Andrew Garve - A Morte e o Céu

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A MORTE E O CU

Andrew Garve

Quando encontraram Louise Hilary brutalmente

assassinada no seu apartamento londrino, as suspeitas

recaram, principalmente, sobre Charles, o seu marido.

Este tinha todos os motivos para desejar

o desaparecimento da mulher, pois a vida

com ela fora um pesadelo. Louise recusara-se a conceder-lhe

o divrcio e, por fim, surgira tambm Kathryn,

uma esperana de vida nova.

To convincentes eram as provas contra ele

que foi julgado e condenado morte. Mas, horas antes

da execuo da sentena, Hilary logrou fugir

da cadeia, dando assim incio a uma incrvel aventura

de fuga e perseguio, por terra e mar.

Death and the Sky Above considerado o

melhor romance de suspense de Andrew Garve.

Entre os seus outros livros contam-se

The Ashes of Loda, No Tears for Hilda e

By-Line for Murder.

Eram novE e mEIA da manh quando o retinir da campainha

do telefone da mesa de cabeceira despertou Louise Hilary do

seu sono induzido por soporferos. Resistiu ao apelo o mais

longamente possvel, mas por fim estendeu o brao e tacteou,

procura do auscultador cor de marfim.

- Quem fala?- resmungou.

- Bons-dias, Louise. Charles.

- Ah!- Seguiu-se uma pausa carregada de hostilidade.

- Que queres?

- No leste a minha carta?

- Que carta?

- Expedi-a ontem noite... j a devias ter recebido.

- Mas no recebi. Provavelmente est na caixa.

- Ento agradecia-te que a fosses buscar e a lesses, Louise.

Preciso de falar contigo. Posso passar por a esta tarde?

- De tarde no, pois parto hoje para fora.

- Nesse caso, visitar-te-ei de manh. absolutamente

indispensvel. Ao meio-dia est bem?

- Que remdio" se tem de ser!- Reps o auscultador

no descanso, a amaldioar mentalmente o marido.

Empurrou os lenis amarrotados para trs, levantou-se

e apanhou do cho um roupo transparente. Deteve-se um

momento diante do espelho alto, a observar-se. Tinha o rosto

lambuzado da maquilhagem da vspera, os olhos raiados de

sangue e as faces encovadas. ??Estou a ficar um canastro,?,

pensou. Mas da sua figura, pelo menos, ainda no havia nada

a dizer. Um pouco magra de mais, talvez, mas excelente, atendendo aos seus quarenta anos. Enquanto os homens gostassem

do seu corpo - disse cinicamente para consigo-, a sua cara

escaparia. E a verdade que eles gostavam do seu corpo. s

vezes at mais do que seria par desejar.

Franziu a testa ao recordar Max Raczinsky, com as suas

exigncias e ameaas. Oh, como os homens .ciumentos eram

maadores! Ainda por cima, ele no tinha direito algum de

se dar aqueles ares de dono e senhor, pois no possua absolutamente nada para oferecer em contrapartida, alm de um

corpo jovem e forte. Ningum a podia censurar de se sentir

saturada daqueles arriscados fins-de-semana em hotis. Sim,

quanto mais depressa sasse de Londres, melhor. No gostara

nada daquela expresso que vira no olhar de Max. Provavelmente ele falara por falar, sem inteno, mas os polacos

no eram de fiar...

Enfiou os ps nuns chinelos de quarto e desceu, para ir

buscar a carta. Quando desdobrou as quatro folhas de papel,

escritas numa letra apertada e pequena, verificou que se tratava da mesma velha histria de sempre. A nica diferena

residia num certo tom de desespero que lhe agradou deveras.

?? o meu ltimo apelo!...,? Esboou um sorriso cido. Ele

continuaria a pedir - que mais poderia fazer?- e ela a recusar.

Tomou um comprimido para acabar de despertar, abriu

a torneira da banheira e deixou-se ficar l dentro vinte

minutos,

sentindo a gua quente acalmar-lhe os nervos tensos. De novo

no quarto, sentou-se no toucador. Os cabelos pintados de tom

arruivado no constituam problema, mas o rosto precisava

de muito trabalho. Uma camada espessa de base, para disfarar a aspereza da pele sem frescura; rouge; vrias camadas

de bton de cor viva; um trao preto, fino, a desenhar as

sobrancelhas, e um retoque mais que generoso de rimmel.

Ainda passava muito bem por uma mulher estonteante...

Antes de se vestir, tentou, sem grande entusiasmo, dar

um pouco de ordem desarrumao deixada da vspera. Era

uma casinha luxuosa, que Charles Lhe pagava, mas ela raramente se dava ao trabalho de a conservar pelo menos decente.

Despejou o cinzeiro, trasbordante de pontas de cigarro manchadas de bton, e tirou um copo molhado de cima do televisor. Depois foi bandeja buscar a garrafa do rum, encheu

o copo at um tero, acrescentou um pouco de ginger ale e

bebeu um longo golo. O seu dia comeara.

CHARLES HILARY arrumou o carro do lado da sombra, dirigiu-se em passadas decididas para o nmero 1 de Clandon

Mews e bateu porta. Era um homem alto, de rosto magro

e inteligente, permanentemente bronzeado por vinte anos de

estada em zonas subtropicais.

Alm de uma vez em que a vira de relance, a entrar num

txi com um homem, em Piccadilly, no se encontrava com

Louise h cinco meses e o choque que o seu aspecto lhe causou

f-lo estacar momentaneamente no limiar. Contara com alguns

estragos, mas aquela mscara em que o rosto dela se transformara era grotesca. O afecto morrera havia muito, mas a

recordao da jovem bonita e alegre com quem casara ainda

no se dissipara por completo. A mudana que nela se operara

deixou-o sinceramente apavorado. Por momentos, esqueceu

at o mal que Louise estava a causar sua vida e fitou-a,

compadecido.

- Quando acabares de olhar, embasbacado...- resmungou, irritada.

Estava estendida no sof com uma revista no colo e um

copo vazio ao lado.

- Desculpa. Como ests, Louise?

- Como se te interessasse!- replicou, envolvendo-o num

olhar de verdadeiro dio.

Como sempre, o aspecto saudvel de Charles enfurecia-a.

No entanto, causou-lhe prazer adivinhar nele, daquela vez,

uma certa tenso, um prenncio de nervos prestes a atingir

o ponto de ruptura.

- Toma uma bebida e prepara outra para mim- disse-lhe.

- Escuta, Louise, desejo falar contigo muito a srio.

- Sem bebida no haver conversa- replicou-lhe, encolhendo os ombros.

Charles suspirou e encaminhou-se para a bandeja onde

estavam as garrafas.

- Que queres? A do costume?

- Lembras-te de ma apresentares em Porto de Espanha?

- perguntou-lhe a mulher, a sorrir maldosamente.

- No podia adivinhar que a transformarias na tua eterna

companhia. - Charles pegou na garrafa de rum, deitou no copo

o plido lquido ambarino acrescentou um pouco de ginger

ale.

- Aqui tens. Espero que tenhas lido a minha carta...

- Dei-lhe uma vista de olhos, mas no me causou a mnima

impresso. Nunca te concederei o divrcio! Sers meu... marido

at que a morte nos separe!

O tom de determinao maligna e exultante das suas palavras impressionou-o. Sem grande convico, jogou a nica cartada que poderia ter algum valor aos olhos dela:

- Ficarias melhor, financeiramente.

- Estou muito bem assim, obrigada.

- Talvez no continues to bem se no nos divorciarmos...

Posso deixar de te pagar a penso.

- No digas tolices! Processar-te-ia.

- Nenhum tribunal me obrigaria a dar-te mil libras por

ano, livres de impostos. Tem um pouco de bom senso, Louise.

O que te dou muito mais do que o meu rendimento presente

e se no fosse a herana no te poderia pagar tal importncia.

Alis, com o tempo, talvez eu me possa divorciar de ti. tenho

a certeza de que existem outros homens na tua vida.

- Primeiro terias de os encontrar.

- No creio que seja muito difcil.

- A que te enganas. Sou muito discreta.

Charles fitou-a, perplexo, e confessou:

- No consigo compreender por que motivo me odeias

tanto.

- No? Odeio-te por me teres levado para aquelas ilhas

imundas e me teres deixado a apodrecer, enquanto te ausentavas para o teu estpido trabalho. s o culpado daquilo em

que me tornei e jamais to perdoarei!

Charles compreendeu que era intil dizer fosse o que

fosse, mas, mesmo assim, o seu sentido de justia revoltou-se.

Eu disse-te como serra, apeteceu-Lhe gritar. Disse-te que as

Caraibas eram simultaneamente miserveis e encantadoras. Avisei-te de que teria de passar longos perodos no mato e que

tu te sentirias s, se no me acompanhasses. Disse-te que ser

a mulher do superintendente agrcola no era o mesmo que

ser a esposa do governador. Ignorava que no possuias recursos

interiores de espcie nenhuma e que eras incapaz de suportar

o mnimo desconforto. Ignorava que te recusarias a ter

filhos,

com receio de que te prejudicassem a figura. Ignorava que

deixarias o rum apoderar-se de ti de tal maneira... Levei-te

para

ki demasiado cedo, porque a minha licena estava quase a

terminar e eu no podia suportar a ideia de nos separarmos...

e talvez isso tenha sido, de facto, errado da minha parte. Mas

dai a afirmar que sou o culpado do destroo em que te transformaste...

- Muito bem, odeias-me- disse por fim.- Odeias-me

e queres castigar-me pelo que pensas que te fiz. Mas h a

Kathryn. No podes ser generosa com ela?

- Porque h?via de ser generosa com ela? Odeio-a!

- Como podes dizer semelhante coisa se nem sequer a

viste, nunca?

- Oh, vi, sim!- exclamou, a olhar para o televisor. -- Tenho-a visto... muitas vezes. Era capaz de a matar!

De sbito, Charles imaginou Louise sentada sozinha, no

entorpecimento do rum e da autocomiserao, de olhos postos

no televisor, a ver a outra mulher, a outra mulher que era

jovem, encantadora e feliz. A v-la e a saber que era inferior

a ela em todos os aspectos, menos num: na capacidade de

fazer mal!

- Mas no avalias como terrivelmente cruel para ela?

- perguntou Charles, devagar.

- J tempo de aprender que a vida no um mar de

rosas. Se gosta tanto de ti, que viva contigo e crie uma ranchada de...

- Louise!- Charles avanou um passo, de mos enclavinhadas, e ela sorriu-lhe, trocista.

- Gostarias de me bater, no gostarias? Mas falta-te a

genica, meu filho. O decente, amvel e civilizado Charles!

- Deves estar louca!

- No tens nada de homem de aco, pois no, Charles?

Preferes tentar convencer as pessoas, fazer-Lhes ver a

razo...

Preferes pedir. Porque no ajoelhas e no suplicas pela tua

queridinha? V, rasteja! Gosto disso.

Nunca se sentiu to perto de perder o domnio dos nervos.

Olhou para aquele rosto devastado, para aquele pescoo magro,

de tendes grossos, e o sangue latejou-lhe loucamente na

cabea.

Mas depois virou-lhe as costas e saiu, a tremer de clera. Que

grande idiota fora em ir ali!

METEU-SE NO AUTOMVEL e, maquinalmente, seguiu na direco

do seu clube, mas ao chegar a Pall Mall arrumou o carro e

dirigiu-se a p para a Duncannon Street, onde havia um bar

que lhe agradava. Pediu uma sanduche e uma caneca de cerveja

e foi para um canto, tentar acalmar. Ainda se sentia abalado

pela violncia da clera que sentira e verdadeiramente horrorizado com o impulso que to a custo dominara. Seria mais

fcil se pudesse ver Kathryn naquele momento e contar-lhe o

que sucedera, mas ela s estaria livre ao fim da tarde e,

entretanto, ele precisava de matar o tempo de qualquer maneira.

Podia regressar ao seu apartamento de Hampstead e retomar

o trabalho. Andava a redigir um relatrio acerca da produtividade comparativa de seis pequenas herdades experimentais

que organizara na Trindade e acompanhara at maturidade,

antes de abandonar o servio colonial. Estava convencido de

que os resultados poderiam conduzir a uma revoluo em

pequena escala, n respeitante explorao agrcola nas

Carabas. Mas no estava com coragem para trabalhar. Talvez

fosse ao cinema...

Ainda hesitava quanto ao que faria quando o cabealho

de uma notcia do Evening Standard de outro cliente lhe despertou a ateno: A INGLATERRA EM FORA! Era uma ideia,

podia ir ver o jogo de crquete. Havia anos que no assistia

a um desafio de primeira categoria, e ouvira dizer que a

equipa

indiana tinha um ou dois batedores espectaculares.

Acabou de beber a cerveja e dirigiu-se, devagar, para o

automvel, preocupado com o seu problema e de Kathryn.

Que iriam fazer?

Passava pouco das duas horas da tarde quando chegou

ao campo onde se disputaria o jogo de crquete. Ao aproximar-se da entrada, descobriu que as bancadas estavam cheias

e que teria de ficar de p, se quisesse ver alguma coisa. Conseguiu arranjar lugar num ponto onde a assistncia era um

pouco menos densa.

Achou o jogo decepcionantemente enfadonho. Ainda tentou

acompanhar as jogadas, mas pouco a pouco a sua ateno

distraiu-se, divagou. A imagem do rosto de Louise, deformado

pelo dio, impunha-se constantemente aos seus pensamentos,

mau grado seu. Se ao menos conseguisse convencer-se de que

no era responsvel pelo terrvel estado a que ela chegara!

No entanto, no podia admitir que um homem devesse abandonar o trabalho de toda a sua vida por uma mulher que

afirmara desprez-lo pouco tempo depois de casados. Louise

podia ter regressado a Inglaterra e sua carreira de modelo,

.

se quisesse; a deciso de ficar fora sua. Mas, tendo casado

com ela para o melhor e para o pior, no a deveria ter trazido

ele prprio, ao ver como se encontrava desmoralizada?

Aquelas perguntas com as quais se atormentava agora

seriam apenas a autocrtica mrbida de um homem que se

encontrava sob grande tenso nervosa e abalado ainda pela

desagradvel entrevista que tivera pouco antes?... Fazia uma

ideia muito vaga do que se passava no campo e, de sbito,

achou absurdo continuar ali especado, visto ser incapaz de

concentrar a ateno no jogo dois minutos seguidos. Resolveu,

por isso, desistir, e abriu caminho para a sada, atravs da

multido annima.

CAPTULO II

SENTADA numa cadeira de repouso no jardim da casa de campo

de Sir John Fawcett, Kathryn Forrester discutia a sua prxima

entrevista com o antigo comissrio da Polcia, agora

reformado.

- Sabe, Sir John, talvez possamos apresentar passagens

filmadas de alguns dos assuntos de que falarmos. Por exemplo,

a Polcia e os mineiros a jogarem futebol, durante a greve

geral...

- Conseguiria arranjar o filme?

- Verei o que se pode arranjar na nossa cinemateca, e

o que no tivermos pediremos emprestado.

Levantou-se e pegou na malinha e nas luvas.

Fawcett sentiu relutncia em deix-la partir. Simpatizava

com aquela jovem de rosto malicioso e ternos olhos castanhos.

- Porque no toma mais uma chvena de ch antes de

partir?

- No, Sir John, obrigada. Tenho de seguir sem demora

para o estdio. Voltamos a ver-nos na quarta-feira, para o

ensaio.

Fawcett atravessou o relvado com ela e abriu-lhe a porta

do carro.

,. o

, ...

,

- Tive muito gosto, Miss Forrester, foram uns momentos

muito agradveis. Evidentemente que j a vira na televiso,

mas

uma imagem no a mesma coisa que a pessoa em carne e

osso, pois no?

- Depende da pessoa em carne e osso!- exclamou a

jovem, rindo.- Adeus, Sir John.- Acenou-lhe amigavelmente

com a mo e arrancou, veloz, pelo caminho ensaibrado abaixo.

KA'rHRYrr tinha a felicidade de possuir uma profisso que se

lhe adaptava perfeitamente. Desejara ser actriz e trabalhara

com afinco, durante um ano, na Academia Real de Arte Dramtica, antes de se compenetrar de que o seu talento no era

to excepcional que lhe pudesse oferecer grandes perspectivas

de xito numa carreira to superlotada. A televiso constitua

o meio de expresso de que necessitava e, profissionalmente

falando, a jovem sentia-se muito contente quando meteu o

carro pela estrada que levava a Londres, depois da sua conversa com o ex-corzssrio. Sir John daria um entrevistado

perfeito, com a sua atitude franca e as suas opinies

definidas

- e, ainda por cima, era muito fotognico, graas ao seu

cabelo

prateado e ondulado e sua bela cabea. Aos vinte e nove

anos, Kathryn preferia a maturidade beleza juvenil- e ainda

bem, pensou para consigo, pois Charles j deixara para trs

os quarenta anos...

Recordou a entrevista que desencadeara tudo, havia quase

dois anos, quando procurara Charles Hilary para falar com ele

acerca do problema alimentar de Antgua! Estranho comeo

de romance! Mas Charles mostrara-se menos solene, no ensaio,

e depois de terem enfrentado as cmaras juntos ambos tinham

desejado continuar a ver-se.

O rosto bonito da jovem toldou-se momentaneamente.

Encontravam-se numa situao desesperada! Tinham chegado

a um ponto em que j no era muito agradvel estarem juntos,

em virtude de se sentirem to tensos e enervados. Pobre

Charles!

Como teriam corrido as coisas com Louise?...

Eram quase seis horas da tarde quando chegou ao estdio.

Deu uma ligeira arrumao secretria e depois foi cinemateca ver se Bob Sanderson a podia ajudar, arranjando-Lhe

os filmes de que precisava.

Bob era um adolescente magro, cuja misso consistia em

arquivar enormes quantidades de pelculas. Sonhava vir a ser

redactor desportivo, como o seu amigo Leslie Holmes, do

Record. Quando entrou, Kathryn encontrou-o todo embrenhado

na leitura da ltima pgina do Star.

- Ol, Bob! No me parece muito assoberbado de trabalho...

O jovem apressou-se a tirar os ps de cima da secretria,

quando viu quem era, e respondeu, em tom sepulcral:

- Isto est morto como um tmulo!

- Pois venho anim-lo, com uma coisinha da sua especialidade. Acha que poder arranjar algum filme mostrando

polcias e mineiros a jogar futebol, durante a greve geral?

- Vou procurar. Se houver, quer v-los agora?

- No necessrio. Ponha de parte o que encontrar e

na segunda-feira tarde passa-os para eu ver, est bem?

Sorriu, agradecida, e voltou ao seu gabinete, a fim de ir

buscar as suas coisas.

VINTE MINUTOS DEPOIS, no seu apartamento de Chelsea, ouviu

Charles tocar e foi abrir a porta. Ele abraou-a, soltou um

grande suspiro de gratido e encostou a face ao cabelo escuro

e farto de Kathryn.

- Acho melhor dizer-te j, meu amor- murmurou, tristemente. - No deu resultado.

Ela no esperara outra coisa e, por isso, no se

surpreendeu.

- Anda tomar uma bebida- convidou.- Chegaste agora

de casa dela?- perguntou, enquanto deitava sherry nos copos.

- Oh, no! Cheguei l antes do almoo e ficou tudo

despachado em menos de meia hora. De ento para c, tenho

andado num desespero de nervos, sem saber que fazer. No

me apetecia trabalhar e no estava em condies de fazer boa

companhia fosse a quem fosse. Por isso fui at ao Oval, ver

o desafio de crquete.

- Gostaste?- perguntou, enquanto lhe estendia o copo.

- Nem por isso. O nico lugar onde consegui encaixar-me

foi junto do quadro da pontuao, e da nunca se v grande

coisa... Desculpa, estou com uma disposio pssima.

- Ento, querido, nimo! Tens coragem de me contar o

que se passou?

- EIa disse ??no,?, foi tudo o que se passou. Segundo

deduzi, tem visto os teus encantos na televiso e agora

detesta-te

tanto como me detesta a mim. No se mostra apenas obstinada; est implacvel e cruel. Para o fim da conversa

tornou-se

insultuosa, verdadeiramente insuportvel. Tive de fazer um

esforo muito grande para no lhe pr as mos!

- Oh, ests a exagerar!

- Palavra que no estou! Durante alguns segundos vi

tudo vermelho. Abalou-me muito.

- Disseste-Lhe alguma coisa acerca de pedires tu o divrcio?

- Disse, mas ela riu-se e replicou-me que jamais arranjaria

as provas necessrias para isso. De qualquer maneira, levaria

muito tempo para provar fosse o que fosse.

Kathryn acendeu um cigarro.

- Bem, fizemos o que pudemos. Agora s nos resta adoptar

o Plano B.

- Continuo a pensar que se trata de um passo muito

grave- afirmou Charles, cheio de desnimo.- Mais cedo

ou mais tarde, algum te reconhecer, e eu fao ideia da

publicidade que da resultar.

- Querido, ests a complicar tudo! Descobriremos um

cantinho sossegado, algures no Sul da Frana, tu poders dedicar-te ao teu livro e eu podarei trepadeiras, ou l o que se

costuma fazer s trepadeiras, e no faremos caso absolutamente

nenhum do que os outros pensarem.

- Parece, de facto, idlico, mas passado algum tempo

comearias a ter saudades da vida que levas aqui, dos teus

amigos e de toda essa agitao e actividade a que ests habituada. Persuadi Louise a partir comigo e a compartilhar o

tipo de vida que eu levava, e o resultado est vista. No

h nada que deseje mais neste mundo do que estar contigo,

mas supe que desta vez tambm falha. Creio que jamais me

perdoaria.

A expresso de Kathryn adoou-se, ao protestar:

- I?fas, meu amor, no h comparao possvel! Eu sou

mais velha do que ela era, ento, e muito mais sensata. O meu

maior desejo um lar contigo e compartilhar do teu trabalho.

Charles abraou-a, com fora.

- isso que eu tambm desejo, minha querida. Mas

desejo-o tanto que tenho medo de estragar tudo.

- A nica ,maneira de estragar tudo no fazer nada.

No podemos continuar como at aqui, temos de prosseguir

juntos ou de nos separar... e ns sabemos que no nos podemos

separar, pois j o tentmos em vo.

Charles acenou, lentamente, com a cabea.

- Que sugeres?

- Estou contratada para mais trs programas, mas em

meados de Agosto estarei livre. Desistimos das frias que planemos a bordo do barco do Peter e vamos para Frana.

Kathryn parecia to confiante que as ltimas dvidas de

Charles se dissiparam.

- Seja, meu amor! Esta noite escreverei ao Peter, a inform-lo de que, afinal, no precisaremos do Witch.- Peter

Challock fora colega de Charles no Ministrio das Colnias.

- Oh, querido, vai ser to maravilhoso!

- Amo-te, Kathryn- murmurou, segurando-lhe o rosto

entre as mos.- Espero tornar-te feliz.- Beijou-a ternamente

e depois soltou um profundo suspiro, como se lhe tivessem

tirado um grande peso de cima.- Porque no vamos ao

Pedro celebrar?

- Preciso apenas de dois minutos para me arranjar!

CAPTULO III

POUCO ANTES daS dez horas da manh seguinte, Charles arrumou

o seu carro no parque de estacionamento existente defronte

do grande prdio onde residia, em Hampstead. Estacionou

ao lado de um Austin azul, no qual estavam sentados dois

homens, apeou-se e entrou no prdio, a cujo porteiro acenou

com a cabea, a dar-lhe os bons-dias. Ao meio-dia, Kathryn

e ele iriam a caminho do chal de Medways, cheios de planos.

A ansiedade parecia, agora, uma coisa do passado.

Abriu a porta do seu apartamento e quando ia a entrar

ouviu uma voz interpel-lo, atrs de si:

- Queira desculpar... Charles Hilary?

Virou-se bruscamente e viu que os dois homens do Austin

o tinham seguido. O seu aspecto impunha respeito, ainda que de

modo discreto.

- Sim, sou Charles Hilary.

- Nesse caso, gostaria muito de falar consigo- disse o

mais idoso dos dois.- Chamo-me Bates, inspector-chef Bates,

do Departamento de Investigao Criminal.

Charles fitou-o, surpreendido, mas convidou:

- Faam favor de entrar. Que se passa, inspector?

- Trata-se da sua esposa, Mrs. Louise Hilary. Lamento

inform-lo de que foi encontrada morta.

Os olhos estupefactos de Charles sustentaram o olhar

perscrutador do inspector Bates.

- Quando? Onde?

- Ontem tarde, na sua casa de Clandon Mews. Foi

estrangulada.

Olhou primeiro para um polcia e depois para o outro,

cada vez mais estupefacto.

- Oh, meu Deus!- exclamou, e deixou-se cair numa

cadeira.

Sentia-se agoniado. De sbito, reviu o pescoo magro

que as suas prprias mos tinham desejado estrangular, num

momento de clera cega.

- Encontrmos uma carta que parece ter sido escrita por

si, Mr. Hilary- informou Bates, num tom que dificilmente

poderia ser mais acusador.

Charles teve sbita conscincia do perigo que corria. Se

tinham encontrado a carta, sabiam do divrcio que Louise

lhe recusara e sabiam, tambm, do que se passava com

Kathryn. Era fantstico, sem dvida, mas tinham bases para

suspeitar dele como assassino!

- Na sua carta dizia que queria falar urgentemente com

ela- prosseguiu o inspector.- Suponho que no a viu ontem?

Charles hesitou momentaneamente entre o ??no" a que

a pergunta parecia convid-lo e o ??sim,? incriminador. Dizer

??no" poderia ilib-lo imediatamente, mas dizer ??sim"...

Que

implicaes poderia ter para ele responder ??sim"?

Explicaes,

desmentidos... e eles seriam capazes de no o acreditar, mesmo

assim.

- No - respondeu, com firmeza-, ontem no a vi.

queria v-la, mas quando Lhe telefonei, de manh, disse-me

que ia partir...- Uma vez dita a mentira, as palavras acudiram-lhe sem dificuldade aos lbios, como a quererem confirm-la:- No imagina que eu tive alguma coisa a ver com esse

assunto, pois no?

- No imagino nada, Mr. Charles- respondeu-Lhe Bates.

- Limito-me a recolher informaes. - Quando viu, de facto,

a sua esposa pela ltima vez?

- Oh, foi h muito tempo!... Creio que em princpios

de Maio.

A tenso pareceu abrandar um pouco. ??No podero

provar que estive l??, pensou Charles. ??No estava ningum

nas imediaes, quando cheguei... e como, alis, no a matei,

no tenho necessidade de me preocupar.?, No entanto, o seu

corao continuava a bater descompassadamente.

- Sabe, acaso, alguma coisa acerca das relaes da sua

mulher com outras pessoas?- inquiriu o inspector, aps uma

breve pausa.- Com outros... homens?

- Receio no lhe poder dizer grande coisa a esse respeito.

Compreende, vivamos separados h quase dois anos... Ah,

lembro-me de um pormenor!... - Referiu o incidente do txi

,

em Piccadilly.- Mas no sei descrever o indivduo, pois s

o vi de costas.

- Por uma questo de rotina, gostaramos de saber o

que fez ontem tarde.

- Estive no Ova? a ver o crquete.

- Acompanhado?

- No. Sozinho.

- Poder descrever-me os seus movimentos, da hora do

almoo em diante? Pura rotina, compreende...

Charles contou resumidamente que fora ao bar e como

lhe ocorrera, de sbito, a ideia de ir ver o desafio de crquete.

- Pus-me a caminho, de carro, pouco antes das duas

horas e entrei no recinto pouco depois do reatamento do

jogo, deviam ser umas duas e vinte da tarde. Fiquei at cerca

das trs e quarenta e cinco.

- Muito bem, Mr. Hilary. Agora agradecia-lhe se deixasse o sargento Nixon tirar-lhe as impresses digitais.

Impresses digitais!

Charles fitou, boquiaberto, o inspector. Nem sequer lhe

passara pela cabea to importante pormenor. Claro que

passariam revista casa, procura de impresses digitais...

e

encontrariam as suas na garrafa do rum e no copo que dera

a Louise! Saberiam, assim, que mentira. A enormidade da

tolice que cometera deixou-o apavorado. Tentou desesperadamente reparar o mal feito:

- Escute, inspector, eu... eu no disse a verdade. Estive;

ontem, em casa da minha mulher... de manh. Deixei-a antes

da uma hora da tarde e no a voltei a ver.

Os olhos cinzentos do inspector Bates transformaram-se

em dois bocados de gelo.

- Porque no mo disse, quando o interroguei a esse

respeito?

Charles respirou fundo, antes de responder:

- Porque compreendi em que situao me encontrava.

No matei a minha mulher, ela estava viva quando a deixei.

Mas como os senhores tinham lido a minha carta, pensei

que tirariam concluses erradas, se Lhes dissesse que l

estivera.

- Lamento, mas nesse caso tenho de Lhe pedir que me

acompanhe esquadra.

- Est a seguir uma pista falsa, inspector. No entanto,

no me importo de o acompanhar, se isso o puder ajudar a

descobrir a verdade.

Charles encaminhou-se para a porta. Deixou um recado

ao porteiro para Kathryn: tivera de sair inesperadamente, mas

telefonar-lhe-ia.

No automvel, com o impassvel inspector a seu lado,

pensou que talvez fosse conveniente a presena de um advogado.

Contudo, inocente como estava, parecia-lhe que o melhor

caminho a seguir seria ser sincero a respeito de tudo e, para

isso, no precisava do auxlio de nenhum advogado. Abandonou, pois, tal ideia.

Perguntou a si mesmo como teria morrido Louise. Provavelmente continuara a beber e, se algum homem a visitara,

de tarde, no lhe teria sido nada difcil provocar uma cena

fatal. Uma histria muito srdida!

O automvel parou e Bates entrou na esquadra, frente,

e conduziu-o a um aposento pequeno, onde um indivduo

paisana se encontrava sentado a uma secretria, munido de

um livro de apontamentos de grandes dimenses.

Baces pigarreou e informou:

- No se encontra sob priso, Mr. Hilary, mas tudo

quanto disser ser registado e poder ser usado contra si,

em qualquer procedimento posterior. Compreendeu bem?

- Compreendi perfeitamente, inspector. No tenho nada a

esconder.

- Nesse caso, talvez no se importe de me dizer, por

palavras suas, exactamente o que se passou ontem de manh?

Foi com uma sensao de alvio que Charles comeou

libertar-se do peso que o oprimia. Falou do seu telefonema

a Louise, da sua chegada antes do almoo e da conversa que

tinham travado. Como se desejasse penitenciar-se da sua mentira anterior, foi absolutamente franco acerca da cena desagradvel que houvera entre ambos, dos motivos da mesma e

do modo como se tinham separado. O lpis do estengrafo

deslizava, veloz, pelo papel. Bates ouviu Charles em

silncio

e depois comeou a interrog-lo:

- Disse a algum que tencionava fazer essa visita, de

manh?

Charles abanou a cabea. Kathryn soubera que ele a ia

visitar, mas ignorara quando. E, de resto, a ltima coisa

que

desejava era arrastar a jovem para aquela histria.

- Estacionou o seu automvel em Clandon Mews?

- No. Arrumei-o na estrada, um pouco mais abaixo,

do outro lado. A manh estava quente e essa foi a sombra

que encontrei mais perto.

- Compreendo. Parece-lhe que algum o viu chegar ou

partir?

- Duvido muito- respondeu Charles, pesarosamente, recordando-se como pouco tempo antes se congratulara com o

facto de ningum o ter visto.- No me lembro de ter visto

pessoa algum?:'

- Hum... Diz que foi ao tal bar da Duncannon Street.

Parece-lhe que algum de l se lembrar de si?

- Talvez o barman se lembre; conhece-me de vista.

- Disse-Lhe aonde tencionava ir?

- No.

- No Oval foi para um dos recintos das bancadas?

- No; estavam todas cheias. Tive dificuldade em arranjar

lugar, mesmo de p.

- Durante a tarde falou com algum que se possa lembrar

de si?

- No, inspector. No estava com grande disposio para

conversar.

- importante provar que esteve, de facto, no Oval.

Talvez saiba descrever o jogo?

Charles hesitou.

- Tentarei, mas confesso que no percebo grande coisa

de crquete. Fui l apenas para matar o tempo, na esperana

de que o jogo me ocupasse os pensamentos.

- Vejamos se ocupou. Conte-nos aquilo de que se

lembra.

- Bem, a ndia estava defesa, evidentemente...

- Quem eram os batedores, quando chegou?

- Os batedores... Hazare era um deles. No estou bem

certo acerca do outro. Aprecio o crquete pelas jogadas e no

pelos jogadores.

Durante quinze minutos, Charles puxou penosamente pela

memria, enquanto Bates exigia pormenores atrs de pormenores a respeito do jogo da tarde. Foi um interrogatrio estafante e Charles teve perfeita conscincia de que no se saiu

muito bem da provao.

- Bem, respondi o melhor que pude- declarou por fim.

- Lamento, mas a verdade que a maior parte do tempo

no prestei ateno ao jogo.

- Continua a afirmar que esteve l?- perguntou Bates,

em tom muito grave.

- Estive l.

- E continua a afirmar que no foi a Clandon Mews

durante a tarde?

- Nem de longe por l passei! Quando sa do Oval fui

direito a casa e s voltei a sair ao princpio da noite.

Nesse momento, chamaram o inspector ao telefone.

- Bem, Mr. Hilary - declarou, ao regressar-, encontrmos uma mulher que diz ter visto um homem sair do apartamento da vtima, em Clandon Mews, cerca das trs e meia

da tarde de ontem, e julga ser capaz de o identificar.

- Graas a Deus!- exclamou Charles.- Eu bem lhe

disse que no tinha nada a ver com o assunto, inspector! Agora

ver que no menti.

- Assim o espero.- A atitude do inspector tornara-se

muito mais branda.- Se quiser fazer o favor de participar

agora numa formatura de identificao, depois no o incomodarei mais.

- Muito bem!- concordou Charles, sem hesitar.- Acabemos com isto!

No ptio encontravam-se diversos homens mais ou menos

da sua idade e com as suas caractersticas fsicas, quando

Charles se lhes reuniu. Bates pediu-lhes que se colocassem

ao lado uns dos outros, encostados parede. Depois trouxeram uma mulher de rosto simptico, que caminhou rapidamente ao longo da fila, lanando a cada rosto um brevssimo olhar. Mas quando chegou diante de Charles parou.

- este- declarou, aps uma imperceptvel hesitao.

Charles fitou-a, horrorizado.

- Mas eu nunca a vi na minha vida...

- Mas vi-o eu a si.

Passado um momento de silncio, Charles sentiu agarrarem-lhe um brao e ouviu Bates dizer:

- Vamos para dentro.

CAPTULO iV

- CHARLES EDWARD Hu,nRY, formalmente acusado de ter

assassinado Louise Mary Hilary, no dia 3 de Junho deste ano.

Declara-se culpado ou inocente?

- Inocente.

Do snnrco ?os Rus do Old Bailey, Charles viu e retribuiu o

triste sorriso de Kathryn. A espera estava quase terminada.

Agora no tardariam a saber.

Tinham decorrido sete longas semanas desde a sua priso,

sete semanas nas quais coubera uma vida inteira de ansiedade.

Ao princpio, Charles sentira-se, sobretudo, incrdulo por

estar

realmente preso, acusado de assassnio. Depois, medida que

as conversas com o seu advogado o tinham tornado consciente

da gravidade da sua situao, haviam-no assaltado emoes

mais profundas e mais vivas. Clera pela injustia de que era

vtima. Ressentimento pela partida que o Destino pregara a

Kathryn e a si prprio. O gelo da solido nas noites interminveis. Esperana, desespero, de novo esperana...

Naquele momento, ao ouvir enumerar a lista dos jurados,

olhou nervosamente em redor do tribunal. Uma grande multido comprimia-se nos lugares destinados ao pblico. Por causa

de Kathryn, o caso tomara-se tpico obrigatrio de todas as

conversas, em todos os cantos do pas. Ela fora quase uma

pessoa de famlia para milhares de telespectadores, mas se

esperavam revelaes de carcter ntimo acerca do seu dolo

cado, iam sofrer uma grande decepo.. Na opinio de Murgatroyd, o advogado de Charles, o julgamento seria muito rpido

- e as esperanas eram poucas. Ele fora claro a esse respeito.

Quando Charles olhou para cima, para a galeria, Kathryn,

sentada ao lado do irmo, sustentou o seu olhar com uma

mensagem de confiana. Estava terrivelmente plida, mas to

calma e encorajadora como se mostrara desde o princpio

do pesadelo. Charles pediu mentalmente a Deus que lhe desse

a fora e a coragem de que ela precisaria nas horas de tortura

que iam seguir-se.

Sir Francis Duke ajeitou a peruca, aconchegou a toga e

levantou-se, majestosamente. Homem alto e forte, com uma

presena que inspirava confiana aos jris, possua todas as

caractersticas necessrias a um excelente advogado de

acusao.

Saberia patrocinar a causa da Coroa com absoluta eficcia, sem

no entanto deixar de conceder parte contrria aquilo que lhe

fosse devido.

- Membros do jri- comeou.- Cerca das trs horas

e quarenta e cinco minutos da tarde de sexta-feira, trs de

Junho, o corpo de Louise Hilary foi descoberto na sala de

estar da sua casa de Clandon Mews, 1, por um moo de recados

chamado Arthur Mason, que l se dirigira a fim de entregar

um bilhete de caminho de ferro da Wide World Travel Agency.

Como batesse e no obtivesse resposta, Arthur Mason espreitou

pela fresta da caixa do correio e, horrorizado, viu duas

pernas

estendidas no cho da sala, numa atitude que sugeria ter

acontecido algo fora do vulgar. Dirigiu-se imediatamente a uma

cabina telefnica prxima e ligou para o 999. A Polcia

chegou

passados minutos, arrombou a porta e encontrou Louise Hilary

morta. Fora estrangulada.

- Pouco antes das trs horas e um quarto dessa mesma

tarde - prosseguiu-, Louise telefonara Wide World travel

Agency a perguntar o que se passava com o seu bilhete de

comboio para Paris. Um empregado que tratara com ela noutras

ocasies reconheceu-lhe a voz. Temos, portanto, a certeza de

que Louise Hilary estava viva s trs horas e um quarto. s

trs horas e quarenta e cinco minutos, hora que o moo

de recados ligou para o 999 e que ficou registada, estava

morta.

Fora, pois, assassinada neste intervalo de trinta minutos. A

ausncia de quaisquer indcios de entrada forada, em casa, demonstra que o assassino foi recebido pela prpria Louise

Hilary

e que se tratava, consequentemente, de um visitante a que ela

no levantava objeces. No esprito da acusao no podem

restar dvidas quanto identidade desse visitante. Numa busca

de rotina moradia, a Polcia encontrou, numa garrafa de rum

e num copo do qual Luise Hilary bebera, vrias impresses

digitais que foram posteriormente identificadas como sendo

do seu marido, Charles Hilary. A .Polcia procedeu a investigaes minuciosas e aturadas, mas no logrou descobrir

quaisquer provas de que outro homem tivesse visitado a casa da

vtima, naquela tarde.

- Membros do jri - continuou-, as impresses digitais no foram a nica descoberta da Polcia. Esta encontrou

na cama de Louise Hilary uma carta - uma carta do marido,

que ela devia ter recebido naquela manh. De momento, creio

que bastar ler-lhes dois ou trs pargrafos dessa carta:

No acredito que tenhas conscincia da infelicidade que

causas

com a tua constante recusa em me conceder o divrcio. No

consigo

trabalhar nem dormir, de tanto tentar encontrar uma sada

desta

situao. Ela ocupa por completo o meu pensamento, no me

deixa

pensar em mais nada. Kathryn ainda sofre mais que eu. Deseja,

como natural, um lar, filhos e uma vida normal, e no pode

suportar por mais tempo esta ligao clandestina a que nos

obrigas.

??Se sentisses algum amor por mim, ainda compreenderia a tua

recusa em me concederes a liberdade, mas tu disseste-me

claramente

que o nosso desastroso casamento s te deixou sentimentos de

antipatia. Que ganhas, ento, em te obstinares na recusa do

divrcio?

??Louise, sinto-me to desesperado que no consigo

dominar-me

e escrever com serenidade. Ests a destruir a minha vida. Se

te

puder ver amanh e falar de novo contigo, talvez seja capaz de

te fazer compreender. Telefonar-te-ei de manh, para saber se

posso

ir a amanh."

Sir Francis pousou a carta e acrescentou:

- Senhoras e senhores, ??amanh?? foi o dia do assassnio.

- Fez uma pausa .e olhou para o jri, atravs da sala silenciosa.- Seria difcil imaginar uma carta mais incriminadora.

Pensem na situao que ela revela. Charles Hilary vive separado da mulher e apaixonou-se por uma tal ??Kathryn,?, que

sabemos agora ser Miss Kathryn Forrester, uma atraente artista

da televiso. Est ansioso por casar com ela e pediu diversas

vezes mulher que lhe concedesse o divrcio, mas obteve

sempre uma recusa como resposta. Hilary precisa absolutamente

do divrcio, pois de contrrio talvez perca a quem ama. O seu

estado de esprito desesperado, e nesse estado de esprito

que visita Louise. nossa opinio que, no vendo outra sada

para o seu dilema, Hilary assassinou premeditada e brutalmente

a mulher.

Com perfeito sentido dramtico, Sir Francis fez outra

pausa.

- Depois de ler a carta - prosseguiu, passados instantes-, a Polcia no perdeu tempo e foi interrogar Charles

Hilary. Quando o inspector Bates lhe perguntou se estivera

em Clandon Mews no dia fatal, Hilary respondeu com um

??no?? firme. Agarrou-se sua histria, at o inspector lhe

dizer que precisava de lhe tirar as impresses digitais. Lembrando-se ento de que as deixara, com certeza, na garrafa

e no copo, apressou-se a contar outra verso: admitiu que

estivera em Clandon Mews no dia do assassnio, mas no de tarde.

Eis um exemplo clssico do homem que tenta freneticamente

fugir s consequncias dos seus actos.

- Quando lhe pediram que dissesse onde passara a tarde,

Hilary declarou que estivera no Oval, a assistir ao jogo de

crquete entre a Inglaterra e a ndia. Desde a sua priso, a

sua fotografia tem sido repetidamente publicada nos jornais,

mas ainda no apareceu ningum a dizer que o tivesse visto

no Oval! Mais, convidado a descrever o que recordava do jogo

que dizia ter visto, a descrio que fez deixou muito a

desejar,

pecou muito por falta de preciso.

- Membros do jri, Charles Hilary tinha motivo e teve

oportunidade para cometer o crime, mentiu e no foi capaz

de explicar convincentemente os seus movimentos no espao

de tempo capital. Mas isso no tudo. Charles Hilary, que

nega ter ido a Clandon Mews na tarde da referida sexta-feira,

foi visto sair de casa da sua mulher no perodo de meia hora

durante o qual o assassnio foi perpetrado! A sua segunda mentira, como a primeira, foi desintegrada pelo impacto dos

factos

irrefutveis...

LEo MuRGnTxoYv escutara, numa atitude tensa, a devastadora

apresentao feita pelo acusador. Os factos admitidos quase

chegavam, s por si, para enforcar Hilary. Continuava a ser

muito pouco o que se sabia das actividades de Louise Hilary

e no havia a mnima pista que sugerisse outro suspeito.

A aridez da defesa no se devia, de modo algum, a falta

de esforos da parte de Murgatroyd. Contratara detectives particulares para investigarem todos os aspectos da vida de

Louise

e toda a vizinhana mais prxima fora interrogada, assim como

Mrs. Briggs, que fazia limpeza casa da vtima duas ou trs

vezes por semana. Mas nunca ningum vira homem algum entrar

na moradia ou sair dela, e Mrs. Briggs nunca encontrara nada

que denunciasse a visita de um homem. Fossem quais fossem

os segredos da vida de Louise, tinham sido muito bem guardados.

Um golpe de sorte - ou pelo menos assim parecera, na

altura- fora a descoberta de vrias contas de hotis, na

malinha de mo da vtima. Tinham-se enviado, acto contnuo,

diversos agentes aos hotis onde ela estivera, mas no se

haviam

encontrado quaisquer provas de que tivesse passado esses

perodos com algum homem. Pelo contrrio, as informaes

colhidas davam a impresso de que tinham sido frias solitrias, as suas. No se encontrara nada, absolutamente nada

,

em que basear qualquer conjectura.

Noutras circunstncias, a situao no teria preocupado

muito Murgatroyd, pois a mesma j se lhe deparara amide

noutros casos. Sabia por experincia que, quando se tratava

de assassnio, era relativamente raro um inocente chegar ao

banco dos rus. Agora, porm, dadas as provas acumuladas,

estava convencido de que fora precisamente isso que acontecera. A contnua e veemente indignao de Hilary e de

Kathryn no lhe deixavam dvidas a tal respeito, mas a

tragdia

consistia em no ver possibilidade alguma de convencer os

outros da sua certeza. Os factos eram avassaladores.

A primeira testemunha a ser chamada deu apenas informaes de rotina. Seguiu-se-lhe William Harbin, o jovem e

expedito empregado da agncia de viagens. Explicou que

Mrs. Hilary reservara, com vinte e quatro horas de antecedncia, um bilhete s de ida, para Paris, e depois telefonara

para se certificar de que lho haviam reservado. Tinha a certeza quanto s horas a que recebera o telefonema, pois olhara

para o relgio nessa altura.

Quando Sir Francis acabou de interrogar Harbin, Murgatroyd fez-lhe tambm algumas perguntas:

- Mrs. Hilary mencionou, por acaso, o objectivo da sua

ida ao continente?

- Disse que ia gozar frias.

- E explicou porque desejava um bilhete apenas de ida?

- Depreendi que ainda no tinha planos quanto ao

regresso.

- Era hbito dela ausentar-se assim, sem planos definidos?

- No. Geralmente ia para um lugar determinado.

- E comprava bilhete de volta?

- Comprava.

- Era seu hbito fazer a reserva com to pouca antecedncia?

- No. Costumava avisar-nos com maior antecedncia.

Seguiu-se o detective-inspector Warren, um dos peritos de

dactiloscopia da Scotland Yard, que explicou como encontrara

impresses digitais identificveis de trs pessoas, apenas: da

prpria Louise Hilary, de Mrs. Briggs e do ru. Murgatroyd

fez o que pde, perante um depoimento to melindroso e

comprometedor:

- Encontrou impresses digitais do ru m mais algum

ponto da casa alm das existentes na garrafa e no copo?

- No.

- Portanto, embora ele tivesse estado na moradia algum

tempo, se no tivesse tocado nesses objectos no teria deixado

vestgios da sua presena?

- No.

- Consequentemente, lgico admitir que, se qualquer

outro homem visitasse a mordia e no tocasse nesses objectos,

tambm poderia no deixar impresses digitais, no verdade?

- Suponho que sim.

- Inspector, a experincia no Lhe tem demonstrado que

os indivduos decididos a perpetrar um homicdio tomam, a

maioria das vezes, precaues, a fim de no deixarem impresses digitais, ao passo que um indivduo inocente no pensa,

sequer, nesse pormenor?

- Assim .

- Obrigado.

Seguiu-se o inspector Bates. Descreveu o que se lhe deparara ao chegar cena do crime, aludiu descoberta da carta

e confirmou que as pistas encontradas s incriminavam Hilary

e mais ningum.

Murgatroyd conseguiu arrancar-lhe uma afirmao favorvel defesa: que o ru evidenciara surpresa e horror ao ser

informado do que sucedera mulher.

Sir Francis levantou-se, imponente, e anunciou:

- Chamo Mary Agnes Scott.

Fez-se um grande silncio na sala do tribunal, enquanto

a nova testemunha prestava juramento.

- Chama-se Mary Agnes Scott e reside na Everton

Road, 14, Kensington?

- Sim.

- Seu marido est ao servio do municpio de Londres,

como professor nocturno?

- Est.

- Mrs. Scott, na tarde de sexta-feira, trs de Junho, passou

pela entrada de Clandon Mews?

- Passei.

- Mais ou menos a que horas?

- Eram quase trs e meia.

- Pode afirm-lo com convico?

- Posso, pois olhei para o relgio antes de sair de casa.

Ia ao farmacutico, que ficara de ter a minha pomada pronta

s trs e meia.

- Muito bem. Mrs. Scott, quer fazer o favor de dizer ao

tribunal o que viu ao passar pela entrada de Clandon Mews?

- Vi um homem sair da primeira moradia, da que fica

mais prxima da estrada.

- Na manh seguinte apresentou-se na esquadra de Polcia

local a comunicar que vira esse homem?

- Apresentei-me.

- Que motivo a levou a proceder assim?

- Li no jornal que tinham encontrado uma mulher assassinada em Clandon Mews, 1. Fui l, para verificar se era a

casa de onde vira o homem sair. Como se tratava da mesma,

achei que devia informar a Polcia.

- Descreveu o indivduo Polcia?

- Tentei descrev-lo, sim.

- Como o descreveu?

- Disse que era alto e muito bronzeado e que me parecera ter cabelo castanho.

- Depois disso foi conduzida esquadra da Gate Street,

para ver se podia identificar o homem?

- Fui.

- Que sucedeu quando chegou esquadra da Gate Street?

- Levaram-me a um ptio onde estavam vrios homens

ao lado uns dos outros, e o inspector Bates perguntou-me:

??O homem est aqui?>? Identifiquei-o logo.

- Tinha a certeza de que o homem que indicou era o

mesmo que vira sair, na tarde da vspera, de Clandon Mews, 1?

- Tinha.

- E, tanto quanto se lembre, vira alguma vez esse homem,

antes dessa ocasio?

- Nunca.

- Esse homem encontra-se agora no tribunal?

- Encontra-se.

- Queira apont-lo.

- E aquele, o ru.

MURGATROYD LEVANTOty-SE e fitou momentaneamente a mulher

cujo depoimento poderia levar o seu cliente forca- a no

ser que ele estivesse muito enganado. Pertencia ao tipo de

testemunha susceptvel de influenciar muito um jri, e o advogado

sabia que tinha mais a perder que a ganhar, se no lidasse

com ela cuidadosamente.

- Mrs. Scott, estou certo de que tem conscincia de que

a vida de um homem pode depender do seu depoimento?

- Sim, tenho conscincia disso.

- Portanto, se no seu esprito houver a mnima sombra

de dvida, deve admiti-lo.

- Admiti-lo-ia, juro que o admitiria, se houvesse. Mas

no h.

- Muito bem. H quanto tempo reside na Everton Road,14?

- H cerca de cinco anos.

- Suponho que tem passado muitas vezes pela entrada

de Clandon Mews?

- Oh, sim, muitas vezes!

- Disse que na tarde daquela sexta-feira ia farmcia.

Por que motivo olhou para Clandon Mews, quando passou?

- Ouvi bater a porta da casa.

- Por isso virou a cabea e viu um homem?

- Sim.

- Mais ou menos a que distncia se encontrava ele

quando o viu?

- Creio que... entre cinco e seis metros. Vinha a afastar-se da porta.

- Em que direco olhava o homem?

- Na minha direco.

- Mrs. Scott, abrandou a marcha ao passar pela entrada

de Clandon Mews e ao ver esse homem?

- No.

- Olhou-o apenas de passagem? No observou o seu

rosto ?

- No, no lhe observei o rosto.

- Na ocasio, pensou alguma coisa acerca do incidente?

- No, no pensei.

- No pensou, por exemplo, para consigo: ?? um homem

de aspecto estranho, ou um homem bem-parecido, ou um

homem de ar preocupado??, qualquer coisa deste gnero?

- No.

- A descrio que fez Polcia - ??alto, bronzeado,

cabelo castanho?? - podia aplicar-se a muita gente, no podia?

- Podia.

- Tentou descrever-Lhe as feies?

- No.

- Isso deveu-se ao facto de ter recebido dele apenas uma

impresso de passagem?

- Sim, mas foi uma impresso muito ntida. No sabia

descrever a sua cara, mas reconheci-a imediatamente, assim

que voltei a v-la.

- Portanto, quando procedeu identificao, na formatura, no procurava quaisquer caractersticas faciais

particulares?

- No. Tentava apenas reconhecer a cara que vira.

- Uma cara da qual tivera apenas uma impresso passageira, numa nica ocasio.

- Sim.

Murgatroyd olhou para o jri e sentou-se, com todo o ar

de quem se sentia satisfeito. Sir Francis chamou ento a sua

ltima testemunha, o polcia que reunira os homens para a

formatura de identificao, na esquadra. Frisou que fora permitido a Hilary escolher o lugar que queria ocupar entre os

outros e que se tivera o cuidado de evitar que Mrs. Scott

o visse, mesmo de longe, antes de a conduzirem ao ptio.

Sir Francis dobrou os seus apontamentos, soergueu-se e

declarou:

- A acusao no precisa de mais nada, excelncia.

Kathryn acenou encorajadoramente a Charles, quando o

levaram, mas o seu sorriso era muito plido. Compreendia pela

expresso carregada de Murgatroyd que as coisas no estavam

a correr bem. Deu o brao ao irmo e saiu, passando pelo

grupo de fotgrafos e operadores de televiso que esperavam

c fora. Quando os polcias a escoltaram, atravs da multido,

algumas mulheres vaiaram-na.

CAPTULO V

- CHAMO O Ru, Excelncia.

Seguido de perto pela escolta policial, Charles levantou-se

do banco dos rus, atravessou a sala do tribunal e dirigiu-se

para o lugar das testemunhas. Sentiu. a atmosfera densa de

expectativa que, no circo, assinala o aparecimento da estrela

principal. Receara a tortura daquele momento, mas pelo menos

ia poder, enfim, defender-se de homem para homem.

- Pegue na Bblia com a mo direita - ordenou o oficial de diligncias- e repita comigo...

Murgatroyd no ignorava o perigo que corria ao chamar

o seu cliente a depor. Dissesse Hilary o que dissesse, no

conseguiria destruir as provas da acusao e ficaria sujeito a um

contra-interrogatrio que lhe poderia ser fatal. A sua

esperana

era s uma: que a personalidade do ru, ao ser interrogado,

contrabalanasse favoravelmente as provas at ento levadas

ao conhecimento do jri e presentes no seu esprito. Era uma

esperana muito frgil!

Murgatroyd encarou-o de frente e perguntou-Lhe, sem

rodeios:

- Charles Hilary, assassinou a sua mulher?

- No.

O impacto da pergunta directa, e da resposta igualmente

directa, foi dramtico. A defesa conseguira um bom comeo.

Passo a passo, Murgatroyd conduziu Charles ao longo

da sua extensa e impressionante histria. Foi tudo exposto

com veracidade, fielmente: os seus vinte anos de servios distintos nas ndias Ocidentais, como conhecera Louise e o malogro em que redundara o seu casamento. A seguir, Hilary

contou como a instalara na casa de Clandon Mews e o seu

encontro com Kathryn, e referiu as suas visitas a Louise e as

cartas que lhe escrevera a pedir que lhe concedesse o

divrcio.

At a, o seu depoimento foi, a bem dizer, uma espcie de

confirmao e ampliao da tese apresentada pelo acusador.

Mas depois surgiu o primeiro desmentido:

- Mr. Hilary, ouviu a teoria da acusao de que, quando

visitou a sua mulher, se encontrava perante um dilema e se via

obrigado a fazer uma escolha: livrar-se dela ou perder

Miss Forrester?

- Ouvi, mas a situao no era, de modo algum, essa.

Miss Forrester e eu nunca pensmos em nos separar.

- verdade que tomaram uma deciso, quando a voltou

a ver?

- . Concordmos, finalmente, em que Miss Forrester

abandonaria a sua carreira e iramos procurar em Frana um

lugar onde pudssemos viver juntos.

- Se j tivesse assassinado a sua mulher, essa deciso

seria suprflua, no verdade?

- Absolutamente suprflua.

- Que fizeram, o senhor e Miss Forrester, depois de

tomarem essa deciso? Refiro-me a essa mesma noite.

- Samos, para celebrar o acontecimento.

- Em que consistiu a celebrao?

- Jantmos num restaurante, bebemos uma garrafa de

champanhe e danmos um pouco.

- Danaram?

- Sim.

Murgatroyd acenou com a cabea, satisfeito. Sabia que

a atitude adoptada poderia parecer imprudente, mas, como

estava perfeitamente ciente de que a defesa nada tinha a

perder,

a tctica de choque afigurava-se-lhe justificada.

A seguir, abordou a entrevista entre Charles e Louise.

O cenrio de Clandon Mews foi grfica e pormenorizadamente

reconstitudo, de modo deveras ? impressivo. Por fim, Murgatroyd tocou num pormenor especfico, a que sabia no dever

esquivar-se:

- Mr. Hilary, nessa entrevista com a sua mulher, e depois

de ela recusar novamente o seu pedido, mencionou-lhe a possibilidade de, um dia, ser o senhor prprio a mover-lhe unia

aco de divrcio?

- Mencionei.

- Que respondeu ela?

- Riu-se e disse que era muito discreta e que eu jamais

conseguiria arranjar as provas necessrias.

- Mas negou existirem quaisquer fundamentos para semelhante aco intentada por si?

- No. Eu desconfiava que ela tinha aventuras, mas que

estava firmemente decidida a mant-las secretas. Declarou que

me detestava e que arranjaria maneira de me manter preso a

ela para sempre.

- Desde que se separaram, viu-a alguma vez acompanhada por um homem?

- Vi-a uma vez, hora do almoo, entrar num txi, em

Piccadilly, com um homem.

No decorrer do interrogatrio Charles descreveu os seus

movimentos, depois de deixar a mulher, e o estado de esprito

em que se encontrava, e conseguiu explicar, mais convincentemente, tanto o motivo do seu alheamento, durante o jogo

de crquete, como as razes que, posteriormente, o tinham

induzido a mentir Polcia.

S restavam os desmentidos formais.

- Ouviu o depoimento de Mrs. Scott, que declarou t-lo

visto sair de casa da sua mulher, na tarde em questo?

- Mrs. Scott est enganada. Estive no Oval.

- Afirma-o sob juramento?

- Sim.

- ChaFles Hilary, volto a perguntar-lhe se teve alguma

coisa a ver com a morte. da sua mulher.

- No tive nada a ver com? a sua morte. Estou absolutamente inocente.

Murgatroyd sentou-se e Charles preparou-se para o ataque

d advogado de acusao.

NA REALIDADE, O contra-interrogatrio foi menos terrvel do

que receara. As coisas s se complicaram quando Sir Francis

abordou a tentativa da defesa para arranjar outro suspeito.

- Disse-nos, Mr. Hilary, ter visto, uma vez, a sua mulher

entrar num txi com um homem. capaz de descrever esse

homem?

- No. Mal o vislumbrei, de costas.

- Faz alguma ideia de quem ele pudesse ser?

- No fao ideia nenhuma.

- Pretende insinuar que entrar num txi com um homem,

hora do almoo, prova de adultrio?

- Evidentemente que no.

- Mas insinuou que a sua mulher teve relaes imorais

com outros homens?

- Disse?que ela admitiu praticamente ter tido aventuras.

- Mr. Hilary, faz alguma ideia de quem poderiam ser

esses hipotticos companheiros de aventuras?

- Nenhuma. Durante dois anos no lidei, a bem dizer,

com a minha mulher; no sei quase nada acerca da sua vida

particular.

- E, contudo, acusa-a de infidelidade. Tem alguma prova,

por nfima que seja, de que ela lhe tenha sido infiel?

- Tenho unicamente a prova da sua prpria atitude.

- Na realidade, pretende denegrir o carcter da sua falecida esposa sem a mais pequena prova do seu mau comportamento, no verdade?

Charles corou, furioso.

- No pretendo denegrir o seu carcter. Limito-me a

referir o que creio serem os factos.

- Desejava o divrcio com muito empenho. Pensou, acaso,

em utilizar os. prstimos de um detective particular?

- Pensei, mas desisti disso. A ideia de mandar espiar a

minha mulher no me agradava e, de resto, no perdera por

completo a esperana de que ela acabaria por me conceder

o divrcio.

- Pois eu sugiro-lhe que no empreendeu qualquer aco

nesse sentido porque, na realidade, no acreditava que houvesse alguma coisa 'para descobrir. E tambm minha opinio

que todo o objectivo do seu depoimento foi desviar as suspeitas de si prprio, transferindo-as para um amante imaginrio, absolutamente inexistente.

- No creio que seja inexistente. Como no fui eu que

a matei, devia haver mais algum.

Sir Francis redarguiu, em tom severo:

- Ao jri competir decidir isso.

KnTHRYN m sIr.ENcIosn, enquanto o irmo, John Forrester, a

levava de carro a casa, depois do adiamento da audincia.

Tinha muita f em Murgatroyd, mas no podia deixar de

lamentar que ele a tivesse posto, por assim dizer, margem.

De bom grado teria tentado descobrir quaisquer provas acerca

do comportamento de Louise, mas ele dera-lhe claramente

a entender, desde o princpio, que quanto menos ela se metesse no caso melhor, e a sua oferta de auxlio fora

firmemente

rejeitada.

Rogara que lhe fosse permitido depor, no julgamento,

mas os advogados tambm se tinham oposto a isso e Charles

apoiara-os, com toda a veemncia. Claro que compreendia os

motivos do procedimento de Murgatroyd: embora ela fosse a

nica pessoa que podia corroborar qualquer passagem do depoimento de Charles, era tambm parte muito interessada, e isso

seria tomado na devida conta, em tudo quanto dissesse. Murgatroyd concordara que ela talvez causasse boa impresso

pessoal, se depusesse, mas receara, ao mesmo tempo, que essa

impresso fosse excessivamente boa e levasse o jri a consider-la uma mulher pela qual um homem seria capaz de matar.

Mas Kathryn no concordava. O jri no acharia estranho,

e at cruel, que ela no depusesse para apoiar e defender o

homem amado? No entanto, talvez os jurados compreendessem que Charles era um homem inocente, apanhado numa

armadilha implacvel... No dia seguinte pronunciar-se-iam e

reconheceriam isso mesmo. No poderiam entender outra

coisa.

NO DISCURso FINAL de Sir Francis, na manh seguinte, no

houve floreados de oratria:

- A Coroa no pretende obter uma vitria, mas sim e

apenas justia baseada em factos. Permitam-me que recapitule

esses factos...

Com uma serenidade fria, impessoal, enumerou os pontos

em que a acusao assentava: o dilema desesperado em que o

ru se encontrava, ?a entrevista colrica com a vtima, a mentira comprometedora, o alibi inconsistente e a identificao

comprovada.

- Membros do jri - concluiu-, se duvidam de que

Charles Hilary estrangulou a mulher, ele deve ser posto em

liberdade. Mas se chegarem concluso de que, movido por

paixo criminosa, ele lhe tirou a vida, ento tm um dever a

que no podem eximir-se: faz-lo pagar esse crime com a vida!

Quando Sir Francis se sentou, Kathryn olhou para Charles, mas desta vez no conseguiu sorrir. O seu rosto estava

petrificado de horror.

- CoM r.IcENn do tribunal...- Murgatroyd levantou-se pela

ltima vez e virou-se para a fila dupla de homens e mulheres

de expresso preocupada a quem ia fazer o derradeiro apelo.

- Membros do jri, a acusao apresentou um libelo muito

convincente contra o ru e a tarefa da defesa no foi nada

fcil. Charles Hilary corre o risco de perder a vida por um

crime de que est to inocente que difcil saber onde procurar a chave do mistrio: raro as circunstncias

conspirarem

to encarniadamente contra um homem.

- De longe, a pior prova apresentada contra o ru foi

a identificao feita por Mrs. Scott. A sua boa-f no est

em causa. Acreditamos que tenha visto um homem sair de

Clandon Mews s trs e meia da tarde do dia trs de Junho

e que o aspecto desse homem se assemelhasse ao do acusado.

Acreditamos que esse homem tenha sido, segundo todas as

probabilidades, o assassino de Louise Hilary. Mas negamos

que fosse Charles Hilary e alegamos que Mrs. Scott se equivocou. Como seria possvel cometer um erro to natural e,

ao mesmo tempo, to catastrfico?

- Tenham em mente este facto: Charles Hilary estivera

em Clandon Mews diversas vezes antes dessa sexta-feira, primeiro quando a casa foi alugada e mobilada e, mais tarde,

para tentar convencer a mulher a conceder-lhe o divrcio.

Mrs. Scott passava com frequncia pelas imediaes, pois

Clandon Mews fica no seu caminho de todo? os dias, quando

vai s compras. Disse-nos que, tanto quanto se lembre, nunca

tinha visto Hilary antes do dia trs de Junho, mas no

residir

a a origem do seu equvoco? mais fcil recordar os

contornos

de um rosto do que a ocasio exacta em que o vimos. No

ser admissvel que Mrs. Scott tenha visto Charles Hilary numa

dessas ocasies anteriores, quando ele saa de casa da mulher?

- Se assim foi, o que se passou na formatura de identificao deixa de ser prova comprometedora contra Hilary.

Mrs. Scott procurava um rosto que associava mentalmente

a um homem a sair de Clandon Mews. Se o assassino no

se encontrava entre os doze homens reunidos para efeito de

identificao, mas se Hilary ali estava, no seria inevitvel

que ela o apontasse? O rosto familiar, j visto anteriormente

em circunstncias familiares e, de mais a mais, com caractersticas semelhantes s do rosto do assassino... Na minha

opinio, foi precisamente isso que aconteceu. As actas dos

nossos tribunais contm muitos exemplos de identificao

positiva e feita de boa-f, mas que mais tarde se verificou

estar

errada.

Murgatroyd fez uma pausa, para se certificar de que o

jri o escutava com a maior ateno, e depois prosseguiu:

- Senhoras e senhores do jri, uma vez encarado na sua

verdadeira perspectiva o valor desta identificao, toda a

acusao apresentada contra Hilary adquire um aspecto muito

diferente. Que resta dela?

- Um motivo, diz a acusao, pois ele tinha de matar

a mulher para conservar a amante. Pois bem, ouviram o

acusado declarar que lhe restava outra soluo- uma alternativa que, por muito pouco que lhe agradasse, era indubitavelmente mais fcil e menos perigosa do que o assassnio.

Fossem quais fossem os problemas imediatos dos amantes, eles

sabiam, com certeza, que o tempo estava do seu lado e que,

no fim, as suas dificuldades seriam vencidas.

- Que mais nos resta? Uma mentira, diz a acusao, uma

mentira que sugere culpa. Senhores jurados, um homem no

forosamente um assassino s porque disse uma mentira! Sero

apenas os culpados que tero direito ao instinto de conservao? Hilary compreendeu a possibilidade de se cerrar sua

volta uma teia de provas circunstanciais, e a situao em que

se encontra agora demonstra que os seus receios eram justificados!

- E que mais? Um alibi inconsistente, diz a acusao,

um alibi inconsistente e que no foi comprovado. verdade,

no o pudemos comprovar, assim como no pudemos comprovar que o ru visitou a sua mulher entre o meio-dia e a

uma hora da tarde. Mas assim to surpreendente que no

tenha aparecido nenhuma testemunha a corroborar o relato

que Hilary fez dos seus movimentos? Ele no homem de

aspecto fora do vulgar ou que d muito nas vistas. Ser impossvel admitir que tivesse feito uma breve visita mulher

sem aparecer ningum a confirmar que, de facto, o viu? Quanto

ao jogo, estavam milhares de pessoas no campo, todas elas,

sem dvida, a prestar ateno ao desafio de crquete para o

qual tinham pago um bilhete. Porque haveria algum de se

lembrar de Hilary? Quanto falta de preciso das suas recordaes, ele explicou-a e as razes apresentadas so perfeitamente vlidas. Se Hilary no tivesse assistido ao desafio de

crquete, nesse dia, dificilmente acederia ao pedido da

Polcia

para descrever o que vira. O simples esforo que fez nesse

sentido indcio de conscincia limpa, se no de boa memria.

- Permitam agora que Lhes chame a ateno para as

improbabilidades psicolgicas da acusao. Viram Charles

Hilary no banco dos rus e no lugar das testemunhas. um

homem calmo e ponderado, q=se tem dedicado a vida investigao no campo da agricultura, melhoria da sorte dos seus

semelhantes. As suas atitudes e o seu procedimento foram sempre civilizados e amveis.

- Pensem, agora, no hipottico crime de que este homem

acusado. Segundo a acusao, ele matou a mulher, roubou-lhe a vida sufocando-a com as prprias mos! Depois, sem

um vislumbre de compaixo ou remorso, foi a casa da amante

e saram para jantar, beber. champanhe e danar! Se Charles

Hilary foi capaz de tal procedimento, ento um monstro

cruel e implacvel, como os piores que tm comparecido perante

os nossos tribunais! Mas, senhores jurados, olhem para ele!

Vem-no como um monstro? Ou vem-no como na realidade

, um homem pacfico e inocente, exposto a um perigo mortal

por um julgamento errado?

- No incumbe defesa apresentar um suspeito que o

substitua, nem o poderia apresentar, mesmo que incumbisse.

Mas considerem os factos. Louise Hilary separara-se do marido

por acordo mtuo e ele proporcionava-Lhe uma vida de conforto e at mesmo de luxo. Ela no o amava. Pelo contrrio,

odiava este homem, custa do qual no Lhe repugnava, porm,

viver. Embora consciente do muito mal que lhe fazia, recusava-se a conceder-lhe divrcio. Legalmente, tinha o direito

de adoptar esse procedimento, mas do ponto de vista humano

a sua atitude era vingativa e cruel. Que mais sabemos a

respeito

dela? Que era uma' alcolica inveterada, que tomava drogas

para dormir e drogas para despertar. No arranjo da casa,

denotava desmazelo: a cama por fazer s trs da tarde, a carpeta queimada por pontas de cigarro e marcas de garrafas

na superfcie dos mveis.

- No entanto, viram a sua fotografia e sabem que possua alguns atractivos fsicos. Para evitar que Hilary se

libertasse, no hesitava em proceder com o mximo segredo no

que respeitava sua vida ntima. Fao-Lhes esta pergunta e

peo-lhes que meditem nela: Louise Hilary tinha amantes e,

se os tinha, no ser possvel que um deles a assassinasse?

Podero, razoavelmente, excluir essa possibilidade?

- Sabemos que vinte e quatro horas antes decidira sair

do pas, sem planos definidos, coisa que nunca fizera antes.

Poderemos ter a certeza de que esta resoluo, aparentemente

tomada de sbito, no ter tido qualquer relao com o crime

de que, pouco depois, viria a ser vtima? A prpria lacuna

existente no que sabemos da vida desta mulher nos deveria

acautelar e levar a reflectir. Estar certo condenar o ru num

contexto de to abissal ignorncia? Tm honestamente a conscincia perfeita de ter ouvido toda a verdade?

- Membros do jri, a dvida existe, e quando a dvida

existe, como o meu ilustre colega vos disse, o dever dos

jurados

inequvoco. S com um veredicto de ??Inocente?? podem ter

a certeza de evitar a mais terrvel das possibilidades: um

erro

judicial de consequncias irremediveis.

EtvQUnNTo MuRGnTRoYD fizera o seu apelo confiante e veemente,

o gelo comeara a fundir-se no corao de Kathryn. Mas o

medo regressou, insidioso, quando o juiz apresentou a smula,

pois ele voltou a repisar em todas as terrveis provas acumuladas:

- Os senhores jurados tero de decidir se devem ou no

aceitar, como digna de crdito, a identificao de Mrs. Scott.

A defesa alega que ela se enganou e apresentou uma teoria

que, na sua opinio, justificaria o equvoco. A possibilidade

de erro em consequncia de uma impresso pessoal passageira

existe, de facto. Se tiverem alguma dvida acerca da identificao feita por Mrs. Scott devem considerar, com toda a ponderao, se as restantes provas apresentadas pela acusao

so concludentes. Se, porm, aceitarem a afirmao de Mrs.

Scott

de que Hilary esteve em casa da mulher naquela tarde, ento

ser difcil no chegarem concluso de que culpado.

Ponto por ponto, o juiz voltou a percorrer todo o caminho

j pisado e repisado, e a dar instrues quanto a pormenores

jurdicos. A certa altura, at os jurados comearam a mexer-se

nas cadeiras, impacientes.

- Existe a impresso muito generalizada de que as provas

circunstanciais no so boas provas- concluiu.- Ora, no ,

forosamente, assim. Devem, no entanto, submet-las a uma

experincia rigorosa: excluem, aos olhos de qualquer pessoa

razovel, todas as outras teorias ou possibilidades? Se no

excluem, existe dvida, e existindo dvida o ru tem o direito

de ser absolvido.

O destino de Charles Hilary estava, agora, nas mos

do jri.

KATHRYN ESPERAVA, encolhida na sua cadeira. Sentia-se to

apavorada que mal podia falar. Passaram dez minutos, vinte

minutos, meia hora... O irmo sugeriu que sassem para desentorpecer as pernas, que fumassem um cigarro, que fizessem

qualquer coisa que os impedisse de pensar. Mas ela abanou

a cabea. No sabia se seria capaz de se mexer.

Quarenta minutos, cinquenta minutos... Quanto tempo

podia uma pessoa ser torturada sem perder a razo? De sbito,

ouviu-se uma agitao distante, um murmrio de vozes, um

arrastar de cadeiras... Regressavam!

- Membros do jri, chegaram a acordo quanto ao veredicto?

- Chegmos.

- Consideram o ru culpado ou inocente?

- Culpado.

O sangue latejava loucamente na cabea de Kathryn. Atravs de uma espcie de nvoa, viu Charles levantar-se e ouviu

a voz do juiz:

- Tem alguma coisa a dizer?

E a resposta fria de Charles:

- Absolutamente nada.

Seguiram-se palavras terrveis, inacreditveis, que ressoariam para sempre nos seus ouvidos, e um sonoro ??men!,?

Sentiu-se cair, agarrou-se ao brao do irmo e essa foi a

ltima coisa de que se lembrou, durante muito tempo.

Captulo I

s QunrRo HoRns de uma tarde de Agosto - exactamente

dezasseis horas antes do momento fixado para a execuo

de Hilary-, um grande camio-cisterna seguia o seu caminho.

atravs dos subrbios londrinos. O motorista, um indivduo

forte, chamado William Moore, ia nu da cintura para cima

e sofria tormentos sob um calor de 34 graus. Por sinal, sentia-se to exausto que decidira ir ao mdico assim que descarregasse a enorme carga.

Quando o camio meteu pela ladeira que levava cadeia

de Pentonhurst, os grandes portes da priso abriram-se e saiu

um automvel. Moore torceu o pesado volante, para evitar

o choque, e essa foi a ltima coisa de que teve conhecimento.

Os dedos que seguravam o volante perderam a fora, o corpo

descaiu-lhe no banco e o p ficou apoiado, com todo o seu

peso, no acelerador. Lanado a toda a velocidade, o grande

veculo transps ruidosamente o porto escancarado, embateu

na entrada de um dos blocos prisionais e virou-se, com enorme

fragor. Rebentada pela fora do choque, a cisterna jorrou

gasolina e, quando esta chegou ao escape sobreaquecido, deu-se

uma violenta exploso. Numa questo de segundos, dois mil

gales de combustvel inflamado alastraram pela priso, num

mar de chamas que se estendeu do ponto de coliso ao bloco

hospitalar.

NA ALTURA oo cHoQu?, Charles estava deitado na cama, na

espaosa cela reservada aos condenados. A grossura das paredes no impedira que se sentisse o extraordinrio calor

daquele

dia, e Charles estava aperas de cuecas, camisola interior e

sapatos de lona.

Tinham decorrido trs semanas desde o veredicto pronunciado no Old Bailey. Embora os advogados lhe tivessem dito,

com toda a franqueza, que havia poucas esperanas de o apelo

ser atendido, parecera-lhes, no entanto, que existia alguma

possibilidade de adiamento da execuo da sentena. Trs dias

antes, porm, o Ministrio do Interior comunicara que no

tinha encontrado qualquer motivo para intervir.

Depois disso, vivera algum tempo numa indescritvel angstia mental. Ser privado da vida que comeara a sorrir-lhe por

um crime acerca do qual nada sabia! O pior de tudo fora o

adeus a Kathryn. Frente a frente, tinham-se fitado numa agonia

entorpecedora de amor e sofrimento. Depois disso, as horas

de Charles tinham sido um frenesi de clera, um inferno negro

de desespero. Mas, medida que o momento fatal se aproximava, fora-se sentindo gradualmente mais calmo. Ia morrer,

e seria prefervel deixar a vida com estoicismo do que com

cobardia... Quando se deu o choque do camio-cisterna, quase

nem se apercebeu de nada. Estava como que em transe, inacessvel ao rudo e a qualquer abalo exterior.

Mas o tumulto tornou-s mais insistente e, pouco depois,

acabou por se levantar e ir espreitar ao ralo de ferro. Ao

longo

do corredor, homens gritavam e batiam, como loucos, nas

portas fechadas chave. Passava gente ' a correr e soavam

campainhas de alarme.

Um fumo acre invadiu o corredor e Charles comeou a

tossir. Contagiado pelo pnico, desatou, tambm, a bater

sua porta. ouviu um tilintar de chaves e um carcereiro gritar,

atravs de uma nuvem de fumo: ??Saia! O homem puxou-lhe

por um brao e, logo a seguir, Charles encontrou-se misturado com a turba de reclusos que corriam pelo corredor fora.

Os gritos tornavam-se mais desesperados. Alguns pobres

diabos

tinham, com certeza, ficado encurralados nas suas celas.

C fora, no ptio, reinava a confuso. Dois blocos celulares

ardiam, num inferno de chamas, e guardas e presos uniam

os seus esforos em desesperadas tentativas de salvao. Segundo a segundo, a sua tarefa tornava-se mais difcil,

medida

que denso manto de fumo se imobilizava no ar asfixiante, que

nem o mais pequeno sopro de brisa refrescava. Charles parou,

irresoluto. A mo do carcereiro j no lhe segurava o brao.

Sufocado, deu alguns passos para se afastar do fumo e, ao

estender a mo tacteante, os seus dedos sentiram a frescura

do ferro. Transps o porto e um momento depois estava

na estrada.

No pensara conscientemente em fugir, mas uma vez fora

da priso pareceu-lhe absurdo voltar para trs. Embora no

esperasse ir longe, vestido daquela. maneira, como no tinha

nada a perder comeou a correr.

Quando emergiu do fumo para a claridade do dia, um

jovem ciclista incitou-o: ??Para a frente! Toca a mexer essas

pernas!,? Ao princpio, no entendeu o significado das palavras, mas ao notar os sorrisos tolerantes de outros

transeuntes

compreendeu, de sbito, o que se passava: em virtude do seu

vesturio reduzido, tomavam-no por um atleta a treinar-se! Se

no parasse de correr; talvez conseguisse manter essa iluso

e, sendo assim... Comeou a encarar a fuga como uma possibilidade sria e, na primeira oportunidade que se Lhe deparou,

saiu da estrada principal: As pernas pouco habituadas a tal

esforo iam-se abaixo e a respirao ofegante magoava-lhe a

garganta seca. S lhe acudia uma ideia susceptvel de oferecer

um pouco de esperana: telefonar a Kathryn. Se ela pudesse

recolh-lo no seu carro e lev-lo para longe dali, talvez...

Viu, frente, um cruzamento de estradas, com um lavabo

pblico a meio e - sim!- uma cabina telefnica. Percorreu

os cem metros que faltavam para l chegar, num ltimo

arranco de energia, e entrou na cabina. Arquejante, agarrou

o auscultador, e s ento se lembrou de que no tinha

dinheiro.

Precisava apenas de trs pennies e no os tinha. Trs pennies,

naquele momento, representavam para ele o bilhete de entrada

no paraso, mas no os tinha nem os podia arranjar em parte

al?ma! Lembrou-se, ento, de que era possvel mandar debitar

o preo da chamada pessoa a quem se telefonava, e a esperana renasceu. Demorou-se ainda um segundo ou dois a agarrar

o auscultador, enquanto recuperava o flego, e por fim marcou ??0??. Quando a telefonista atendeu, j dominava perfeitamente a voz:

- Desejo fazer uma chamada, a debitar, para Flaxman

4-8042. S agora descobri que i?o tinha dinheiro trocado.

A telefonista aceitou a explicao com naturalidade e perguntou-lhe:

- Como se chama, por favor?

- Forrester, John Forrester.

- Aguarde um momento.

Quase no mesmo instante o telefone comeou a tocar, no

destino. Tocou, tocou... mas no aconteceu nada.

??Ela no est em casa!?,, pensou, tomado de um desespero sem limites. De sbito, porm, ouviu um estalido e a

campainha deixou de tocar. A telefonista falou e, pouco

depois,

como msica celestial, a doce voz de Kathryn chegou-Lhe aos

ouvidos.

Iniciou imediatamente o discurso que preparara:

- Kathryn! Antes de dizeres uma s palavra, deixa-me

afirmar-te que lamentei muitssimo no poder comparecer ao

encontro de hoje. Aconteceu uma coisa que modificou por

completo os meus planos. Compreendes, no verdade? Mas

agora estou livre e encontro-me no cruzamento da Porter Street

com a Lemon Street. No poders vir aqui buscar-me imediatamente?

Seguiu-se um momento de absoluto silncio e depois um

som mais semelhante a um silvo assustado que a ?uma palavra:

- Charles!

Tentou falar com naturalidade:

- Porter e Lemon Street. Podes vir?

Nova pausa. Depois:

- Sim, oh, sim!

- ptimo. Espero-te daqui a cerca de meia hora. Se eu

estiver a tomar uma chvena de ch ou qualquer coisa e no

me vires, d uma buzinadela quando chegares ao cruzamento, sim?

- Sim.- A voz de Kathryn tornara-se mais firme.- Vou

imediatamente.

Charles desligou e espreitou para a rua. Iam a passar dois

homens e uma mulher. Esperou que desaparecessem, deixou

passar um automvel e correu para o lano de degraus onde

Se lia: . O lavabo estava sujo e no tinha

ningum de servio. Enfiou-se num dos cubculos e fechou

a porta.

Uma pausa, finalmente!

Enquanto esperava, passou em revista as suas necessidades

imediatas. Vesturio, comida e, sobretudo, um lugar seguro

onde pudesse esconder-se. Qualquer canto afastado dos locais

conhecidos, onde pudesse aguardar, com relativa tranquilidade,

que terminasse a primeira fria da caa ao homem... Julgou

conhecer o stio ideal, mas restava saber se conseguiria l

chegar.

Para isso teria de implicar gravemente Kathryn, mas a verdade

que tudo quanto fizesse a implicaria...

Passados momentos, ouviu o relgio de uma igreja, ao

longe. Cinco horas! Devia estar ali havia pelo menos meia

hora.

Tinha dificuldade em conservar a serenidade; aquele esconderijo no era seguro. A cada som, o corao parecia querer

saltar-lhe do peito. O medo voltara, juntamente com a liberdade. Agora tinha, de novo, algo a perder.

De sbito, ouviu o som de uma buzina familiar. Ela conseguira! Abriu a porta apenas uma nesga e ficou parado,

escuta. Subiu o lano de degraus e, atravs do gradeamento,

viu o automvel e Kathryn, plida e atenta, sentada ao

volante.

Atravessou a estrada a correr.

Ao ver como estava vestido, o rosto da jovem exprimiu

grande consternao.

Charles ?abriu a porta e atirou-se bruscamente para o banco

da retaguarda.

- Arranca, Kathryn! Depressa! Segue para o Elefante...

Quando o carro arrancou, os olhos de ambos encontraram-se, no retrovisor.

- Oh, querido!- exclamou, comovida.- Que aconteceu?

- Houve incndio na cadeia e eu fugi.

Ele fugira! Kathryn sentiu-se invadir por uma excitao

violenta, pelo desejo vido de aceitar aquele desafio. O seu

-?so

rosto transformou-se numa mscara de ateno concentrada,

enquanto delineava mentalmente o trajecto.

- Escuta, Kathryn, quero que saibas uma coisa: podes

apanhar dez anos por me ajudares. I?To devia meter-te nisto,

mas no me ocorreu outra soluo.

- Luzes de trnsito!- avisou, de sbito, em voz firme.

- Baixa-te. Deve haver a uma manta.

Charles encontrou a manta e tapou-se, enquanto o carro

parava.

Passado o cruzamento, Kathryn voltou a falar:

- Meu amor, 'a nica coisa em que temos de pensar,

agora, na maneira de te manter vivo. No quero saber do

que possa acontecer-me. Aonde queres que te leve? Ao meu

apartamento? No poderias esconder-te l?

- Ser o primeiro lugar aonde iro procurar-me. Medway

parece-me o stio mais indicado. Pensei na ilha Twinney. Poderia acampar l indefinidamente.

Kathryn acenou com a cabea, concordante. A ilha Twinney

pertencia a um grupo de ilhotas da grande elevao meridional

do rio Medway, onde tinham passado tantos. fins-de-semana.

Cercava-a uma muralha em runas, que proporcionava alguma

proteco, e ficava apenas a um quarto de milha do seu chal.

Era um lugar inspito e desolado.

- E a respeito de provises?- perguntou Kathryn.

- Temos de transportar tudo para l esta noite, antes de

a Polcia chegar. H muitas coisas no chal.

Era verdade. Havia latas de conservas que tinham comprado para as frias no Witch, e que no haviam utilizado,

e muitas outras coisas de que Charles precisaria.

- Posso ir para a ilha contigo?

- No possvel, querida. A Polcia encontraria o carro.

Alm disso, sers a minha nica tbua de salvao. Creio que

o mais seguro seria ficares no chal um dia ou dois. A Polcia

no deixar de te perguntar onde estiveste esta tarde e no

te ser possvel inventar uma boa justificao para um perodo

de seis ou sete horas. No podero provar nada se te encontrarem naturalmente instalada no chal, s claras; mas se disseres que no estiveste l e descobrirem que estiveste, compreendero que a tua visita se relacionou comigo e podero

incriminar-te.

- Percebo. Poderei dizer que me refugiei l para me

afastar das pessoas. O pior que, se me encontram no chal,

podem desconfiar e pensar nas ilhas.

- No sei porqu, mas creio que no. Devem vigiar-te,

pois deduziro que, se me encontrar nas ?,imediaes, dependerei de ti no que respeita a mantimentos; mas se verificarem

que procedes com naturalidade, provvel que se convenam

de que no estou l.

- Qual , ento, o plano? Levo-te l primeiro, no barco

a remos, e depois vou buscar as provises ao chal? '

- No. Acho melhor no me aproximar, sequer, do chal.

Ainda ser dia, quando chegarmos, e devemos evitar riscos

desnecessrios. Saio do carro logo a seguir a East Rainham,

no ponto onde a estrada passa pela muralha, nas imediaes

de Otterham Creek. Ficarei a escondido at escurecer e depois

nadarei para a ilha.

- Muito bem. Agora diz-me exactamente o que devo fazer.

- Depois de me deixares, seguirs para o chal. A seguir

carregas o bote e assim que a mar permitir remas at ilha

e desembarcas as provises. Voltas com o bote e preparas-te

para representar um bom papel, quando as visitas chegarem.

- E se a mar estiver na vazante toda a noite?

- Esperemos que no esteja!

Uma coisa era certa: seria impossvel transportar as provises atravs do lodo, se a enseada estivesse em seco.

- Ficarei mais descansada se tivermos a certeza. Creio

que est um Times a atrs, junto da janela.

Depois de tactear um pouco, Charles encontrou o jornal

e procurou o boletim meteorolgico. Viu a que horas era a

preia-mar na Ponte de Londres e efectuou um clculo rpido.

- Estamos com sorte, querida. A mar deve encher nas

imediaes do chal cerca das dez e meia da noite.

- Isso significa que poderei partir mais ou menos s nove

e meia.

- Exactamente. provvel que cheguemos ilha quase

ao mesmo tempo. Vai ser duro, querida. Sentes-te com coragem?

- Sinto-me ptima! Oh, meu amor, quem me dera poder

ficar l contigo!

- Mas no podes, querida. Basta que eu tenha de viver

como um selvagem acossado. No quero arrastar-te para isso.

Durante alguns momentos, Kathryn teve de dedicar toda

a sua at