Anel de Policrates

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  • ANEL DE POLCRATESE OUTRAS HISTRIAS

  • HERDOTO CCERO ESOPOFEDRO LA FONTAINE VOLTAIRE

    VOLTAIRE MACHADO DE ASSISOSCAR WILDE GUY DE MAUPASSANT

    JU BANANERE NELSON ASCHER

    O ANEL DE POLCRATESE OUTRAS HISTRIAS

    Organizao

    FRANCISCO ACHCARROGRIO HAFEZ

    Traduo e notas

    FRANCISCO ACHCARROGRIO HAFEZ

    ISABEL DE LORENZO

    2. edio, aumentada

    So Paulo 2000

  • 4_________________________________So Paulo 2000

  • 5NDICE

    APRESENTAO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

    HISTRIAS EXEMPLARESHerdoto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

    O ANEL DE POLCRATES . . . . . . . . . . . . . . . . . 13Machado de Assis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

    O ANEL DE POLCRATES . . . . . . . . . . . . . . . . . 19Ccero . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

    NASICA E NIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33DIGENES E ALEXANDRE . . . . . . . . . . . . . . . . 34

    HISTRIAS MORAISEsopo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37

    OS LOBOS E OS CORDEIROS . . . . . . . . . . . . . . 39O MACACO E O GOLFINHO . . . . . . . . . . . . . . . 40ZEUS E APOLO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41A TARTARUGA E A LEBRE . . . . . . . . . . . . . . . 42A RAPOSA E O CACHO DE UVAS . . . . . . . . . . 43A RAPOSA E A MSCARA . . . . . . . . . . . . . . . . 44

    Fedro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45O LOBO E O CORDEIRO . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47O CO E O PEDAO DE CARNE . . . . . . . . . . . 48A RAPOSA E A MSCARA TRGICA . . . . . . . 49A RAPOSA E AS UVAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50

    La Fontaine . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53O LOBO E O CORDEIRO . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55

    Ju Bananere . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59O LOBO I O GORDERIGNO . . . . . . . . . . . . . . . . 61

    Nelson Ascher . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65FBULA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67

  • 6HISTRIA FILOSFICAVoltaire . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73

    MNON OU A SABEDORIA HUMANA . . . . . . 75

    HISTRIAS SENTIMENTAISOscar Wilde . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85

    O GIGANTE EGOSTA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87O PRNCIPE FELIZ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93

    HISTRIA ANEDTICAGuy de Maupassant . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109

    DOIS AMIGOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111

  • APRESENTAO

    Francisco Achcar

    As histrias deste livro tambm podem ser chamadas estrias,como quereria Guimares Rosa. Estria no Histria. Histria, dizo dicionrio, a narrao metdica dos fatos notveis ocorridos navida dos povos, em particular, e na vida da humanidade, em geral: ahistria do Brasil; histria universal. Estria outra coisa: umanarrao qualquer, de algo acontecido ou imaginado um conto, aestria do Chapeuzinho Vermelho, as estrias do meu av. Como omais habitual usar a palavra histria nos dois casos, esta designaofoi adotada aqui.

    As histrias selecionadas foram divididas em cinco grupos. Asprimeiras, histrias exemplares, so as que, contando casos singula-res, acontecimentos nicos, procuram com eles representar situaestpicas ou exemplificar fenmenos gerais. Assim, O Anel dePolcrates, alm de relatar um evento particular, constitui um casoexemplar do que seriam as limitaes da felicidade humana ou algica caprichosa do destino. O conto de Machado de Assis apresenta,ao mesmo tempo, uma personagem extraordinria e um exemploextraordinrio do que, hoje, seria vulgarmente chamado p-frio.Poderia ser tomado como um conto de personagem (embora apersonagem central nem comparea), mas pode ser lido tambm comouma ilustrao surpreendente do mesmo caso representado no textode Herdoto. Os relatos de Ccero so exemplos de situaesdiversas: desapego em relao aos bens materiais e ironia diante daspequenas mentiras da vida cotidiana.

    As histrias morais representam situaes em que esto em jogoo bem e o mal, o comportamento correto e o errado, o que louvvele o que condenvel. So, por isso, textos de natureza crtica. Ashistrias morais aqui includas so fbulas, ou seja, narrativas ondese procura demonstrar um preceito tico, quer dizer, uma regra moral,

  • 8 APRESENTAO

    uma norma de conduta. Elas geralmente tomam animais comopersonagens e, apontando o mal, buscam sugerir o que seja o bem.

    A histria filosfica desenvolve uma questo geral, abstrata. Nocaso do conto de Voltaire, procura-se demonstrar o absurdo da buscada sabedoria perfeita. Como em geral neste grande escritor, ahistria filosfica tambm bastante cmica (ou tragicmica).

    As histrias sentimentais, no caso presente, no so histrias deamor, como alguns imaginariam; so narrativas que buscam despertarnossas emoes, ativar nossos sentimentos, como maneira de fazer-nos perceber e entender situaes e valores da vida. Os dois contosque integram esta seo foram escritos para leitores muito jovens (osfilhos pequenos do autor); por isso, fica mais fcil identificar neles osmecanismos usados para comover. Pelo seu valor literrio, estas duaspequenas jias de Oscar Wilde superaram sua destinao infantil, eso hoje lidas simplesmente como literatura. Este o motivo deconstarem da presente antologia, destinada a jovens de outra idade.

    Finalmente, histria anedtica aquela que pura e simplesmenteconta um caso. Portanto, trata-se de uma anedota, no no sentido depiada, de histria para fazer rir, mas sim no sentido de relatocurioso, histria de um fato de particular interesse.

    Vrias das histrias seguintes poderiam receber mais de umaclassificao. Assim, as histrias exemplares poderiam ser tambmrotuladas como anedticas, as histrias sentimentais apresentadasaqui tm tambm um contedo moral. A classificao feita comoa maioria das classificaes desse tipo se boa por um lado,apresenta deficincias por outro.

    Produzidas em diversas pocas e lugares, estas histrias servempara aquilo para que a literatura serve: para divertir, para emocionare para ensinar.

  • HISTRIAS EXEMPLARES

  • 11

    HERDOTO

    Herdoto (480-425 a.C.) nasceu em Halicarnasso, na costa sudoesteda sia Menor. Conheceu as principais cidades gregas e percorreu asterras da Assria, do Egito e da Prsia. Muito do que viu e ouviu, osdiferentes costumes e tradies dos povos, Herdoto o registrou nosnove livros que compem suas Histrias, cujo tema principal ocrescimento do poderio persa e seu confronto com os gregos. Segundose diz, Herdoto chegou a ler sua obra em pblico, em Atenas, encantan-do os ouvintes com sua prosa e recebendo uma grande recompensa comoprmio.

    Herdoto considerado, pelo escritor latino Ccero e por outrosautores, o pai da Histria. De fato, ele se interessa pela investigaoe verificao dos eventos passados esse, precisamente, o sentido emgrego da palavra histora. Herdoto pouco se parece, porm, com oshistoriadores modernos, que procuraram fazer da Histria uma cinciarigorosa . Em sua obra, esto lado a lado a Histria e a lenda, o relatorealista e o conto fantstico, maravilhoso. Muitos desses contossintetizam exemplarmente sua triste viso do homem e se tornaramfamosos, como o do anel de Polcrates. Celebrizado numa balada dogrande poeta alemo Schiller (1759-1805), O anel de Polcratestambm deu o nome e a inspirao a um conto, que se ler adiante, dolivro Papis Avulsos, de Machado de Assis (1839-1908).

  • 1 Polcrates: famoso tirano de Samos, ilha do Mar Egeu, defronte da sia Menor.O nome Polcrates significa, em grego, muito poderoso.

    2 Jnia: regio da antiga Grcia, constituda por uma parte da costa ocidental dasia Menor, entre as cidades de Esmirna e Mileto, e pelas ilhas que lhe eramadjacentes. Os gregos que a habitavam eram chamados jnios.

    3 Hlade: Grcia.4 Navio de cinqenta remos: navio de guerra, que comportava cinqenta

    remadores, muito comum na frota grega do sculo VI a.C.5 Ilhu: habitante de uma ilha.6 Lsbio: habitante da ilha de Lesbos, situada em frente costa de Msia, na sia

    Menor.7 Milsio: habitante de Mileto, antiga cidade da sia Menor.

    13

    O ANEL DE POLCRATES

    Herdoto

    Em pouco tempo a fora do rei Polcrates1 cresceu imensa-mente, e ele se tornou famoso na Jnia2 e em toda a Hlade;3 aondequer que se dirigisse para guerrear, era em tudo bem-sucedido.Acumulou cem navios de cinqenta remos,4 e mil arqueiros.Atacava e saqueava a todos, sem fazer distino de ningum. Defato, dizia que faria algo mais grato a um amigo restituindo-lhe oque lhe tomara, do que se nunca lhe tivesse roubado coisanenhuma. Conquistou numerosas ilhas, e tambm muitas cidadesdo continente. Entre outros ilhus5 que venceu em batalhas navais,conquistou tambm os lsbios,6 que haviam acorrido com todas assuas foras em socorro aos milsios;7 esses, como prisioneiros,escavaram todo o fosso que h em volta das muralhas de Samos.

  • 8 xito: sucesso.9 Fortuna: boa sorte, sucesso.10 Contrabalanar: manter em equilbrio, compensar, balancear.11 Vicissitude: contingncia; acidente desfavorvel, revs.12 Desventura: infortnio, infelicidade.

    14 HERDOTO

    O imenso xito8 de Polcrates no passou despercebido a seualiado Amsis, rei do Egito; ao contrrio, tornou-se motivo depreocupao para ele. Como a prosperidade de Polcrates continu-asse a aumentar ainda mais, Amsis enviou a Samos uma carta:

    Amsis a Polcrates:

    agradvel tomar conhecimento dos sucessos de um homemamigo e hospitaleiro, mas a mim no agrada a tua grandeprosperidade, pois sei o quanto os deuses so invejosos. Eu, decerto modo, desejo que eu mesmo e todos aqueles por quem mepreocupo tenhamos boa fortuna9 em alguns de nossos atos e, emoutros, o fracasso, de modo que contrabalancemos10 nossa vidacom a alternncia das vicissitudes,11 o que prefervel a ser bem-sucedido em tudo. De fato, nunca ouvi falar de ningum que,sendo em tudo bem-afortunado, no tenha chegado por fim runa mais completa. Se quiseres dar ouvidos aos meus conselhos,faz o seguinte diante de tua boa sorte: reflete e encontra aquiloque te mais precioso, aquilo cuja perda mais afligiria a tuaalma; ento, joga-o fora de modo que ele nunca mais reapareaentre os homens. Se, com isso, desde j os teus sucessos no sealternarem com as desventuras,12 remedia a tua sorte agindonovamente do mesmo modo que agora te proponho.

    Polcrates, lendo essas palavras e percebendo quo bemAmsis o havia aconselhado, procurou descobrir qual dos seus

  • 13 Sinete: pequeno utenslio gravado em alto ou baixo-relevo, utilizado paraimprimir, em diversos materiais, a assinatura ou o monograma de uma pessoa,funcionando como um carimbo..

    14 Engastado: embutido; encravado.15 Teodoro de Samos: arteso ilustre que, segundo Herdoto, tambm fez obras

    para outros clebres reis no mundo antigo.16 Desafortunado: desfavorecido pela sorte; infeliz, desgraado.

    15O ANEL DE POLCRATES

    tesouros seria aquele cuja perda mais entristeceria a sua alma; e,refletindo, chegou seguinte concluso: o que lhe era maisprecioso era um sinete13 que costumava portar, gravado numaesmeralda e engastado14 num anel de ouro, obra de Teodoro deSamos,15 filho de Tlecles. Uma vez que se havia decidido porjogar fora essa jia, Polcrates procedeu assim: embarcou numnavio de cinqenta remos, com toda a tripulao, e em seguidaordenou que zarpassem para o alto mar; quando se viu distante desua ilha, tirou o anel de seu dedo e, vista de todos os tripulantes,atirou-o ao mar. Tendo feito isso, mandou que navegassem devolta e, chegando em sua casa, sentiu-se muito desafortunado.16

    No quinto ou sexto dia depois disso, ocorreu-lhe o seguinte:um homem do mar, tendo pescado um peixe grande e belo, julgou-o digno de ser ofertado, como um presente, ao soberano. Ele foiat as portas do palcio de Polcrates e disse que desejava serconduzido presena do rei. Sendo-lhe concedido o pedido,ofertou o peixe a Polcrates, dizendo-lhe: rei, pesquei essepeixe e no considerei justo lev-lo ao mercado, embora eu vivado trabalho de minhas prprias mos; a mim pareceu, porm, queele era digno de ti e de teu poder. A ti, assim, eu o trago e ooferto. E o soberano, deleitado com essas palavras, respondeu-lheo seguinte: Fizeste muitssimo bem e sou grato a ti duplamente,pelas tuas palavras e pelo teu presente. Ests convidado para obanquete. E o pescador, sentindo-se muito honrado com oconvite, foi para sua casa, enquanto os serventes do rei, talhando

  • 17 Sobrevir: vir ou ocorrer em seguida ou depois.18 Tratado de hospitalidade: compromisso pelo qual, na Antiguidade, homens de

    naes diferentes asseguravam, para si e seus descendentes, um tratamentohospitaleiro recproco, e que se realizava por meio de presentes e de prticasreligiosas.

    19 Num captulo posterior de suas Histrias, Herdoto narra o triste fim dePolcrates, previsto e temido por Amsis: a ilha de Samos invadida, e o tirano preso e crucificado.

    16 HERDOTO

    o peixe, encontravam no ventre dele o mesmo anel de Polcrates.To logo o viram e apanharam, levaram-no cheios de alegria aPolcrates e, entregando-lhe o anel, disseram-lhe de que modo elehavia sido encontrado. E o rei, como lhe viesse mente a idia deque se tratava de um fato divino, escreveu numa carta tudo o queele havia feito e o que ento lhe sobreviera,17 e enviou a carta aoEgito.

    Amsis, lendo a carta que lhe viera de Polcrates, compreen-deu que impossvel para um homem salvar outro homem daquiloque lhe deve acontecer, e que Polcrates, sendo bem-aventuradoem tudo, um homem que reencontrava mesmo aquilo de quetentava se desfazer, estava destinado a no ter um bom fim. Assim,enviando um mensageiro a Samos, Amsis declarou que dissolviao tratado de hospitalidade.18 Agiu assim porque desejava evitarque, quando sobreviesse ao soberano de Samos uma grande eterrvel desgraa, ele mesmo, Amsis, no torturasse a sua alma,na qualidade de amigo e aliado de Polcrates.19

    (Traduo do grego: ROGRIO HAFEZ.)

  • 17

    MACHADO DE ASSIS

    Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) era mulato, filho deuma lavadeira e de um pintor de paredes. Nasceu numa poca em que osnegros, no Brasil, ainda eram escravos. Sendo pobre, freqentou a escolapor poucos anos e trabalhou desde cedo. No entanto, considerado, pelamaioria dos estudiosos da literatura brasileira, o maior escritor do Brasil.

    Sua obra revela grande cultura, requinte e ironia fina. Percebe-seque estudou sozinho o que no teve oportunidade de aprender na escola.

    Escreveu poesias, peas de teatro, romances, contos e textos decrtica; consagrou-se como genial contista e romancista. Em seusmelhores romances, como Memrias Pstumas de Brs Cubas e DomCasmurro, e em vrios de seus contos, est presente um humor fino, svezes amargo. No texto seguinte se encontram diversas de suas grandesqualidades, entre as quais a escrita fluente, agradvel e divertida.

  • 1 Nababo: pessoa muito rica, que vive cercada de luxo; milionrio.2 Prdigo: esbanjador, gastador.3 Nctar: bebida dos deuses; qualquer bebida deliciosa.4 Pompa de Salomo: trata-se do riqussimo e sbio Rei Salomo, cujo harm,

    segundo a Bblia, contava centenas de mulheres. (I Reis 11.3).

    19

    O ANEL DE POLCRATES

    Machado de Assis

    A

    L vai o Xavier.Z

    Conhece o Xavier?

    AH que anos! Era um nababo,1 rico, podre de rico, mas

    prdigo...2

    ZQue rico? que prdigo?

    ARico e prdigo, digo-lhe eu. Bebia prolas diludas em

    nctar.3 Comia lnguas de rouxinol. Nunca usou papel mata-borro, por ach-lo vulgar e mercantil; empregava areia nas cartas,mas uma certa areia feita de p de diamante. E mulheres! Nemtoda a pompa de Salomo4 pode dar idia do que era o Xavier

  • 5 Serralho: harm.6 Linha grega: a linha do perfil, especialmente do nariz, das mulheres gregas

    (conforme sua representao na escultura antiga).7 Tez: ctis, pele do rosto.8 De alto coturno: de elevada condio social.9 Arcanjo: anjo de ordem superior.10 John Milton (1608-1674): poeta ingls, autor de Paradise Lost (Paraso Perdido).11 Capear: enrolar (cigarro).12 Purpreo: vermelho escuro, da cor da prpura.13 Galhardo:elegante, bem-apessoado.14 Zurrapa: vinho ruim.15 Coxim: almofada.

    20 MACHADO DE ASSIS

    nesse particular. Tinha um serralho:5 a linha grega,6 a tez7 romana,a exuberncia turca, todas as perfeies de uma raa, todas asprendas de um clima, tudo era admitido no harm do Xavier. Umdia enamorou-se loucamente de uma senhora de alto coturno,8 eenviou-lhe de mimo trs estrelas do Cruzeiro, que ento contavasete, e no pense que o portador foi a qualquer p-rapado. No,senhor. O portador foi um dos arcanjos9 de Milton,10 que o Xavierchamou na ocasio em que ele cortava o azul para levar a admira-o dos homens ao seu velho pai ingls. Era assim o Xavier.Capeava11 os cigarros com um papel de cristal, obra finssima, e,para acend-los, trazia consigo uma caixinha de raios do sol. Ascolchas da cama eram nuvens purpreas,12 e assim tambm aesteira que forrava o sof de repouso, a poltrona da secretria e arede. Sabe quem lhe fazia o caf, de manh? A Aurora, comaqueles mesmos dedos cor-de-rosa que Homero lhe ps. PobreXavier! Tudo o que o capricho e a riqueza podem dar, o raro, oesquisito, o maravilhoso, o indescritvel, o inimaginvel, tudo tevee devia ter, porque era um galhardo13 rapaz, e um bom corao.Ah! fortuna, fortuna! Onde esto agora as prolas, os diamantes,as estrelas, as nuvens purpreas? Tudo perdeu, tudo deixou ir porgua abaixo; o nctar virou zurrapa,14 os coxins15 so a pedra dura

  • 16 Poupado: econmico.17 Expedir: remeter, enviar.18 Especulativo: meditativo, reflexivo.

    21O ANEL DE POLCRATES

    da rua, no manda estrelas s senhoras, nem tem arcanjos s suasordens ...

    ZVoc est enganado. O Xavier? Esse Xavier h de ser outro.

    O Xavier nababo! Mas o Xavier que ali vai nunca teve mais deduzentos mil-ris mensais; um homem poupado, 16sbrio, deita-se com as galinhas, acorda com os galos, e no escreve cartas anamoradas, porque no as tem. Se alguma expede17 aos amigos pelo correio. No mendigo, nunca foi nababo.

    ACreio; esse o Xavier exterior. Mas nem s de po vive o

    homem. Voc fala de Marta, eu falo-lhe de Maria; falo do Xavierespeculativo...18

    ZAh! Mas ainda assim, no acho explicao; no me consta

    nada dele. Que livro, que poema, que quadro ...

    ADesde quando o conhece?

    ZH uns quinze anos.

    A

  • 19 Estrear na rua do Ouvidor: comear a freqentar aquela rua, que era o centroelegante da poca, no Rio de Janeiro.

    20 Em pleno marqus de Paran: na poca do governo chefiado pelo marqus.21 Ter a convico de: acreditar em.22 Mesmo: prprio.23 Tocheiro: castial.

    22 MACHADO DE ASSIS

    Upa! Conheo-o h muito mais tempo, desde que ele estreouna rua do Ouvidor,19 em pleno marqus de Paran.20 Era umendiabrado, um derramado, planeava todas as coisas possveis, eat contrrias, um livro, um discurso, um medicamento, um jornal,um poema, um romance, uma histria, um libelo poltico, umaviagem Europa, outra ao serto de Minas, outra lua, em certobalo que inventara, uma candidatura poltica, e arqueologia, efilosofia, e teatro, etc., etc., etc. Era um saco de espantos. Quemconversava com ele sentia vertigens. Imagine uma cachoeira deidias e imagens, qual mais original, qual mais bela, s vezesextravagante, s vezes sublime. Note que ele tinha a convicodos21 seus mesmos22 inventos. Um dia, por exemplo, acordou como plano de arrasar o morro do Castelo, a troco das riquezas que osjesutas ali deixaram, segundo o povo cr. Calculou-as logo em milcontos, inventariou-as com muito cuidado, separou o que eramoeda, mil contos, do que eram obras de arte e pedrarias; descre-veu minuciosamente os objetos, deu-me dois tocheiros23 de ouro...

    ZRealmente...

    AAh! impagvel! Quer saber de outra? Tinha lido as cartas do

    cnego Benigno, e resolveu ir logo ao serto da Bahia, procurar acidade misteriosa. Exps-me o plano, descreveu-me a arquitetura

  • 24 Panrgio personagem de Gargantua e Pantagruel, de Franois Rabelais(pronncia: franu rabl; 1494?-1553): escritor francs.. Traduo do trechotranscrito: Como voc sabe, prprio do carneiro seguir o primeiro, onde querque ele v.

    25 Aplogo: pequena histria que ilustra algum princpio de sabedoria.

    23O ANEL DE POLCRATES

    provvel da cidade, os templos, os palcios, gnero etrusco, osritos, os vasos, as roupas, os costumes...

    ZEra ento doido?

    AOriginalo apenas. Odeio os carneiros de Panrgio, dizia ele,

    citando Rabelais: Comme vous savez estre du mouton le naturel,tousjours suivre le premier, quelque part quil aille.24 Comparavaa trivialidade a uma mesa redonda de hospedaria, e jurava queantes comer um mau bife em mesa separada.

    ZEntretanto, gostava da sociedade.

    AGostava da sociedade, mas no amava os scios. Um amigo

    nosso, o Pires, fez-lhe um dia esse reparo; e sabe o que que elerespondeu? Respondeu com um aplogo,25 em que cada sciofigurava ser uma cuia dgua, e a sociedade uma banheira. Ora,eu no posso lavar-me em cuias dgua, foi a sua concluso.

    ZNada modesto. Que lhe disse o Pires?

  • 26 Sofrer: suportar, aguentar.27 Verbo: palavra, fala.28 Cochilos de Homero: aluso a uma frase clebre, segundo a qual s vezes o

    bom Homero cochila, isto , mesmo os melhores erram..

    24 MACHADO DE ASSIS

    AO Pires achou o aplogo to bonito que o meteu numa

    comdia, da a tempos. Engraado que o Xavier ouviu o aplogono teatro, e aplaudiu-o muito, com entusiasmo; esquecera-se dapaternidade; mas a voz do sangue... Isto leva-me explicao daatual misria do Xavier.

    Z verdade, no sei como se possa explicar que um nababo...

    AExplica-se facilmente. Ele espalhava idias direita e

    esquerda, como o cu chove, por uma necessidade fsica, e aindapor duas razes. A primeira que era impaciente, no sofria26 agestao indispensvel obra escrita. A segunda que varria comos olhos uma linha to vasta de coisas, que mal poderia fixar-se emqualquer delas. Se no tivesse o verbo27 fluente, morreria decongesto mental; a palavra era um derivativo. As pginas queento falava, os captulos que lhe borbotavam da boca, s precisa-vam de uma arte de os imprimir no ar, e depois no papel, paraserem pginas e captulos excelentes, alguns admirveis. Nem tudoera lmpido; mas a poro lmpida superava a poro turva, comoa viglia de Homero paga os seus cochilos.28 Espalhava tudo, aoacaso, s mos cheias, sem ver onde as sementes iam cair; algumaspegavam logo...

    Z

  • 29 Despender: gastar.30 Botelha: garrafa, frasco.31 Saltimbanco: artista popular itinerante.32 Exaurir: esgotar.33 Faculdade: capacidade.34 Ssestrcio: moeda romana antiga.35 Horcio: poeta romano do sculo I a. C.36 Dracma: moeda da Grcia antiga.37 Pricles:grande estadista ateniense do sculo V a. C.38 Rafado: surrado, batido, gasto.

    25O ANEL DE POLCRATES

    Como a das cuias.

    AComo a das cuias. Mas, o semeador tinha a paixo das coisas

    belas, e, uma vez que a rvore fosse pomposa e verde, no lheperguntava nunca pela semente sua me. Viveu assim longos anos,despendendo29 toa, sem clculo, sem fruto, de noite e de dia, narua e em casa, um verdadeiro prdigo. Com tal regime, que era aausncia de regime, no admira que ficasse pobre e miservel.Meu amigo, a imaginao e o esprito tm limites; a no ser afamosa botelha30 dos saltimbancos31 e a credulidade dos homens,nada conheo inesgotvel debaixo do sol. O Xavier no s perdeuas idias que tinha, mas at exauriu32 a faculdade33 de as criar;ficou o que sabemos. Que moeda rara se lhe v hoje nas mos? quesestrcio34 de Horcio?35 que dracma36 de Pricles?37 Nada. Gastao seu lugar-comum, rafado38 das mos dos outros, come mesaredonda, fez-se trivial, chocho...

    ZCuia, enfim.

    A

  • 39 Chaparia de algibebe: enfeites de vendedor de roupas baratas.

    26 MACHADO DE ASSIS

    Justamente: cuia.

    ZPois muito me conta. No sabia nada disso. Fico inteirado;

    adeus.

    AVai a negcio?

    ZVou a um negcio.

    AD-me dez minutos?

    ZDou-lhe quinze.

    AQuero referir-lhe a passagem mais interessante da vida do

    Xavier. Aceite o meu brao, e vamos andando. Vai para a praa?Vamos juntos. Um caso interessantssimo. Foi ali por 1869 ou 70,no me recordo; ele mesmo que me contou. Tinha perdido tudo;trazia o crebro gasto, chupado, estril, sem a sombra de umconceito, de uma imagem, nada. Basta dizer que um dia chamourosa a uma senhora, uma bonita rosa; falava do luar saudoso,do sacerdcio da imprensa, dos jantares opparos, sem acrescen-tar ao menos um relevo qualquer a toda essa chaparia de algibe-be39. Comeara a ficar hipocondraco; e, um dia, estando janela,

  • 40 Desabusado das: maltratado pelas.41 Taful: janota, elegante afetado, mauricinho, na gria de hoje.42 Garbo: brio, galhardia.

    27O ANEL DE POLCRATES

    triste, desabusado das40 coisas, vendo-se chegado a nada, aconte-ceu passar na rua um taful41 a cavalo. De repente, o cavalocorcoveou, e o taful veio quase ao cho; mas sustentou-se, e meteuas esporas e o chicote no animal; este empina-se, ele teima; muitagente parada na rua e nas portas; no fim de dez minutos de luta, ocavalo cedeu e continuou a marcha. Os espectadores no sefartaram de admirar o garbo,42 a coragem, o sangue-frio, a arte docavaleiro. Ento o Xavier, consigo, imaginou que talvez ocavaleiro no tivesse nimo nenhum; no quis cair diante de gente,e isso lhe deu a fora de domar o cavalo. E da veio uma idia:comparou a vida a um cavalo xucro ou manhoso; e acrescentousentenciosamente: Quem no for cavaleiro, que o parea. Real-mente, no era uma idia extraordinria; mas a penria do Xaviertocara a tal extremo, que esse cristal pareceu-lhe um diamante. Elerepetiu-a dez ou doze vezes, formulou-a de vrios modos, ora naordem natural, pondo primeiro a definio, depois o complemento;ora dando-lhe a marcha inversa, trocando palavras, medindo-as,etc.; e to alegre, to alegre como casa de pobre em dia de peru.De noite, sonhou que efetivamente montava um cavalo manhoso,que este pinoteava com ele e o sacudia a um brejo. Acordou triste;a manh, que era de domingo e chuvosa, ainda mais o entristeceu;meteu-se a ler e a cismar. Ento lembrou-se... Conhece o caso doanel de Polcrates?

    ZFrancamente, no.

  • 43 Plnio, chamado o Jovem: escritor romano do sculo I.44 Estrambtico: extraordinrio.45 Capiorismo: m sorte.

    28 MACHADO DE ASSIS

    ANem eu; mas aqui vai o que me disse o Xavier. Polcrates

    governava a ilha de Samos. Era o rei mais feliz da terra; to feliz,que comeou a recear alguma viravolta da Fortuna, e, para aplac-la antecipadamente, determinou fazer um grande sacrifcio: deitarao mar o anel precioso que, segundo alguns, lhe servia de sinete.Assim fez; mas a Fortuna andava to apostada em cumul-lo deobsquios, que o anel foi engolido por um peixe, o peixe pescadoe mandado para a cozinha do rei, que assim voltou posse do anel.No afirmo nada a respeito desta anedota; foi ele quem me contou,citando Plnio,43 citando...

    Z

    No ponha mais na carta. O Xavier naturalmente comparoua vida, no a um cavalo, mas...

    ANada disso. No capaz de adivinhar o plano estrambtico44

    do pobre-diabo. Experimentemos a fortuna, disse ele; vejamos sea minha idia, lanada ao mar, pode tornar ao meu poder, como oanel de Polcrates, no bucho de algum peixe, ou se o meu caiporis-mo45 ser tal, que nunca mais lhe ponha a mo.

    ZOra essa!

  • 46 Distino nobiliria: fato de ser distinguido com um ttulo de nobreza.47 Panegirista: aquele que faz um panegrico, ou seja, discurso em louvor de

    algum.

    29O ANEL DE POLCRATES

    ANo estrambtico? Polcrates experimentara a felicidade; o

    Xavier quis tentar o caiporismo; intenes diversas, ao idntica.Saiu de casa, encontrou um amigo, travou conversa, escolheuassunto, e acabou dizendo o que era a vida, um cavalo xucro oumanhoso, e quem no for cavaleiro que o parea. Dita assim, estafrase era talvez fria; por isso o Xavier teve o cuidado de descreverprimeiro a sua tristeza, o desconsolo dos anos, o malogro dosesforos, ou antes os efeitos da imprevidncia, e quando o peixeficou de boca aberta, digo, quando a comoo do amigo chegou aocume, foi que ele lhe atirou o anel, e fugiu a meter-se em casa. Istoque lhe conto natural, cr-se, no impossvel; mas agoracomea a juntar-se realidade uma alta dose de imaginao. Sejao que for, repito o que ele me disse. Cerca de trs semanas depois,o Xavier jantava pacificamente no Leo de Ouro ou no Globo, nome lembro bem, e ouviu de outra mesa a mesma frase sua, talvezcom a troca de um adjetivo. Meu pobre anel, disse ele, eis-teenfim no peixe de Polcrates. Mas a idia bateu as asas e voou,sem que ele pudesse guard-la na memria. Resignou-se. Diasdepois, foi convidado a um baile: era um antigo companheiro dostempos de rapaz, que celebrava a sua recente distino nobiliria.46

    O Xavier aceitou o convite, e foi ao baile, e ainda bem que foi,porque entre o sorvete e o ch ouviu de um grupo de pessoas quelouvavam a carreira do baro, a sua vida prspera, rgida, modelo,ouviu comparar o baro a um cavaleiro emrito. Pasmo dosouvintes, porque o baro no montava a cavalo. Mas opanegirista47 explicou que a vida no mais do que um cavalo

  • 30 MACHADO DE ASSIS

    xucro ou manhoso, sobre o qual ou se h de ser cavaleiro ouparec-lo, e o baro era-o excelente. Entra, meu querido anel,disse o Xavier, entra no dedo de Polcrates. Mas de novo a idiabateu as asas, sem querer ouvi-lo. Dias depois...

    ZAdivinho o resto: uma srie de encontros e fugas do mesmo

    gnero.

    AJusto.

    ZMas, enfim, apanhou-o um dia.

    AUm dia s, e foi ento que me contou o caso digno de

    memria. To contente que ele estava nesse dia! Jurou-me que iaescrever, a propsito disto, um conto fantstico, maneira deEdgard Poe, uma pgina fulgurante, pontuada de mistrios, soas suas prprias expresses; e pediu-me que o fosse ver no diaseguinte. Fui; o anel fugira-lhe outra vez. Meu caro A, disse-meele, com um sorriso fino e sarcstico; tens em mim o Polcrates docaiporismo; nomeio-te meu ministro honorrio e gratuito. Da emdiante foi sempre a mesma coisa. Quando ele supunha pr a moem cima da idia ela batia as asas, pls, pls, pls, e perdia-se noar, como as figuras de um sonho. Outro peixe a engolia e trazia, esempre o mesmo desenlace. Mas dos casos que ele me contounaquele dia, quero dizer-lhe trs...

    ZNo posso; l se vo os quinze minutos.

  • 48 Ao p: junto.49 Et nunc et semper...(latim): e agora e sempre... Frmula da liturgia catlica.

    31O ANEL DE POLCRATES

    AConto-lhe s trs. Um dia, o Xavier chegou a crer que podia

    enfim agarrar a fugitiva, e finc-la perpetuamente no crebro.Abriu um jornal de oposio, e leu estupefato estas palavras: Oministrio parece ignorar que a poltica , como a vida, um cavaloxucro ou manhoso, e, no podendo ser bom cavaleiro, porquenunca o foi, devia ao menos parecer que o . Ah! enfim!exclamou o Xavier, c ests engastado no bucho do peixe; j meno podes fugir. Mas, em vo! a idia fugia-lhe, sem deixar outrovestgio mais do que uma confusa reminiscncia. Sombrio,desesperado, comeou a andar, a andar, at que a noite caiu;passando por um teatro, entrou; muita gente, muitas luzes, muitaalegria; o corao aquietou-se-lhe. Cmulo de benefcios; era umacomdia do Pires, uma comdia nova. Sentou-se ao p48 do autor,aplaudiu a obra com entusiasmo, com sincero amor de artista e deirmo. No segundo ato, cena VIII, estremeceu. D. Eugnia, diz ogal a uma senhora, o cavalo pode ser comparado vida, que tambm um cavalo xucro ou manhoso; quem no for bom cavalei-ro, deve cuidar de parecer que o . O autor, com o olhar tmido,espiava no rosto do Xavier o efeito daquela reflexo, enquanto oXavier repetia a mesma splica das outras vezes: Meu queridoanel...

    ZEt nunc et semper...49 Venha o ltimo encontro, que so

    horas.

    A

  • 50 Escrnio: zombaria, gozao.51 Parricida: assassino do pai.52 Transido: impregnado, repassado, cheio.53 Pio:piedoso.54 Legado: herana.

    32 MACHADO DE ASSIS

    O ltimo foi o primeiro. J lhe disse que o Xavier transmitiraa idia a um amigo. Uma semana depois da comdia cai o amigodoente, com tal gravidade que em quatro dias estava morte. OXavier corre a v-lo; e o infeliz ainda o pde conhecer, estender-lhe a mo fria e trmula, cravar-lhe um longo olhar bao da ltimahora, e, com a voz sumida, eco do sepulcro, soluar-lhe: C vou,meu caro Xavier, o cavalo xucro ou manhoso da vida deitou-me aocho: se fui mau cavaleiro, no sei; mas forcejei por parec-lobom. No se ria; ele contou-me isto com lgrimas. Contou-metambm que a idia ainda esvoaou alguns minutos sobre ocadver, faiscando as belas asas de cristal, que ele cria serdiamante; depois estalou um risinho de escrnio,50 ingrato eparricida,51 e fugiu como das outras vezes, metendo-se no crebrode alguns sujeitos, amigos da casa, que ali estavam, transidos52 dedor, e recolheram com saudade esse pio53 legado54 do defunto.Adeus.

  • 33

    CCERO

    Marco Tlio Ccero (106-43 a. C.) foi um dos maiores oradores,escritores e polticos romanos. Sua participao na vida de Roma foicentral durante um perodo de quase quarenta anos, perodo dos maisagitados da histria romana, em que se desencadeou a crise final daRepblica. Ocupou importantes cargos polticos e administrativos,inclusive o posto de cnsul, que era o topo do poder executivo naRepblica romana. Seus discursos, seja como advogado, seja comopoltico, esto entre os mais clebres da histria. Dos mais famosos soos que constituem a srie conhecida como Verrinas, em que ele ataca, deforma candente e arrasadora, um poltico e administrador corrupto, CaioVerres, ou as Catilinrias, em que ele denuncia outro poltico, Catilina,que planejava a tomada violenta do poder em Roma.

    So muito importantes tambm suas cartas e seus tratados retricos(sobre a arte oratria) e filosficos. Entre estes ltimos, nos quais Ccerodivulga doutrinas de escolas filosficas gregas, est a obra conhecidacomo Discusses Tusculanas, que consistem em palestras feitas por eleem sua casa de campo em Tsculo, versando grandes temas da existncia(a imortalidade da alma, as paixes, o sofrimento, a virtude, a sabedoria).Como comum em autores antigos, Ccero ilustra suas exposies comhistrias como as aqui apresentadas.

    Depois de uma vida passada nos pncaros do poder republicano, emmeio glria e tambm desgraa (ele chegou a ser banido de Roma),Ccero morreu junto com a Repblica romana, vitimado tanto por suaindeciso poltica, quanto pela inclemncia de seus adversrios: depoisdo assassinato de Csar, ele hesitantemente procurou aproximar-se deAugusto e combateu Marco Antnio, que, aliando-se a Augusto, mandoumatar Ccero e decepar-lhe as mos.

  • 35

    NASICA E NIO

    Ccero

    Nasica foi visitar o poeta nio e, perguntando por ele entrada, uma escrava lhe disse que nio no estava em casa;Nasica, porm, percebeu que ela tinha respondido por ordem doseu amo e que este se encontrava em casa.

    Poucos dias depois, nio foi casa de Nasica e, perguntan-do por ele porta, Nasica exclamou que no estava em casa.

    Diz nio: O qu? Ento no conheo a tua voz?Responde Nasica: Tu s um sem-vergonha. Quando eu te procurei,

    acreditei no que disse tua escrava que no estavas em casa, e tu no acreditas no que eu mesmo digo!

    (Traduo do latim: FRANCISCO ACHCAR.)

  • 1 Digenes: filsofo grego que viveu entre 413 e 323 a. C. dos fundadores dadoutrina chamada cnica (em grego cnico, kyniks, vem da palavra kyonkynos, co), que pregava a oposio radical s convenes sociais (isto :oposio s leis, cultura e moral vigentes), porque estas no seriamadequadas vida conforme natureza. Dizia-se que Digenes, para aproximar-sedo estado natural, vivia quase nu e morava num tonel. Alexandre: AlexandreMagno (ou o Grande) (356-323 a. C.), rei da Macednia, grande conquistador.

    36

    DIGENES E ALEXANDRE1

    Ccero

    Digenes, o cnico, assim respondeu a Alexandre,quando este lhe perguntou se precisava de alguma coisa:

    Afasta-te um pouco do sol.Alexandre estava fazendo sombra para Digenes, que

    tomava sol.

    (Traduo do latim: FRANCISCO ACHCAR.)

  • HISTRIAS MORAIS

  • 39

    ESOPO

    Pouco se sabe sobre a vida de Esopo. Parece ter sido escravo,procedente da Frgia, na sia Menor, e ter vivido no sculo VI a.C.Esopo um dos primeiros prosadores da Grcia e de todo o Ocidente, ea ele se atribui um extenso conjunto de fbulas, narrativas de carterpopular e tradicional. Esopo citado como um clebre autor de fbulasj pelo historiador Herdoto (480-425 a.C.). Algumas delas, muitodivertidas, foram utilizadas no teatro pelo maior autor de comdias daGrcia antiga, Aristfanes (448-380 a.C.).

    As fbulas de Esopo ofereceram material e serviram de inspiraoa escritores de muitas pocas. Seu enredo breve e elementar, e suaforma de expresso simples e esquemtica. Quase todas possuem,como protagonistas, animais que personificam sentimentos do homeme conflitos da sociedade. A imagem tradicional de Esopo a de ummoralista severo, mas ela tem sido revista pelos estudos e descobertasque continuam a ser feitos sobre o autor. Esopo visto, hoje, como umescritor de fbulas sarcsticas e cruis, por vezes grosseiras e at mesmoviolentas.

  • 1 Cordeiro: carneiro pequeno, filhote de ovelha.2 Ardil: astcia, artimanha, artifcio.3 Cidades: na Grcia antiga, as cidades equivaliam, em muitos sentidos, ao que

    hoje chamamos pases.

    41

    OS LOBOS E OS CORDEIROS1

    Esopo

    Alguns lobos queriam atacar um rebanho de cordeiros.Como no eram capazes de vencer os cordeiros, por causa dosces que guardavam o rebanho, os lobos concluram que seriapreciso faz-lo por meio de um ardil.2 Assim, enviaram embai-xadores aos cordeiros para lhes pedir que lhes entregassem osces, dizendo que eram esses animais, na verdade, os respons-veis pela inimizade que existia entre eles, e que, se os cordeiroslhes entregassem os ces, a paz viria a reinar entre eles. Oscordeiros, no prevendo o que iria ocorrer a seguir, entregaram-lhes os ces. E assim os lobos venceram facilmente os cordeirose destruram todo o rebanho, uma vez que ele ficara indefeso.

    Assim tambm ocorre com as cidades3 que, entregandofacilmente seus lderes, esquecem-se de que tambm elasestaro, rapidamente, nas mos de seus inimigos.

    (Traduo do grego: ROGRIO HAFEZ.)

  • 42

    O MACACO E O GOLFINHO

    Esopo

    costume, para os que viajam pelo mar, levar consigomacacos e cachorrinhos de Malta, a fim de ter diverso durantea viagem. Assim, um homem que navegava trazia consigo ummacaco. Quando chegaram ao cabo Snio, o promontrio datica, sobreveio uma violenta tempestade. O navio se revirou,todos tentavam salvar-se a nado, e o macaco tambm tentavanadar. Um golfinho, avistando-o e pensando que se tratasse deum homem, veio pr-se sob o macaco e o susteve,transportando-o at a terra firme. Chegando ao Pireu, entrepostomartimo de Atenas, perguntou ao macaco se ele era de umafamlia ateniense. Como o macaco respondesse que sim,afirmando descender de antepassados ilustres da cidade, ogolfinho perguntou-lhe ento se ele conhecia o Pireu. Omacaco, supondo que o golfinho se referisse a um homem, disseque se tratava de algum que lhe era de fato muito querido, ecom quem ele muito se dava. E o golfinho, revoltando-se comuma tal mentira, mergulhou o macaco na gua e o afogou.

    Esta estria se aplica aos homens que, desconhecendo averdade, tm o costume de enganar os outros.

    (Traduo do grego: ROGRIO HAFEZ.)

  • 1 Zeus: deus maior da mitologia grega, senhor dos cus e do Olimpo.2 Apolo: um dos principais deuses da mitologia grega, filho de Zeus e Leto. Apolo

    , entre outras coisas, o deus da luz, da profecia e da msica, especialmente dalira; como deus guerreiro, tem o arco e a flecha como um de seus principaisatributos.

    3 Retesar: tornar tenso; esticar.

    43

    ZEUS E APOLO

    Esopo

    Zeus1 e Apolo2 faziam uma disputa no tiro de arco eflecha. Apolo, retesando3 ao mximo a corda de seu arco,lanou sua flecha, e Zeus, num passo, avanou a perna tolonge quanto a flecha lanada por Apolo.

    Eis o que ocorre quele que luta contra adversrios maisfortes: alm de no atingi-los, ainda se expe ao riso dos outros.

    (Traduo do grego: ROGRIO HAFEZ.)

  • 1 Baliza: meta ou marco que indica o termo de uma competio.2 Indolente: negligente, preguioso, aptico.

    44

    A TARTARUGA E A LEBRE

    Esopo

    Uma tartaruga e uma lebre competiam para saber qualdas duas era mais rpida. E assim, determinaram um dia e umlocal como baliza1, e se separaram. A lebre, confiando naligeireza que lhe natural, no se preocupou com a corrida:deitou-se beira do caminho e adormeceu. J a tartaruga,consciente de sua lerdeza, no deixou de se apressar e, correndo frente da lebre adormecida, chegou ao termo final e conquis-tou o prmio da vitria.

    Esta fbula demonstra que o esforo vence, muitas vezes,a natureza indolente.2

    (Traduo do grego: ROGRIO HAFEZ.)

  • 1 Parreira: a vinha trepadeira, cujos ramos se firmam numa rvore.2 Uva verde: uva que no est madura.

    45

    A RAPOSA E O CACHO DE UVAS

    Esopo

    Uma raposa faminta, vendo alguns cachos de uvaspenderem de uma parreira,1 foi tomada pelo desejo de apanh-los, mas no conseguiu atingi-los. Enquanto se afastava, eladisse para si mesma: So apenas uvas verdes.2

    Assim tambm ocorre com alguns homens que, graas sua fraqueza, no sendo capazes de chegar ao fim de seus atos,acusam as circunstncias que encontraram.

    (Traduo do grego: ROGRIO HAFEZ.)

  • 1 Vasculhar: procurar cuidadosamente, investigar, esquadrinhar.2 Utenslio: qualquer instrumento de trabalho de que se serve um artista ou

    arteso.3 Cabea de espantalho: no antigo teatro grego, os atores e os membros do coro

    usavam mscaras completas, que recobriam no apenas o rosto, mas toda acabea. A expresso cabea de espantalho se refere, provavelmente, a umamscara dessas, usada para amedrontar.

    4 Miolos: a massa enceflica, o crebro. Em sentido figurado, a expresso designaa inteligncia, a razo.

    5 Desprovido: privado, carente (de algo).

    46

    A RAPOSA E A MSCARA

    Esopo

    Uma raposa entrou na casa de um ator, vasculhou1 cada umde seus utenslios2 e encontrou, entre outros objetos, uma cabeade espantalho,3 perfeitamente modelada. Apanhando-a nas mos,ela disse: Oh, que cabea! Mas no tem miolos.4

    Esta fbula se aplica aos homens que so formidveis decorpo, porm desprovidos5 de esprito.

  • FEDRO

    Fedro, que viveu de 15 a. C. a 50 d. C., nasceu na Trcia ou naMacednia e, provavelmente aprisionado ainda jovem, foi levado aRoma como escravo. Liberto, conheceu grandes dificuldades e sofreucondenao num processo que contra ele moveu Sejano, o todo poderosocolaborador do imperador Tibrio. O processo deveu-se, possivelmente,a referncias crticas que Sejano e outros poderosos do momentoencontraram (ou pensaram encontrar) disfaradas nas fbulas compostaspelo poeta. Portanto, mesmo contando histrias de animais, a crticasocial e poltica era (e em diversos lugares ainda ) uma atividade muitoperigosa.

    Fedro seguiu o modelo das fbulas de Esopo, vrias vezes o que fezfoi traduzi-las em versos latinos, mas tambm se afastou delas e compsobras originais, como se pode ver da comparao entre os textos dos doisautores contidos no presente volume. Sua influncia na literaturaposterior foi enorme: muitos escritores traduziram seus poemas ouelaboraram variaes sobre eles. Um dos mais notveis poetas daliteratura francesa, La Fontaine, em grande parte um seguidor deFedro. At hoje, as fbulas de Fedro se prestam a ser aplicadas asituaes da vida, como se v dos textos, adiante apresentados, de JuBananere (que coloca o imigrante italiano na situao do cordeirooprimido pelo lobo) e de Nelson Ascher (que identifica o lobo com umoficial nazista e o cordeiro com o judeu que ele persegue).

    Como poeta, Fedro tem bons momentos; por exemplo, quando ocordeiro responde que no poderia estar sujando a gua bebida pelo lobo o verso, em latim, contm uma repetio insistente do som k (umaaliterao), que sugere a gagueira e o tremor do bichinho apavorado:Qui possum, quaeso, facere quod quereris, lupe? (pronncia: Kupoum, Kuio, fKere Kud Kureris, lupe? traduo: como posso,pergunto, fazer aquilo de que reclamas, lobo?).

  • 1 Langero: que produz l.2 Dilacerar: despedaar, rasgar em pedaos.

    49

    O LOBO E O CORDEIRO

    Fedro

    Olobo e o cordeiro tinham ido ao mesmo riacho, levadospela sede. O lobo estava mais acima e o cordeiro bem abaixo.Ento o bandido, estimulado por sua goela insacivel, introduziuum motivo de briga:

    Por que disse ele sujaste a gua que estou bebendo?Responde o langero:1

    Como posso, pergunto, fazer aquilo de que reclamas, lobo?A gua corre de ti para os meus goles.

    O lobo, repelido pela fora da verdade, diz: Seis meses atrs tu falaste mal de mim.O cordeiro respondeu: Mas eu ainda no tinha nascido. Por Hrcules diz o lobo , o teu pai falou mal de mim.E assim, agarrando o cordeiro, o dilacera2, num cruel

    assassinato.Esta histria foi escrita por causa daqueles homens que

    oprimem os inocentes com razes falsas.

    (Traduo do latim: FRANCISCO ACHCAR.)

  • 1 Presa: aquilo de que o animal carniceiro se apodera para comer.2 Avidez: cobia, ambio; desejo ardente, imoderado, de alguma coisa. Aqui

    uma figura de linguagem: seja uma metonmia, porque se usa um termo abstrato,avidez, para substituir o termo concreto, co, seja uma sindoque (figura irm dametonmia), porque o todo, co, representado por uma de suas partes (aqui,uma de suas caractersticas), a avidez. Portanto, a avidez enganada quer dizero co vido enganado.

    50

    O CO E O PEDAO DE CARNE

    Fedro

    Quem cobia o alheio, perde merecidamente o que seu.Um co, nadando pelo rio e levando um pedao de carne, viu

    a sua imagem no espelho das guas. Julgando que fosse outrapresa1 levada por outro co, desejou agarr-la. Mas a avidez2

    enganada soltou o alimento que segurava na boca e nem ao menospde tocar naquele que cobiava.

    (Traduo do latim: FRANCISCO ACHCAR.)

  • 1 Mscara trgica: como j se viu, no teatro grego e depois no romano os atoresvestiam mscaras. Cada tipo de mscara identificava um tipo de personagem (ovelho, o escravo malandro, a mocinha, etc.) e um gnero (tragdia oucomdia).

    51

    A RAPOSA E A MSCARA TRGICA1

    Fedro

    Uma raposa viu por acaso uma mscara trgica: Quanta beleza exclama no tem crebro!Isto se diz para aqueles a quem a fortuna deu prestgio e

    glria, mas negou o senso comum.

    (Traduo do latim: FRANCISCO ACHCAR.)

  • 52

    A RAPOSA E AS UVAS

    Fedro

    Forada pela fome, uma raposa cobiava as uvas de umaalta parreira, pulando com todas as suas foras. Como no pdealcanar as uvas, afastou-se dizendo:

    Ainda no esto maduras; no quero apanh-la azeda.Aqueles que desprezam com palavras as coisas que no

    conseguem fazer devem aplicar a si este exemplo.

    (Traduo do latim: FRANCISCO ACHCAR.)

  • 55

    LA FONTAINE

    Jean de La Fontaine (pronncia: j de la ftn[e]) nasceu em 1621e morreu em 1695, na Frana. Escreveu comdias, poemas e narrativasem verso, mas foram as fbulas que o fizeram clebre. Nessas fbulas,ele utiliza material presente em Esopo, em Fedro, em obras da IdadeMdia e do Renascimento, alm de, provavelmente, ter recorrido aelementos que encontrou em fabulrios da ndia.

    A elegncia, a fluncia, a informalidade, a variedade de registroslingsticos (ora uma linguagem simples e popular, ora um discurso cultoe elevado) e a viso crtica cheia de humor e penetrao tudo isso fazde La Fontaine um dos maiores poetas da Frana.

    A traduo apresentada de um poeta neoclssico portugus dosculo XVIII, Francisco Manuel Gomes da Silveira Malho. Emboraelegante e agradvel, esta traduo no tem o alto nvel do originalfrancs.

  • 1 De: por.2 Veia: veio, curso de gua.3 Desavir-se: desentender-se.4 Rs: quadrpede usado na alimentao humana.5 Turvar: escurecer, sujar.

    57

    O LOBO E O CORDEIRO

    La Fontaine

    De1 ardente sede obrigados,Foram ao mesmo ribeiroA beber das frescas guasUm lobo e mais um cordeiro.

    O lobo ps-se da parteDe onde o regato nascia;O cordeiro, mais abaixo,Na veia2 de gua bebia.

    A fera, que desavir-se3

    Coa mansa rs4 desejava,Num tom severo e medonho,Desta sorte lhe falava:

    Por que motivo me turvas5

    A gua que estou bebendo?E o cordeirinho inocente

  • 6 Enfadar-te: aborrecer-te.7 Rebatida da verdade: rechaada, repelida pela verdade.8 Cerval: feroz.9 Aqui haver seis meses: hoje deve estar fazendo seis meses.10 Sei: sei que.11 Aleive: traio, acusao falsa.12 Lacerar: dilacerar, despedaar.

    58 LA FONTAINE

    Assim respondeu, tremendo:

    Qual seja a razo que tenhas De enfadar-te,6 no percebo!Tu no vs que de ti corre A mim esta gua que bebo?

    Rebatida7 da verdade,Tornou-lhe a fera cerval:8

    Aqui haver9 seis meses,Sei10 de mim disseste mal.

    Respondeu-lhe o cordeirinhoDe frio medo oprimido: Nesse tempo, certamente, Inda eu no era nascido!

    Que importa? Se tu no foste,Disse o lobo carniceiro,Foi teu pai. E, por aleives,11

    Lacera12 o pobre cordeiro!

    Esta fbula d bradosContra aqueles insolentes

  • 59O LOBO E O CORDEIRO

    Que por delitos fingidosOprimem os inocentes.

    (Traduo do francs: F. M. G. DA SILVEIRA MALHO.)

  • 61

    JU BANANERE

    Ju Bananere (pronncia com aberto: bananre) o pseudni-mo literrio de Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, nascido em1892 e falecido em 1933, em So Paulo. Foi engenheiro, mas desde aadolescncia dedicou-se composio de stiras (escritos que criticamou ridicularizam pessoas e situaes). Essas stiras, publicadas especial-mente numa revista muito popular na poca, O Pirralho, fizeram dosuposto autor uma verdadeira personagem da vida paulista: Ju Bananereera o imigrante italiano que participava da atividade poltica e jornalsti-ca da cidade (ele se apresentava como barbiere e giornalista),simbolizando o grupo do talo-paulistas em ascenso social e vtimas dadiscriminao preconceituosa dos velhos paulistas.

    O que h de mais notvel nos textos de Ju Bananere, tanto emprosa como em verso, a utilizao de uma linguagem tecnicamenteclassificada como macarrnica, por consistir na mistura de duaslnguas, ou na contaminao de uma lngua por outra. No caso, trata-sedo portugus italianado, que o autor imitava da linguagem dos talo-brasileiros que tanto influenciaram o falar paulista, como at hoje senota. A obra principal de Ju Bananere uma coletnea de poemasintitulada La Divina Increnca (1924), toda escrita nesse dialeto talo-portugus e constituda de pardias (textos que imitam outros textos demaneira brincalhona e crtica). Os textos parodiados so poemas famososda literatura brasileira, portuguesa e universal (j no ttulo h umabrincadeira com uma das maiores obras da poesia mundial, La DivinaCommedia, de Dante Alighieri).

  • 1 Gorderigno: cordeirinho. A pronncia gorderinho, pois o grupo gn deve, comoem italiano, ser pronunciado como nh.

    2 Ribeir: ribeiro (note a transformao do -o em -).3 Chi: que. A pronncia do de ch sempre k; portanto, chi pronuncia-se ki (ou

    qui). Outras vezes Bananere grafa che.4 Billezinho: Belenzinho, bairro de S. Paulo onde houve grande concentrao de

    imigrantes italianos.5 Casi: ocasio.6 Abebia: bebia. Os italianos adotaram a tendncia vulgar da fala brasileira de

    acrescentar a diversos verbos o prefixo a-: arretirar, por retirar, etc.7 Chetigno: quietinho. Pronncia, como se viu: ketinho (quetinho).8 Juriti: ave que, ao contrrio do que seria de esperar no contexto, no muda,

    pois conhecida por seu canto melanclico.9 Quano: quando. tendncia da pronncia italianada reduzir -nd- a -n-.10 Sa: saiu. A palavra oxtona: sa; acento grave imita a forma italiana de certos

    verbos no perfeito.

    63

    O LOBO I O GORDERIGNO1

    Fbula di LafontanaTradu du Bananere

    Un dia n'un ribeir,2Chi3 t l nu Billezinho,4

    Bebia certa casi5

    Un bunito gorderigno.

    Abebia6 o gorderigno,Chetigno7 come un juriti,8

    Quano9 du matto vizignoUn brutto lobo sa.10

  • 11 Zoglios: olhos. O grupo gl deve, como em italiano, ser pronunciado como lh.12 Arrigal: arregalou.13 Fui: foi.14 Gargamano: carcamano. Designao pejorativa dada aos imigrantes italianos.15 Int: ento.16 Brutta: feia (palavra italiana incorporada linguagem italianada de So Paulo

    e corrente at hoje).17 Aparlano: falando. Formado do italiano parlare, com o prefixo -a.18 Incelncia: excelncia. Tratamento muito formal e respeitoso.19 St io: estou eu.20 Nessun ribero ne rio: nenhum riacho nem rio.21 Bananere se afasta s vezes do metro (medida do verso) de sete slabas; nesta

    estrofe, abandonou tambm o esquemade rimas ABAB.

    64 JU BANANERE

    O lobo ass che inxergO pobre gordero bibeno,Os zoglios11 arrigal12

    I logo gi fui13 dizeno:

    Ol! s gargamano!14

    Int15 vuc non st veno,Che vuc mi st sujanoA gua che io st bibeno!?

    Ista una brutta16 galniaChe o signore st livantano!Vamos xam as tistimunia,Foi o gordero aparlano...17

    Num v int, incelncia,18

    Che du lado d'imbaixo st io19

    I che nessun ribero ne rio,20

    Non gorre nunca p'ra cima?21

  • 22 Pau dgua: bbado.23 Maise: mais. 24 Istas prosa: estas conversas.25 Indade: idade.26 Erm: irmo.27 Mixida: confuso.28 Mex: mexeu.

    65O LOBO I O GORDERIGNO

    Eh! non quero sab di nada!Si vuc non sugi a gua,Fui vuc chi a simana passadaAnd dizeno qui io s un pau d'gua.22

    Mio Deuse! che farsidade!Che genti maise23 mentirosa,Come cunt istas prosa,24

    Si tegno seis dia d'indade?!25

    Si non fui vuc chi aparl,Fui un molto apparicido,Chi tamb tigna o pello cumpridoI di certo tuo erm.26

    Giuro, inlustre amigo,Che isto tamb inven!Perch verdade o che digo,Che nunca tive un erm.

    Pois se non fui tuo erm,Cabemos con ista mixida;27

    Fui di certo tuo avChe mex28 c'oa migna vida.

  • 29 Acusi (oxtono: acus): assim. Do italiano cos.30 Apig: pegou.31 Muque: fora bruta.

    66 JU BANANERE

    I aveno acusi29 parlato,Apig30 nu gorderigno,Carreg illo p'ru mattoI comeu illo intirigno.

    MORALE: O que vale nista vida o muque! 31

  • 67

    NELSON ASCHER

    Nascido em 1958, em So Paulo, Nelson Ascher poeta, crtico,jornalista e tradutor de poesia. A Fbula que leremos, extrada de seultimo livro de poemas, Algo de Sol (1996), um exemplo brilhante daironia, do humor, da crtica aguda e da habilidade que caracterizam aproduo deste escritor culto e verstil. O texto foi composto por ocasiodo terceiro centenrio da morte de La Fontaine (1995).

    Parte significativa da poesia de Nelson Ascher destina-se aapreciadores de poesia que j tenham alguma experincia literria; seuspoemas so geralmente elaborados em longas frases enredadas, quepedem leitura paciente e armam uma sofisticada rede de refernciasculturais. O poema seguinte, porm, pode ser entendido com pequenoesforo. Ele faz parte do livro de estria do autor, Ponta da Lngua(1983), e constitui o que se chama uma arte potica, pois se refere poesia, especificamente a de Nelson Ascher. Nele o poeta descreve, comuma imagem forte (afiar a lmina), seu trabalho cuidadoso, perfeccionis-ta, at obsessivo. Fala tambm de um elemento central da sua potica,isto , da sua concepo de poesia: a relao enviesada entre o autore seu texto. No falta a esta pequena e primorosa composio um levetoque de humor e auto-ironia, caractersticos do poeta.

    meu verso

    meu verso afio(navalha velha)dias a fioe se me espelha mas no me fio s de esguelha

    Vocabulrio: Fiar-se: confiar.Espelhar: refletir, retratar.De esguelha: obliquamente, de lado, indiretamente.

    Nota: O sujeito de espelha , evidentemente, meu verso.

  • 1 Principal rio da Polnia; beira dele que se situa a capital do pas, Varsvia.2 Baranwicz: sobrenome polons derivado do radical eslavo baran, cordeiro.3 Wolfgang: nome alemo formado com wolf, lobo.4 Sobranceiro: 1. que est superior, acima de, e 2. orgulhoso, arrogante.5 Na Idade Mdia, os judeus eram habitualmente acusados de envenenar as guas

    de poos, fontes e rios e de serem, portanto, os causadores da Peste Negra.6 Irrelevante: sem importncia.7 Muitos anti-semitas proclamam que todos os judeus so ricos e dominam as

    finanas do mundo.

    69

    FBULA

    Nelson Ascher

    Bebia gua no Vstula1 um cordeirochamado Baranwicz,2 quando um lobo,coronel Wolfgang,3 veio e, sobranceiro,4

    lhe disse:

    Voc pensa que sou bobo,que eu no o vejo envenenando o rioh muitos anos e espalhando a Peste?5

    Mas ns morremos sculos a fio,tambm, de causa igual.

    No me molestecom esse irrelevante6 pormenor.Vocs so todos ricos e eu sou pobre7.

  • 8 A leste da Polnia e, portanto, do Vstula, ficava a Unio Sovitica.9 Ovino: referente a ovelha. Os judeus eram acusados pelos anti-semitas de

    serem ao mesmo tempo capitalistas e comunistas; bolchevista um sinnimo decomunista.

    10 O urso um animal habitualmente associado Rssia e os russos.11 Cosmopolita: cidado do mundo, que no toma nenhum pas como ptria.

    Cosmopolitas, aptridas e desenraizados eram outras acusaes feitastanto pelos direitistas quanto pelos esquerdistas contra os judeus.

    12 De acordo com a doutrina nazista, a humanidade se dividia numa hierarquia deraas e no topo destas estavam os arianos, isto , basicamente os prpriosalemes. O termo ariano vem de uma antiga palavra indo-europia quesignificava nobre e est na raiz do termo ARIstocrata.

    13 Pedante: pretensioso, que procura exibir conhecimentos que no possui.14 Jogo de palavras entre ariano (aristocrata) e ariano (derivado de aries,

    carneiro, em latim, palavra formada com uma raiz diferente).

    70 NELSON ASCHER

    Como sou rico se no tenho um cobre?Os Senhores controlam a maiorempresa, enquanto estou desempregado.

    Voc conspira e apia, do outro ladodo Vstula, o inimigo.8 No insista,capitalista-ovino-bolchevista.9

    Mas os ursos10 de l, seus caros primos,nos comem com desculpa semelhante...

    Voc, cosmopolita11 como vimos,no nada ariano.12

    Como assim?Perdoe-me, no queria ser pedante,13

    mas aries14 carneiro em bom latim.

    Sei disso e, embora seja um lobo culto,

  • 15 Kulturwolf (alemo; pronncia kulturrvolf): lobo ligado cultura. Trata-se deum jogo de palavras com Kulturvolk (pronncia kulturrfolk), povo ligado cultura, que como muitos alemes nacionalistas gostavam de se definir.

    16 At os anos 60 do presente sculo, a prpria Igreja catlica acusava os judeus deterem sido os assassinos de Cristo.

    17 Referncia ao fato de que foram as autoridades romanas (que na poca de Cristogovernavam a Judia) que realmente executaram Jesus. Segundo um mitoantigo, as origens de Roma estariam ligadas a uma loba, que teria alimentado osgmeos Rmulo e Remo.

    18 Algoz: carrasco.19 Agnus Dei (latim): cordeiro de Deus, um dos eptetos de Cristo e referncia

    tambm ao costume religioso judaico daqueles tempos de sacrificar cordeirosdurante o Pessach (a Pscoa judaica) no Templo de Jerusalm.

    20 Pilhria: brincadeira, piada.21 No julgamento dos nazistas em Nuremberg, todos eles, inclusive generais e

    outros lderes, alegaram que estavam apenas cumprindo ordens.22 Aprisco: curral.23 Oswicin (polons; pronncia ochuintsin): nome polons de Auschwitz, o

    principal campo nazista de extermnio. Na Europa Oriental, muitos lugares tmnomes em duas ou trs lnguas diferentes. Auschwitz uma localidade naPolnia.

    24 Na entrada de Auschwitz estava escrito, em alemo: O trabalho libera.

    71FBULA

    um Kulturwolf,15 no lhe darei indultoporque vocs mataram Jesus Cristo.16

    Foi a loba romana17 que fez istoe mesmo que um cordeiro fosse o algoz18

    de quem, como Agnus Dei,19 era um de ns,seria assunto nosso.

    Ovino ariscoe cnico, j chega de pilhria.20

    Ordens se cumprem:21 vamos, pois no aprisco22

    de Oswicin23 h trabalho que libera.24

    Farei, aps hav-lo tosquiado,com sua pele de cordeiro um manto

  • 25 Referncia aos versos de Roberto Carlos: S quero que voc / Me aquea nesteinverno / E que tudo mais / V pro inferno.

    26 A batalha de Stalingrado (cidade russa beira do Volga), no inverno de 42/43,foi a primeira grande derrota dos alemes na sua invaso da Unio Sovitica.

    27 Referncia ao fato de que a maior parte dos pases ocupados pelos nazistas ouseus aliados, quando no colaboraram ativamente com o extermnio dos judeus,acompanharam esse processo com indiferena ou at com certa satisfao.

    28 O autor brinca com os ttulos pomposos de muitos tratados filosficos alemese faz referncia ao principal filsofo alemo deste sculo, Martin Heidegger, quesimpatizou com o nazismo.

    29 Referncia ao fato de que, no aps-guerra (ou seja, a partir de 1945), num quadropoltico polarizado entre a direita e a esquerda, o anti-semitismo, antes prprioda direita, passou a ter seu lugar tambm esquerda.

    72 NELSON ASCHER

    para aquecer-me neste inverno25 enquantons lobos conquistamos Stalingrado.26

    Desprezando os balidos derradeirosde Baranwicz livres dos cordeiros! ,os outros ruminantes, todavia,pastavam perto sem perder a calma.27

    Wolfgang, formando-se em filosofiaanos depois (com tese acerca D'AlmaLupina e seu Transcendental Destino),28

    reingressou, pela esquerda, na poltica(no sem antes fazer sua autocrtica)para conter o imperialismo ovino.29

  • HISTRIA FILOSFICA

  • 75

    VOLTAIRE

    Voltaire (pronncia: voltrr. A letra l no deve ser pronunciadacomo u, mas sim como se ela estivesse diante de uma vogal), pseudni-mo literrio de Franois-Marie Arouet (pronncia: fru marr arru)nasceu e morreu em Paris (1694-1778). Perspicaz, irreverente e ousado,ainda jovem foi preso na Bastilha, graas a uma stira ao governo deLus XIV. Levou vida agitada, marcada pela polmica, sendo obrigadoa exilar-se na Inglaterra e a refugiar-se, mais tarde, na corte de Berlim.Colaborou na clebre Enciclopdia, organizada por Diderot (pronnciadidr), e ajudou a preparar, voluntria ou involuntariamente, aRevoluo Francesa. S pde retornar a Paris ao final de sua vida,quando foi aclamado como uma das maiores figuras da Frana. Voltairecultivou praticamente todos os gneros (a epopia, o drama teatral, anovela, o conto, a carta filosfica) e comps uma obra imensa, de grandeinfluncia literria e social. Segundo o escritor Jorge Luis Borges, oestilo de Voltaire o mais elevado e lmpido de sua lngua, e feito depalavras sem ornamentos, cada uma em seu lugar.

    Voltaire criou a palavra otimismo, para qualificar a filosofia deLeibniz (1646-1716 pronncia libnits), que condenava. Leibnizhavia procurado demonstrar que vivemos no melhor dos mundospossveis, e Voltaire satirizou essa idia em sua obra-prima, a novelaCndido ou do otimismo. Nela, o insensato Doutor Pangloss umhomem que afirma, em meio s piores desgraas, que tudo vai damelhor maneira no melhor dos mundos possveis. Exemplo de contofilosfico, Mnon ou a sabedoria humana tambm uma sntese dacrtica de Voltaire filosofia otimista de Leibniz.

  • 1 Seduo da sociedade: seduo da vida mundana, da vida nas rodas dasociedade, em festas, reunies etc..

    77

    MNON OU A SABEDORIA HUMANA

    Voltaire

    Mnon concebeu um dia o projeto insensato de serperfeitamente sbio. No existe nenhum homem ao qual essaloucura no tenha, algumas vezes, passado pela cabea. Mnondisse a si mesmo: Para ser muito sbio, e portanto muito feliz,basta viver sem paixes; e nada mais fcil, como se sabe. Emprimeiro lugar, no amarei jamais nenhuma mulher; pois, ao veruma beleza perfeita, eu direi a mim mesmo: essas faces que vejose enrugaro um dia; o contorno desses belos olhos se tingir devermelho; esses seios redondos se tornaro achatados e flcidos,essa bela cabea ser amanh calva. Ora, basta que eu a veja comos mesmos olhos com que a verei no futuro, e seguramente essacabea no far girar a minha.

    Em segundo lugar, serei sempre sbrio: ser em vo queserei tentado pela boa mesa, pelos vinhos deliciosos, pela seduoda sociedade;1 bastar que eu imagine as conseqncias dosexcessos uma cabea pesada, um estmago embrulhado, a perdada razo, da sade e do tempo e ento eu no comerei seno onecessrio; manterei sempre minha sade, e minhas idias serosempre puras e luminosas. Tudo isso to fcil que no hnenhum mrito em conseguir faz-lo.

  • 2 Confiado: colocado sob a guarda e os cuidados de algum.3 Nnive: na sia antiga, capital do antigo reino da Assria, situada margem

    esquerda do rio Tigre.4 Cortejar: lisonjear ou obsequiar algum a fim de obter um favor.5 Pltano: tipo de rvore, da famlia das platanceas.6 Niniviano: habitante da cidade de Nnive. Usa-se tambm a forma ninivita.7 Tocante: comovente.

    78 VOLTAIRE

    Depois, dizia Mnon a si mesmo, preciso pensar umpouco na minha riqueza; meus desejos so moderados; meus bensesto em segurana, confiados2 ao coletor geral de finanas deNnive;3 tenho com que viver de modo independente: o maior dosbens est nisso. No me verei jamais na cruel necessidade decortejar4 para obter algo; eu no invejarei ningum, e ningum meinvejar. Eis a outra coisa que tambm muito fcil. Tenhoamigos prosseguia e conservarei sempre sua amizade, umavez que eles no tero nada a disputar comigo. Eu no terei jamaisnenhum aborrecimento com eles, nem eles comigo; isso absolu-tamente fcil.

    Tendo criado assim, em seu quarto, seu pequeno projeto desabedoria, Mnon levou sua cabea janela. Ele viu duas mulheresque caminhavam sob os pltanos5 perto de sua casa. Uma eravelha, e parecia no pensar em coisa alguma; a outra era jovem,bonita, e parecia muito preocupada. Ela suspirava, chorava, e comisso se tornava ainda mais encantadora. Nosso sbio sensibilizou-se, no pela beleza da dama (ele tinha bastante certeza de nosentir uma tal fraqueza), mas pela aflio em que a via. Ele desceu;abordou a jovem niniviana6 no intuito de consol-la com sabedo-ria. Essa bela pessoa lhe contou, com o ar mais ingnuo e maistocante,7 todo o mal que lhe causava um tio que ela no tinha;contou com que artifcios ele lhe tinha roubado um bem que elanunca havia possudo, e tudo o que ela podia temer da violncia dotio. O senhor me parece um homem to sbio, ela lhe disse, que

  • 8 Polidamente: de modo educado, bem-comportado.9 Quite: livre de dvida; desobrigado, quitado.

    79MNON OU A SABEDORIA HUMANA

    se o senhor tivesse a gentileza de vir at a minha casa, e deexaminar de perto os meus negcios, estou certa de que o senhorme tiraria da dificuldade cruel em que me encontro. Mnon nohesitou em segui-la, para examinar seus negcios cautelosamentee lhe dar um bom conselho.

    A dama aflita o conduziu a um quarto perfumado, e o fezsentar-se com ela polidamente8 num grande sof, onde os dois semantinham de pernas cruzadas um diante do outro. A dama faloubaixando os olhos, dos quais por vezes escapavam lgrimas, e que,erguendo-se, reencontravam sempre os olhares do sbio Mnon.Suas palavras eram cheias de um enternecimento que se redobravaa cada vez que seus olhares se encontravam. Mnon se envolviaprofundamente com os negcios da dama, e sentia a cada momentoo mximo desejo de ser til a uma pessoa to honesta e to infeliz.No calor de sua conversa, eles insensivelmente deixaram de ficardiante um do outro. As suas pernas no ficaram mais cruzadas.Mnon a aconselhou to de perto, e lhe deu recomendaes toafetuosas, que eles no podiam nem um nem outro falar denegcios, e no sabiam mais onde estavam.

    Como estavam nesse ponto, chega o tio, do modo como sepode bem imaginar: ele estava armado da cabea aos ps; e aprimeira coisa que ele disse foi que ia matar, como era justo, osbio Mnon e sua sobrinha; a ltima coisa que lhe escapou daboca foi que ele podia perdoar o ocorrido, por muito dinheiro.Mnon viu-se obrigado a dar tudo o que tinha. Era-se feliz, nessestempos, de poder ficar quite9 por um preo to baixo; a Amrica

  • 10 A Amrica ainda no havia sido descoberta:na poca (sculo XVIII) era comum,na Frana, deportar as prostitutas para a colnia francesa na Amrica, NovaOrleans. O conto de Voltaire, no entanto, passa-se na Antigidade.

    11 Frugal: modesto, que se contenta com pouco.12 Dissipar: fazer desaparecer, desfazer.13 Inebriar-se: embriagar-se.14 No compromisso da palavra: sob juramento (de pagar a dvida).15 Bancarrota fraudulenta: falncia decorrente de fraudes.

    80 VOLTAIRE

    ainda no havia sido descoberta10 e as damas aflitas estavam longede ser to perigosas quanto o so hoje em dia.

    Mnon, envergonhado e desesperado, voltou para casa:encontrou a um bilhete que o convidava a jantar com alguns deseus amigos ntimos. Se eu ficar sozinho em casa, ele diz, terei oesprito tomado pela minha triste aventura, e no comerei nada; euficarei doente; melhor ir fazer uma refeio frugal11 com meusamigos ntimos. Esquecerei, na doura de sua companhia, aestupidez que cometi esta manh. Ele vai ao encontro marcado;acham-no um pouco triste. Fazem-no beber para dissipar12 atristeza. Um pouco de vinho bebido moderadamente um remdiopara a alma e para o corpo. assim que pensa o sbio Mnon; elese inebria.13 Propem a ele um jogo depois da refeio. Um jogocom amigos, regrado, um passatempo honesto. Ele joga;ganham-lhe tudo o que traz em seu bolso, e ainda quatro vezesmais no compromisso de sua palavra.14 Uma disputa nasce do jogo,os nimos se inflamam: um de seus amigos ntimos atira-lhe nacabea um copo de dados, e lhe vaza um olho. O sbio Mnon levado para casa bbado, sem dinheiro, e com um olho a menos.

    Ele curte um pouco a sua ressaca e, assim que sente acabea mais leve, manda seu criado buscar dinheiro, junto aocoletor geral de finanas de Nnive, para pagar seus amigosntimos: dizem-lhe que seu devedor teve pela manh uma bancar-rota fraudulenta,15 que deixa cem famlias alarmadas. Mnon,

  • 16 Corte: o espao ocupado por um soberano e pelas pessoas que normalmente ocercam.

    17 Emplastro: medicamento que amolece ao calor e adere ao corpo.18 Crinolina: angua de crinolina (tecido resistente usado em forros), usada para

    armar ou entufar a saia.19 P: medida linear de 12 polegadas, equivalente a cerca de 30 cm.20 Strapa: na Prsia antiga, um governador de provncia. O termo designa, de

    modo geral, um homem poderoso.21 Excessos da mesa: os excessos referentes aos prazeres da alimentao e da

    bebida.

    81MNON OU A SABEDORIA HUMANA

    furioso, vai corte16 tendo um emplastro17 sobre o olho e umapetio nas mos, para pedir justia ao rei contra o bancarroteiro.Ele encontra num salo vrias damas que vestiam todas, com umar muito desembaraado, crinolinas18 de vinte e quatro ps19 decircunferncia. Uma delas, que o conhecia um pouco, diz,olhando-o de lado: Oh, que horror! Uma outra, que o conheciaum pouco mais, lhe diz: Boa-tarde, senhor Mnon! Esteja certo,Sr. Mnon, estou muito satisfeita de v-lo; a propsito, Sr. Mnon,por que o senhor perdeu um olho? E ela avanou, sem esperar suaresposta. Mnon se recolheu a um canto, e esperou o momento emque pudesse se lanar aos ps do monarca. Esse momento chegou.Ele beijou trs vezes a terra, e apresentou sua solicitao. SuaGraciosa Majestade recebeu-o muito favoravelmente, e entregouo relatrio a um de seus strapas,20 para inform-lo acerca doocorrido. O strapa chama Mnon parte, e lhe diz com um araltivo, caoando amargamente: Eu o considero um caolhogozador, por preferir dirigir-se ao rei e no a mim, e ainda maisgozador pelo fato de ousar pedir justia contra um honestobancarroteiro, que goza da minha proteo, e que o sobrinho deuma criada de quarto de minha amante. Abandone esse caso, meuamigo, se o senhor quer conservar o olho que lhe resta.

    Mnon, tendo assim renunciado pela manh s mulheres,aos excessos da mesa,21 ao jogo, a toda disputa, e sobretudo

  • 22 Meirinho: antigo funcionrio judicial, correspondente ao oficial de justia dehoje.

    23 Lgua: antiga unidade de medida, equivalente a 6.600 metros.24 Srio: grande estrela da constelao do Co Maior.

    82 VOLTAIRE

    corte, tinha sido, antes que a noite chegasse, enganado e roubadopor uma bela dama, se tinha embebedado, havia jogado, tinha tidouma disputa, tinha conseguido perder um olho, e tinha estado nacorte, onde tinham zombado dele.

    Petrificado pela surpresa e aflito de dor, ele volta com amorte no corao. Ele deseja chegar em casa; nela, encontrameirinhos22 que, vindos da parte de seus credores, lhe tomavam osmveis. Ele fica sob um pltano, quase desmaiado; encontra a abela dama da manh, que passeava com seu querido tio, e querebentou de rir ao ver Mnon com um emplastro. A noite veio;Mnon se deitou sobre a palha junto s paredes de sua casa. Afebre apoderou-se dele; ele adormeceu sob o poder desse acesso defebre, e um esprito celeste lhe apareceu em sonho.

    Ele era todo resplandecente de luz. Tinha seis belas asas,mas nenhum p, nem cabea, nem rabo, nem se parecia a coisaalguma. Quem voc?, lhe diz Mnon. O seu gnio prote-tor, respondeu-lhe o outro. Ento, traga-me de volta meuolho, minha sade, minha riqueza, minha sabedoria, disse-lheMnon. E a seguir ele lhe contou como havia perdido tudo issonum s dia. Eis a aventuras que, no mundo que habitamos, nonos acontecem jamais, disse o esprito. E qual o mundo quevoc habita?, diz o homem aflito. Minha ptria, ele responde,fica a quinhentos milhes de lguas23 do sol, numa pequena estrelaperto de Srio,24 que voc avista daqui. Belo pas!, dizMnon; Mas como assim? Ento vocs no tm de modo nenhum,

  • 25 Vigarista: aquele que passa em algum o conto-do-vigrio, um embuste paraobter dinheiro, aproveitando-se da boa-f da vtima.

    26 Calabouo: priso subterrnea, masmorra.

    83MNON OU A SABEDORIA HUMANA

    entre vocs, mulheres vigaristas25 que enganam um pobre homem,no tm absolutamente amigos ntimos que lhe roubam o dinheiroe lhe vazam um olho, no tm nem sombra de bancarroteiros, enem sequer de strapas que debocham de vocs, recusando-se afazer justia? No, diz o habitante da estrela, no temosnada disso. Ns no somos jamais enganados pelas mulheres,porque no as temos; ns no cometemos nenhum excesso demesa, porque no comemos; no temos nenhum bancarroteiro,porque entre ns no existe nem o ouro nem a prata; entre ns, notemos como nos vazar os olhos, porque no temos nenhum corpoque se assemelhe ao de vocs; e os strapas no nos fazem jamaisinjustia, porque em nossa pequena estrela todos so iguais.

    Mnon lhe diz ento: Senhor, sem mulheres e semjantares, como passam vocs o tempo? Passamos o tempo,diz o gnio, a cuidar dos outros globos que esto sob a nossaguarda; e eu estou aqui para consolar voc. Ah, pena!, dizMnon, por que voc no veio noite passada, para impedir-mede cometer tantas loucuras? Eu estava ao lado de Assan, seuirmo mais velho, diz o ser celestial. Ele inspira mais pena doque voc. Sua Graciosa Majestade o rei das ndias, em cuja corteele tem a honra de estar, fez que lhe vazassem os dois olhos porcausa de uma pequena indiscrio, e seu irmo est no momentonum calabouo,26 com grilhes nas mos e nos ps. Vejo quevale mesmo a pena, diz Mnon, ter um gnio protetor numafamlia, para que, havendo dois irmos, um seja caolho, e o outro,cego; um durma sobre a palha, e o outro numa priso. Suasorte mudar, prosseguiu o ser da estrela; verdade que voc

  • 27 Orbe terrqueo: o planeta Terra.

    84 VOLTAIRE

    ser sempre caolho; mas, pondo-se isso de lado, voc ser bastantefeliz, desde que no faa jamais o projeto tonto de ser perfeitamen-te sbio. Trata-se ento de algo que impossvel alcanar?,exclamou Mnon, suspirando. To impossvel, replicou ooutro, quanto ser perfeitamente hbil, perfeitamente forte,perfeitamente poderoso, perfeitamente feliz. Mesmo ns outros,ns estamos bem longe disso. H um globo onde tudo isso seencontra; mas nos cem bilhes de mundos que esto dispersos noespao, tudo se encadeia gradativamente. Tem-se menos sabedoriae prazer no segundo do que no primeiro, menos no terceiro do queno segundo, e assim por diante at o ltimo, onde todos socompletamente loucos. Tenho muito medo, diz Mnon, deque nosso pequeno orbe terrqueo27 seja precisamente o asilo deloucos do universo que voc me faz a honra de descrever. Inteiramente, no, disse o esprito, mas ele se aproxima disso: preciso que tudo esteja em seu lugar. Mas ento, dizMnon, certos poetas, certos filsofos, cometem eles um grandeerro ao dizer que tudo est bem? Eles tm muita razo, diz ofilsofo do alm, se se considera o arranjo do universo inteiro. Ah, eu s acreditarei nisso, replicou o pobre Mnon, quandoeu no for mais caolho.

    (Traduo do francs: ROGRIO HAFEZ.)

  • HISTRIAS SENTIMENTAIS

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    OSCAR WILDE

    Oscar Wilde (pronncia: scar uild) nasceu em Dublin, naIrlanda, em 1856. Estudou em Oxford (Inglaterra) e desde cedo se feznotar pela inteligncia brilhante. Em 1878 transferiu-se para Londres,onde publicou seus primeiros poemas. Obteve sucesso e reconhecimentocomo autor de peas teatrais, como A Importncia de Ser Prudente, OLeque de Lady Windermere, Uma Mulher sem Importncia e O MaridoIdeal. Seu nico romance O Retrato de Dorian Gray, de 1891.

    Costumam-se citar frases espirituosas e mordazes de sua autoria.Alguns exemplos: S as pessoas superficiais no do importncia saparncias, S as pessoas superficiais conhecem a si mesmas,Experincia o nome que todos do a seus enganos, A vida importante demais para que se fale seriamente a respeito dela, Osvelhos acreditam em tudo; os de meia-idade suspeitam de tudo; os jovenssabem tudo (claro que esta frase irnica isto , diz aparentementeo contrrio do que quer dizer, pois se trata de uma observao sobre apresuno dos jovens, que imaginam saber tudo). H uma frase daGrcia antiga segundo a qual Quem os deuses amam morre jovem;Wilde corrigiu: Quem os deuses amam rejuvenesce.

    Os contos apresentados a seguir, influenciados pelas narrativasde Hans Christian Andersen (grande autor de histrias infantis), foramescritos para seus prprios filhos e tm estilo potico e emotivo, bastantediferente da escrita irnica que das caractersticas mais salientes de suaobra. Nestes contos, o autor procura despertar os sentimentos de piedadee compaixo, com o intuito de comunicar, por meios emocionais, umareflexo moral acerca da conduta humana.

    Oscar Wilde, depois de enfrentar tremendas dificuldades naInglaterra (foi processado e condenado priso por conduta indecen-te), passou o fim de sua vida na Frana e morreu em 1900.

  • 1 Ogro: monstro imaginrio que d medo s crianas, bicho-papo. Cornualha:regio ao sudoeste da Inglaterra.

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    O GIGANTE EGOSTA

    Oscar Wilde

    Todas as tardes, quando saam da escola, as crianascostumavam ir brincar no jardim do Gigante.

    Era um grande e lindo jardim, com grama verde e macia.Aqui e ali, sobre a relva, encontravam-se flores belas comoestrelas, e havia doze pessegueiros que na primavera abriam-se emflores delicadas cor de rosa e prola, e no outono produziam ricosfrutos. Pssaros pousavam nas rvores e cantavam to docementeque as crianas paravam suas brincadeiras para ouvi-los. Comosomos felizes aqui! exclamavam umas s outras.

    Um dia o Gigante voltou. Ele tinha ido visitar seu amigo,o ogro da Cornualha1, e ficara sete anos com ele. Passados os setesanos ele j havia dito tudo o que tinha para dizer, pois suaconversa era limitada, e decidiu voltar para o seu prprio castelo.Ao chegar, viu as crianas brincando no jardim.

    O que vocs esto fazendo aqui? berrou ele com vozmuito rspida. E as crianas saram correndo.

    O meu jardim o meu jardim, disse o Gigante. Qual-quer um pode compreender isso, e no vou permitir que ningumbrinque nele, a no ser eu mesmo. Assim, construiu ao redor dojardim um muro alto e ps um cartaz:

  • 90 OSCAR WILDE

    OS INVASORESSERO

    PROCESSADOS

    Era um Gigante muito egosta.As pobres crianas no tinham mais onde brincar. Tenta-

    ram brincar na estrada, mas a estrada era muito poeirenta e cheiade pedras duras, e elas no gostavam disso. Depois das aulas,costumavam passear em volta do alto muro e conversar sobre ojardim que havia do outro lado: Como ramos felizes l! diziamumas s outras.

    Ento veio a Primavera, e todo o pas cobriu-se depequenas flores e passarinhos. Somente no jardim do GiganteEgosta ainda continuava inverno. Os pssaros no queriam cantarporque ali no havia crianas, e as rvores esqueceram-se deflorescer. Uma vez uma linda flor ps sua cabea para fora dagrama, mas quando viu o cartaz ficou to sentida pelas crianasque se enfiou de novo na terra e continuou a dormir. Os nicos queestavam satisfeitos eram a Neve e a Geada. A Primaveraesqueceu-se deste jardim, exclamaram, logo, poderemos viveraqui o ano inteiro. A Neve cobriu a grama com seu grande mantobranco, e a Geada prateou todas as rvores. Ento convidaram oVento do Norte para se hospedar com eles, e ele veio. Viviaenrolado em peles e urrava o dia inteiro pelo jardim, derrubandoas chamins com seu sopro. Este lugar delicioso, disse ele,precisamos chamar o Granizo para uma visita. E o Granizo veio.Todos os dias, durante trs horas, ele estrondava no telhado docastelo at quebrar grande parte das telhas de ardsia, e depoiscorria e corria pelo jardim o mais rpido que podia. Vestia-se decinza e seu hlito era como o gelo.

    No entendo porque a Primavera est to atrasada, disse

  • 91O GIGANTE EGOSTA

    o Gigante Egosta, sentando-se janela e olhando para seu jardimbranco e frio; espero que o clima mude logo.

    Mas a Primavera no veio, nem o Vero. O Outono deufrutos dourados a todos os jardins, mas ao jardim do Gigante nodeu nada. Ele muito egosta, disse o Outono. Assim, ficousendo sempre Inverno ali: o Vento do Norte e o Granizo, a Geadae a Neve danavam entre as rvores.

    Certa manh, estava o Gigante acordado, deitado na cama,quando ouviu uma msica encantadora. Soava to doce a seusouvidos que ele pensou que fossem os msicos do Rei passandopor ali. Na realidade, era apenas um pintarroxo cantando do ladode fora da janela, mas fazia tanto tempo que ele no ouvia umpassarinho cantar em seu jardim que aquela lhe pareceu a msicamais linda do mundo. E ento o Granizo parou de danar sobre suacabea, e o Vento do Norte cessou de rugir, e um perfumedelicioso chegou at ele atravs da janela. Acho que a Primaverafinalmente chegou, disse o Gigante, pulando da cama para olharpara fora.

    O que ele viu?A mais maravilhosa das vises. Por um buraco no muro as

    crianas tinham conseguido entrar, e estavam sentadas nos galhosdas rvores. Em cada rvore que ele podia ver havia uma criana.E as rvores estavam to felizes em ter as crianas de volta que secobriram de flores e ondulavam seus braos delicadamente sobrea cabea das crianas. Os pssaros voavam ao redor e gorjeavamcom prazer; as flores espiavam atravs da relva e sorriam. Era umacena encantadora; somente em um canto ainda continuava inverno.Era o canto mais afastado do jardim, e ali estava de p ummenininho. Era to pequeno que no podia alcanar os ramos darvore, e estava andando em volta dela, chorando amargurado. Apobre rvore continuava coberta de gelo e neve, e o Vento do

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    Norte continuava soprando e rugindo ao seu redor. Suba, meni-no! dizia a rvore, abaixando seus galhos o mais que podia; maso menino era pequeno demais.

    E o corao do Gigante derreteu-se quando ele olhou lfora. Como tenho sido egosta! disse ele; agora eu sei por quea Primavera no queria vir aqui. Vou colocar aquele pobremenininho em cima da rvore, depois vou derrubar o muro, e meujardim vai ser o jardim das crianas para todo o sempre. Eleestava realmente muito arrependido do que fizera.

    Ento, desceu lentamente as escadas, abriu a porta dafrente com muita delicadeza e entrou no jardim. Mas, quando ascrianas o viram, ficaram to assustadas que saram todas corren-do, e no jardim fez-se inverno outra vez. Apenas o menininho nocorreu, porque seus olhos estavam to cheios de lgrimas que eleno viu o Gigante aproximar-se. E o Gigante foi na ponta dos psatrs dele e o tomou delicadamente em sua mo e o colocou emcima da rvore. E a rvore floresceu de repente, e os pssarosvieram cantar sobre ela, e o menininho esticou seus braos,lanou-se em volta do pescoo do Gigante e o beijou. As outrascrianas, quando viram que o Gigante no era mais malvado,voltaram correndo, e com elas voltou a Primavera. Agora ojardim de vocs, crianas, disse o Gigante. E, pegando umgrande machado, derrubou o muro. Quando as pessoas comearama ir ao mercado, ao meio-dia, viram o Gigante brincando com ascrianas no jardim mais belo que jamais tinham visto.

    Brincaram o dia inteiro, e no fim da tarde vieram despedir-se do Gigante.

    Mas onde est o companheirinho de vocs? disse ele, omenino que coloquei na rvore. O Gigante gostava mais deleporque ele lhe dera um beijo.

    No sabemos, responderam as crianas, ele foi embo-

  • 93O GIGANTE EGOSTA

    ra.Vocs devem dizer a ele para no deixar de vir amanh,

    disse o Gigante. Mas as crianas disseram que no sabiam onde elemorava e que nunca o tinham visto antes. O Gigante ficou muitotriste.

    Todas as tardes, quando acabavam as aulas, as crianasiam brincar com o Gigante. Mas o menininho de quem o Gigantegostava nunca mais apareceu. O Gigante era muito amvel comtodas as crianas, mas sentia saudade de seu primeiro amiguinhoe sempre falava dele. Como eu gostaria de rev-lo! costumavadizer.

    Os anos se passaram, e o Gigante ficou velho e fraco. Jno podia mais brincar, ento acomodava-se numa enormepoltrona e ficava assistindo s brincadeiras das crianas e admiran-do seu jardim. Tenho muitas flores bonitas, dizia, mas ascrianas so as mais belas de todas as flores.

    Certa manh de inverno, ele olhou pela janela enquanto sevestia. J no odiava o Inverno, pois sabia que este era o merecidosono da Primavera, e que as flores estavam descansando.

    De repente esfregou seus olhos, admirado, e olhou e olhou.Sem dvida era uma viso maravilhosa. No mais longnquo cantodo jardim havia uma rvore toda coberta de lindos botes brancos.Seus galhos eram dourados, e deles pendiam frutos de prata.Debaixo dela estava o menininho que ele amava.

    O Gigante desceu correndo as escadas com grande alegriae saiu para o jardim. Atravessou depressa o gramado e aproximou-se do menino. Quando chegou bem perto, seu rosto ficou vermelhode raiva, e ele disse: Quem ousou ferir voc? Pois nas palmasdas mos do menino havia marcas de dois pregos, e havia marcasde dois pregos tambm em seus pezinhos.

    Quem ousou ferir voc? gritou o Gigante; diga-me, que

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    tomarei a minha grande espada para mat-lo.No! respondeu o menino, pois estas so as feridas do

    Amor.Quem voc? indagou o Gigante. E um estranho temor

    caiu sobre ele, fazendo-o ajoelhar-se diante da criana.O menino sorriu para o Gigante e lhe disse: Uma vez voc

    me deixou brincar em seu jardim, hoje voc vir comigo ao meujardim, que o Paraso.

    E quando as crianas vieram correndo, naquela tarde,encontraram o Gigante morto, debaixo da rvore, todo coberto deflores brancas.

    (Traduo do ingls: ISABEL DE LORENZO.)

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    O PRNCIPE FELIZ

    Oscar Wilde

    Por sobre a cidade, em cima de uma alta coluna, erguia-se a esttua do Prncipe Feliz. Era todo recoberto por finas folhasde ouro, tinha como olhos duas brilhantes safiras, e um grande rubifulgia no punho de sua espada.

    Ele era muito admirado. to belo quanto um cata-vento, observou um dos Conselheiros Municipais, que almejavaser considerado homem de gosto artstico. S que no muitotil, acrescentou, temendo que as pessoas o julgassem poucoprtico, o que de fato ele no era.

    Por que voc no como o Prncipe Feliz? perguntouuma me sensata ao seu filhinho que chorava pedindo a Lua. OPrncipe Feliz nunca sonha em chorar por coisa alguma.

    Fico contente que exista no mundo algum inteiramentefeliz, murmurou um homem desiludido ao contemplar a magnfi-ca esttua.

    igualzinho a um anjo, disseram as crianas doOrfanato ao sarem da catedral com seus brilhantes capotesvermelhos e seus aventais limpinhos e brancos.

    Como podem saber? indagou o Professor de Matemtica,vocs nunca viram um.

    Ah! J vimos, sim, em nossos sonhos, responderam ascrianas. E o Professor de Matemtica franziu as sobrancelhas eolhou para elas com ar muito severo, pois no aprovava que as

  • 1 Reverncia: saudao, mesura.2 Fazer a corte: fazer galanteios, cortejar, flertar.3 Galanteador: cortejador.

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    crianas sonhassem.Certa noite, voou sobre a cidade uma pequena Andorinha.

    Suas companheiras tinham partido para o Egito seis semanas antes,mas ela ficara para trs, porque estava apaixonada pelo mais belodos Juncos. Conhecera-o no incio da primavera, quando voava aolongo do rio atrs de uma grande mariposa amarela, e ficara toatrada por seu talhe delgado que parara para con