarei-
ra. Sua mente foi to esvaziada no trajeto que, ao chegar ao inal,quase deu r e percorreu de trs pra diante o tnel.
Mas logo na sada seu corao deu um salto, com um veculo
atravessando o cruzamento de faris apagados. Por milmetros
no colidiram.
Maluco! exclamou. Isso no vai icar assim, Edisparou em perseguio ao carro que estava com os olhos fe-
chados.
Davi deixou de ser Davi; tornou-se ningum menos que Steve
McQueen em Bullit. Alcanou o outro veculo, icou ao seu lado,
manteve a mesma velocidade, e sinalizou ao motorista para que
QUATRO
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ele abaixasse os vidros. O motorista olhou bravo e ainda assim
temeroso, como se Davi fosse um assaltante. Talvez a situao
fosse terminar em uma briga espetacular, com direito a sangueno asfalto e tudo. Davi era Gene Hackman em Operao Frana,
Clint Eastwood em Dirty Harry.
O motorista perguntou o que foi que houve com um arqueio
de sobrancelhas. Ambos os carros diminuram. Davi gritou:
Os faris! Desligados! Voc podia ter me matado!O motorista fez cara de sonso, deu um tapinha na prpria
testa, ligou os faris, e disse:
Desculpa, amigo. Costuma ligar sozinho, sei l o que rolou.
E seguiu adiante. Para a decepo de Davi, que no foi capaznem de gerar um conlito.
Com a partida do automvel, a rua icara outra vez tranqila e
tranqila. Davi era James Stewart emA Felicidade No se Compra,
pouco antes da chegada do anjo. A diferena que o cu de Porto
Alegre no prometia a queda de nenhum ser celestial.
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Non nunca saiu de moda. O pra-brisas reletia todos os
logotipos de bares e bordis. Davi chegara a uma parte no muito
segura da cidade. Toda e qualquer espcie de criminoso vagava
por ali, dos que trajavam ternos pretos com camisas de coresberrantes at os mendigos em crise de abstinncia. Seguranas
gigantescos guardavam as entradas das casas de striptease, de
onde emanavam luzes roxas e verdes, e s vezes a pulsante luz
estroboscpica.
A adrenalina lua pelo sangue. A ateno de Davi era exigi-
da: devia monitorar qualquer movimento estranho atravs dos
retrovisores, e ainda manter a ateno a tudo que ocorria a sua
frente. Seus ombros estavam tensos.
Como conduzia com parcimnia, nem notou o fato de queparava sem necessidade nos semforos. Nessa distrao, ob-
servou um grupo de jovens mal vestidos e com intenes que
no podiam ser boas se aproximarem de seu carro. Deixou que
chegassem mais perto. Seu p brincava no acelerador, o motor
rugindo baixinho. As formas ganharam nitidez.
CINCO
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Eram trs garotos. Pareciam se divertir. Bebiam cerveja direto
da garrafa e riam uma risada mansa, sem malcia.
Davi pisou fundo no acelerador, de toda forma. Para ao menosingir que havia algum risco.
Os nons dos bares cintilavam. Ser que algum dia sairo de
moda? Davi no sabia se desejava isso com tanta fora assim.
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O movimento na rua comeou a diminuir. Davi alcanou
uma parte mais tranqila, uma zona de prostituio sem grande
agitao, onde as moas se contentavam em icar paradas, na
maioria dos casos porque no eram acrobticas o bastante paradanar ao redor de um poste de strip. Os produtos rejeitados:
doentes ou com prazo de validade vencido, embora aparentas-
sem sade e juventude. Davi ativou com um toque seu implante
cerebral de viso no escuro para analisar melhor o que a vitrine
da rua oferecia.
Os peitos das meninas seminuas, em sua grande maioria,
tinham formatos idnticos. Mudavam apenas de tamanho. Eram
como esferas perfeitas, de volume 4 r/3, considerando at a
quarta casa aps a vrgula do pi. No muito diferentes dos queLcia comprara anos antes.
Cada mulher pertencia a um fentipo conhecido: a de pele
clara e cabelo moreno, a loira com tons asiticos, e assim por
diante. No era permitida a repetio na rua e havia todas as
combinaes possveis para qualquer gosto.
SEIS
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Viu uma delas sentada. Freou o carro. O que eu t fazendo?
No se relacionava com uma prostituta desde sua primeira expe-
rincia sexual aos dezesseis, e isso fora onze anos atrs. Abriu ovidro blindado e apontou na direo da garota. Ela respondeu:
Ei, eu no posso. Eu sou substituta dela. Quando a de pele
meio-morena e cabelo escuro sair, da eu entro.
Davi no quis envergonhar-se numa discusso. Insistiu com
delicadeza. Fez um sinal com a mo e encarou-a com olhos deco pedinte. Ela olhou para os dois lados. Entrou discretamente
no carro.
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O corpo de Davi sofria espasmos de nervosismo ocasionais,
regrados por um intervalo de tempo de alguns segundos. Eram
fortes, como pequenos choques na regio do estmago. A moa,
ajeitando a minissaia preta, perguntou com uma mo na coxade Davi:
Ento, o que a gente vai fazer...?
Ah, eu no pensei ainda direito... O que voc me sugere?
O trao de olho escuro estava borrado em alguns trechos.
Isso depende de quanto voc quer gastar...
Observou a garota. Seu corpo deve ter custado uma fortuna
pra construir. Essa era a nfase do Hospital: modelar corpos e
controlar o envelhecimento. Auxiliar partos no constava como
prioridade.O importante no era nascer. O importante era no morrer.
No cu escuro, oito pontos de luz branca moviam-se, coor-
denados. Um avio.
Eu s no queria passar a noite sozinho.
Eu imagino...
SETE
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Davi contava a verdade. Sem conlitos pra distra-lo, logo se
renderia aos pensamentos que no deveriam ser pensados... E
a companhia feminina tinha esse poder: evitava que Davi convi-vesse com sua conscincia, sempre queria agradar as mulheres.
Preocupava-se com os prprios gestos, cheiro, hlito, sorriso.
Pequenos detalhes que furtavam sua ateno, mesmo no se
sentindo muito atrado pela moa.
O avio no era mais visvel. Ele falou: Eu tenho uma idia. Vamos pro aeroporto.
Quando eu pensei que j tinha visto de tudo na vida...
Davi riu. E acelerou.
Sonhara uma vez com o novo aeroporto, antes de o constru-
rem. Radiante e transparente, como um retngulo de cristal.
Quando o visitou pela primeira vez, a surpresa. Era parecido
demais com seu sonho. At a luz reletida aparentava ter o mesmo
ngulo e a mesma tonalidade de cor. Davi lutou pra no analisar a
histria como se fosse um sinal, uma profecia. Tal tipo de delrios poderia representar um profundo egocentrismo. E ele nunca
lidou bem com o fato de que era, talvez, como todos os outros
humanos, imerso em si.
Encontrou um gramado de verde artiicial pra parar o carro.
Estava separado por uma gradezinha da pista de decolagem. E,
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distncia, um monstruoso Boeing, gordo e comprido, iniciava o
processo. As turbinas ruidosas de volume ascendente. O olhar da
garota ao seu lado. Ela estava achando a situao inusitada, atromntica. Ela abriu o fecho da cala de Davi, sem ele perceber.
Sua mo deslizou para dentro dos jeans. Ele no a impediu. Ela
sorriu dentes imperfeitos, que excitaram Davi. Os choques de
nervosismo voltaram, com maior intensidade. Como as turbinas.
Davi cogitou parar a menina. Ele se sujaria todo em instantes.Davi, pronto para a decolagem. Os freios j haviam sido soltados.
Agora faltava um mergulho no ar. Desbravar a noite inspita e
furar as nuvens arroxeadas do cu.
Um calor lhe subiu. A turbulncia. O smen esguichou, inun-
dando a cueca. Quase um minuto de alvio e at prazer, cedido
pela habilidosa mo da garota. Mas Davi conhecia muito bem o
seu corpo. E s ali percebeu o erro cometido. O im da tenso
sexual trazia o incio da lucidez. Da claridade e da sobriedade.
No havia mais escapatria. A presena da garota se tornouincmoda. Precisava expuls-la do carro, mas no podia simples-
mente abandon-la ali, longe da cidade. Davi esbugalhou os olhos
e perguntou, com desespero oculto no tom de voz, onde poderia
deixar a menina. Por sorte, ela disse que tinha um ponto de txi
logo adiante. Bastava que ele pagasse um extra. Foi o que fez.
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Agora, sozinho de novo, o smen secando contra a pele, gru-
dando nos plos. O mesmo smen que gerou um ilho. Um ilho
que nasceu morto. Talvez tenha sido culpa sua. Smen podre.Estragado. Cromossomos contaminados, autodestrutivos. Sua
essncia.
No havia mais escapatria. No porta-luvas buscou um
calmante que engoliu a seco. A cidade tornou-se mais leve em
pouco tempo. Mas a tranqilidade era temporria. Uma idia lhesurgiu. Tinha um local de destino. E entrou na avenida que cedo
ou tarde o deixaria l.
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RECUSA
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Ligou o rdio do carro. Escutaria qualquer coisa. Uma emis-
sora AM, com direito a uma voz mecnica e monocrdia. Notcias
sem importncia. Pssima idia. No queria ouvir rdio. Nem
nada. A mente de Davi vibrava. Aquele comprimidinho malditono fez efeito porra nenhuma!, gritava consigo. E desligou o
aparelho.
Por que tomou aquela avenida? Agora se questionava. A rua
de quatro faixas de cada lado. O maior ndice de atropelamentos.
Toda noite a mesma coisa. Os ces. S seriam recolhidos pela
manh. Deu-se conta do erro quando suas rodas passaram por
cima das tripas de um vira-lata.
E eles se amontoavam. Juntavam-se pra morrer em cantos.
Alguns ces preferiam os escuros. Outros gostavam de morrerembaixo dos postes de luz. Os faris de Davi iluminaram uma
famlia que saa do carro e abandonava um poodle. Davi desviou
de um Chow-Chow peludo e manco e de um Sharpei moribundo.
Deveria haver sinais na entrada da rua. Algo como AVISO: Todos
os habitantes de Porto Alegre escolheram abandonar seus ces
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aqui. Davi redigiria uma carta prefeitura, na qual mencionaria
at o gato de crebro espatifado.
Seno... Qual seria o prximo passo? Em vinte anos estariam
abandonando os ilhos pequenos ali. Os fetos abortados seriam
arremessados na via. E os pneus rasgariam os cordes umbilicais
ensangentados. A imagem era vvida demais na mente de Davi.
Soava muito possvel. Isto sim era uma profecia.
E, na distrao, seu carro passou por cima de outro cadver.Um solavanco desagradvel. O consolo que logo chegaria ao
seu destino.
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Brilhava, alta e imponente, a torre do Hospital. Davi parou o
carro um pouco antes e caminhou at a banca de revistas. No
tardou a achar o homem de sobretudo. Perguntou sobre a oferta
irrecusvel. Mudou de idia, hein, meu bruxo?
O homem sacou um implante metlico no pulso, uma fenda
prateada por onde se passavam cartes de crditos. Davi pagou
e recebeu a caixinha da Nanotech.
Quer que eu enie o troo na tua cabea? H?
No, valeu. Eu tenho o equipamento l em casa.
E voltou ao carro. Disparou pela cidade, mais veloz que nun-
ca, diminuindo o mnimo nas curvas. Sentiu os pneus icarem
incandescentes. Se sua casa no fosse to prxima, as chancesde ocorrer um acidente seriam grandes.
Tomou o elevador panormico at seu apartamento. Perma-
neceu com os olhos fechados at ouvir o rudo de abertura da
porta do elevador. No conseguia mais enxergar Porto Alegre.
Com afobao, entrou no seu apartamento e trancou a porta.
NOVE
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Revirou a gaveta atrs do implantador de chips. Seu corao in-
quieto logo se acalmaria. No sentiria mais nada e nem desejaria
sentir algo.
O instrumento parecia uma furadeira. Calculou o local exato,
apontou o implantador contra a lateral da cabea e disparou, sem
muito pensar. A dor foi aguda e penetrante. Um zumbido da mais
alta freqncia ocupou sua mente. Isso que dava comprar chips
na rua. Sacudiu a cabea repetidas vezes, movendo-se sem coor-denao pelo apartamento. O rudo lembrava pequenos vermes
rasgando seu crnio e adentrando seu apetitoso crebro.
E ento, calma.
O som diminuiu aos poucos, em fade out.
Ei. Eu acho que est funcionando.
Caiu sentado no banco. Olhou o apartamento. Uma baguna.
Roupas pelo cho. Mofo na parede. Luz do banheiro acesa. O
local no combinava com sua recm adquirida paz de esprito.
Levantou-se da cadeira e comeou a ajeitar, de pouco em pouco,pequenas coisas. Separou a roupa suja. Tirou o p da tev. A
porta que no deve ser aberta no foi. Ousou tocar a maaneta.
Era melhor no arriscar. E se o efeito do implante ainda no fosse
completo? Seus dedos acariciaram a maaneta. A porta tinha um
enfeite de elefantinho azul pendurado em um prego.
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Correu para a cozinha, bebeu ch gelado com trs cubos
de gelo. E na hora de fechar a geladeira, viu a agenda, com a
data marcada em caneta vermelha: NASCIMENTO.
O copo quase escorregou da mo de Davi. O zumbido
agudo reapareceu. Na gaveta de remdios, derrubou todas as
caixinhas, atrs de analgsicos. Enfiou duas plulas brancas
na garganta e bebeu ch. O som difundiu-se pelos cantos de
sua cabea. Mais duas plulas. Deitou-se no cho, mos nastmporas. Doa tanto. Os vermes famintos chegaram, enfim, ao
prato principal. E deliciavam-se com aqueles miolos. O ban-
quete da massa cinzenta. Davi conseguiu se levantar e enfiou
a cabea sob a torneira. Ligou a gua gelada no mximo. O
rudo terminaria, talvez, se seu crebro no superaquecesse.
A sensao de explodir, decorando toda a cozinha em tons de
branco e vermelho.
Agulhas fuxicavam sua mente como os instrumentos
metlicos do Hospital que mergulham na vagina da mulherpara arrancar de l um recm-nascido. Ou no. A mquina
sempre pode puxar um feto sem vida. E o microfone, pronto
para gravar o primeiro choro, no registrar som algum.
E o rudo esmagador parou.
Lgrimas escorriam pelo rosto de Davi e eram lavadas em
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seguida pela gua da torneira. Davi deitou-se no cho, desta
vez de barriga para cima. Ficaria assim por alguns minutos.
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Talvez Davi tenha cochilado um tempo. Recobrou a consci-
ncia, sentindo-se anestesiado. Embora no fosse um implante
de primeira, parecia eicaz o bastante. Davi sequer icou feliz
com sua anestesia mental. Tambm no icou triste. Ou qualqueroutra coisa.
Deixara o apartamento todo escuro? No se lembrava. Acen-
deu uma luz e abriu a janela pra rua, dando boas-vindas ao ar
poludo da cidade. Sopros de vento circulavam pelas pequenas
fendas entre um prdio e outro. Os moradores do quadragsimo
andar recebiam um vento feroz, que se debatia pelas torres at
encontrar um lugar tranqilo para invadir. Os quadros na parede
sacudiram.
O enfeite de elefantinho balanou. Era de pelcia, e noprovocou som algum no seu choque contra a porta. Uma rajada
de vento de maior intensidade passou, e Davi pde escutar um
rangido que s podia signiicar uma coisa: a porta que no de-
veria ser aberta tinha cedido.
Papis e papis voavam para dentro do quarto, como setas
DEZ
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indicando o caminho. Davi os seguiu, conformado. Parou na
porta. O local, todo escuro, ainda era tolervel. No daria um
passo a mais para que a luz no acendesse. Mas seus olhos o
trairiam cedo ou tarde, velozes na adaptao pouca claridade.
J podia delinear o bero vazio, os brinquedos pendurados no
teto danando com o vento...
E luz.
As paredes de um azul alegre em demasia. O dinossauro depelcia, semelhante ao que Davi tivera quando criana. O gato
mecnico percebeu a entrada de um estranho e caminhou em di-
reo a Davi, saudando-o com um Mi-aaaaau!. O quarto parecia
explodir de tanta vida. S faltava uma coisa: tudo.
Davi saiu e fechou a porta, orgulhoso de si por no derramar
uma lgrima. Sua viso sequer icou borrada com gua. A dor
de cabea passou quase por inteiro, embora os resqucios do
zumbido estivessem adormecidos em um canto.
Inspirou.E expirou.
Batimentos cardacos sob controle. Respirao regular.
Presso doze por oito.
Escorregou suas costas na porta, at sentar-se no cho.
Logo atrs de sua cabea, o som das garras mais aiadas. Ata-
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cando a porta. O gato mecnico, ensandecido, cavava a madeira
e guinchava um rudo eletrnico agudo.
Davi pegou a chave do carro e correu pra fora de casa. Tran-
cou a fechadura com duas voltas. O gato parecia decidido a no
parar. Nunca.
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Surgiu a suspeita de que o ataque de gato no passara de uma
alucinao. Talvez o implante tivesse colocado a realidade num
liquidiicador. Davi, entretanto, no estava alarmado. Logo que
saiu de casa, tranqilizou-se. Agora dirigia outra vez calmo pelacidade. Alucinaes podiam aparecer; ele estava preparado pra
elas. Veria o irreal como o mais cotidiano dos eventos.
O destino foi decidido: o aeroporto. Com a sua nova frieza,
nada o impediria de partir, abandonar a maldita cidade de
Porto Alegre. Sair de l era mais do que apenas fugir do local
geogrico onde habitavam as mentes retrgradas. Porto Alegre
representava o passado. O futuro tinha de estar em outro lugar;
em qualquer outro lugar. Deixaria para trs o que restou de sua
famlia, e esqueceria tudo que nunca se tornou sua famlia...O plano era bvio e ainda assim brilhante. Chegaria mqui-
na de passagens, onde passaria o carto de crdito e escolheria
o vo pro lugar mais distante possvel. A nica regra que o
avio precisava decolar em no mximo uma hora. Passando de
tal limite, Davi corria o risco de mudar de idia.
ONZE
b d d d
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Lembrou-se do erro cometido da outra vez e tomou a rua
paralela avenida onde abandonavam os ces. Chovera um
pouco enquanto Davi estava em seu apartamento: o asfalto no
s reletia as luzes, como espelhava o mundo. Os semforos e
os postes despejavam cor e luz, que escorria como o mais puro
lquido no piso negro.
O carro deu um pequeno salto. A cabea de Davi bateu no
teto.Havia passado por cima de algo. A dvida se deveria sair
do carro pra averiguar o que era. Se avanasse um pouco com o
veculo poderia olhar atravs do retrovisor. Foi o que fez. E viu...
algo. Avermelhado.
Saiu do veculo e caminhou em direo coisa. Davi tapou a
boca com a mo, temendo vomitar seja l o que ainda havia no
seu estmago. O ch gelado com blis j alcanava a garganta.
Era um recm-nascido.
Ou um recm-morto.Ou um feto abortado aps nove meses.
Ou um bolo de carne ensangentado.
Ou seu ilho.
Sim.
Aquela massa gosmenta era a cara de Davi.
V lt A d f
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Voltou s pressas ao carro. A arrancada fez com que os pneus
guinchassem. A rua, deserta, apresentava sinais do inferno
frente. Uma pequena barreira, Davi pensou. E aproximou-se,
cada vez mais rpido.
Os fetos causavam sons engraados quando ricocheteavam
contra o pra-choque do carro. E assim Davi atravessou o mar de
ilhos mortos e abandonados. A sensao que havia ocorrido
um temporal onde um Deus irado fez chover todos aqueles quenasceram mortos, que ento apodreciam sob o asfalto. Filhos do
encontro das claras nuvens de smen com as escuras nuvens de
vulos. Os cordes umbilicais enrolavam-se nas rodas, segurando
os pneus. Mas Davi s acelerava. Tudo seria deixado pra trs.
Um avio passou rasante no cu. As luzes hipnotizaram Davi.
O portal pra fora de Porto Alegre... indo embora. Quando voltou
a olhar para frente, o pra-brisa estava coberto de sangue. Foi
neste momento que o carro chocou-se contra um poste.
A luz vermelha e azul da polcia. A vermelha e vermelha daambulncia.
Fica deitado, cara disse o enfermeiro.
Ele sorriu, para assegurar que tudo icaria bem.
Davi nem pensava em mover-se. A rua parecia to vazia.
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O mdico anunciou que um pedao de metal quase havia per-
furado o crebro de Davi. A mquina faria um pequeno corte na
cabea e removeria o pedao sem maiores diiculdades. Bastava
assinar um papel. J que vocs vo abrir minha cabea pra arrancar o
metal, tem uma outra coisinha que eu gostaria que vocs tiras-
sem. disse.
Davi olhou pro teto branco e impecvel. Estava na enfermaria,
mas podia muito bem estar no cu. A temperatura era perfeita.
Todos vestiam branco e falavam em tom meldico e sereno. Davi
fez sinal para que a enfermeira de loiro angelical se aproximasse.
Perguntou que andar era aquele. Recebeu um dcimo primeiro
de resposta.Davi suspirou. Perguntou o horrio. Cinco e meia. J vai
amanhecer.
Dois andares abaixo estava sua esposa, repousando. Prova-
velmente no tinha despertado desde a operao.
Ainda no sabia que seu ilho nascera morto.
DOZE
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FIM
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XERXENESKY
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sobre A bANDA
Fundada em 1995, em Glasgow, Esccia, o Mogwai uma das
bandas seminais do chamado post rock, caracterizado pelo uso da
msica intrumental sob melodias complexas. Stuart Braithwaite, Mar-
tin Bulloch, John Cummings e Barry Burns lanaram, em 1999, Come
on die young, lbum referncia para o trabalho do Mogwai. Repleto
de sonoridades mesmerizantes, o disco , talvez, o mais importantedo gnero, o que angariou para o grupo uma legio de fs.
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DIE YOUNG
CrDITos orIGINAIs
COME ON DIE YOUNG - MOGWAI
Design por Adam Piggot
Fotografia por Hugh Aitchison, Paul Savage,
Alan Dimmick e Mogwai
Lanado em 6 de abril de 1999Selo: Matador Records
Produzido porDave Fridmann
Para mais informaes sobre a banda, visite:
www.mogwai.co.uk
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XERXENESKY
Antnio Xerxenesky nasceu no fim de 1984 em Porto Alegre. umex-estudante de Fsica que atualmente cursa Letras na UFRGS. Seu
livro de contos intitulado Entre venceu o concurso Fumproarte em
2005, sendo publicado no ano seguinte pela editora Movimento..
sobre o AuTor
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PuNk roCk:CoDyHelPs boTH WAys
yeAr 2000 NoN-ComPlIANT CArDIAkAPPAWAlTz For AIDANmAy NoTHING buT HAPPINess ComeTHrouGH your DooroH! HoW THe DoGs sTACk uP
ex-CoWboyCHoCkyCHrIsTmAs sTePsPuNk roCk/PuFF DADDy/ANTICHrIsT
COME ON DIE YOUNGMOGWAI
PLAYLIST ORIGINAL DO LBUM
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