Análise das vicissitudes da organização do saber e dos ...

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| Revista Cadernos de Estudos e Pesquisa na Educação Básica , Recife, v.4, n.1, p.27-43,2018. CAp UFPE| Análise das vicissitudes da organização do saber e dos problemas de elaboração do currículo do Ensino Básico de Moçambique Analysis of the vicissitudes of school knowledge organization and the problems of Mozambican Basic Education curriculum design Júnior João Samuel dos Santos 1 . Resumo As vicissitudes a que se referem neste artigo são as rápidas mudanças que são operadas ao nível do currículo do Ensino Básico (EB) de Moçambique. No período pós-independência foram registradas três mudanças curriculares, das quais se destaca a de 2004 que culminou com a introdução do atual currículo do EB, onde o saber escolar foi organizado em ciclos de aprendizagem. O objetivo deste estudo é analisar a organização do saber e descrever os problemas de elaboração do currículo do EB de Moçambique. Em termos metodológicos, privilegiou-se a pesquisa bibliográfica e documental. Foi constatado que existem problemas curriculares que são criticados pelos professores até a sociedade civil. Das conclusões chegadas é que o currículo do EB não foi acompanhado pelas estratégias implementacionais eficazes, por isso muitos alunos terminam o ciclo completo sem saber ler, escrever e contar. Abstract The vicissitudes referred to this article are the rapid changes that are operated at the level of the Basic Education (BE) curriculum in Mozambique. In the post-independence period, three curricular changes were made, but the most notably was that of 2004, which introduced the recent BE curriculum, where the school knowledge was organized in learning cycles. The main objective of this study is to analyze the vicissitudes of school knowledge organization and to describe the problems found in the Mozambican BE curriculum design. The methodology used for this study was the bibliographical and documentary research. There was noted many problems of BE curriculum design, which are criticized from the teachers to civil society. From the conclusions reached for this study, the BE curriculum was not followed by effective implementation strategies, therefore many pupils conclude the whole cycle with the poor competences in read, write and count. Palavras-chaves: Vicissitudes. Saber. Currículo. Ensino Básico. Keywords: Vicissitudes. Knowledge. Curriculum. Basic Education. Introdução Este estudo visa analisar as vicissitudes da organização do saber e dos problemas de elaboração do currículo do EB de Moçambique. A sua pertinência para o campo educacional 1 Entre 2010 a 2013 foi docente da Universidade Pedagógica de Moçambique, Delegação de Nampula, Centro de Recursos de Angoche, onde leccionou o Curso de Licenciatura em Administração e Gestão Educacional e de Ensino de Língua Inglesa. Possui Mestrado em Desenvolvimento Curricular e Instrucional pela Universidade Eduardo Mondlane de Moçambique. Actualmente desempenha a função de Assistente de Administrador para área de Educação no Governo do Distrito de Angoche. E-mail: [email protected]

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Análise das vicissitudes da organização do saber e dos problemas de

elaboração do currículo do Ensino Básico de Moçambique

Analysis of the vicissitudes of school knowledge organization and the problems of Mozambican

Basic Education curriculum design

Júnior João Samuel dos Santos1.

Resumo

As vicissitudes a que se referem neste artigo são as rápidas mudanças que são operadas ao nível do currículo do

Ensino Básico (EB) de Moçambique. No período pós-independência foram registradas três mudanças

curriculares, das quais se destaca a de 2004 que culminou com a introdução do atual currículo do EB, onde o

saber escolar foi organizado em ciclos de aprendizagem. O objetivo deste estudo é analisar a organização do

saber e descrever os problemas de elaboração do currículo do EB de Moçambique. Em termos metodológicos,

privilegiou-se a pesquisa bibliográfica e documental. Foi constatado que existem problemas curriculares que são

criticados pelos professores até a sociedade civil. Das conclusões chegadas é que o currículo do EB não foi

acompanhado pelas estratégias implementacionais eficazes, por isso muitos alunos terminam o ciclo completo

sem saber ler, escrever e contar.

Abstract

The vicissitudes referred to this article are the rapid changes that are operated at the level of the Basic Education

(BE) curriculum in Mozambique. In the post-independence period, three curricular changes were made, but the

most notably was that of 2004, which introduced the recent BE curriculum, where the school knowledge was

organized in learning cycles. The main objective of this study is to analyze the vicissitudes of school knowledge

organization and to describe the problems found in the Mozambican BE curriculum design. The methodology

used for this study was the bibliographical and documentary research. There was noted many problems of BE

curriculum design, which are criticized from the teachers to civil society. From the conclusions reached for this

study, the BE curriculum was not followed by effective implementation strategies, therefore many pupils

conclude the whole cycle with the poor competences in read, write and count.

Palavras-chaves: Vicissitudes. Saber. Currículo. Ensino Básico.

Keywords: Vicissitudes. Knowledge. Curriculum. Basic Education.

Introdução

Este estudo visa analisar as vicissitudes da organização do saber e dos problemas de

elaboração do currículo do EB de Moçambique. A sua pertinência para o campo educacional

1Entre 2010 a 2013 foi docente da Universidade Pedagógica de Moçambique, Delegação de Nampula, Centro de

Recursos de Angoche, onde leccionou o Curso de Licenciatura em Administração e Gestão Educacional e de

Ensino de Língua Inglesa. Possui Mestrado em Desenvolvimento Curricular e Instrucional pela Universidade

Eduardo Mondlane de Moçambique. Actualmente desempenha a função de Assistente de Administrador para

área de Educação no Governo do Distrito de Angoche. E-mail: [email protected]

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justifica-se pelo fato de que no contexto atual moçambicano, várias são as críticas levantadas

contra o currículo do EB introduzido em 2004. Alega-se que este não reproduz, de forma

eficaz a aprendizagem dos alunos.

O problema central que norteou o presente estudo é de que os profissionais de

educação adotam uma atitude de passividade relativamente ao currículo do EB, acusando o

Ministério de Educação e Desenvolvimento Humano (MINEDH) de o distorcer. Os

professores não fazem o monitoramento efetivo dos alunos nas salas de aula. Os pais e

encarregados de educação reclamam, continuamente, pela fraca qualidade dos seus

educandos. O governo sente-se pressionado, mas pouco ou nada faz para sanar as censuras.

Porém, o currículo do EB se encontra conturbado, mostrando resultados insatisfatórios da

aprendizagem dos alunos.

O que se pretende com este estudo não é a formulação de ideias que possam trazer

uma solução definitiva da organização do saber escolar e dos problemas de elaboração do

currículo do EB. Procura-se analisar várias pesquisas feitas no contexto educacional

moçambicano para responder à seguinte questão: De que forma as vicissitudes da organização

do saber escolar influenciaram os problemas de elaboração do currículo do EB de

Moçambique?

Embora o objetivo central deste estudo vise analisar as vicissitudes da organização do

saber, identificar e descrever os problemas de elaboração do currículo do EB em

Moçambique, pretende, também, trazer um contributo científico para informar a comunidade

académica e ao MINEDH a pautarem por uma solução imediata dos problemas curriculares.

Assim, foram deduzidos os objetivos específicos, tais como: (i) descrever as mudanças

curriculares do período pós-independência; (ii) descrever a organização do saber no currículo

do EB; (iii) identificar as implicações das mudanças curriculares do currículo do EB e (iv)

analisar os problemas de elaboração do currículo do EB de Moçambique.

Em termos de metodologia para o presente estudo, foi usada a pesquisa bibliográfica e

documental. Gil (2008) considera que a pesquisa bibliográfica reside no fato de permitir ao

investigador a cobertura de uma informação muito ampla para melhor perceber as nuances

internas de um problema. Ao passo que a pesquisa documental recorre ao material que ainda

não recebeu tratamento analítico, sendo fontes indispensáveis na evidência científica.

Neste sentido, foram consultadas obras e artigos científicos que versam das

vicissitudes da organização do saber escolar e dos problemas de elaboração do currículo. Para

o efeito destacam-se: Ngoenha (2000), Pacheco (2005), Castiano (2006), Saviane (2006),

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Goodson (2008), Lobo & Nhêze (2008), Formosinho & Machado (2008), Castiano, Ngoenha

& Guro (2012), Duarte et al (2012), SACMEQ (2012), Varela (2012), Guibundana (2013),

Castiano, Ngoenha & Guro (2014), Januário (2015), Nhampoca (2015), Bonde (2016),

Nhantumbo, (2016), Zimbico (2016), Duarte (2018) e Dos Santos (2018).

Para o caso da análise documental, recorreu-se ao Plano Curricular do Ensino Básico

(2003), Relatório da Monitoria Global (2015) e Relatório de Avaliação do Plano Estratégico

de Educação e Cultura 2006-2010 (2011). Esses documentos foram selecionados porque

abordam às questões ligadas ao EB, concretamente à organização do saber escolar e os

problemas de elaboração do currículo.

Neste estudo, privilegiou-se à consulta de obras e artigos de autores moçambicanos

por serem os que abordam, de forma aprofundada, o objeto do estudo, numa perspetiva das

mudanças curriculares do EB. Embora haja muitas pesquisas sobre o currículo do EB, poucos

são os que discutem, pormenorizadamente, ao tema proposto, por isso esta abordagem

resultou da análise crítica da informação dos diversos autores para sustentar os argumentos

aqui apresentados.

O fulcro deste estudo é que as vicissitudes a que se referem neste artigo são as rápidas

mudanças que se observam ao nível curricular em Moçambique, sobretudo no período pós-

independência, as quais comprometem a organização do saber escolar e provocam problemas

de elaboração do currículo, na tentativa de inová-lo, cujas consequências drásticas é o fraco

desenvolvimento das competências dos alunos graduados do EB (NHANTUMBO, 2016).

Apesar do objetivo do governo em 1975, após a Independência Nacional, fosse de

nacionalizar a educação, hoje os problemas de elaboração do currículo são notáveis, por se

terem operado reformas que não coadunam com o contexto económico, social, tecnológico e

político do país. O currículo do EB continua estanque, instável e perturbado. A sociedade civil

desacredita as competências dos alunos graduados no EB.

A conclusão a que se chegou neste estudo é que a introdução do currículo do EB de

2004 não foi acompanhada pelas estratégias implementacionais efetivas. As autoridades

educacionais estão cientes do paradoxo das inovações curriculares2 que não se adequam ao

contexto moçambicano, porém pouco se faz para reverter o cenário. Os problemas de

2 Ciclos de Aprendizagem, Ensino Básico Integrado, Currículo Local, Distribuição de Professores, Progressão

por ciclos de aprendizagem, Introdução das Línguas Moçambicanas, Introdução da Língua Inglesa, Introdução

da Disciplina de Ofícios, Introdução da Educação Moral e Cívica, Introdução da Educação Musical

(INDE/MINED, 2003).

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elaboração do currículo refletem-se no fraco desenvolvimento de competências dos alunos no

final do EB.

1. Mudanças curriculares no período pós-independência

Vários países do mundo e da África operaram diversas mudanças curriculares, cujo

marco histórico foi a Conferência de Jomtien de 1990. Moçambique, na qualidade de

signatário das diretrizes definidas nesta conferência, comprometeu-se a cumprir as metas

definidas para a educação, bem como as do milénio, cuja mais importante se refere à

universalização do EB (CASTIANO, NGOENHA & GURO, 2012).

A filosofia por detrás da introdução do currículo do EB é a redução das reprovações

para evitar bloqueios cognitivos nos alunos. Contudo, uma nova estrutura curricular é

pensada, devido à elevada taxa de repetência escolar e do insucesso da escola em cumprir as

finalidades educativas, mostrando a sua inadequação à nova realidade de um país em

constante progresso (MOÇAMBIQUE, 2003; FORMOSINHO & MACHADO, 2008).

É desta feita que em Moçambique se desenha um projeto ambicioso e formalmente

bem estruturado que, por um lado, serve para ajustar a educação às rápidas mudanças

económicas, sociais, educativas e tecnológicas, por outro, as exigências dos compromissos

internacionais assumidos, o que culminou com a reforma curricular do EB de 2004.

Mudança Curricular de 1975

A dinâmica política do país, nos primeiros anos da independência, pautou por uma

educação ‘socialista moderna’ que rompia com as práticas e saberes locais por os caracterizar

como obscuros. O novo projeto ideológico educativo do país continuava a não dar um lugar

de destaque às práticas e saberes locais (MOÇAMBIQUE, 2011).

A partir de 1975, o governo de Moçambique nacionaliza o ensino num

momento em que não tinha meios para garantir o nível de escolarização

administrado no país até então. O governo não tinha recursos humanos nem

infraestruturas para assegurar uma educação a toda a massa de crianças que,

doravante, tinha acesso à escola. Em termos comparativos, a qualidade de ensino

que o governo poderia dar era certamente inferior ao ensino dispensado pelo sistema

colonial e pelos diferentes atores privados, como as igrejas protestantes e outros

(Ngoenha, 2000, p.77).

Duarte et al (2012) consideram que a primeira mudança curricular radical no contexto

educacional moçambicano teve lugar após a Independência Nacional. Foi nacionalizada a

educação, de onde resultou à alteração dos currículos da educação colonial. Esta é

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considerada a primeira reforma curricular. Em 1975 verificou-se à reformulação dos

programas da 1ª à 11ª classes e à alterações dos conteúdos de ensino outrora vigentes.

Em termos de organização do saber escolar, foram retiradas as disciplinas de História,

Geografia de Portugal, Religião e Moral. Em sua substituição foram colocadas História,

Geografia de Moçambique, da África e Educação Política. Foram, igualmente, introduzidos o

Estudo Político no seio dos professores e as Atividades Culturais, como forma de afirmação

da identidade moçambicana (GUIBUNDANA, 2013).

Entre 1983 a 1986, o currículo do EB sofreu uma deterioração substancial relacionada

ao ensino da língua portuguesa. O governo tinha a preocupação de que a metodologia de

ensino da língua portuguesa como língua segunda não promovia a aprendizagem das crianças,

porque no ambiente social a língua portuguesa não era usada. Até em 1986, a taxa média de

reprovação no EB chegou a atingir 40% (ZIMBICO, 2016).

Porém, outras vicissitudes de ordem educacional eram notáveis, tais como excessiva

centralização do sistema educativo, fraca capacidade de gestão e administração do sistema,

juntamente com a inadequada formação do corpo docente, que não favorecia o currículo do

EB que tinha sido introduzido. Isso abriu espaço para uma nova reforma curricular.

Mudança Curricular de 1983

A mais notável mudança curricular ocorreu em 1983. Foi considerada a segunda

reforma. O país introduziu o Sistema Nacional de Educação (SNE), através da Lei 4/83, de 23

de Março e abrangeu toda a estrutura educacional, desde a educação básica até a universidade

(DUARTE et al, 2012).

Porém, a capacidade limitada de uma efetiva liderança e controlo sobre o SNE, aliada

à pobre organização institucional das escolas, foram registradas como condições inoperantes

para o funcionamento eficaz do currículo do EB. O país não tinha capacidade de planificação,

liderança e gestão da escola (JANUÁRIO, 2015).

Nestes termos, a educação nacionalista respondeu aos imperativos políticos, mas não

às exigências sociais. O EB ficou desvalorizado, por vangloriar, excessivamente, os efeitos da

luta pela independência. A educação na sua vertente social não deu resultados imediatos e

esperados (NGOENHA, 2000).

No sentido de inverter o cenário de uma educação que não respondia aos desafios de

um país em constante progresso, cujo EB era considerado pelo INDE como rígido e

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prescritivo sem espaço para manobras, foi aprovada a Resolução nº 8/95 atinente à Política

Nacional de Educação (PNE) e posteriormente o surgimento do primeiro Plano Estratégico da

Educação 1999-2003 (PEE) em Moçambique (BONDE, 2016).

Mudança Curricular de 2004

Em 2004, uma nova reforma curricular do EB emergiu, num contexto que o país tinha

operado mudanças políticas significativas, dentre as quais a adopção do multipartidarismo, a

introdução da nova Constituição da República e a restruturação do Plano Económico, Social.

Enquanto que no panorama internacional assistiam-se novas exigências referentes a

necessidade de garantir a universalização do EB. É neste contexto que é desenhado, o “novo”

currículo do EB, reformulando o introduzido em 1983, pela lei nº 4/83, de 23 de Março e

revisto pela lei 6/92, de 6 de Maio que fortifica a ideia, segundo a qual, a melhoria do ensino

devia passar por forte participação da sociedade civil.

Tabela 1: Mudanças curriculares no período pós-independência

Currículo do período

de Transição (1974-1975)

Currículo no

período antes de

introdução do SNE

(1975-1983)

Currículo no

período do SNE (1983-

2003)

Currículo

no período atual

introduzido em

2004

Reestruturação dos

programas de ensino,

retirando tudo o que fosse

contrário à ideologia

dominante. O currículo tinha

que exaltar os feitos

nacionalistas da FRELIMO.

Reformulação dos

programas de ensino e

alteração dos conteúdos.

Foram retiradas as

disciplinas consideradas

colonialistas e introduzidas

as moçambicanas.

Mudanças

profundas nos currículos

do Ensino Primário e do

Ensino Secundário e

introdução das áreas de

Comunicação, Ciências

Naturais e Sociais,

Político-ideológica,

Estética-cultural e

Educação Física.

Reformula

ção das áreas

curriculares,

introdução de novas

disciplinas e

surgimento das

inovações

curriculares.

Fonte: Adaptado de Guibundana (2013).

Organização do saber no Currículo do Ensino Básico

Nos novos modelos de organização do saber escolar, a mudança precisa de recuperar o

equilíbrio entre as questões internas e as relações externas da escola. O papel da sociedade

civil contribui para a melhoria da qualidade educacional. Contudo, muitas mudanças

curriculares ignoram o papel dos pais e encarregados de educação na organização dos

conteúdos curriculares, o que torna a mudança simbólica que substantiva (GOODSON, 2008).

Para Saviani (2006), a organização do saber escolar no currículo deve refletir aos

princípios da multiculturalidade (isenção de traços culturais dominantes numa sociedade);

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transversalidade (os conteúdos são integrados nas áreas disciplinares para que sejam tratados

em todas as disciplinas que constituem o currículo escolar); e interdisciplinaridade

(compartimentalização dos saberes na realidade sobre a qual a escola se constituiu, por meio

das disciplinas).

Em termos de organização do saber escolar, o EB estruturou-se em torno de um

currículo nacional, fortemente centralizado, que se identifica pela existência de competências

essenciais, subdivididas em competências gerais e competências específicas das disciplinas,

cuja interdisciplinaridade é visível nelas.

O currículo do EB de Moçambique trouxe uma nova organização do saber

compartimentados em ciclos de aprendizagem. Compreende sete classes organizadas em dois

graus e três ciclos. O 1º grau compreende de 1ª a 5ª classes e o 2º grau de 6ª a 7ª classes. Os

ciclos são estruturados em: 1º (1ª e 2ª classes); 2º (3ª, 4ª e 5ª) e 3º (6ª e 7ª classes).

De acordo com Moçambique (2003, p. 10) os ciclos de aprendizagem apresentados no

currículo do EB são considerados como “unidades de aprendizagem com o objetivo de

desenvolver habilidades e competências específicas. ” Assim:

O 1º ciclo vai desenvolver habilidades e competências de leitura e escrita, contagem

de números e realização das operações básicas: somar, subtrair, multiplicar e dividir;

O 2º ciclo aprofunda os conhecimentos e as habilidades desenvolvidas no primeiro

ciclo e introduz novas aprendizagens relativas às Ciências Sociais e Naturais;

O 3º ciclo, correspondente ao 2º grau, serve para consolidar, ampliar os conhecimentos

e habilidades adquiridos nos ciclos anteriores. Vai preparar o aluno para a continuação

dos estudos ou para a vida.

Em termos de organização do saber escolar o currículo do EB apresenta, não só novas

disciplinas, mas também três áreas curriculares, como (i) Comunicação e Ciências Sociais; (ii)

Matemática e Ciências Naturais e (iii) Atividades Práticas e Tecnológicas.

Nestas áreas curriculares, os conteúdos das disciplinas integram várias áreas do saber

escolar que não permitem ao professor dominar, efetivamente, o processo de ensino e

aprendizagem. Para o caso das disciplinas de Ciências Naturais e Ciências Sociais exigem do

professor forte domínio de outras disciplinas, como se ilustra na tabela abaixo. Além disso, o

material escolar é exíguo.

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Tabela 2: Áreas curriculares e disciplinas do currículo do EB

Áreas Curriculares Disciplinas

Comunicação e Ciências Sociais

Língua Portuguesa

Línguas

Moçambicanas – L1

Português – L2

Língua Inglesa

Educação Musical

Ciências Sociais compreende as matérias de

(História, Geografia e Educação Moral e Cívica)

Educação Moral e Cívica

Matemática e Ciências Naturais

Matemática

Ciências Naturais visa abordar conteúdos

básicos das disciplinas de (Biologia, Física e

Química)

Ofícios

Atividades Práticas e Tecnológicas Educação Visual

Educação Física

Fonte: Adaptado de Moçambique, 2003.

Nesta perspectiva, as mudanças curriculares além de trazerem avanços para o EB,

aniquilaram a base sólida da organização do saber escolar. Foram introduzidas várias

inovações, incapazes de garantir à aprendizagem dos alunos, tanto pela quantidade quanto

pela qualidade. A reformulação de saberes escolares que passaram de uma pedagogia de

objetivos para a pedagogia por competências no currículo do EB de Moçambique foi

apressada (ZIMBICO, 2016).

Implicações das mudanças curriculares na organização do saber

No currículo do EB de Moçambique, as mudanças que se operaram no período pós-

colonial foram consideradas cosméticas e pouco significativas na dotação dos moçambicanos

a um saber fazer prático. A exclusão dos aspectos culturais constitui, amiúde, uma negação da

adequação curricular ao saber local. Por exemplo, o ensino da música é baseado em

instrumentos ocidentais em detrimento da timbila3 com as suas diferentes gramas e notas

acústicas diversas, como material cultural local (CASTIANO, NGOENHA & GURO, 2012).

O principal elo do currículo à sociedade na organização do saber faz-se através da

cultura. É neste sentido que o conteúdo escolar tem sido uma das questões mais

marcantes da teorização curricular, estando aliás na origem de identificação de

elementos principais para o processo de elaboração curricular (Pacheco, 2005, p.

73).

3 Um instrumento de percussão, tipicamente moçambicano. É utilizado pela etnia chope. Produzir diversas notas

acústicas e musicais. Foi proclamado em 2005 obra-prima do património oral e imaterial da humanidade pela

UNESCO.

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Embora o MINEDH tenha introduzido o currículo local no EB como uma inovação

para garantir que os alunos e professores se apropriem dos conhecimentos locais, continua

indiferente na criação de condições para a aprendizagem. Muitos são os alunos que terminam

o ensino básico sem conhecerem as plantas locais e a realidade do material endógeno

(CASTIANO, NGOENHA & GURO, 2014).

A estrutura e os conteúdos programáticos foram, igualmente, resultado das

decisões políticas e técnicas tomadas pelo Ministério da Educação em resposta às

decisões das Organizações Internacionais da África Austral, das Nações Unidas,

mas, acima de tudo, em resposta à situação política, económica, cultural e social da

sociedade moçambicana. Por outro lado, visava responder às exigências impostas

pela globalização e, sobretudo, adequar o ensino ao combate à pobreza absoluta

(NHANTUMBO, 2016, p. 9).

Os atuais currículos do EB virados ao desenvolvimento de competências acabam

perdendo o valor de traduzir os conhecimentos, habilidades e atitudes para os alunos. A nova

forma de organização do saber em áreas curriculares e das novas disciplinas que não

encontram professores capacitados para o efeito, colocam em risco a inovação efetiva ao nível

da práxis educacional (VARELA, 2012).

Problemas de elaboração do currículo do Ensino Básico de Moçambique

No âmbito da elaboração de um currículo, há problemas que são patentes, tais como:

conflito entre as diferentes interpretações, os diversos graus de aceitação/rejeição das

propostas, choque com as tradições cristalizadas e as concepções formadas, os inevitáveis e

incontroláveis acordos tácitos que caracterizam o currículo (SAVIANI, 2006).

Dos estudos analisados, permitiram constatar que a reforma curricular do EB de 2004

é caracterizada por inovações ambiciosas guiadas por uma implementação surreal devido à

limitações no investimento à expansão das escolas primárias. Há, porém, falta de coerência

entre as mudanças do currículo real com outras componentes do sistema educativo (formação

de professores, sistema de avaliação na sala de aula e disponibilidade de material didático)

para garantir à eficácia escolar (ZIMBICO, 2016). Assim, do levantamento feito, os

problemas constatados atinentes à elaboração do currículo do EB de Moçambique passam a

ser, sintetizadamente, apresentados:

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a) Progressão por ciclos de aprendizagem

No contexto educacional moçambicano, um dos problemas de elaboração do currículo

que provoca uma tónica desagradável é a introdução da progressão por ciclos de

aprendizagem, como uma inovação principal no currículo do EB. Estudos recentes mostram

que os alunos terminam o ciclo completo do EB, sem desenvolver as competências mínimas

de leitura e escrita. A sociedade civil acusa à progressão por ciclos de aprendizagem de não

estar enquadrada no contexto educacional moçambicano (DUARTE et al, 2012;

NHANTUMBO, 2016).

A “grande política educativa” da progressão por ciclos de aprendizagem atiçou ainda

mais o debate sobre a qualidade de ensino em Moçambique, porque as crianças passaram a ser

deixadas avançar para a classe seguinte sem habilidades e competências na leitura, escrita e

cálculos, o que teria chamado atenção dos pais e encarregados de educação a nível nacional

(BONDE, 2016).

Os resultados do SACMEQ (2012) mostram que Moçambique apresenta uma

deterioração substancial da leitura e escrita no EB. Há uma tendência crescente de se

considerar que os alunos não desenvolvem competências básicas prescritas no currículo

nacional.

UNESCO (2015) corrobora com SACMEC (2012) ao considerar que o nível de

participação das crianças do EB ainda está estagnado em muitos países. Existem 250 milhões

de crianças, incapazes de ler, escrever e operar aspectos básicos da matemática, com destaque

para 23 países da África Subsaariana, em que Moçambique não é exceção.

b) Fraco domínio de língua portuguesa

O contexto multilíngue que Moçambique apresenta é um dilema para os alunos das

escolas rurais. Não tem sido comum o desenvolvimento de competências exigidas em cada

ciclo para os alunos porque muitos destes não entram em contato pela primeira vez com a

língua portuguesa no âmbito social, ficando reservada à escola.

O fraco domínio da língua oficial acaba por reproduzir desigualdades sociais em

Moçambique entre crianças das zonas rurais e urbanas. O que se nota é que o currículo do EB

procura responder as exigências da escolarização obrigatória. É apenas uma maquiagem dos

possíveis meios para trilhar o caminho em resposta aos desafios da universalização do EB

(ZIMBICO, 2016).

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Por isso, Pacheco (2005) considera que o modo de organização do saber acentua a

separação entre o rico e o pobre, rural e urbano, favorecido e desfavorecido. A escola acaba

leccionando um currículo da elite, vocacionado para grupos que dispõem de um capital

cultural mais elevado.

A questão da língua é um dos fatores que maior influência exerce no processo de

ensino e aprendizagem, sobretudo, nos primeiros anos de escolaridade, na medida em que a

maior parte dos alunos moçambicanos, que entra na escola pela primeira vez, fala uma língua

materna diferente da língua de ensino (Moçambique, 2003).

c) Ensino Básico Integrado

O que caracteriza o ensino básico integrado é o meio de desenvolver no aluno,

habilidades, conhecimentos e valores de forma articulada em todas as áreas de aprendizagem,

que compõem o currículo, conjugados com as atividades extracurriculares (Moçambique,

2003).

O ensino básico integrado exige flexibilidade curricular, porém se nota a

incompatibilidade com a rigidez e a fragmentação disciplinares expressas nos ciclos de

aprendizagem. As atividades extracurriculares não são acompanhadas pelos professores, visto

que a avaliação formativa ainda não está substanciada no EB.

Esta nova abordagem assume que a real integração deve ocorrer ao nível da

escola, através do trabalho do professor, diretor da escola e de outros parceiros, bem

como da organização e das atividades extracurriculares que completam a

aprendizagem promovida ao nível da sala da aula. A escola e o professor devem

fazer o uso de todas as possibilidades oferecidas pela escola e pelo ambiente

circunvizinho para a aprendizagem integral do aluno. Isto é que o princípio de

integração recomenda (JANUÁRIO, 2015, p. 138).

Para Moçambique (2011) o ensino básico integrado não encontra materialização na

elaboração dos manuais para alunos e professores. Não tem sido valorizada esta inovação no

plano de formação inicial de professores. Todas estas condicionantes contribuem de forma

decisiva para uma aprendizagem não integrada de conteúdos.

d) Currículo Local

O próprio conceito de currículo local nem sempre foi entendido e integrado na sua

essência, ficando restringido a atividades da disciplina de Ofícios ou a atividades

extracurriculares. Não se efetuou, ainda, a necessária capacitação de docentes e gestores,

acompanhada de adequados textos de apoio (MOÇAMBIQUE, 2011).

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Apesar de se ter reservado 20% do tempo letivo para o currículo local, pouco está a se

efetuar ao mesmo ritmo em todo o país, existindo distritos sem qualquer desenvolvimento da

medida e se verificando grande resistência nas escolas zonas urbanas em promover o

conhecimento local.

Infelizmente, em vez de estes saberes terem sido integrados num debate

argumentativo e terem sido submetidos à rigidez e exatidão da tradição científica,

eles continuam cobertos por um véu de certo misticismo. O véu do misticismo com

que se cobrem certos saberes tradicionais afeta profundamente o processo de

integração, disseminação e validação dos saberes locais para a sua projeção num

contexto mais universal da produção e circulação do conhecimento científico

(CASTIANO, 2006, p. 9).

Para responder aos desafios da atualidade, é importante adequar o currículo do EB ao

conhecimento local, cuja sua preservação e viabilidade passa por um exame para responder

aos problemas do mundo em permanente globalização. É necessário submetê-lo ao escrutínio

em função dos saberes científicos modernos.

e) Ensino Bilíngue

Moçambique é um mosaico cultural que coabitam várias línguas nacionais, por isso

deu-se especial atenção na elaboração do currículo do EB, à introdução do ensino bilíngue

que permite ao recurso das línguas nativas no processo de ensino e aprendizagem. Porém, tem

sido quase missão impossível para a concretização do ensino bilíngue na escola.

O ensino bilíngue não foi acompanhado pelo material de ensino. Pouco se faz para a

implementação efetiva. Mesmo assim, não encontra uma satisfação dos professores. O país

possui muitas línguas nacionais e fica caricato produzir material suficiente em línguas

diferentes (NHAMPOCA, 2015).

O ensino bilíngue ainda não é aplicado por falta de materiais e por

dificuldades associadas com a formação dos professores. Nem todos os pais

apreciam o ensino bilíngue, uma vez que acham que com este tipo de ensino os seus

filhos não dominarão, adequadamente, a língua portuguesa, o que lhes fará ficar para

trás num mundo moderno (LOBO & NHÊZE, 2008, p. 16).

A expansão desta oferta de ensino está limitada por questão da colocação de

professores oriundos de comunidades com línguas maternas diferentes das línguas faladas

pelas crianças (MOÇAMBIQUE, 2011).

Nestes termos, se verifica a incapacidade dos gestores de educação em acompanhar o

ensino bilíngue. Apresentam, frequentemente, a justificativa de que “os custos para a

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formação de professores e para a elaboração de manuais para o ensino bilíngue seriam

altíssimos para o cofre do Estado” (NHAMPOCA, 2015, p. 93).

f) Introdução de novas disciplinas

Persistem carências dos recursos de docência de Língua Inglesa, Educação Musical e

da Educação Moral e Cívica. Há necessidade de professores qualificados para leccionar estas

disciplinas. A introdução dessas disciplinas foram precipitadas por ausência de preparação de

professores para o efeito.

O país defronta-se com o problema de ter escolas de construção precária, alunos que

se sentam no chão da sala de aulas, por falta de carteiras, alunos que estudam ao ar

livre, por falta de salas de aulas, alunos sem o livro escolar, professores sem o

manual que os orienta, salas de aulas superlotadas, professores insuficientemente

preparados para as exigências do currículo, falta de divulgação da política na

comunidade escolar e na sociedade em geral, falta de aprendizagem dos alunos,

entre outros (DUARTE, 2018, p. 43).

Os programas do EB construídos não tomam em conta os princípios inovadores

enunciados na reforma curricular de 2004. O maior dilema desta inovação é o seu fraco

acompanhamento. De fato, os programas aparecem de forma dispersa, contrariando o conceito

de aprendizagem integrada dos conteúdos e do ciclo como unidade de aprendizagem.

As competências definidas no currículo do EB são prescrições genéricas de conteúdos

a ensinar, misturados com orientações metodológicas, por vezes confusas. Os resultados de

aprendizagem esperados são globais, pouco precisos e inoperacionais.

g) Diminuição do número de docentes por turma no 3º ciclo

Para Moçambique (2011), a implementação desta medida não está a ser,

universalmente, conseguida. Com efeito, identificam-se práticas muito díspares em diversas

escolas. Os professores são adaptados para leccionar algumas disciplinas, sem vocação nem

formação para o efeito.

A carência de materiais de apoio é uma limitação séria. Para além dos manuais dos

professores e dos alunos, é notória a carência de materiais de apoio para a diversificação da

aprendizagem. Não há nas escolas recursos bibliográficos e outros materiais didáticos, tanto

para os professores bem como aos alunos.

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h) Fraca Formação de Professores

A formação de professores, ainda, é deficitária para responder aos desafios do EB.

Muitos são formados em moldes de (10+1, 10+2, 10+3 e 12+1)4, o que de certa forma

comprometem à qualidade educacional. A filosofia disso, é que o governo prefere contratar

mão-de-obra barata, para poupar recursos do Estado, em detrimento de uma oferta de

qualidade.

Os professores como foco das mudanças educativas, muitas vezes lamentam de se

fazer reformas curriculares inapropriadas e com motivos políticos, cujos sistemas de avaliação

desvalorizam o papel dos professores e agridem à visão profissional destes (Goodson, 2008).

No âmbito da implementação do currículo do EB de Moçambique foi privilegiada a

formação em cascata, na qual as equipes de nível central formavam os técnicos de nível

provincial e estes formavam os níveis subsequentes. Porém, as desvantagens dessa formação é

que as dificuldades apresentadas num determinado nível seriam passadas para outros, o que

constitui um entrave sério (GUIBUNDANA, 2013).

Resumidamente, a análise feita permitiu constatar que os problemas acima

mencionados atinentes à elaboração do currículo do EB de 2004 resultam da predominância

de práticas hierarquizantes de cunho autoritário, que compreendem a elaboração curricular

como algo adstrito à lógica top down, excluindo o papel da sociedade civil e dos professores,

no processo de tomada de decisão. Parece que o governo estar a agir por “imposição” dos

financiadores à área de educação básica moçambicana.

Considerações finais

Das conclusões chegadas a respeito deste estudo é que a análise feita das vicissitudes

da organização do saber no currículo do EB de 2004 permitiu verificar à inoperância dos

conteúdos de aprendizagem, motivado por inovações ambiciosas, enigmáticas e (des)

alicerçadas. Embora a mudança curricular de 1975 fosse radical, a estrutura curricular foi

favorável para formar cidadãos íntegros e com habilidades para a vida. A segunda mudança

curricular de 1983 trouxe consigo algumas inovações substanciais, mas ainda o EB

continuava “estável” sob ponto de vista qualitativo. Porém, o atual currículo do EB de 2004

4 A formação de professores em Moçambique é ainda polémica. Por exemplo, 10+1 refere-se a um

aluno que conclui o 10º ano de escolaridade e que participa de uma formação de 1 ano. Este tem o privilégio de

leccionar o EB completo. Isso se aplica aos outros tipos de formação (10+2;10+3). O mais notável é que os

professores formados em (12+1) que significa 12º ano de escolaridade mais 1 ano de formação, podem leccionar

a partir do Ensino Primário ao Secundário.

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não traduz a eficácia dos resultados dos graduados, comparativamente aos anteriores. Trata-se

de uma educação básica tecnicamente fraca e politicamente generosa, voluntarista e vigorosa

que vangloria o progresso de um país independente.

No que se refere aos problemas de elaboração do currículo. Das várias inovações

introduzidas, sob ponto de vista estrutural estão, devidamente, organizadas, mas não são

acompanhadas pelas estratégias implementacionais eficazes, o que se pressupõe que esses

problemas sejam resultado da tal reforma ambiciosa de 2004. Neste contexto, o currículo do

EB é, amplamente, rejeitado pelos atores educacionais, sobretudo os pais e encarregados de

educação. Das várias críticas levantadas, a progressão por ciclos de aprendizagem é que é,

vigorosamente, contestada.

Nota-se que os problemas de elaboração do currículo foram influenciados pelas

mudanças curriculares ocorridas no período pós-independência. O atual currículo do EB está

conturbado e instável, de tal maneira que vários saberes são integrados em forma de

disciplinas novas, com o objetivo de aferi-lo maior eficácia, o que acaba colocando em total

desvantagem à aprendizagem dos alunos. Contudo, o fulcro desses problemas recai a uma

perspectiva política, que é muitas vezes descrita como uma área de conflitos e desacordos

entre os stakeholders.

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