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i Análise sociotécnica das controvérsias e oposição ao programa alimentar multimistura Socio-technical analysis of controversies and opposition to the multi- misture food suplement program Lucimeri Ricas Dias, MSc Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia HCTELinha de Pesquisa: Ciência Tecnologia Sociedade (CTS) Rio de Janeiro RJ Brasil Orientador: Ivan da Costa Marques, PhD. [email protected] RESUMO: Com base no quadro de fome e desnutrição de uma parcela da população brasileira e na necessidade de melhorar sua qualidade de vida e saúde, o Programa Alimentar Multimistura foi adotado pela Pastoral da Criança, a partir da década de 80. Conquanto apontado, pelos seus defensores, como sendo uma das soluções para a recuperação de crianças subnutridas, ele não foi aprovado pelo Conselho Federal de Nutricionistas (CFN). Fez-se relevante a compreensão do percurso construído pela multimistura enquanto tecnologia simples e voltada à maximização de produtos locais, bem como a análise das controvérsias instaladas na maioria das pesquisas científicas envolvendo suas propriedades nutricionais e condições higiênico-sanitárias. Para os “cientistas cidadãos”, importa que a eficácia da multimistura seja multiplicável, assim, propiciando a distribuição em grande escala e composição como domínio público. Para os nutricionistas, tal eficácia precisa ser comprovada pelo laboratório, através do qual eles têm questionado a sua legitimidade. Dando continuidade à minha pesquisa de tese, objetivo, neste artigo, compreender a razão pela qual o CFN não mudou seu posicionamento desde a década de 90. Para compreender a fixa oposição, investigo um quadro mais amplo da formação da profissão de “nutricionista” e as condições específicas do fenômeno da fome no nordeste do Brasil. Portanto, escolhi a Teoria Ator- Rede (TAR) para seguir as articulações e conexões que se estabeleceram entre a ciência da Nutrição e o Programa Alimentar Multimistura. A aplicação desse modelo permitiu- me romper com a lógica das polarizações, aceitando o conhecimento como efeito de uma multiplicidade de interações. Por meio dos estudos de Ciência Tecnologia Sociedade, busco evidenciar a urgência de arenas transepistêmicas que possibilitem novas hipóteses identificáveis pelo conhecimento “dito” leigo. Palavras-chave: multimistura, controvérsias, nutricionistas, conhecimento científico, conhecimento leigo.

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Análise sociotécnica das controvérsias e oposição ao programa

alimentar multimistura

Socio-technical analysis of controversies and opposition to the multi-

misture food suplement program

Lucimeri Ricas Dias, MSc

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e

das Técnicas e Epistemologia – HCTE– Linha de Pesquisa: Ciência – Tecnologia – Sociedade (CTS)

Rio de Janeiro – RJ – Brasil

Orientador: Ivan da Costa Marques, PhD.

[email protected]

RESUMO:

Com base no quadro de fome e desnutrição de uma parcela da população brasileira e na

necessidade de melhorar sua qualidade de vida e saúde, o Programa Alimentar

Multimistura foi adotado pela Pastoral da Criança, a partir da década de 80. Conquanto

apontado, pelos seus defensores, como sendo uma das soluções para a recuperação de

crianças subnutridas, ele não foi aprovado pelo Conselho Federal de Nutricionistas

(CFN). Fez-se relevante a compreensão do percurso construído pela multimistura

enquanto tecnologia simples e voltada à maximização de produtos locais, bem como a

análise das controvérsias instaladas na maioria das pesquisas científicas envolvendo

suas propriedades nutricionais e condições higiênico-sanitárias. Para os “cientistas

cidadãos”, importa que a eficácia da multimistura seja multiplicável, assim, propiciando

a distribuição em grande escala e composição como domínio público. Para os

nutricionistas, tal eficácia precisa ser comprovada pelo laboratório, através do qual eles

têm questionado a sua legitimidade. Dando continuidade à minha pesquisa de tese,

objetivo, neste artigo, compreender a razão pela qual o CFN não mudou seu

posicionamento desde a década de 90. Para compreender a fixa oposição, investigo um

quadro mais amplo da formação da profissão de “nutricionista” e as condições

específicas do fenômeno da fome no nordeste do Brasil. Portanto, escolhi a Teoria Ator-

Rede (TAR) para seguir as articulações e conexões que se estabeleceram entre a ciência

da Nutrição e o Programa Alimentar Multimistura. A aplicação desse modelo permitiu-

me romper com a lógica das polarizações, aceitando o conhecimento como efeito de

uma multiplicidade de interações. Por meio dos estudos de Ciência – Tecnologia –

Sociedade, busco evidenciar a urgência de arenas transepistêmicas que possibilitem

novas hipóteses identificáveis pelo conhecimento “dito” leigo.

Palavras-chave: multimistura, controvérsias, nutricionistas, conhecimento científico,

conhecimento leigo.

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ABSTRACT

Based on the framework of hunger and malnutrition of a portion of the Brazilian population and

the need to improve their quality of life and health, the program of food supplement multi-mixture- MM (a bran-based cereal mixture) was adopted by the Child's Pastoral since the 80's.

Even indicated by its supporters as a solution to the recovery of malnourished children, it was

not approved by the Federal Council of Nutritionists (CFN). For this reason, it was relevant to understanding the path built by multi-mixture use as a simple technology aimed at maximizing

local products, as well as analyze the controversies raised on the most part of scientific research

involving nutrition and sanitary conditions. For the "citizen scientists", it is important that the

effectiveness of the multi-mixture is multipliable, enabling large-scale distribution; also it is important that the composition is public domain. At the other hand, for nutritionists, this

effectiveness must be proven by scientific bases with laboratory tests, through which they have

questioned its legitimacy. Therefore, this article aims to understand why the CFN has not changed its position since the 90's. To understand this fixed opposition, it will be investigate a

broader picture of the training of "nutritionist" and the specific conditions of the phenomenon of

hunger in northeast of Brazil. In this research it was the Actor-Network Theory (TAR) method to follow the joints and connections that were established between the science of nutrition and

the program of food supplement multi-mixture. The use of this method allowed breaking with

biases, accepting knowledge as an effect of multiple interactions. Through the studies of

Science, Technology and Society we seek to highlight the urgency of transepistemic arenas of research that permit new hypotheses identified for the knowledge "said" not expert or lay.

Keywords: multi-mixture controversy; nutritionists; scientific knowledge; popular knowledge.

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1. Primeira Trilha: Seguindo a Trajetória da Multimistura

Antes de engendrar pela história da formação do profissional de nutrição e

buscar a razão da sua oposição ao programa alimentar multimistura, creio que seja

relevante apresentar o processo de construção da historicidade dos fatos para que o

leitor possa conhecer o que é e quais são as controvérsias em torno do "pozinho mágico

de pirlimpimpim” 1 chamado multimistura (VELHO; VELHO, 2002, p. 152).

Para iniciar o debate em questão, escolhi entrar pela trilha que nos levará as

heranças deixadas pela década de 60, período marcado por extremas desigualdades

sociais e regionais oriundas de uma das maiores crises da produção alimentar da

história do século XX. Um estudo realizado pela The United Nations Children's Fund

(UNICEF) e pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) registrou que a

mortalidade infantil, nesse período, chegou a 115 para cada mil crianças que nasciam

vivas e a taxa de mortalidade para menores de cinco anos era de 160. De acordo com

Valente (2002, p.41), “a ênfase estava na comida, e não no ser humano”. Para o autor, o

aumento da demanda fazia os preços subirem, portanto não havia interesse no aumento

da produção. Com os elevados preços dos alimentos, as ajudas humanitárias e propostas

de programas alimentares diminuíam sensivelmente.

A possibilidade de uma melhoria econômica frente ao detrimento social vivido

nas décadas de 60 e 70 levou milhares de pessoas a abandonar a zona rural em direção

aos centros urbanos. Grande parte dos migrantes eram nordestinos fugitivos da fome, da

seca e do desemprego, em busca de trabalho e melhores condições de vida nas grandes

cidades do Sudeste (Rio de Janeiro e São Paulo). A transição das regiões periféricas

para os centros urbanos ligados ao oligopólio industrial não trouxe uma melhoria

significante nos anos que se seguiram. Ao contrário, na década de 80, a taxa caiu, mas a

mortalidade infantil ainda registrou um número espantoso, de 64 para cada mil crianças

que nasciam vivas com taxa de mortalidade para menores de cinco anos de 87. No

mesmo período, uma carta aberta foi entregue ao presidente da república assinada por

profissionais da área da nutrição, tomando como base os dados do Estudo Nacional de

Despesa Familiar, declarando que dois terços das famílias brasileiras consumiam uma

1 Esse pó é uma criação de Monteiro Lobato, na obra O Sítio do Pica-pau Amarelo, e é replicado em outras obras; era utilizado pela boneca Emília, pelas crianças, Pedrinho e Narizinho, e pelo Visconde, para se transportarem,

magicamente, de um lugar a outro.

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dieta de baixa adequação calórica e que esse consumo significava uma situação de fome

crônica em vários graus de intensidade e sob diferentes combinações de deficiências

nutricionais qualitativas e quantitativas (ENDEF, 1974 apud ESCODA, 2001).

Os parágrafos anteriores ilustraram um breve panorama da situação encontrada

pela Dr.ª Clara Brandão (Figura 01) quando chegou ao município de Santarém, no Pará

– Brasil, onde, segundo seu relato, encontrou miséria, crianças desnutridas, filhos de

pessoas que não tinham o que comer, não conseguiam trabalho e não partiram para as

grandes capitais. Para essa gente, ela ensinou o aproveitamento dos alimentos e o

cultivo de hortas caseiras. Na busca por uma solução local, formulou uma

“multimistura” (Figura 01) com farelo de arroz, folhas verdes e sementes para

enriquecer a alimentação diária das crianças atendidas nas creches populares. “O

resultado foi a redução de 30% para 5% da taxa de desnutrição infantil na região”,

contou Brandão2 (2009).

Figura 01: Drª. Clara Brandão e a Multimistura. Fonte: Brandão (2009).

Em 1983, ano em que a Pastoral da Criança foi criada, além da fome e dos altos

índices de mortalidade e desnutrição nos “bolsões de pobreza”, o Brasil também

enfrentou uma forte seca na região norte e nordeste. No mesmo ano, a Sociedade

Brasileira de Pediatria (SBP) - em seu 23° Congresso - premiou a multimistura como a

“melhor solução encontrada contra a mortalidade infantil”. Com isso, o programa

consagrou-se como um dos principais aliados no combate à desnutrição ganhando

visibilidade nacional. Esse foi o marco para que a Pastoral da Criança consolidasse e

disseminasse o seu uso, tornando-se um claro exemplo da mobilização, em que a ação é

2 BRANDÃO, Clara. Comunicação pessoal. Brasília, 2009.

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feita através dos chamados “cientistas cidadãos” 3. Dados recentes mostram que a

organização está presente em 42.000 comunidades pobres e acompanha, mensalmente,

mais de 1,8 milhões de crianças menores de 6 anos, em média, 94.000 gestantes, com o

auxílio de, aproximadamente, 260.000 voluntários treinados para atuar junto a famílias

através de ações4. Dentre elas, a vigilância nutricional e a promoção do crescimento -

pesagem mensal das crianças acompanhadas e registro na curva de crescimento, assim

como o envolvimento da comunidade para que a criança desnutrida seja considerada

responsabilidade de todos e não apenas da família (Figura 02).

Figura 02: Pesagem mensal realizada pela Pastoral da Criança.

Fonte: Pastoral da Criança da Paraíba (2009, s.p.).

Seguindo o curso do liberalismo nos anos 90, pode-se vislumbrar uma

considerável redução da mortalidade infantil que teve uma média nacional registrada de

48. De acordo com Escoda (2001), a queda da mortalidade infantil registrada nessa

década, não se explica apenas pela melhoria das condições materiais de vida da

população como um todo em termos de renda. É possível então destacar o

reconhecimento da recuperação e a manutenção do estado nutricional de desnutridos

pelo programa alimentar multimistura oficialmente reconhecido pelo Instituto Nacional

de Alimentação e Nutrição (INAN), em 1994. Ano em que a Dr.ª Clara coordenou o

Programa de Orientação Alimentar para a Saúde para examinar a questão da inclusão da

multimistura como Política Nacional de Alimentação e Nutrição, dando início a uma

3 Neste caso, os cientistas cidadãos são todos aqueles que utilizam protocolos distintos aos laboratórios científicos e

estão envolvidos no processo de pesagem, fabricação, distribuição da multimistura e ações de cidadania.

4 Ações prioritárias da Pastoral da Criança disponíveis em: <http://www.scielosp.org/pdf/rpsp/v5n6/v5n6a4.pdf>.

Acesso em: junho de 2011.

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calorosa discussão. Esse foi o marco de resistência dos chamados “experts” da saúde.

Os médicos Jaime Amaya-Farfán e Hilda Torin criaram um Informe Técnico (IT)

desqualificando a multimistura, alertando para os perigos da utilização de uma dieta

composta de elementos cuja eficiência era questionada pelas evidências levantadas por

seus laboratórios (DIAS, 2011).

Segundo as duras críticas levantadas pelo IT, os resultados clínicos obtidos no

quadro nutricional de crianças não seriam éticos e nem justificáveis apenas através de

evidências anedóticas5, como no caso da menina Lindacy (Figura 03), divulgadas pela

Revista Veja, em 30/10/96 em matéria de capa intitulada “Um Milagre Chamado

Comida” (Figura 04). A matéria descreve, além do caso Lindacy, ações da Pastoral da

Criança, junto às gestantes e mães em reuniões semanais, com o objetivo de ensinar e

propagar a receita da multimistura como domínio público.

Figura 03: Menina Lindacy, em 1994, com 3 quilos. Um ano e meio depois, com 15 quilos.

Fonte: Revista Veja (1996)6.

Figura 04: Menina Lindacy em matéria de Capa da Revista Veja em 30/10/96. Fonte: Revista

Veja (1996)7.

5 “Evidência narrada” que não atende às exigências (protocolos) dos cientistas. (Moore e Stilgoe, 2009)

6 Reportagem do acervo de Brandão, Clara. Comunicação pessoal. Brasília, 2009.

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No mesmo ano das reportagens divulgadas, o CFN, contou com a adesão de

grande parte da comunidade científica, para questionar, com particular ênfase, as

evidências apresentadas pela Dr.ª Clara na incorporação da multimistura à dieta habitual

de crianças desnutridas, obtidas pelos “excelentes resultados” como o observado na

Figura 03. O CFN apontou diversos “erros técnicos e conceituais” encontrados no

folheto de autoria da Dr.ª Clara Brandão, afirmando que as informações ali contidas

deveriam ser comprovadas pelos laboratórios e solicitou ao Ministério da Saúde que

fosse “sustada a divulgação do folheto „Alimentação Alternativa‟ para as indispensáveis

correções” 8·. Desde então, o CFN (1996) mantém a sua fixa oposição declarando que:

Face à precariedade de respaldo científico, bem como da legislação para

vigilância sanitária na utilização da multimistura e, consciente da urgente

necessidade de definição de uma Política Nacional de Alimentação e

Nutrição, como prioridade do Governo, que resgate a cidadania e o direito ao

alimento, à saúde e a vida (o CFN) se posiciona contrário ao uso da

multimistura, alertando para os riscos da sua utilização e afirma que a

multimistura não pode ser prescrita, nem recomendada por seus afiliados.

As�afirmações�dos�cientistas�tornaram-se�fundamentais à formação das

controvérsias e oposição ao programa,�pois revestiam de autoridade os

posicionamentos dos que se baseiam nelas. Para Bourdieu (1983, p. 137), os órgãos

reguladores que falam em nome da ciência “consagram-se às estratégias de

conservação, visando assegurar a perpetuação da ordem científica estabelecida com a

qual compactuam”. Essa ordem englobaria também o conjunto das instituições

encarregadas de assegurar a produção e a circulação dos bens científicos e as instâncias

especificamente encarregadas pela sua consagração (academias, prêmios, congressos

etc.). Compreendendo ainda, revistas científicas que, ao operar em função de critérios

dominantes, consagram produções conforme os princípios da “ciência oficial”.

Oferecendo, assim, continuamente, o exemplo do que merece o nome de ciências,

exercendo uma censura sobre as “produções heréticas”, seja rejeitando-as

expressamente ou desencorajando simplesmente a intenção de publicar pela definição

do publicável que elas propõem. (BOURDIEU, 1983, p. 138) (grifos da autora)

Em� decorrência das delimitações de fronteiras, alguns aliados importantes

mudaram de lado criando divisões dentro da sua própria estrutura. É o caso da Pastoral

da Criança que deixou de utilizar oficialmente a multimistura no mesmo ano que foi

7 Reportagem do acervo de Brandão, Clara. Comunicação pessoal. Brasília, 2009. 8 Conselho Federal de Nutricionistas/CFN. Posicionamento do Conselho Federal de nutricionistas quanto à Multimistura. Brasília, fevereiro 1996. Disponível em:

<http://www.cfn.org.br/novosite/conteudo.aspx?IDMenu=61>. Acesso em: junho de 2011.

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publicado o IT, 1994. Segundo o Relatório da Situação Mundial da Infância da UNICEF

de 2006, a Pastoral da Criança distribuiu, naquele ano, o complemento para uma parcela

mínima das famílias que atende:

Usada desde 1985 pela Pastoral da Criança, a Multimistura foi adotada em

outras iniciativas e ganhou evidência entre as ações de combate à desnutrição infantil. Mas hoje vem sendo questionada e reavaliada. A própria Pastoral, a

partir de 1994, passou a substituir o conceito de multimistura pela noção de

alimentação enriquecida, enfatizando o valor de qualquer alimento adquirido

em nível local com alto valor nutritivo, bom paladar e baixo custo, como a

manga, ótima fonte de vitamina A. Hoje, a multimistura é distribuída para

menos de 10% das famílias atendidas pela entidade (UNICEF, 2006, p. 47).9

Ao entrar no século XXI, os debates e polarizações tornaram-se ainda mais

evidentes. Em 2003, a 12ª Conferência Nacional de Saúde recomendou a adoção da

multimistura como uma política pública alimentar. A Diretriz nº 94, sobre Alimentação

Alternativa, colocou como objetivo:

Estabelecer parcerias entre governo e entidades para que sejam realizadas

oficinas sobre alimentação saudável e enriquecida. Que seja produzida a

Multimistura e que as unidades básicas de saúde (UBS) saibam orientar e

distribuí-la a crianças, adolescentes, gestantes, idosos e também para as

entidades que trabalham com portadores e casos de imunodeficiências e/ou

subnutrição, respeitando diversidades religiosas, culturais e étnicas, como

estratégia de prevenção e recuperação mais rápida das pessoas com déficits

de peso e nutricionais (RELATÓRIO FINAL DA 12ª CONFERÊNCIA

NACIONAL DE SAÚDE - DIRETRIZ Nº 94, 2003, p.99).10

O efeito foi inverso para os que desejavam abafar a visibilidade da multimistura.

O programa acabou angariando mais aliados e financiamentos de instituições como o da

Fundação Banco do Brasil e o apoio da UNESCO; e novas frentes de trabalho formadas

pelos “cientistas cidadãos” que não aceitaram a oposição da própria Pastoral da Criança

e nele permaneceram. Mesmo com fortes aliados e defensores, em 2007, a multimistura

passou pelo período mais difícil desde sua criação, pois grande parte das alianças

estabelecidas ao longo de 30 anos do programa começaram a se desestabilizar. A firme

oposição do CFN, os resultados controversos de pesquisas científicas, o cancelamento

por parte do Ministério da Saúde e a desmobilização da Pastoral da Criança levaram

seus defensores a questionar se tais fatos não estariam ligados a interesses políticos

conflituosos.

9 Relatório da Situação Mundial da Infância - UNICEF de 2006. Disponível em: <http://www.unicef.org/brazil/pt/Pags_040_051_Desnutricao.pdf>. Acesso em: junho de 2011. 10 Relatório Final da 12ª Conferência Nacional de Saúde. Disponível em:

<http://conselho.saude.gov.br/biblioteca/Relatorios/relatorio_12.pdf>. Acesso em: junho de 2011.

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Diante das suspeitas levantadas, a mídia se pronunciou como um forte “actante”

na propagação dos debates. A Revista ISTO É (2007) trouxe uma matéria-denúncia

intitulada: “A vitória dos enlatados”, afirmando que o Governo havia trocado a “mistura

nutricional consagrada” há décadas por produtos industrializados. Nesse momento Dr.ª

Clara falou à sociedade e afirmou enfrentar adversários poderosos. Segundo a médica, a

multimistura começou a ser excluída da merenda escolar para abrir espaço para o

Mucilon e Farinha Láctea, cujo mercado é dividido entre a Nestlé e a Procter & Gamble

(empresas oficialmente ligadas ao Programa Fome Zero). “É uma política genocida

substituir a multimistura pela comida industrializada” declara Brandão (2009). O

Ministério da Saúde rebateu as acusações, publicando a seguinte nota no Sistema

Nacional de Auditoria – SNA (2007) 11

:

O Ministério da Saúde esclarece que a multimistura, um composto de farelos e outros ingredientes, nunca foi adotada como estratégia nacional para o

tratamento da desnutrição infantil. O MS também não compra nem distribui

alimentos à população. Assim, não têm fundamento as notícias de que a pasta

teria substituído a multimistura por alimentos industrializados (SNA, 2007)12.

Frente ao contínuo e atual debate foi possível constatar que o conhecimento

científico é perpassado e sustentado pelas relações e ações que transcendem os

laboratórios – as arenas transepistêmicas ou campos transcientíficos (Knorr-Cetina,

1982). Os cientistas percebem-se envolvidos e confrontados em arenas que vão além do

espaço epistêmico, por envolverem uma combinação de atores e de argumentos, que não

podem ser classificados simplesmente como “científicos”, ou como “não-científicos”.

Essa arena compõe-se pelo Governo, por agências de financiamento, pelas indústrias

farmacêuticas e de alimentos, pela mídia, pelos diretores de instituições acadêmico-

científicas, e pelos cientistas, que também estão envolvidos nessas trocas,

desempenhando papéis “não-científicos” (Knorr-Cetina,1982).

Uma das mais recentes tentativas oficiais de conciliação entre os dois lados da

disputa foi em agosto de 2009, quando a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão

(PRDC), em São Paulo, recomendou que o CFN revogasse a orientação que previa

11 Sistema Nacional de Auditoria. Disponível em: <http://sna.saude.gov.br/imprimir.cfm?id=4048>. Acesso em: junho de 2011. 12 Pronunciamento disponível em: <http://www.senado.gov.br/sf/atividade/pronunciamento/detTexto.asp?t=370761>.

Acesso em: junho de 2011.

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punição disciplinar13

aos nutricionistas que receitassem a multimistura. Diante da

solicitação o CFN nada declarou. O PRDC (2009) resolveu:

RECOMENDAR a Sr.ª Nelcy Ferreira da silva, Presidente do Conselho

Federal de Nutrição que revogue a Orientação que prevê a punição

disciplinar aos nutricionistas que receitarem a Multimistura, transmitindo tal

informação e o conteúdo desta recomendação, inclusive pelo site da internet

do Conselho Federal dos Nutricionistas, aos profissionais filiados ao

Conselho. Desse modo, estabeleço, com fundamento no art. 6º, XX, da LC

75/93, o prazo de 30 (trinta) dias para resposta a presente recomendação.

Para o procurador regional da PRDC, Jefferson Aparecido Dias (2009), ao

ameaçar punir nutricionistas que recomendam a multimistura, o CNF vai contra a

Constituição, que estabelece, em seu Artigo 5, ser livre o exercício de qualquer trabalho

atendidas as qualificações que a lei estabelecer. A restrição ao livre exercício

profissional só pode ser estabelecida pela lei, por isso, o CFN não pode punir o

nutricionista que prescrever a multimistura. Dessa maneira, os profissionais de nutrição

têm liberdade para prescrever a multimistura, sem que sejam punidos. Agora nos resta

compreender por que muitos ainda aderiram a opção de uma tecnologia simples voltada

à maximização de produtos locais como a multimistura.

Diante das ambigüidades não resolvidas, o domínio do conhecimento científico,

em si, é menos importante que as estratégias desencadeadas pelos seus porta-vozes14

para convencerem seus pares, a sociedade e o Estado de sua existência e utilidade.

Dessa forma, a Dr.ª Clara expõe seus argumentos à sociedade, possibilitando que outros

experts contra-argumentem. Para ser a vencedora dessa luta, ela tem se empenhando

para cercar-se de aliados tão poderosos quanto seus adversários que alegam que como

médica, a priori, ela não poderia falar em nome dos “alimentos” 15

. Geralmente, os

discordantes também buscam aliados e fazem dos laboratórios os seus tribunais, e

quanto maior a rede de associações utilizada pelas partes, mais forte se torna a posição

defendida. Latour (2005) afirma que a decisão de uma controvérsia é a causa da

representação da natureza e da estabilidade da sociedade, portanto não se deve tentar

usar a natureza ou a sociedade para explicar como e por que uma controvérsia foi

decidida.

13 Infração do Código de ética da profissão. 14 “Porta-voz” ou “representante” dos indivíduos ou das coisas. O porta-voz fala no lugar de quem não pode ou não sabe falar. 15 Vale ressaltar que a Drª Clara Brandão é médica pediatra. No próximo item relatarei a tensa relação dos

nutricionistas com outros profissionais da área da Saúde na tentativa de consolidar o seu campo científico.

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A expetise tem sido explorada por ambas as partes para justificar suas visões,

criar legitimidade e controlar os termos do debate. Segundo Bourdieu (1983), o

conhecimento científico corresponde a um sistema de relações objetivas em que agentes

conquistam posições em um espaço de lutas e de continuidades na história, no qual se

articulam atores como “maior e menor influência”, guiados por interesses em disputas

mais concorrenciais do que dialógicas. Portanto, a disputa no campo científico envolve

o “monopólio da competência científica”, considerado uma forma de autoridade onde o

científico atribui valores como prestígio e notoriedade a quem o detém, compondo uma

hierarquia que organiza a distribuição de recursos financeiros.

Todavia, apesar dos indícios de que a multimistura vai além do conhecimento

popular, o CFN mantém o seu posicionamento, desde a década de 90 sem nenhuma

declaração, a posteriori, mesmo quando confrontado por contralaboratórios e fortes

aliados da Drª Clara Brandão, não considerando nenhuma abertura para recentes

pesquisas divulgadas. Contudo, o que está em jogo neste artigo não é a verdade ou

falsidade das posições e oposições, mas as relações estabelecidas em torno de

“verdades”; trata-se, sobretudo, de explorar novos arranjos e possibilidades de diálogo

entre o conhecimento científico e o conhecimento popular.

2. Segunda Trilha: Seguindo o contexto de formação dos nutricionistas

A profissão do nutricionista no Brasil existe há mais de sessenta anos, o que não

lhe confere participação expressiva nas decisões de políticas públicas alimentares,

tampouco, sua identidade profissional é claramente reconhecida pela sociedade. O

próprio grupo profissional tem frequentemente relatado a dificuldade de se impor, de

modo coletivo, perante outros profissionais da área na suposta equipe multiprofissional

da saúde (MOTTA et al, 2003 apud BANDUK et al, 2009). Na visão de Bourdieu, “O

principio da autonomia se encontra estreitamente ligado à ideia de reprodução; pode-se,

desta maneira, afirmar que a história do campo é a história que se faz através da luta

entre os concorrentes no interior do campo”. (Bourdieu, 1983, p.27)

Para o nutricionista conquistar o seu campo científico o conhecimento dos

experts é considerado primordial, enquanto que o conhecimento popular é visto como

uma experiência “primitiva”, sem embasamento, pautado em “protocolos fracos”. Nessa

perspectiva, a história da Nutrição e a consolidação da sua profissão estabelecer-se-iam

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em um processo de construção contínuo, a partir do desempenho do papel para o qual o

profissional está “preparado”, e ao longo das transformações estimuladas pelo empenho

das instituições que o referendam ou representam na luta para conquista da sua

autoridade e autonomia. Estudos da década de 1990 demonstram que as maiores

preocupações na formação do nutricionista têm sido a definição do perfil profissional a

partir das habilidades específicas à área e no estabelecimento de uma linguagem própria

ao seu campo. Esses estudos reforçam os esforços para incorporar a Nutrição, enquanto

ciência, aos serviços de saúde, especialmente diante da necessidade de delimitação do

espaço a ser ocupado pelo nutricionista no país. (BANDUK et al, 2009 p. 112)

Acompanhando em largas pinceladas as principais marcas historiográficas da

nutrição no Brasil é possível afirmar que o campo teve sua emergência no final da

década de 1930, no decorrer do primeiro Governo Vargas. A origem deste “novo

campo científico” estava associada à disciplina “higiene alimentar”, área de estudo

constituída a partir de meados do século XIX nas faculdades de medicina. Portanto,

nota-se que as condições para o surgimento do profissional nutricionista (até então

chamado „dietista‟) apareceram dentro do setor saúde caracterizadas pela subordinação

técnica e científica da medicina. Essa divisão constituía também uma hierarquia, pois o

seu perfil era de um agente de saúde de nível médio, cuja formação e campo de prática

eram pré-definidos pelos cientistas da problemática alimentar brasileira da época, os

“médicos nutrólogos”. (COSTA 1999).

Em um primeiro momento, o ideal motivador das ciências nesse período foi o

“valor eugênico da alimentação na construção da nação e do homem brasileiro”.

Notoriamente essa inspiração veio da construção simbólica do „homem civilizado‟ para

“um Brasil que ainda teria de ser inventado” (Cukierman, 2007, p. 370). Na tentativa de

demarcar fronteiras entre a „racionalidade e a „irracionalidade‟, foi publicado o livro

“Alimentação brasileira à luz da geografia humana”, do médico nutrólogo, Josué de

Castro em 1937, que se tornou veículo de circulação da tese “do mal de fome e não de

raça”. Outra obra clássica do mesmo autor foi a “Geografia da fome” publicada em

1946, que por sua vez, traçava um mapa da fome e das carências alimentares e

nutricionais do país, em sintonia com as teorias do nacional desenvolvimentismo,

hegemônicas no período. Na visão de Arruda (2007, p. 320), as obras de Josué de

Castro abriram novos caminhos para aqueles que buscavam a “correção de

desequilíbrios regionais, integrando natureza, cultura, e condicionamentos sócio-

Page 13: Análise sociotécnica das controvérsias e oposição ao programa ...

11

políticos” para a superação da condição de subdesenvolvimento. (VASCONCELOS,

2011); (ARRUDA, 2007).

Outra perspectiva histórica de enfoque ideológico aponta o surgimento do

profissional de nutrição como fruto do “desenvolvimento do capitalismo na América

Latina, a partir da década de trinta e nas duas seguintes” (COSTA 1999, p.07). Para a

autora, a política nutricional do Estado Novo objetivava, antes de tudo, transformar a

alimentação em um instrumento eficaz de manipulação das classes subalternas

atendendo aos interesses e necessidades das empresas privadas. Portanto, cada passo

ocorrido na evolução da formação do nutricionista não deve ser entendido como uma

etapa linear, mas como “o resultado de processos contraditórios, de avanços e

retrocessos, de lutas e interesses da capitalização do setor saúde”. (COSTA 1999, p.16).

De fato, nesse período, deu-se a expansão da indústria de alimentos em

consonância com o Estado e de outros órgãos públicos como o Serviço Técnico de

Alimentação Nacional, em 1942, e o Instituto de Tecnologia Alimentar, em 1944,

iniciando a aliança entre Estado e indústria de alimentos, com apoio a concessões de

prioridades, subvenções e isenções fiscais, consideradas indispensáveis para o

desenvolvimento daquelas indústrias (L‟ABBATE, 1988 apud COSTA, 1999).

No período de 1964 a 1984, em face ao contexto da ditadura militar, identificam-

se pesquisas nutricionais de base populacional baseadas em “concepções de mundo

positivistas e funcionalistas”. No início dos anos 70, por exemplo, ampliou-se a

discussão sobre a influência da nutrição como “objeto de desenvolvimento”, no interior

do chamado “movimento sanitário brasileiro”, cujo principal ideário foi a realização da

reforma sanitária e a construção do Sistema Único de Saúde (SUS). Esse foi o momento

de criação de um dos grandes aliados do programa alimentar multimistura, o Instituto

Nacional de Alimentação e Nutrição (INAN), efetivado como autarquia vinculada ao

Ministério da Saúde, que assumiu as atribuições da extinta Comissão Nacional de

Alimentação com a finalidade de: assistir o Governo na formulação da política nacional

de alimentação e nutrição; elaborar e propor ao Presidente da República o Programa

Nacional de Alimentação e Nutrição (PRONAN), promover sua execução,

supervisionar e fiscalizar sua implementação, avaliar periodicamente os respectivos

resultados e, se necessário, propor revisão; e funcionar como órgão central das

atividades de alimentação e nutrição (BATISTA, 1985). Esse foi o período de expansão

do número de cursos de graduação de nutrição, a criação de cursos superiores para

formação de novas categorias profissionais do campo (tecnólogos e engenheiros de

Page 14: Análise sociotécnica das controvérsias e oposição ao programa ...

12

alimentos) e o início dos primeiros cursos de pós-graduação em Alimentação e Nutrição

(VASCONCELOS, 2011).

Na década de 80, o profissional de nutrição se viu diante de um paradoxo entre a

sua “missão social” e a sua “formação para o mercado”. As discussões nacionais sobre a

sua formação, inicialmente aparentavam um caráter de resistência ao modo de produção

mercantil. A intenção era recuperar e formar um profissional que atuasse para e na

sociedade. Entretanto, segundo Costa (1999), a consolidação do “sistema capitalista

acarretou modificações nos currículos de formação do nutricionista, que procuraram

ajustá-los às oportunidades oferecidas pelo mercado de trabalho”. (COSTA 1999, p.9).

Estudos da década de 1990 demonstram que a maior preocupação na formação

do nutricionista continuou sendo a busca pela definição de um perfil profissional a partir

das habilidades específicas ao seu campo. Ao longo das minhas investigações, pude

encontrar críticas em relação à formação acadêmica do estudante de nutrição, em

virtude de estar sobrecarregada pelas ciências biológicas, em detrimento de uma

formação mais sólida em conhecimentos locais que pudessem transcender a formação

técnico-profissional. Esses estudos reforçam os esforços para incorporar a nutrição,

enquanto ciência, aos serviços de saúde, especialmente diante da necessidade de

delimitação do espaço a ser conquistado. (BANDUK et al, 2009)

Esforços também podem ser constatados nas atuais Diretrizes Curriculares

(Brasil, 2011) 16

que enfatizam a necessidade de o nutricionista desenvolver

competências para integrar as equipes multiprofissionais no contexto do atual sistema

público de saúde atuando em políticas e programas de vigilância nutricional. Diante

dessa “missão” é possível compreender a negação às consideradas “ações paliativas” do

programa alimentar multimistura que podem ser percebidas na declaração de Oliveira et

al. (2006):

Urge a necessidade de colocar em prática estratégias e ações que atenuem,

efetivamente, os desvios nutricionais em crianças [...] É necessário

desvincular esses programas, de falsos e inatingíveis objetivos, de se

constituírem em solução para a desnutrição, e ter uma proposta concreta e

viável para erradicar esse mal que atinge 32 milhões de brasileiros, com

projetos eficientes, como programas de transferência de renda e a definição

de uma renda mínima satisfatória para a manutenção da família.

16 Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Nutrição. Disponível em:

http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/Nutr.pdf. Acesso em: abril de 2011.

Page 15: Análise sociotécnica das controvérsias e oposição ao programa ...

13

Silva et al (2002, p. 1371) descreve o profissional da área da nutrição como o

sujeito que se relaciona com as coisas do “mundo objetivo” e que lança o seu trabalho

técnico para o centro das questões relacionadas à saúde, afastando as “realidades

exteriores” a ele, que por si mesmas não são consideradas objetos de seu trabalho. Ele

buscará a afirmação da sua profissão apoiando-se apenas na “ciência”, nos resultados

dos laboratórios, e demarcará o seu território a partir de uma separação entre as

evidências anedóticas colocado-as em um espaço externo ao seu trabalho. Como diria

Bauman (2001):

A sociedade que entra no século XXI não é menos „moderna‟ que a sua

antecessora; talvez se possa dizer que ela é „moderna de um modo diferente‟.

O que a faz tão moderna como era mais ou menos há um século é o que

distingue a modernidade de todas as outras formas históricas do convívio humano: a compulsiva e obsessiva, contínua, irrefreável e sempre incompleta

modernização; a opressiva, e inerradicável, insaciável sede de destruição

criativa (ou a criatividade destrutiva, se for o caso: de “limpar o lugar” em

nome de um “novo e aperfeiçoado” projeto: de “desmantelar”, “cortar”,

“defasar”, “reunir” ou “reduzir”, tudo isso em nome da maior capacidade de

fazer o mesmo no futuro – em nome da produtividade ou da

competitividade). (BAUMAN, 2001, p. 36) [grifos da autora]

3. Terceira Trilha: Abrindo Linhas de Fuga

A inexistência de um consenso e de metodologias e “universais” que legitimem

a formulação e o consumo da multimistura não invalida a tentativa de implantação de

procedimentos participativos, tampouco a sua necessidade. No mínimo, é reconhecido

que as estratégias de ampliação do conhecimento popular na resolução de problemas

tornam as decisões mais confiáveis. Na tentativa de reconciliar interesses e pontos de

vista heterogêneos, torna-se necessário mobilizar o conhecimento “dito” leigo e, por

extensão, introduzir mais rigor analítico, não pela limitação do escopo da análise a

critérios estritamente técnicos, porém pela incorporação da deliberação coletiva. O

diálogo com “cientistas cidadãos” permitiriam ao nutricionista entrar em um campo de

ação direta, vivenciando a realidade de cada contexto familiar, deslocando o problema

do “outro” para o laboratório.

Segundo Moore e Stilgoe (2009), o conhecimento “dito” leigo, ou conhecimento

popular poderia complementar o conhecimento científico do especialista, pois, sendo

produzido a partir de experimentos externos ao laboratório, configura-se como uma

especialidade surgida da experiência direta, de uma situação imanente, real. Neste caso,

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14

a multimistura, poderia ser compreendida como a junção da dimensão biológica e

simbólica da alimentação, a chave do diálogo entre o real e o ideal alimentar. A

interação entre atores dessa rede heterogênea poderiam inquirir sobre medidas

alimentares comungadas ao campo de desenvolvimento de tecnologia local. Dessa

relação simétrica, nasceria uma construção conjunta de conhecimentos para a promoção

de uma alimentação saudável na esperança de solucionar de vez o problema da

desnutrição no Brasil.

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