Análise da informação em saúde: 1893-1993, cem anos … · NOVOS ASPECTOS DA SAÚDE...

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NOVOS ASPECTOS DA SAÚDE PÚBLICA/RECENT ASPECTS OF PUBLIC HEALTH (1) Análise da informação em saúde: 1893-1993, cem anos da Classificação Internacional de Doenças Analysis of information on health data: 1893-1993, a hundred years of the International Classification of Diseases. Ruy Laurenti* LAURENTI, R. Análise da informação em saúde: 1893-1993, cem anos da Classificação Internacional de Doenças. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 25: 407-17, 1991. A análise da mortalidade por causas, bem como da morbidade, necessita de um instrumento que agrupe as doenças segundo características comuns, isto é, uma classificação de doenças. Atualmente está em uso a Classificação Internacional de Doenças da OMS, na sua Nona Revisão. Esta classificação surgiu em 1893; para 1993 está proposta a implanta- ção da Décima Revisão. O trabalho descreve as raízes de uma classificação internacional, fazendo referências a John Graunt, William Farr e Jacques Bertillon bem como à evolução pela qual passou em suas sucessivas revisões. Inicialmente era uma classificação de causas de morte passando a ser, a partir da Sexta Revisão, uma classificação que incluiu todas as doenças e motivos de consultas, possibilitando seu uso em morbidade, sendo que a partir da Décima Revisão se propõe uma "família" de classificações, para os mais diversos usos em administração de serviços de saúde e epidemiologia. O trabalho também apresenta algumas críticas que são feitas à Classificação Internacional de Doenças. Descritores: Classificação de doenças. Mortalidade. Morbidade. * Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saú- de Pública da Universidade de São Paulo. Centro Brasileiro de Classificação de Doenças - São Paulo, SP - Brasil. Separatas/Reprints: R. Laurenti - Av. Dr. Arnaldo, 715 - 01255 - São Paulo, SP - Brasil. Publicação financiada pela FAPESP - Processo Medici- na 90/4602-1. (1) Série comemorativa do 25 o aniversário da Revista de Saúde Pública. A mais tradicional e ao mesmo tempo uma das mais importantes dentre as informações para o setor saúde refere-se às estatísticas de causa de morte; nas últimas décadas passaram também a ser elabo- radas as estatísticas de morbidade. Para se analisar estatisticamente a freqüência de doenças na popu- lação é necessário o uso de um instrumento que as agrupe ou classifique segundo determinados crité- rios, sendo que a primeira classificação de uso in- ternacional foi aprovada em 1893 e, desde então, vem sendo periodicamente revista, chegando-se à décima revisão, aprovada em 1989 e que será posta em uso em 1993. As raízes desta classificação in- ternacional, bem como alguns fatos destes cem anos de uso constitui o objetivo da presente publicação. Nosografia, Nosologia, Nomenclatura e Classificação Para se cumprir o principal objetivo da saúde pública, "... ciência e arte de evitar a doença, pro- longar a vida e promover a saúde mediante a ativi- dade organizada da sociedade", é preciso conhecer quais são os problemas de saúde, quais seus tipos e como eles se distribuem na população. Os nomes que a eles são dados e as maneiras de classificá-los fornecem os elementos para seu melhor conheci- mento e compreensão. A classificação de pessoas doentes segundo gru- pos - qualquer que seja o critério de classificação - bem como os acordos ou definições quanto aos critérios ou limites dos grupos é chamado nosologia. A atribuição de um nome a cada entidade mórbida é chamado nosografia, sendo a reunião desses no- mes uma nomenclatura de doenças 6 . A nosografia tenta traduzir e possibilitar nossa compreensão sobre as causas, sobre a patogênese e sobre a natureza da doença e, segundo Last 7 , é o arcabouço conceitual para o conhecimento sobre os problemas de saúde, fornecendo as bases para o planejamento e a avaliação. Possibilita a todos que tratam da assistência bem como dos problemas de saúde se comunicarem entre si em uma mesma lin- guagem. A nosografia ou a nomenclatura de doenças é, portanto, a maneira pela qual um determinado agravo à saúde que tenha determinados sintomas, sinais, bem como alterações patológicas específicas, recebe o mesmo rótulo, que pode também ser cha-

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NOVOS ASPECTOS DA SAÚDE PÚBLICA/RECENT ASPECTS OF PUBLIC HEALTH(1)

Análise da informação em saúde: 1893-1993, cem anos daClassificação Internacional de Doenças

Analysis of information on health data: 1893-1993, a hundred years of theInternational Classification of Diseases.

Ruy Laurenti*

LAURENTI, R. Análise da informação em saúde: 1893-1993, cem anos da Classificação Internacionalde Doenças. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 25: 407-17, 1991. A análise da mortalidade por causas, bemcomo da morbidade, necessita de um instrumento que agrupe as doenças segundo características comuns,isto é, uma classificação de doenças. Atualmente está em uso a Classificação Internacional de Doençasda OMS, na sua Nona Revisão. Esta classificação surgiu em 1893; para 1993 está proposta a implanta-ção da Décima Revisão. O trabalho descreve as raízes de uma classificação internacional, fazendoreferências a John Graunt, William Farr e Jacques Bertillon bem como à evolução pela qual passou emsuas sucessivas revisões. Inicialmente era uma classificação de causas de morte passando a ser, a partirda Sexta Revisão, uma classificação que incluiu todas as doenças e motivos de consultas, possibilitandoseu uso em morbidade, sendo que a partir da Décima Revisão se propõe uma "família" de classificações,para os mais diversos usos em administração de serviços de saúde e epidemiologia. O trabalho tambémapresenta algumas críticas que são feitas à Classificação Internacional de Doenças.

Descritores: Classificação de doenças. Mortalidade. Morbidade.

* Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saú-de Pública da Universidade de São Paulo. CentroBrasileiro de Classificação de Doenças - São Paulo,SP - Brasil.

Separatas/Reprints: R. Laurenti - Av. Dr. Arnaldo, 715 -01255 - São Paulo, SP - Brasil.

Publicação financiada pela FAPESP - Processo Medici-na 90/4602-1.

(1) Série comemorativa do 25o aniversário da Revista de Saúde Pública.

A mais tradicional e ao mesmo tempo uma dasmais importantes dentre as informações para o setorsaúde refere-se às estatísticas de causa de morte;nas últimas décadas passaram também a ser elabo-radas as estatísticas de morbidade. Para se analisarestatisticamente a freqüência de doenças na popu-lação é necessário o uso de um instrumento que asagrupe ou classifique segundo determinados crité-rios, sendo que a primeira classificação de uso in-ternacional foi aprovada em 1893 e, desde então,vem sendo periodicamente revista, chegando-se àdécima revisão, aprovada em 1989 e que será postaem uso em 1993. As raízes desta classificação in-ternacional, bem como alguns fatos destes cem anosde uso constitui o objetivo da presente publicação.

Nosografia, Nosologia, Nomenclatura eClassificação

Para se cumprir o principal objetivo da saúde

pública, "... ciência e arte de evitar a doença, pro-longar a vida e promover a saúde mediante a ativi-dade organizada da sociedade", é preciso conhecerquais são os problemas de saúde, quais seus tipos ecomo eles se distribuem na população. Os nomesque a eles são dados e as maneiras de classificá-losfornecem os elementos para seu melhor conheci-mento e compreensão.

A classificação de pessoas doentes segundo gru-pos - qualquer que seja o critério de classificação -bem como os acordos ou definições quanto aoscritérios ou limites dos grupos é chamado nosologia.A atribuição de um nome a cada entidade mórbidaé chamado nosografia, sendo a reunião desses no-mes uma nomenclatura de doenças6.

A nosografia tenta traduzir e possibilitar nossacompreensão sobre as causas, sobre a patogênese esobre a natureza da doença e, segundo Last7, é oarcabouço conceitual para o conhecimento sobreos problemas de saúde, fornecendo as bases para oplanejamento e a avaliação. Possibilita a todos quetratam da assistência bem como dos problemas desaúde se comunicarem entre si em uma mesma lin-guagem.

A nosografia ou a nomenclatura de doenças é,portanto, a maneira pela qual um determinadoagravo à saúde que tenha determinados sintomas,sinais, bem como alterações patológicas específicas,recebe o mesmo rótulo, que pode também ser cha-

mado diagnóstico, em qualquer lugar do mundo.Por definição, uma nomenclatura é um catálogo determos e, no caso de uma nomenclatura de doenças,cada uma delas deve apresentar um verbete, vistoque sua função principal é ajudar a se chegar àexpressão mais precisa que descreve o padecimentodo doente, isto é, o diagnóstico.

A nosologia, isto é, o agrupamento de doençassegundo características comuns constitui, como seexpôs acima, uma classificação e serve, basica-mente, para finalidades estatísticas de análisesquanto à distribuição das doenças na população.

É comum dizer que "nomenclatura" (nosografia)e "classificação" (nosologia) não são antagônicasmas, antes, têm finalidades distintas e uma boaclassificação, obviamente, só pode ser construídase se tiver uma boa nomenclatura.

Nosografias sempre existiram em todas as soci-edades, mesmo as mais primitivas, as quais apre-sentavam teorias sobre a origem natural e sobrena-tural da doença e o nome dado a uma doença quasesempre tentava traduzir isso. O conceito de entidademórbida específica aparece nos textos médicos pri-mitivos hindus, assírios e egípcios, podendo-se citaro Papiro Ginecológico de Kahun (1900 A.C.), oPapiro de Edwin Smith (1600 A.C.), o Papiro deEbers (1500 A.C.), as tábuas de argila da bibliotecade Nínive do rei Assurbanipal (668-626, A.C.) e oCharaka Samhita (100 A.D.), sendo que o texto hindúconhecido como Sushruta Samhita (600 A.D.) apre-senta uma classificação ordenada de doenças e le-sões11. Este último, portanto, é ao que tudo indica, amais antiga proposta de classificação de doenças elesões.

Classificação de Doenças

Ao se obter uma uniformização terminológica,isto é, quando se passou a ter nomenclatura dedoenças, passou-se a ter uma linguagem comum oque permitiu uma melhor troca de informação so-bre o conhecimento de uma doença específicaquanto à sua história natural, maneiras de diagnos-ticar e tratar, bem como, prevenir. Muito importan-te foi a possibilidade de serem feitas comparaçõese verificar diferenças nas freqüências das doençasem áreas distintas, surgindo então as análisesepidemiológicas dos diferentes agravos à saúde, oque trouxe grande contribuição à prevenção.

A descrição de numerosas outras doenças quepassaram a acometer o homem, sendo que grandenúmero delas eram também causas de morte, foramtornando as nomenclaturas muito extensas e de di-fícil uso no estudo estatístico da mortalidade porcausa. O estudo estatístico da mortalidade por cau-sa, como entendemos atualmente, iniciou-se no sé-culo XVII com John Graunt, como será descrito

mais a frente, e no século XIX teve um grandeimpulso, particularmente na Inglaterra, comWilliam Farr que foi um dos grandes incentivadoresà criação de uma classificação de doenças de usointernacional.

A análise estatística de uma variável com grandenúmero de categorias - como é o caso da variáveldoença - só é possível classificando essas categori-as. Uma classificação de doenças é um sistema queagrupa as doenças análogas, semelhantes ou afins,segundo uma hierarquização ou eixo classificatório.Uma classificação estatística de doenças implica,portanto, um conjunto de grupos de diagnósticosou doenças, visto que o interesse principal são osagrupamentos e não os casos individualizados comoem uma nomenclatura.

Em uma classificação o número de categoriastem que ser restringido e sempre deve estar previs-ta a possibilidade de incluir um novo diagnósticodentro de um agrupamento já existente.

Segundo numerosos estudiosos do assunto háunanimidade quanto a atribuir ao inglês John Graunto primeiro estudo estatístico de doenças, no casoanálise da mortalidade por causa. Esse estudo apa-receu na clássica e sempre citada publicação de1662 "Natural and Political Observation MadeUpon the Bills of Mortality", onde analisou a mor-talidade de Londres, a partir dos dados registradosnas paróquias, segundo algumas variáveis, comosexo, idade, procedência e - o grande feito! - causa.

Graunt listou 83 causas de morte as quaisincluiam algumas explicitamente etiológicas("shot", "smothered and stifed", "drowne","plague"); outras levando a algum tipo de indicaçãoda patogenia ("apoplex", "excessive drinking","measles", "quinsey", "worms") e outras referindo-se principalmente às circunstâncias que causaram amorte ou os sintomas e sinais que a precederam("abortive and stillborn", "aged", "cancer""convulsion", "surfet")7. Comentando a lista elabo-rada por Graunt, Last diz o seguinte: "... mostra adificuldade - ainda hoje existente - de construiruma nosografia que apresente um conceito uniformede doença. Somos incapazes de escapar de umaclassificação híbrida onde algumas condições refe-rem-se ao conhecido ou suposto etiologicamente,outras aparecem segundo a morfologia ou afisiopatologia, bem como outras segundo o sistemaafetado ou ainda circunstâncias externas"7.

Quando se comenta sobre classificação de doen-ças, a lista de Graunt é sempre citada como umadas primeiras ou mesmo a primeira tentativa ouproposta. É importante, porém, frisar que não setratava realmente de uma classificação mas, muitomais de uma nosografia, isto é, uma listagem dedoenças ou sintomas sem nenhum agrupamentoformalizado. Isto pode ser observado na reprodução

da lista original que se segue e está apresentada eminglês exatamente como foi feita por Graunt. Epossível reconhecer a maioria dos diagnósticos mas,alguns deles não são tão facilmente identificáveis.

Grenwood4 ao historiar as estatísticas médicas,quase que exclusivamente as de mortalidade porcausa, no período que vai do século XVII ao séculoXIX, iniciando com Graunt e indo até Farr, nos dáconta das várias tentativas que foram feitas para seobter uma classificação de doenças. Na maioria dasvezes eram classificação de causas de morte, ex-

cluindo-se, portanto, as doenças não letais. Assim,em 1680 Felix Platter elaborou uma sitematizaçãobaseada nos sintomas apresentados pelos doentes;o grande médico inglês Sydenham (1624-1689) su-geria que as doenças, à maneira das plantas, deve-riam ser agrupadas de acordo com os aspectosidentificáveis externamente. Deve-se destacar o fa-moso médico e botânico sueco Linneu (1707-1778)que criou uma sistematização botânica e zoológicae que também fez uma classificação de doenças, o"Genera Morborum", à maneira da sugestão de

Sydenham. Outras classificações de doenças foramelaboradas e publicadas na Europa: François Bassierde Lacroix, mais conhecido como Sauvages, em1768 publicou a "Nosologia Methodica"; Vogel em1772; Mc Bride em 1772; Cullen em 1785; Crichtonem 1804; Parr em 1810; Young em 1813 e MasonGood em 1817. Essas foram as mais conhecidasou, pelo menos as mais citadas, porém, a rigor, aúnica que teve um prestígio maior e passou, inclu-sive, a ser utilizada para finalidades estatísticas foia de Cullen, denominada "Synopsis NosologiaeMethodicae", que chegou a ser adotada na Ingla-terra e País de Gales para classificar as causas damorte4.

As classificações enumeradas acima quase sem-pre não passavam de exercícios médicos, à maneirade trabalhos acadêmicos, sem aplicações aparentes.Poucas foram realmente utilizadas e quando o erama utilização era limitada. Não havia uma classifica-ção de uso internacional o que dificultava ou prati-camente impedia a comparabilidade internacionalsobre freqüência de doenças que eram causas demorte.

No século XIX havia um grande interesse emuma classificação de causas de morte que fosse deuso internacional, sendo que várias tentativas nessesentido foram feitas mas com uma aceitação bas-tante limitada. Em 1893 surgiu uma classificaçãoque, com suas sucessivas revisões, passou a serusada internacionalmente como classificação decausas de morte e na metade do século XX passoua ser uma classificação internacional de doenças,mesmo que não fossem causas de morte. É o quese descreve a seguir.

A Classificação Internacional de Doenças

Desde Graunt, em sua publicação de 1662, atépraticamente as primeiras décadas do século XX, asinformações sobre freqüência de doenças eram aque-las advindas das estatísticas de mortalidade por causa.Com exceção de dados sobre as chamadas doençasnotificáveis, geralmente doenças infecciosas e epidê-micas, não haviam estatísticas de morbidade, comopor exemplo as hospitalares e as de atendimentoambulatorial. Esse é o motivo pelo qual a história dasclassificações de doenças e, particularmente, a daclassificação internacional como a atualmente exis-tente, inicou-se e por muito tempo continuou comosendo uma classificação de causas de morte.

A necessidade de comparar causas de morte se-gundo áreas ou regiões de um país e, principal-mente, entre países, fez crescer o interesse para seusar uma mesma classificação internacionalmente.Várias tentativas foram feitas nesse sentido, princi-palmente a partir da segunda metade do século XIX.Nesta questão de uma classificação internacional

de doenças não pode deixar de se mencionar onome de William Farr. Também inglês como JohnGraunt ambos podem ser considerados como mar-cos importantes quando se descreve a história dasinformações em saúde: um o iniciador das estatísti-cas de mortalidade por causa e o outro o batalhadorque visava melhorar as classificações de doençasentão existentes e promover o uso de uma que fosseinternacional, bem como o verdadeiro iniciador dasestatísticas de saúde particularmente análises dasestatísticas de mortalidade.

Realmente não é possível descrever a históriade uma classificação internacional de doenças semreferir-se a William Farr (1808-1883) que foi oprimeiro médico estatístico do "General RegisterOffice of England and Wales". A partir de 1837quando assumiu seu posto, além de várias ativida-des no campo das estatísticas de saúde, procuroutirar o maior proveito possível das classificaçõesentão existentes, as quais julgava bastante imper-feitas, assim como elaborar uma classificação emuito trabalhou para se obter uniformização inter-nacional quanto ao uso10. Farr discutiu bastante noprimeiro Relatório Anual do Registro Geral osprincípios que deveriam orientar uma classificaçãoestatística de doenças e a importância de se teruma classificação uniforme e de uso generalizado.Descreveu e comparou as finalidades de uma no-menclatura e de uma classificação e, descrevendoesta última como um método de generalização diz"qualquer classificação que inclua em gruposdoenças que tenham bastante afinidade ou que sãopossíveis de serem confundidas entre si, favorecema dedução de princípios gerais"5.

Ao propor uma classificação para as causas demorte, Farr acentuou que as doenças poderiam serclassificadas de diferentes maneiras visando servira propósitos estatísticos e quanto à finalidade deestudar causas de morte ele foi influenciado pelamaneira como havia feito Linneu em suas classifi-cações hierarquizadas, botânica e zoológica. Farrpropôs uma classificação, como se verá a seguir, eque se reconhece como a base estrutural da atualclassificação internacional de doenças.

A importância de uma classificação estatísticade uso internacional foi reconhecida e fortementerecomendada no Primeiro Congresso Internacionalde Estatística realizado em Bruxelas, 1853, e osparticipantes indicaram William Farr e Marcd'Espine, de Genebra, para realizar a tarefa de pre-parar uma "nomenclatura uniforme de causas demorte aplicável a todos os países". Em 1855, emParis, realizou-se o Segundo Congresso Internacio-nal de Estatística e Farr e d'Espine apresentaramlistas separadas e baseadas em eixos diferentes declassificação. A classificação proposta por Farrcontinha 5 classes da seguinte maneira:

Classe 1 - Doenças epidêmicas, endêmicas e con-tagiosas

Classe 2 - Doenças constitucionaisClasse 3 - Doenças localizadasClasse 4 - Doenças do desenvolvimentoClasse 5 - Doenças ou mortes violentas

Essas classes eram dividadas em ordens e, parti-cularmente para a Classe 3, existiam 8 ordens que,como pode ser observado a seguir, foi a matrizpara a atual classificação internacional:

Ordem 1 - Doenças do Sistema NervosoOrdem 2 - Doenças da CirculaçãoOrdem 3 - Doenças da RespiraçãoOrdem 4 - Doenças da DigestãoOrdem 5 - Doenças do Sistema UrinárioOrdem 6 - Doenças da ReproduçãoOrdem 7 - Doenças da LocomoçãoOrdem 8 - Doenças do Sistema Inter-tegumentário

A Lista apresentada por Marc d'Espine agrupavaas doenças de acordo com sua natureza (gotosa,hemática, herpética...) e não teve muita aceitação.O Congresso adotou uma Lista de 138 rubricas,mantendo a estrutura proposta por Farr com a in-clusão de algumas sugestões de d'Espine. Os Con-gressos subseqüentes de 1864, 1874, 1880 e 1886revisaram essa lista. Esta classificação, adotada noCongresso de 1855 e revistas nos seguintes não foiuniversalmente aceita, mas é preciso destacar queo princípio de agrupar as doenças, principalmentepor localização anatômica, como havia sido pro-posto por Farr, sobreviveu e influenciou fortementea futura classificação de doenças de uso internacio-nal.10

Em 1891 o então criado "Insituto Internacionalde Estatística", em Viena, substituiu os CongressosInternacionais de Estatística quanto a questões re-lativas a classificações e, neste ano, formou umaComissão para preparar um nova classificação. EssaComissão estava sob a direção de JacquesBertillon (1852-1922), de Paris e preparou umaclassificação de causas de morte que ficou co-nhecida como "Classificação das Causas deMorte de Bertillon".

Bertillon era o chefe dos serviços de estatísticasda cidade de Paris, função semelhante a que tinhatido William Farr na Inglaterra, e a classificaçãoque elaborou apresentava 14 grupos ou capítulos;este último nome persiste até hoje para as grandesdivisões da Classificação Internacional de Doenças.Os 14 capítulos tinham, em conjunto, 161 categori-as ou causas de morte.

A Classificação de Bertillon foi adotada em 1893pelo Instituo Internacional de Estatística e reco-mendado o seu uso internacionalmente, o que foi

adotado por vários países. É considerada a primei-ra classificação internacional de causas de morte.É interessante apresentar como eram identificadosseus 14 capítulos e que está a seguir, devendo-senotar que os capítulos estavam ordenados segundonúmeros romanos, tradição que se segue até hoje.

Classificação de Bertillon

I - Doenças GeraisII - Doenças do Sistema Nervoso e Órgãos doSentidoIII - Doenças do Aparelho CirculatórioIV - Doenças do Aparelho RespiratórioV - Doenças do Aparelho DigestivoVI - Doenças do Aparelho Geniturinário e de seus

AnexosVII - Estado PuerperalVIII - Doenças da Pele e do Tecido CelularIX - Doenças dos Órgãos da LocomoçãoX - Vícios de ConformaçãoXI - Primeira IdadeXII - VelhiceXIII - Afecções Produzidas por Causas ExternasXIV - Doenças Mal Definidas

Observando-se a terminologia utilizada porBertillon, alguns comentários podem ser feitos.Assim, o termo "afecção" tornou-se um jargão ain-da hoje muito utilizado entre os usuários da Classi-ficação Internacional de Doenças porém com o sig-nificado amplo de "doença", "diagnóstico", "pato-logia", "lesão". Bertillon utilizou-o no Capítulo XIII(Affection) com o significado de "lesão" ou mesmo"conseqüência", diferenciado de "doença"(Maladie) utilizado nos outros capítulos. Quasecertamente foi o introdutor da terminologia "Doen-ça Mal Definida" ou pelo menos, a partir dele,passou a ser muito utilizado, visto que pela primei-ra vez apareceu e continua aparecendo nas sucessi-vas revisões da Classificação Internacional. NaClassificação de Farr, mostrada também nestaapresentação, existiam 5 classes, todas com termi-nologia que expressam causas "bem definidas".Além dessas, Farr deixava um resíduo que chamoude "Ignorado Estatístico", não utilizando a termi-nologia "Mal Definida". Voltando-se bastante notempo verifica-se que para Graunt, em sua lista decausas de morte, não existiam causas mal definidas,Ou melhor, ele não listou a expressão "causa igno-rada" ou "mal definida", ainda que muitos diagnós-ticos que aparecem em sua lista, atualmente paranós, são realmente mal definidos ("Bleeding","Colick", "Convulsion", "Spleen" e muitos outros).

Ainda como comentário à Classificação deBertillon nota-se que foi empregado o termo "En-velhecimento" (Capítulo XII) ("Viellesse") sendo

que nas últimas revisões da Classificação passou-se a utilizar mais "Senilidade".

A Classificação de Bertillon teve uma primeirarevisão em 1900 e a segunda em 1909, seguindo-seo que havia sido proposto quando foi pela primeiravez aprovada em 1893, isto é, as revisões deveriam,na medida do possível, serem feitas, aproximada-mente, a cada dez anos. Quando desta segunda revi-são ("Lista de Mortalidade de Bertillon - SegundaRevisão", como era usualmente conhecida) Bertillonescreveu os seguintes comentários a respeito do usointernacional, como nos conta Wells11. "Todos ospaíses de língua inglesa e de língua espanhola nomundo estão agora unidos quanto à adoção da ListaInternacional. Todo o hemisfério ocidental, incluin-do as Américas do Norte, Central e do Sul; Austráliae Nova Zelândia; China, Japão e Índia Britânica, naÁsia; Egito, Argéria e África do Sul na África; emuitos países da Europa estão atualmente ou muitobrevemente estarão entre aqueles que desejam umauniformidade internacional".

A Classificação de Bertillon foi usada pela pri-meira vez nas Américas na elaboração das estatís-ticas de mortalidade de São Luiz de Potosi, México,pelo médico Jesus E. Monjarás e, em 1898, a As-sociação Americana de Saúde Pública, recomendoua adoção da mesma pelos oficiais de registro doCanadá, Estados Unidos e México, bem como su-geriu sua revisão a cada dez anos6. No Brasil nãofoi ainda recuperada a informação quanto ao iníciodo uso sendo que, no Estado de São Paulo, o órgãoque elaborava as estatísticas de mortalidade usava aClassificação de Bertillon na primeira década do sé-culo XX.

As revisões da Lista Internacional de Causas deMorte, da Primeira à Quinta, foram convocadaspelo Governo francês e eram aprovadas nas cha-madas "Conferência Internacional de Revisão daClassificação de Bertillon" ou "Classificação Inter-

nacional de Causas de Morte". Bertillon continuousendo o grande incentivador e trabalhador sendoque as três primeiras revisões (1900, 1910 e 1920)foram efetuadas sob sua direção, tendo falecido em1922 aos 71 anos de idade.

A partir da Sexta Revisão, a de 1948 e posta emuso em 1950, a responsabilidade pelos trabalhos derevisão, publicação e divulgação da ClassificaçãoInternacional de Doenças, passou a ser da Organi-zação Mundial de Saúde. "A Conferência da SextaRevisão Decenal constituiu o principio de uma novaera no campo internacinal das estatísticas vitais esanitárias. Além de aprovar uma longa lista paramortalidade e morbidade e estabelecer regras inter-nacionais para seleção da causa básica de morte,recomendou a adoção de amplo programa de cola-boração internacional no campo da estatística vitale sanitária, inclusive a criação de comissões nacio-nais especializadas que se encaregassem de coor-denar o trabalho de estatística no país e de servirde enlace entre os serviços de estatísticas nacionaise a Organização Mundial de Saúde".6

As Revisões e a Mudança de Objetivos daClassificação Internacional de Doenças

Partindo-se da Classificação de Farr, adotadapelo Congresso Internacional de Estatística em 1855e que continha 126 códigos para causas de morte(doenças) e 12 códigos para causas externas (totalde 138 códigos) e da Classificação de Bertillon,adotada em 1893 pelo Instituto Internacional deEstatística com um total de 161 categorias, sendo150 para doenças e 11 para causas externas, asrevisões seguintes sempre contaram com númerocrescente de categorias, exceto da terceira para aquarta em que se observou redução de 5 categoriase da quarta para quinta que tiveram igual número,como pode ser verificado na Tabela 1.

O que chama a atenção na evolução das revisõesé o grande aumento de categorias da Quinta paraSexta Revisão. Esta última deixou de ser a "classifica-ção de causas de morte de Bertillon" para ser uma"classificação de doenças, lesões e de causas de morteda OMS" incluindo-se motivos de consultas que nãopor doenças presentes no momento da consulta.

O que ocorreu é que a Classificação Internacio-nal de Doenças (CID) começou como um instru-mento estatístico para enumerar e analisar as causasde morte sem incluir, portanto, as doenças não-mortais. Ainda hoje essa é uma de suas principaisfunções e seu único uso em numerosos países. Farre Bertillon reconheciam a necessidade de se teroutras classificações para estudar a doença nos vi-vos sendo que o último chegou a produzir umaversão de sua classificação de mortalidade para serusada nos registros de morbidade. Quando a OMSassumiu as revisões, a partir da Sexta em 1948,esta foi bastante expandida visando classificarmorbidade além de mortalidade. Essa decisão nãofoi tomada simplesmente sem antes haver sido bas-tante discutida a questão de se ter ou não duasclassificações distintas: uma para mortalidade eoutra para morbidade. Optou-se por uma só e mui-tos dos problemas que hoje defrontamos poderiamter sido evitados se houvesse sido decidido por duasdistintas. A atual revisão, Nona, e principalmente aque se seguirá a partir de 1993, são mais classifica-ções para morbidade, dificultando o uso para mor-talidade dada a extensão devida ao grande númerode especificações, tanto que o próprio nome daCID-10 passou a ser "Classificação Estatística In-ternacional de Doenças e de Problemas Relaciona-dos à Saúde".

Durante a preparação da Oitava Revisão houvepressões por parte de alguns países, particularmen-te aqueles que vinham elaborando há tempos esta-tísticas de morbidade (hospitalar, ambulatorial, parapagamentos de procedimentos segundo diagnósticose outros) no sentido de que a classificação fossemuito mais voltada para esses usos. Esse objetivonão foi muito atingido na Oitava Revisão, mas pre-tendeu-se atingí-lo na Nona, que foi bastante ex-pandida, se não no número total de categorias mas,particularmente, nas chamadas subcategorias, mui-tas das quais foram criadas para possibilitar váriasespecificações ou manifestações de uma mesmadoença (categoria). Além deste fato a Nona Revisãopassou a ter, para muitas doenças uma "dupla clas-sificação" quando se atribuiu um código (assinaladocom uma cruz+) para a etiologia da doença e usadopara mortalidade e outro código (assinalado porum asterisco) para a manifestação ou manifestações(mais de um asterisco, isto é, para um código deetiologia pode haver várias subcategorias deasterisco uma para cada manifestação).

Este fato é um tanto paradoxal, isto é, uma sis-tematização ou classificação em que um dos objetosa ser classificado, no caso doença ou diagnóstico,pode aparecer em dois ou mais lugares. Esta, porém,foi uma concessão feita no sentido de se ter umaclassificação possível de ser utilizada paramorbidade. Levou, por outro lado, a ser bastantecriticada e criando algumas dificuldades para suautilização. E o pior é que não satisfez plenamente,fazendo com que alguns países, como os EstadosUnidos, mantivessem e melhorassem uma adaptaçãoclínica - a chamada modificação clínica da CID (ICD-CM, Internacional Classification of Diseases -Clinical Modification).

A Décima Revisão - CID-10 - aprovada em 1989e que está sendo recomendada para ter sua implan-tação em 1993 ampliou enormente o número decategorias e, particularmente subcategorias, visandosatisfazer plenamente aos usuários em morbidade.Comentários sobre ela são feitos a seguir.

A Classificação Para o Século XXI: ADécima Revisão (CID-10)

Tendo-se em vista a necessidade de maior nú-mero de códigos para os vários usos em morbidade,houve, como se disse acima, uma grande expansãoda CID-10 tendo, inclusive, sido necessária a trans-formação dos códigos que passaram a ser alfa-nu-méricos para possibilitar a citada expansão. Verifi-ca-se que na CID-9 haviam 1.281 possibilidadesde categorias, das quais apenas 1.178 utilizadas,passando na CID-10 a 2.499, com 2.032 utilizadas.

A CID-10, que passou a chamar ClassificaçãoEstatística Internacional de Doenças e ProblemasRelacionados à Saúde, diferentemente do que vinhaocorrendo desde a CID-6, será apresentada em trêsvolumes sendo que o I conterá a chamada ListaTabular de Categorias de Três Dígitos (uma letra edois algarismos) e de subcategorias com um quartodígito; o II que conterá toda parte referente aoAtestado Médico da Causa de Morte, as regras in-ternacionais para codificar mortalidade, as regrasde morbidade, as definições, recomendações e re-gulamento, assim como as listas especiais paratabulação. O volume III será o Índice Alfabético.

A CID-10 mantém a mesma estrutura da CID-9,tendo-se incorporado a ela, como parte da classifi-cação propriamente dita, a classificação de causasexternas que até a CID-9 era chamado "código E"e a classificação de motivos de consulta que nãoconstituem doenças ou lesões (código V da CID-9). Enquanto a CID-9 tinha 17 capítulos e duasclassificações suplementares (E e V), a CID-10passará a ter 21 capítulos, e o motivo deste aumen-to pode ser verificado na Tabela 2 e que foi basea-da em um trabalho sobre comparação entre a CID-

9 e CID-10 feito por Avilan Rovira2, um grande es-tudioso do assunto.

Ainda que a CID-10 seja a classificação queestará em uso no início do século XXI, o autordesta apresentação não quer com isso dizer que setrata da classificação ideal, bastante lógica e quecomprirá - quanto a sua utilização - tudo que sedeseja. Ela é do século XXI porque estará em uso,pelo menos na primeira década, e não porque aqualificação "do século XXI" esteja indicando umaclassificação perfeita. Ela se expandiu tanto que,em sua maior parte, é desnecessária ao uso em mor-

talidade, o que dificulta seu uso nesta área. Por outrolado, em morbidade, nem todos os usuários estãomuito satisfeitos visto que, embora cobrindo - aoque tudo indica - todas as manifestações,especificações e variações das doenças (que têm in-teresse em morbidade) não responde a certos requi-sitos específicos de alguns sistemas de pagamentosque cruza diagnóstico com procedimento. Há aindaa discutida questão do uso em assistência primária!

A CID-10 pela sua expansão e, particularmentepelo fato de ser alfa-numérica, vai requerer, obri-gatoriamente, quando de sua implantação, grandes

adaptações programáticas quanto aos uso de com-putadores e serão precisos também mais recursospara reciclagem e treinamento de pessoal. Mesmoa tradução para idiomas nacionais será mais custosa,sem falar nos custos de impressão de muito maiorquantidade de material, inclusive porque passa ater três volumes!

A proposta da OMS aprovada na Conferênciada Revisão (1989) e adotada pela AssembléiaMundial de Saúde (1990), pela totalidade dos paí-ses, é que a CID-10 seja implantada em 1o de Ja-neiro de 1993. Poucos países terão condições deconseguir isso! Poderá ocorrer mesmo de algunssomente o conseguirem nos últimos 2 a 3 anosdeste século ou até mesmo primeiros do séculoXXI. Nesse sentido será uma "classificação do sé-culo XXI"!

Críticas à Classificação Internacional deDoenças

Existem críticas à CID quer do ponto de vistaformal quer do ponto de vista conceitual. Na for-ma, a crítica que se faz é que ela não é uma ver-dadeira classificação pois não apresenta um siste-ma classificatório uniforme. Aliás os própriosorganizadores da CID reconhecem esse fato e naintrodução do Volume I da Oitava Revisão constao seguinte "O estabelecimento de um sistema declassificação de doenças e traumatismos, para usoestatístico geral, requer vários ajustes e conces-sões. Tem até agora fracassado todas as tentativasno sentido de formular uma classificação estrita-mente lógica das afecções mórbidas. Os diversostítulos da classificação representam, portanto, umasérie inevitável de ajustes entre sistemas baseadosna etiologia, na localização anatômica, na idadedo paciente e nas primeiras manifestações da do-ença, assim como na qualidade da informaçãodisponível nos registros médicos..."..."embora sejaimpossível atender com uma única classificaçãotodas essas finalidades específicas, é necessárioproporcionar uma base comum para uso estatísti-co geral"9.

Conceitualmente tem sido feitas algumas res-trições à CID particularmente quanto ao fato deque segue um esquema "biologicista" e por nãoapresentar nenhum compromisso quanto a ser uminstrumento que favorece uma análise mais pro-funda do processo saúde-doença. Nesse sentidoBreilh e Granda3 comentam que não se pode negara validade da CID para a clínica e, particularmen-te, para algumas áreas da administração em saúde,porém, questionam a adoção deste instrumentocomo o padrão para estudo do processo saúde-doença. Para eles a observação do processo saúde-doença,sob o ângulo da epidemiologia, não se li-

mita apenas à verificação de alterações biológicasou psíquicas em uma série de indivíduos, afir-mando que uma das categorias básicas para esta-belecer uma classificação epidemiológica é aclasse social.

Os autores têm razão, e ninguém nega, quanto àimportância da classe social para uma boa caracte-rização do quadro epidemiológico. Difícil, porém,é entender como uma classificação de doenças podeincorporar a classe social nas suas categorias esubcategorias. Comentando o que dizem Breilh eGranda3, Avilan-Rovira1 considera que para efeitosde avaliação e vigilância, bem como para outrosaspectos de promoção da saúde, o que se requer é aidentificação da doença e que para esse objetivo aCID satisfaz plenamente e no que diz respeito es-pecificamente aos aspectos sociais diz o seguinte"... Como solucionar a lamentável falta de análisedos dados de morbimortalidade em função dascondições sócio-econômicas? Pois bem, assimcomo se conhecem as taxas de incidência,prevalência e mortalidade por idade, sexo, e lugarde residência, visto essas variáveis estarem tam-bém registradas nos atestados, sem que elas tenhamque estar incorporadas na estrutura da CID, damesma maneira os elementos para estabelecer operfil epidemiológico segundo classe social... pode-se incluir nos atestados como as demais variáveis,para ser objeto de análise". Concordamos com oautor desses comentários quanto a ser desnecessárioque as variáveis sociais que são importantes para operfil epidemiológico se incorporem na estruturada CID. Seria o mesmo que querer utilizar o sexo ea idade para construir categorias ou subcategoriasda CID. É interessante lembrar que desde Farr, ini-ciando-se com ele e tendo seguimento desde então,são publicadas na Inglaterra estatísticas de mortali-dade segundo algumas variáveis sociais e nuncajulgou-se necessário ter incorporado à CID catego-rias e subcategorias de doenças e que incluam clas-ses sociais. A questão se resume, pode-se dizer, emter-se numeradores e denominadores apropriados,não se tratando, portanto, de uma deficiência daCID.

Há também questionamentos no sentido de quea CID não satisfaz as necessidades para informa-ções de um nível de assistência primária onde éatendida grande proporção dos problemas de saú-de. Assim, White12, ao contestar o uso da CID nes-ses casos, diz que ela está baseada principalmentenas necessidades e interesses daqueles que lidamcom as doenças nas etapas finais da história natu-ral das mesmas, isto é, no nível terciário da assis-tência. Avilan-Rovira1 comentando isso diz o se-guinte "Ninguém discute o fato de que a CID não éadequada para as estatísticas de assitência primária.Uma grande proporção da demanda ao nível pri-

mário de assistência não pode descrever-se emtermos de doença. Como se sabe, muitos desseselementos de demanda são expressos como sinto-mas, sinais ou suas combinações, o que não émuito fácil categorizá-los em uma classificaçãobaseada principalmente em doenças". É precisoinsistir que a CID inicialmente era uma classifica-ção de causas de morte e quando se expandiupara ser uma classificação de doenças pensou-semuito mais no uso em estatísticas de internaçõeshospitalares ou então assistência hospitalarambulatorial.

Tentando resolver essa situação foram pro-postas várias classificações para assistência pri-mária, entre as quais as norte-americanas"Reason for Encounter Classification", "NationalAmbulatory Medical Care-Survey-Reason forVisit Classification" e mesmo uma adaptação daCID, a conhecida ICD-9.CM ("ClinicalModification"). Também bastante conhecida é aClassificação Internacional de Preoblemas deSaúde em Assistência Primária, mais conhecidapela sigla em inglês ICHPPC. Porém todas essasnão dispensaram o conhecimento da CID haven-do sempre um componente para "doença/diag-nóstico" baseado nela.

Há também o oposto, isto é, a CID não satisfazplenamente as estatísticas para especialidades pois,nesse caso, deveria ser muito mais detalhada. En-tretanto, se se detalhasse para todas as especialida-des, ter-se-ia uma CID "gigante"!

Visando solucionar esses problemas, os "Cen-tros Colaboradores da OMS Para a Classificaçãode Doenças", juntamente com a OMS,vem, desdeos preparativos da Nona Revisão da CID, tentan-do criar uma "família de classificações", com oque se cobririam todas as necessidades de se obterinformações para a saúde: desde a clássica e tra-dicional estatística de mortalidade por causa atéas informações detalhadas para especialidadesmédicas, assim como as estatísticas de motivo deconsulta em assitência primária. A ConferênciaInternacional Para a Décima Revisão daClassificação Internacional de Doenças, realizadapela OMS, em Genebra, 198913, aprovou a idéia deque somente uma "família" de classificações dedoenças e de problemas relacionados à saúde po-deria satisfazer as diferentes necessidades e usosem saúde pública.

O núcleo (ou o "core" como é conhecido) desta"família" é a "classificação nuclear" que consistena CID em nível de três caracteres (ou dígitos),isto é, sem detalhes de especificações emsubcategorias e que seria classificação para uso,particularmente, em mortalidade e para alguns ní-veis e morbidade; a essa classificação nuclear sesomaria uma série de outras, algumas relacionadas

hierarquicamente e outras de natureza suplemen-tar. O esquema desta "família" de classificaçõespode ser observado na Figura

Partindo-se de Graunt com sua publicação de1662, onde apresentou uma "lista de causas demorte", e passando-se por Farr, na segunda me-tade do século XIX, e por Bertillon, nas duasprimeiras décadas do século XX, com suas"classificações de causas de morte", bem comopela OMS que na metade do século atual elabo-rou uma "classificação de doenças e causas demorte", chega-se ao século XXI com uma "famí-lia" de classificações. Partiu-se, portanto, da ne-cessidade de obtenção de informações sobremortalidade por causa e se chegou, atualmente, àpossibilidade de se obter informações para todosos níveis de assistência à saúde e à doença. Épreciso notar, porém, que as classificações com-ponentes desta "família" não contemplam a in-clusão de variáveis sociais as quais, ainda queimportantíssimas para uma perfeita caracteriza-ção do quadro saúde-doença da população, de-vem ser obtidas por outros métodos e "cruzadas"com as categorias que se desejar em qualqueruma daquelas classificações.

LAURENTI, R. [Analysis of information on health data:1893-1993, a hundred years of the Internacional Classi-fication of Diseases] Rev. Saúde públ., S. Paulo, 25:407-17, 1991. The analysis of mortality by cause, as wellas of morbidity, calls for an instrument that groups thediseases according to common characteristics, that is tosay, a classification of diseases. The WHO InternatinalClassification of Diseases, in its Ninth Revision, is cur-rently in use. This classification first appeared in 1893;its Tenth Revision is being proposed for 1993. Thispresent paper describes the origins of this internationalclassification, making special references to John Graunt,William Farr and Jacques Bertillon as well as describingthe evolution that has occurred through its successiverevisions. Initially it was a classification that includedonly causes of death. After the Sixth Revision includedall the diseases and causes of medical consultations, thusallowing its use in morbidity. For the tenth and laterrevisions, a "family" of classifications is proposed, for agreat variety of uses in health services, administrationand epidemiology. Some critical observations on thecurrent international classification of diseases are alsopresented.

Keywords: Diseases classification. Mortality. Morbidity.

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Recebido para publicação em 5/11/1991