Angelo Serpa - Espacialidade Do Corpo e Ativismos Sociais Na Cidade Contemporânea

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www.mercator.ufc.br DOI: 10.4215/RM2013.1229. 0002 Mercator, Fortaleza, v. 12, n. 29, p. 23-30, set./dez. 2013. ISSN 1984-2201 © 2002, Universidade Federal do Ceará. Todos os direitos reservados. ESPACIALIDADE DO CORPO E ATIVISMOS SOCIAIS NA CIDADE CONTEMPORÂNEA the body spatiality and social activism in contemporary city Angelo Serpa * Resumo Neste ensaio busca-se discutir a espacialidade do corpo na cidade contemporânea, partindo-se da análise da relação entre as redes sociais virtuais e os espaços urbanos concretos, expressa em manifestações que tomaram as ruas das cidades brasileiras em junho de 2013. Defende-se o pressuposto de que são as redes sociais virtuais que expressam as ruas e não o contrário (RISÉRIO, 2013), a partir do exemplo do movi- mento Desocupa Salvador. O Desocupa Salvador é analisado como um ativismo social em interação com movimentos sociais mais abrangentes, o que o caracteriza também como um coletivo em rede articulado a partir de contatos horizontais viabilizados pelas redes sociais atuantes no espaço virtual da internet. Por fim, conclui-se que o processo de reterritoralização de corpos nas ruas das cidades brasileiras através das manifestações aponta novos caminhos para a construção de uma “política emancipadora”, como a define Harvey (2004), já que o espaço virtual das redes sociais não elimina a importância dos espaços públicos concretos, ao tempo em que evidencia uma dialética entre corpos desterritorializados frente a uma tela e corpos reterriorializados na rua. Palavras-Chave: Espacialidade do corpo, Redes sociais virtuais, Ativismos sociais, Rua, Espaço público. Abstract This essay seeks to argue the body spatiality in contemporary city from the analyses of the relationship between virtual social networks and the concrete urban spaces as it was expressed in the manifestations that happened on Brazilian cities streets on June, 2013. It stands up for the assumption that it is the virtual social networks that express the street manifestations and not the other way about (RISÉRIO, 2013), from the example of the Desocupa Salvador movement. The Desocupa Salvador is analyzed as a social activism in interaction with broader social movements, which characterizes it as a collective network articulated from horizontal contacts made possible by social networks present in virtual space. Finally it concludes that the process of body re-territorialism in the Brazilian cities streets through the manifestations shows new ways for the building of an “emancipatory politic” as Harvey (2004) defines since the virtual space of social networks does not eliminate the importance of concrete public spaces, and also evidences one dialectic of desterritorialized bodies in front of a screen and reterritorialized bodies on the street. Key words: Body spatiality, Virtual social networks, Social activism, Street, Public space. Résumé Cet essai vise à discuter la spatialité du corps dans la ville contemporaine, à partir de l’analyse de la relaction entre les réseaux sociaux virtuels et les espaces urbains concrets, exprimée dans les manifestations qui ont occupé les rues des villes brésiliennes en Juin 2013. On défend l’hypothèse selon laquelle sont les réseaux sociaux virtuels qui expriment les rues et non l’inverse (Risério, 2013), à partir de l’exemple du mouvement Desocupa Salvador. Le Desocupa Salvador est analysé comme un activisme social en interaction avec les mouvements sociaux plus larges, ce qui le caracterize également comme un collectif articulé à partir des contacts horizontaux rendues possibles par les réseaux sociaux opérant dans l’espace virtuel de l’Internet. Enfin, il est conclu que le processus de reterritorialisation des corps dans les rues des villes brésiliènnes à travers des manifestations souligne des nouvelles façons de construction d´une «politique libératrice» au sens de Harvey (2004), déjà que l’espace virtuel des réseaux sociaux n’élimine pas l’importance des espaces publics concrets, au temps que met en évidence une dialectique entre les corps déterritorialisés devant un écran et des corps reterritorialisés dans la rue. Mots-clés: Spatialité du corps, Réseaux sociaux virtuels, Activisme social, Rue, Espace public. (*) Bolsista Produtividade do CNPq e Prof. Dr. da Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal da Bahia - Rua Barão de Geremoabo, s/n, Campus Universitário de Ondina, CEP: 40170-290, Salvador (BA), Brasil. Tel/Fax: (+ 55 71) 3283 8569 / 3283 8526 - [email protected]

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Angelo Serpa - Espacialidade Do Corpo e Ativismos Sociais Na Cidade Contemporânea

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  • www.mercator.ufc.br DOI: 10.4215/RM2013.1229. 0002

    Mercator, Fortaleza, v. 12, n. 29, p. 23-30, set./dez. 2013.

    ISSN 1984-2201 2002, Universidade Federal do Cear. Todos os direitos reservados.

    ESPACIALIDADE DO CORPO E ATIVISMOS SOCIAIS NA CIDADE CONTEMPORNEA

    the body spatiality and social activism in contemporary city

    Angelo Serpa *

    ResumoNeste ensaio busca-se discutir a espacialidade do corpo na cidade contempornea, partindo-se da anlise da relao entre as redes sociais virtuais e os espaos urbanos concretos, expressa em manifestaes que tomaram as ruas das cidades brasileiras em junho de 2013. Defende-se o pressuposto de que so as redes sociais virtuais que expressam as ruas e no o contrrio (RISRIO, 2013), a partir do exemplo do movi-mento Desocupa Salvador. O Desocupa Salvador analisado como um ativismo social em interao com movimentos sociais mais abrangentes, o que o caracteriza tambm como um coletivo em rede articulado a partir de contatos horizontais viabilizados pelas redes sociais atuantes no espao virtual da internet. Por fim, conclui-se que o processo de reterritoralizao de corpos nas ruas das cidades brasileiras atravs das manifestaes aponta novos caminhos para a construo de uma poltica emancipadora, como a define Harvey (2004), j que o espao virtual das redes sociais no elimina a importncia dos espaos pblicos concretos, ao tempo em que evidencia uma dialtica entre corpos desterritorializados frente a uma tela e corpos reterriorializados na rua.

    Palavras-Chave: Espacialidade do corpo, Redes sociais virtuais, Ativismos sociais, Rua, Espao pblico.

    AbstractThis essay seeks to argue the body spatiality in contemporary city from the analyses of the relationship between virtual social networks and the concrete urban spaces as it was expressed in the manifestations that happened on Brazilian cities streets on June, 2013. It stands up for the assumption that it is the virtual social networks that express the street manifestations and not the other way about (RISRIO, 2013), from the example of the Desocupa Salvador movement. The Desocupa Salvador is analyzed as a social activism in interaction with broader social movements, which characterizes it as a collective network articulated from horizontal contacts made possible by social networks present in virtual space. Finally it concludes that the process of body re-territorialism in the Brazilian cities streets through the manifestations shows new ways for the building of an emancipatory politic as Harvey (2004) defines since the virtual space of social networks does not eliminate the importance of concrete public spaces, and also evidences one dialectic of desterritorialized bodies in front of a screen and reterritorialized bodies on the street.

    Key words: Body spatiality, Virtual social networks, Social activism, Street, Public space. RsumCet essai vise discuter la spatialit du corps dans la ville contemporaine, partir de lanalyse de la relaction entre les rseaux sociaux virtuels et les espaces urbains concrets, exprime dans les manifestations qui ont occup les rues des villes brsiliennes en Juin 2013. On dfend lhypothse selon laquelle sont les rseaux sociaux virtuels qui expriment les rues et non linverse (Risrio, 2013), partir de lexemple du mouvement Desocupa Salvador. Le Desocupa Salvador est analys comme un activisme social en interaction avec les mouvements sociaux plus larges, ce qui le caracterize galement comme un collectif articul partir des contacts horizontaux rendues possibles par les rseaux sociaux oprant dans lespace virtuel de lInternet. Enfin, il est conclu que le processus de reterritorialisation des corps dans les rues des villes brsilinnes travers des manifestations souligne des nouvelles faons de construction dune politique libratrice au sens de Harvey (2004), dj que lespace virtuel des rseaux sociaux nlimine pas limportance des espaces publics concrets, au temps que met en vidence une dialectique entre les corps dterritorialiss devant un cran et des corps reterritorialiss dans la rue.

    Mots-cls: Spatialit du corps, Rseaux sociaux virtuels, Activisme social, Rue, Espace public.

    (*) Bolsista Produtividade do CNPq e Prof. Dr. da Ps-Graduao em Geografia da Universidade Federal da Bahia - Rua Baro de Geremoabo, s/n, Campus Universitrio de Ondina, CEP: 40170-290, Salvador (BA), Brasil. Tel/Fax: (+ 55 71) 3283 8569 / 3283 8526 - [email protected]

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    SERPA, A.

    INTRODUO

    Para sublinhar a profundidade da crise urbana atual, bem como a perplexidade e a incerteza que a acompanham, o filsofo e socilogo francs Henri Lefebvre props, em uma de suas obras (A revoluo urbana), uma confrontao radicalmente dialtica de argumentos a favor da rua, mas tambm contra ela. Entre os argumentos favorveis rua est aquele que a define como lugar do encontro, do movimento, da mistura. A rua contm aquelas funes negligenciadas pelo mo-dernismo de Le Corbusier: informativa, simblica e ldica. Lugar da desordem ou da possibi-lidade de uma nova ordem, do acontecimento revolucionrio e da troca pelas palavras e signos (LEFEBVRE, 2004).

    Contra a rua, poder-se-ia dizer, sob essa tica, que se tornou o lugar privilegiado da represso possibilitada pelo carter real das relaes que a se estabelecem. O passar pela rua ao mesmo tempo obrigatrio e reprimido. Se a rua j foi o lugar de encontro por excelncia, hoje se converte em rede organizada pelo/para o consumo, em passagem de pedestres encurralados e de automveis privilegiados, em transio obrigatria entre o trabalho, os lazeres programados e a habitao. Embora palco para os grandes eventos permitidos e estimulados pelo poder pblico (carnaval, shows, espetculos, festivais), tambm objeto das foras repressivas que impem o silncio e o esquecimento verdadeira apropriao: a da manifestao efetiva.

    Jane Jacobs, nos anos 1960, publicou uma obra tambm emblemtica nos Estados Unidos Morte e vida de grandes cidades na qual defende que as ruas e caladas so os rgos mais vitais de uma cidade. Entre suas funes estaria a manuteno da segurana urbana: para Jacobs, os casos de violncia em uma rua ou um distrito faz com que as pessoas temam e usem menos esses espaos, tornando-os ainda mais inseguros. Ou seja, esvaziar as ruas, evita-las, se autosegre-gar em shoppings e condomnios fechados , ao contrrio do que pressupe o senso comum, a pior maneira de vencer a delinquncia e a criminalidade. S ocupando as ruas e reforando as redes de controle social cotidiano possvel combater de fato o que chamamos de violncia urbana (JACOBS, 2003).

    As manifestaes ocorridas em junho de 2013 nas cidades brasileiras mostraram a fora das ruas e as possibilidades que esses espaos oferecem para a vida urbana em seu sentido mais polti-co e social. Demonstram tambm que a dialtica entre ordem e desordem que se expressa em tais manifestaes talvez seja necessria para a articulao de novas formas de organizao da vida urbana, revelando ainda os limites e desafios para todos aqueles que desejem se reapropriar desses espaos. Hoje, ao que parece, a atitude mais revolucionria e radical de um cidado exatamente a volta s ruas, sua ocupao! Saia da frente da tela e venha para as ruas voc tambm, eis um dos lemas principais dos manifestantes no Brasil.

    A retomada das ruas em tempos de redes sociais virtuais o fato mais alvissareiro que emergiu dos eventos juninos. Em artigo publicado no jornal A Tarde, em Salvador, o articulista Antnio Risrio traa uma interessante relao entre as redes sociais virtuais e as ruas, destacando um processo de retroalimentao positiva entre os mundos real e virtual (RISRIO, 2013, p. A2). Salvador, alis, vanguarda em ativismos assim, basta lembrar do movimento Desocupa, que comeou nas redes sociais em defesa de uma praa no bairro de Ondina, localizado na orla atlntica da cidade, e se expandiu para abarcar outras esferas e dimenses. Voltaremos a esse assunto mais adiante.

    Esses ativismos que se manifestam nas ruas brasileiras contrariam a ideia de que, na cidade contempornea, no existiria mais aqui, tudo seria agora, em decorrncia da compresso do tempo e da acelerao das velocidades. De que tudo aconteceria sem que fosse necessrio ir ao encontro dos seres nossa volta, ir aos lugares que nos rodeiam. A interao virtual parecia superar, para alguns tericos sociais como Paul Virilio (1999), toda ao e todo ato concreto. No entanto, essas manifestaes vm extrapolando o espao virtual em direo aos espaos urbanos concre-tos, dando novos sentidos aos ativismos sociais urbanos, como coletivos articulados em rede que tecem sua trama na cidade.

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    Importa agora pensar, neste contexto, que consequncias essa retomada das ruas tem para a territorializao da cidade pelo corpo (ou, em outras palavras, a espacializao do corpo na cidade), evidenciando tambm uma dimenso concreta e sensorial para as estratgias de apropriao dos espaos urbanos. O que representaria afinal essa (re)insero dos corpos na cidade para alm das dimenses polticas e sociais envolvidas nessas manifestaes? O que significaria a reterritorializao de corpos desterritorializados no s pela intensificao das relaes virtualizadas, mas tambm pelo medo, pela segregao e pela violncia urbana em todas as suas formas?

    A ESPACIALIDADE DO CORPO

    Para discutir o corpo (re)inserido na cidade preciso antes de tudo admitir, com Merleau-Ponty, que o espao corporal e o espao exterior constituem uma unidade dialtica, um sistema prtico, e que evidentemente na ao que a espacialidade do corpo se realiza, e a anlise do movimento prprio deve levar-nos a compreend-la melhor. , sobretudo, a considerao do corpo em mo-vimento que permite a compreenso de como esse corpo habita um espao (e tambm um tempo), porque o movimento no se contenta em submeter-se ao espao e ao tempo, ele os assume ativa-mente, retoma-os em sua significao original, que se esvai na banalidade das situaes adquiridas (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 149).

    O corpo em movimento na cidade, em suas estratgias de apropriao dos espaos urbanos, constitui uma experincia, revelada sob o espao objetivo, no qual finalmente o corpo toma lugar, uma espacialidade primordial da qual a primeira apenas o invlucro e que se confunde com o prprio ser do corpo. Para Merleau-Ponty, o ser corpo estar atado a um certo mundo, e nosso corpo no est primeiramente no espao: ele no espao (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 205). Isto sublinha tambm o corpo como aberto e poroso ao mundo, embora no seja esse em geral o modo de ver o corpo na tradio ocidental dominante, como nos lembra o gegrafo David Harvey (2004, p. 138).

    Se o corpo s no espao, se o ser corpo sempre ser corpo no mundo, precisamos tambm admitir que o espao e o mundo so construes humanas e no externalidades objetivas e estritamente materiais. Espao e mundo se constituem, portanto, dialeticamente enquanto produto e processo, enquanto experincia humana corporificada. Por outro lado, se o corpo no uma entidade fechada e lacrada, mas algo relacional, criado, delimitado e sustentado por fluxos espao-temporais e mltiplos processos, ento o conjunto de atividades performativas disponveis ao corpo num dado tempo e lugar no so independentes do ambiente tecnolgico, fsico, social e econmico em que esse corpo tem de ser (HARVEY, 2004, p. 137).

    Mas a humanidade no uma soma de indivduos, como ensina Merleau-Ponty, muito me-nos um ser nico no qual a pluralidade dos indivduos estaria fundida e destinada a se incorporar (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 49-50). O mundo, o espao e a cidade so construes humanas plenas de relaes entre sujeitos, construes radicalmente intersubjetivas. Afinal, s sentimos que existimos depois de j ter entrado em contato com os outros, e nossa reflexo sempre um retorno a ns mesmos que, alis, deve muito nossa frequentao do outro (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 48).

    Sob essa tica, s conheo os outros seres humanos por meio de seus gestos, de suas palavras, de seus olhares, ou seja: s posso conhec-los atravs de seus corpos: os outros so para ns esp-ritos que habitam um corpo, e a aparncia total desse corpo parece-nos conter todo um conjunto de possibilidades das quais o corpo a presena propriamente dita (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 43).

    Voltemos s questes inicialmente colocadas: como compreender os processos de desterrito-rializao/reterritorializao dos corpos nas cidades contemporneas? O que se compreende afinal por des /re-territorializaes? Em primeiro lugar, preciso sublinhar que um processo de ter-ritorializao efetiva s ocorre quando nos apropriamos material e simbolicamente de um substrato espacial referencial. Territorializar se apropriar tambm corporalmente do espao, , no fundo,

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    SERPA, A.

    criar/produzir espao. Ao falar de desterritorializao de corpos pelas redes sociais virtuais, nos utilizamos de uma imagem, de uma representao de um ser humano isolado, frente a uma tela, que no se relaciona mais intersubjetivamente com outros seres humanos atravs de seu corpo em toda sua potencialidade. Obviamente, h ali um corpo e sensaes corporais, no entanto mediados por telas e redes virtuais frente a outros corpos ausentes, mas, no entanto, presentes virtualmente.

    Porm, no podemos entender as redes sociais virtuais apenas como elementos desterrito-rializantes, como destruidoras de territrios, j que uma combinao articulada de redes (...) pode ser a base de um processo de (re)territorializao, ou seja, de formao de novos territrios (HAESBAERT, 1997, p. 94). E isso precisamente o que vem ocorrendo nos novos ativismos ur-banos, como j mencionado na introduo deste ensaio: a desterritorializao dos corpos via redes virtuais os reterritorializa via manifestaes nos espaos urbanos concretos, em um processo de retroalimentao positiva, como passamos a analisar mais pormenorizadamente a seguir.

    MOVIMENTO E CONTRA-MOVIMENTO

    Retornemos agora s ideias de Paul Virilio, para quem a rapidez global das telecomunicaes substitui paulatinamente a rapidez local dos meios de comunicao, para quem caminhamos para a inrcia e a esterilidade do movimento, afirmando que cada vez que inauguramos uma acelera-o, no apenas reduzimos a extenso do mundo, mas esterilizamos tambm os deslocamentos e a grandeza dos movimentos, tornando intil o gesto do corpo locomotor (VIRILIO, 1999, p. 119).

    O mundo virtual de Virilio sombrio e sem corpo, feito de milhes de internautas espalhados por todo o mundo, comunidades de crentes telepresentes uns aos outros graas instantaneidade e em breve tambm ubiquidade eletrnica das cmeras on line (VIRILIO, 1999, p. 115). Ele se questiona sobre o que restaria ento da importncia histrica do espao pblico da cidade, na era desta metacidade em que reina a imagem pblica (idem, ibidem).

    O mundo das sombras de Virilio contraposto de modo contundente pela viso otimista de Antnio Risrio, em seu artigo, j mencionado, intitulado Entre as redes e as ruas (RISRIO, 2013, p. A2). Comentando as manifestaes de junho de 2013 nas ruas das cidades brasileiras, Ri-srio afirma que da rede rua, gentes se mobilizam de um dia para outro. Da rua rede, algum logo ao chegar em casa, pode postar uma foto que sensibilize milhares de pessoas (idem, ibidem). Isso coloca para ns uma nova realidade, de espaos essencialmente reversveis. No contexto discutido aqui, da re-insero do corpo na cidade, interessa particularmente a afirmao de que a rua o lugar do corao batendo, do sangue circulando, da respirao percebida, da emoo, em contraponto ao (e tambm em relao com o) espao virtual dos signos e do discurso (idem, ibidem).

    Ainda nesse contexto, Risrio defende a ideia de que na rua o que conta a leitura do espao e a inteligncia do corpo (idem, ibidem). Ou seja, confluindo para a posio tambm defendida aqui de que a rua o espao por excelncia da plenitude do corpo, para corpos em situao, construindo/criando espaos de intersubjetividade no corpo a corpo sem mediaes. Ento, ao contrrio do que prognosticou Virilio, h uma interao entre redes e ruas que se retroalimentam de modo a criar novas possibilidades de manifestao no espao pblico na cidade contempornea, cabendo ressaltar, concordando mais uma vez com Risrio, que no so as redes sociais virtuais que criam essas novas formas de ativismos urbanos, mas as condies objetivas e subjetivas da vida de todos ns que esto na base de tudo. As redes, socializando o cotidiano das pessoas, permitem que esses movimentos (...) se manifestem (idem, ibidem). Sob essa tica, seriam as redes que expressam as ruas e no o contrrio!

    AS REDES QUE EXPRESSAM AS RUAS E NELAS SE MANIFESTAM: o Desocupa Salvador

    O movimento Desocupa Salvador foi s ruas a primeira vez em 2012 para se manifestar con-tra a privatizao de uma praa poca recentemente reformada e entregue populao. Logo

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    depois de inaugurada, a mesma empresa que financiou a reforma cercou o espao com tapumes para a montagem de um camarote (Figura 1). E isso quase dois meses antes do carnaval! A mani-festao, convocada atravs das redes sociais, correu o risco de no acontecer, j que a empresa, a do camarote, conseguiu liminar com uma juza, que acatou os argumentos dos empresrios de que os manifestantes poderiam depredar ou ocupar o espao privado, em construo. Advogados e juristas entraram em campo para afirmar que a manifestao era legal e poderia acontecer de forma pacfica, dando fora aos manifestantes que no se intimidaram com as ameaas de processos e prises (Figura 2).

    Figura 1 - Tapumes para montagem de camarotesFoto: Acervo Coletivo Cruis Tentadores.

    Salvador, como outras metrpoles do Brasil e do mundo, vem conduzindo polticas de re-qualificao urbana seletivas e segregacionistas, que reforam e tornam visveis as desigualdades scio-espaciais no tecido urbano-metropolitano. Esta tambm a lgica de programas desenvolvidos desde 1997 pela prefeitura municipal de adoo de praas, reas verdes, monumentos e espaos livres. Uma anlise dos espaos adotados pela iniciativa privada desde ento corrobora a tese do desinteresse por praas e parques localizados em reas populares da cidade. A adoo concentra-se nas regies administrativas com populao de maior poder aquisitivo e escolaridade (SERPA, 2007).

    Os espaos adotados acabam funcionando como grandes outdoors tridimensionais, como es-tratgia de publicidade das empresas adotantes. Por meio do programa, a iniciativa privada pode manter os espaos pblicos e, em contrapartida, placas com o nome das empresas so colocadas nas praas, parques ou avenidas adotados. As empresas no precisam ter gastos contnuos, podendo optar por recuperar os espaos e deixar sua manuteno por conta da prefeitura. Durante o processo de adoo, a prefeitura se encarrega de elaborar um projeto de recuperao e o encaminha empresa interessada. a Superintendncia de Parques e Jardins quem fiscaliza o cumprimento dos contratos pelas instituies adotantes. O programa no indito no pas e existe em outras cidades do Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Pernambuco.

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    Figura 2 - Manifestantes no Desocupa Salvador, 2012Foto: Acervo Coletivo Cruis Tentadores.

    Do carnaval de Salvador, j sabemos que as ltimas dcadas marcaram uma privatizao contnua e, ao que parece, irreversvel, da festa, dominada por interesses privados de alguns blo-cos e empresas, que montam e administram camarotes luxuosos, exclusivos e caros para o bolso da maioria da populao soteropolitana (DIAS, C., 2002). A praa em Ondina, adotada por uma dessas empresas de camarotes, faz convergir os dois processos: privatizao do espao pblico e da folia momesca. Nos cartazes, placas e faixas dos manifestantes do Desocupa!, a indignao foi traduzida com muito humor: Ocupa Carnaval Popular ou Empresarial?; Vende-se este terreno; Zona de Perigo; Faa-se a luz para esclarecimento do povo... Na manifestao, no se registrou nenhuma espcie de conflito ou violncia, ao contrrio, o humor e a irreverncia, com pitadas de engajamento poltico, marcaram o evento, demonstrando a maturidade dos participantes.

    O movimento Desocupa Salvador se complexificou a partir da, agregando novas pautas e te-mticas, se abrindo para o restante da cidade e, claro, incorporando novos integrantes e interesses, politizando de modo mais explcito suas reivindicaes. A criao de grupos tcnicos no interior do movimento, assim como a aproximao de entidades como a OAB, o IAB e o CREA, indicam uma maior institucionalizao das aes do Desocupa, fato este que no pode ser considerado pre-judicial ao movimento, como um a priori. Afinal, a questo central parece ser aqui como ativismos e movimentos sociais podem dialogar com partidos polticos, sindicatos e governos em um regime de democracia representativa com maior participao popular.

    Preferimos aqui caracterizar o Desocupa Salvador como um ativismo social em interao com movimentos sociais mais abrangentes, o que o caracteriza tambm como um coletivo em rede articulado a partir de contatos horizontais viabilizados pelas redes sociais atuantes no espa-o virtual da internet. Como destacado por Souza (2009, p. 9-10), movimento um termo que deve ser reservado para aes coletivas organizadas, de carter pblico e relativamente duradouras particularmente ambiciosas; para o autor, no que concordamos aqui em nossa anlise, o conceito intermedirio entre ao coletiva e movimento ativismo social.

    O Desocupa recoloca a questo do espao pblico contemporneo, em uma cidade como Salva-dor, com profundas desigualdades socioespaciais, inclusive no tocante ao acesso tcnica (SERPA,

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    2011). Por ser um ativismo originado em um bairro de classe mdia, o acesso tcnica aqui no foi empecilho para a consolidao de sua atuao, a partir, justamente, do espao virtual da rede mundial de computadores, em direo aos espaos pblicos reais da cidade, redimensionando inclusive a ideia de esfera pblica urbana atravs do uso da tcnica e da tecnologia.

    Como em outras ocasies (SERPA, 2007, 2011), retoma-se aqui de modo tangencial a ques-to do papel do espao pblico na cidade contempornea, assim como a indagao se as tticas de apropriao dos meios de comunicao representam de fato indcios da constituio de uma esfera pblica urbana renovada, mais acessvel, participativa e democrtica. Defendemos que sim, embora esses indcios no cheguem a colocar em xeque crticas contundentes aos meios de comunicao de massa incluindo aqui, claro, a rede mundial de computadores, dominada, de modo geral, por grandes conglomerados de empresas e ao senso comum de que as novas tecnologias, por si mesmas, geram mais participao/mobilizao.

    CONSIDERAES FINAIS

    O movimento Desocupa Salvador , portanto, uma mobilizao que tomou corpo atravs da internet; organizada coletivamente, sobretudo, atravs das redes sociais, como o facebook. Esse tipo de mobilizao conhecido como flash mob, ou mobilizao instantnea, utilizado para diferentes objetivos. Essas mobilizaes instantneas colaboraram, por exemplo, para as manifes-taes populares iniciadas em 2010 contra regimes ditatoriais na Tunsia, no Egito e na Lbia, no fenmeno conhecido como Primavera rabe .

    Martins (2013) demonstra que h uma grande diversidade dos locais de ocorrncia dos flash mobs: uma estao de trem, como a Grand Central em Nova York, um vago de metr na mesma cidade, uma grande Avenida a Michigan, em Chicago, durante show de Hip Hop, em Wall Street (corao financeiro de Nova York), uma praia de Coney Island (Brooklin) ou um parque de cami-nhada e recreao (em Cuiab). O fato de grande parte dos flash mobs analisados na dissertao de mestrado de Martins ocorrerem em uma cidade como Nova York, uma cidade global, importante n da rede urbana mundial que concentra poder e capital, coloca em outros termos a questo da hie-rarquia urbana, j que, ao que parece, a lgica de localizao dos flash mobs no de modo algum aleatria ou de carter no-hierrquico. Os mobs parecem ocorrer preferencialmente em cidades metropolitanas, cabeas de redes urbanas em contextos nacionais, regionais ou mesmo mundiais, como o caso de Nova York.

    Trata-se, sob a tica das cincias sociais de um coletivo em rede, ou seja, de conexes em uma primeira instncia comunicacional, instrumentalizadas atravs de vrios atores ou organiza-es, que visam difundir informaes, buscar apoios solidrios, ou mesmo estabelecer estratgias de ao conjunta, como afirma Scherer-Waren (2007, p. 35). Admite-se que estes coletivos pos-sam se constituir em segmentos ou subsegmentos (ns) de uma rede mais ampla de movimentos sociais (SCHERER-WAREN, 2007, p. 35). Os coletivos em rede podero ser, portanto, formas solidarsticas ou estratgicas de instrumentalizao das redes de movimentos, seja em sua forma virtual (...) ou em forma presencial (SCHERER-WAREN, 2007, p. 36).

    Para Dias (2007, p. 18), com a exploso das tcnicas reticulares, especialmente as redes de comunicao como a internet , a rede representada como organismo planetrio e parece desenhar a infraestrutura de uma sociedade, ela mesma pensada como rede. Mas, a autora alerta, baseando--se em Milton Santos (1996), que as redes so antes sociotcnicas que tcnicas, no se podendo ignorar o conjunto das aes viabilizadas por elas, j que preciso compreender a interao entre redes e territrios, o que pressupe reconhecer que estamos diante de duas lgicas distintas (...) De um lado, a lgica das redes. (...) De outro lado, a lgica dos territrios (DIAS, 2007, p. 20).

    Por fim, cabe ressaltar que se trata aqui de refletir como corpos se re-territorializam na cidade, se apropriando dos espaos urbanos, se manifestando nos espaos pblicos. Esses corpos que se

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    Mercator, Fortaleza, v. 12, n. 29, p. 23-30, set./dez. 2013.

    SERPA, A.

    reterritorializam so corpos com abstinncia de rua, colocando para as cincias humanas e sociais, e especialmente para as disciplinas territoriais como a Geografia, a necessidade de refletir sobre a dialtica entre corpos desterritorializados frente a uma tela e corpos reterriorializados na rua.

    Esse processo de reterritoralizao de corpos nas ruas das cidades brasileiras atravs das manifestaes aponta novos caminhos para a construo de uma poltica emancipadora, como a define Harvey (2004), vendo o corpo como um nexo por meio do qual se poderia abordar as pos-sibilidades e os limites dessa poltica. Para criar condies para analisar esses processos o estudo do corpo tem de basear-se na compreenso das relaes espao-temporais concretas entre prticas materiais, representaes, imaginrios, instituies, relaes sociais e estruturas vigentes de poder poltico-econmico (HARVEY, 2004, p. 178).

    O espao virtual das redes sociais no elimina a importncia dos espaos pblicos concretos, no decreta o fim da Geografia e dos constrangimentos espaciais. Ao contrrio, interage com eles e ao mesmo tempo enfatiza a necessidade de uma reflexo sobre os espaos vividos e cotidianos, sobre a importncia do lugar e dos processos de apropriao espacial, em toda sua complexidade, no perodo atual.

    REFERNCIA BIBLIOGRFICA

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    Trabalho enviado em outubro de 2013Trabalho aceito em novembro de 2013